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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.63 no.spe Rio de Janeiro 2011
ARTIGOS
Juventude e projeto de vida: novas perspectivas em orientação profissional
Youth and life project: new perspectives in career counseling
Maria Teresa MandelliI; Dulce Helena Penna SoaresII; Marilu Diez LisboaIII
IMestranda na Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. Santa Catarina. Brasil. tetemandelli@yahoo.com.br
IIDocente. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. Santa Catarina. Brasil. dulcepenna@terra.com.br
IIIPos-doutoranda. UNESP. São Paulo. São Paulo. Brasil. marilu@instserop.com.br
RESUMO
O artigo discute os temas juventude e projeto de vida, articulando-os com as concepções da psicologia sócio-histórica e da sociologia da juventude, no que se refere à compreensão de como se constitui a subjetividade. Trata-se de uma reflexão teórica sobre a categoria projeto de vida aplicada à orientação profissional de jovens de classes econômicas menos favorecidas. Essa categoria contempla a dinâmica da constituição das identidades e pode ser aplicada na orientação profissional junto a programas de inserção da juventude no mundo do trabalho. O orientador profissional, ao auxiliar o jovem em sua inserção no mercado de trabalho e na construção de sua trajetória profissional, participa da construção do projeto de vida dele. Portanto, segundo as teorias que fundamentam este artigo, o jovem, tendo maior autonomia, se constituirá como protagonista de seu processo de inserção profissional, para a construção de seu futuro.
Palavras-chave: Juventude, projeto de vida, orientação profissional, identidade.
ABSTRACT
The article discusses youth and life project topics, linking them to the concepts of socio-historical psychology and sociology of youth, when it comes to understanding how subjectivity is constituted. It is a theoretical reflection on life project category applied to career counseling of young people from economic disadvantaged class. This category ponders the dynamics of the constitution of identities and can be applied in career counseling with youth inclusion programs in the world of work. The professional counselor, assisting young people in their insertion in the world market and in building their careers, participates in building their life projects. Therefore, according to the theories that support this article, young people, having greater autonomy, will be the leading figures of their integration process to build their future.
Keywords: Youth, Life project, Career counseling, Identity.
Introdução
Este artigo trata-se de uma reflexão acerca do campo de atuação da Orientação Profissional (OP), bastante amplo, que atende a diversas faixas etárias mediante diferentes práticas. Essa reflexão justificou o desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina que investiga a construção de projeto de vida por jovens participantes do Programa Jovem Aprendiz. Neste artigo apresenta-se uma articulação da categoria projeto de vida aplicada à OP para jovens participantes de programas de inserção profissional advindos de políticas públicas.
O público foco desta reflexão são jovens de comunidades carentes participantes de programas de inserção profissional, situados na faixa etária de 14 a 24 anos e membros de famílias com renda mensal per capita de até meio salário mínimo. Eles necessitam do trabalho para seu próprio sustento e, em alguns casos, auxiliam nas despesas familiares. O trabalho de OP orientado a esse público apresenta uma necessidade distinta se comparado aos trabalhos desenvolvidos com jovens de classes mais favorecidas economicamente, para os quais as possibilidades e as escolhas são conduzidas para a construção de uma carreira universitária. Enquanto os jovens de classes menos favorecidas estão preparando-se para a inserção no mercado de trabalho depois da conclusão do ensino médio ou até mesmo sem essa formação básica, os jovens de classes mais favorecidas preparam-se para um curso universitário, realizando uma escolha que favorece a continuação de seu processo educativo formal em longo prazo, visando a sua inserção no mundo do trabalho com maior chance de desenvolver uma carreira.
Conciliar trabalho e estudos é uma dificuldade e, por isso, o abandono dos estudos para trabalhar é uma prática comum entre os jovens de baixa renda (Lisboa, 2010). Assim, essa população vê suas possibilidades de desenvolvimento de carreira limitadas diante de tantas exigências e demandas por qualificação. Então, pergunta-se: na atuação com esses jovens, qual o papel da OP? Qual o compromisso social dos orientadores profissionais com esse público?
Partimos da compreensão de que a OP é uma prática social capaz de estimular o jovem a pensar na construção de seu futuro, por promover a busca sobre si, de sua história, dando-se conta de sua condição presente, das oportunidades e exigências do mundo do trabalho, relacionando-as com suas necessidades, como subsistência, consumo e ocupações. Ao refletir sobre esses pontos, o jovem começa a moldar seu projeto de vida, concomitantemente ao projeto profissional, por perceber seus sonhos, desejos e ideias, em coerência com a realidade possível para o momento e com as perspectivas de futuro.
A OP estuda a relação do homem com seu trabalho e apresenta alguns pontos fundamentais para o desenvolvimento da presente discussão. Em primeiro lugar, é importante a compreensão dessa área do conhecimento, fundamentada na ideia do trabalho como constituinte do sujeito, ao mesmo tempo em que, por meio de suas ações, esse sujeito constrói e transforma a sociedade (Lane, 1997); em segundo, o entendimento de que as profissões não possuem existências em si mesmas, mas expressam uma totalidade de movimentos, vinculados a diferentes momentos históricos - as profissões encontram-se hoje em especial momento de turbulência, pela reestruturação produtiva adotada em nome do atual estágio do capitalismo (Aued, 1999). Em terceiro lugar, o trabalho de OP circunscreve-se nos diversos contextos em que é passível de realização, considerando as diferentes necessidades das populações, em relação aos grupos sociais, às diferentes faixas etárias e a outras características contextuais.
A OP fornece informações e estimula os jovens para a reflexão e a construção de seu projeto de vida, compreendido como construção da identidade processual em permanente e em constante metamorfose (Ciampa, 1987). Para essa construção é necessária a interação com a realidade objetiva, com o social e suas implicações.
A partir dessas considerações, este artigo reflete sobre a categoria projeto de vida voltada para as necessidades e realidades de jovens de classes menos favorecidas, ao buscar transformá-los em protagonistas de seus projetos futuros. A seguir, apresenta-se a concepção de juventude adotada neste estudo.
Juventudes: perspectivas da constituição dos jovens
A concepção de juventude deste estudo fundamenta-se na psicologia sócio-histórica e na sociologia da juventude, visões que defendem a desnaturalização da adolescência. A articulação entre essas duas vertentes possibilita a compreensão da juventude como processo social em construção, intimamente relacionado com os aspectos históricos e culturais, sem desconsiderar os aspectos geracionais e biológicos. Utiliza-se o termo juventudes para dar conta dessas diferenças: se existem juventudes, existe também a necessidade de práticas diferenciadas, que deem suporte à diversidade.
O tema juventude apresenta uma série de ambivalências: ora juventude é compreendida como potência, ou como promessa de mudança, como foi caracterizada nos anos 50 e 60, ora como problema social, risco e vulnerabilidade, concepção anunciada recentemente, nos programas de políticas públicas para esse público. Nossa finalidade ao apresentar essas diferentes concepções de juventude não é definir ou defender apenas uma, mas sim procurar compreender a juventude a partir das ambivalências.Para esse fim, é importante compreender quem são os jovens que estudamos, conhecer os contextos, seus valores e projetos de vida.
Ozella e Aguiar (2008), conforme a concepção de juventude aqui adotada, compreendem os jovens sob um olhar desnaturalizado. Assim, os significados de adolescência são construídos na relação dialética objetividade/subjetividade, não havendo uma adolescência natural. O significante "adolescência" não é negado, mas também não é compreendido como uma fase de desenvolvimento, ou como universal. O interesse científico parte da compreensão de como a adolescência é constituída historicamente, em vez de compreender o que ela é, na tentativa de criar uma identificação quase natural.
Respeitando essa perspectiva desnaturalizante de adolescência, apresentamos alguns outros autores que compartilham esse mesmo entendimento, como Novaes e Vannuchi (2004), que relativizam a categoria etária ou biopsicológica e ressaltam a relação entre homem e sociedade, e também Sarriera, Câmara e Berlim (2006, p. 21), que, ao tratarem de juventude, referem-se a uma condição social, compreendida:
"[...] como um conjunto de estatutos que assume e de funções sociais que desempenha uma determinada categoria de sujeitos na sociedade, então, no caso dos jovens, determinada pela situação de transição da dependência familiar à plena autonomia social. "
Para esses autores, além de uma condição social, a juventude é um momento experienciado como confuso e pouco definido na transição de papéis e na falta de emancipação social. Abramo (1997, 2005) ressalta que a juventude está marcada por transições entre dependência e autonomia, e que os variados processos de inserção contemplam aspectos pessoais e sociais tais como sexualidade, participação cultural e política, e inserção no trabalho. Esses aspectos manifestam modos de ser jovem e, no decorrer da história, como já mencionado, flutuam de potencial transformador para risco e vulnerabilidade social.
Entender a juventude como pluralidade teve início com Pierre Bourdieu, em uma entrevista em 1978, publicada em Les jeunes et le premier emploi, Paris. Foi a partir de seu posicionamento crítico a respeito das visões homogêneas de juventude, frequentemente associadas aos critérios etários, que Bourdieu (1983), com base em seus trabalhos de campo, percebeu uma multiplicidade de grupos e de situações sociais experimentadas pelos jovens. A homogeneidade não condizia com a realidade de suas pesquisas e, assim, iniciou um movimento no sentido de conceber as juventudes. Segundo seu olhar, as divisões etárias são formas de manipulação social, uma maneira de manter cada um em um lugar determinado, o que fica claro na seguinte passagem: "As classificações por idade (mas também por sexo, ou, é claro, por classe...) acabam sempre impondo limites e produzindo uma ordem onde cada um deve se manter, em relação à qual cada um deve se manter em seu lugar" (Bourdieu, 1983, p. 112).
Assumir a multiplicidade em relação à juventude é também assumir um posicionamento que busca retirar o caráter ideológico que atribui veracidade a apenas uma realidade específica e que acaba tornando-se marca do conceito de adolescência.
Quapper (2001) ressalta a necessidade de aprender a conhecer as juventudes a partir das diversidades sociais. Trata o juvenil como produção que de acordo com o contexto de desenvolvimento de cada grupo de jovens e seu tempo histórico. O juvenil é um modo de sobreviver à tensão existencial entre o direcionamento da sociedade para que os jovens cumpram com as expectativas em relação ao mercado, ao conjunto de normas sociais e ao papel de futuro adulto e suas próprias expectativas e identidades. A relação com o social, um vetor dessa tensão, implica transformações na forma de ser jovem. Um exemplo disso são as influências do mercado de trabalho e das relações capitalistas, que fazem a juventude seguir algumas tendências e reproduzir alguns discursos, incluindo aí os relativos à profissionalização.
O discernimento de que a diversidade inclui diferenças de ordem social, regional, étnica, educacional e de gênero cria a possibilidade de entender as representações e aspirações dos jovens, compreendendo-os como um fenômeno, e não somente como um pressuposto biológico, segundo o qual todos eles seguem uma mesma lei de desenvolvimento e de socialização.
Assim, para fazer uma análise da juventude, a dimensão social deve ser considerada, para que possamos desenvolver uma prática profissional diante dessas juventudes, guiadas por diferentes realidades, na tentativa de oferecer possibilidades de construção de um projeto de vida contextualizado.
Juventudes e o mercado de trabalho
A realidade do mundo do trabalho a partir da década de 1980 passou por profundas transformações tais como os novos modos de inserção profissional, a estrutura produtiva, bem como as formas de representação sindical e política. Segundo Antunes (2002, p. 23), as modificações foram tão intensas que "a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser". Segundo esse autor, essas transformações ocorreram devido ao desenvolvimento tecnológico, da automação, da robótica e da microeletrônica, que invadiram o universo fabril, inserindo-se e desenvolvendo-se nas relações de trabalho e de produção do capital. As estruturas social e educacional, a seu turno, passaram por mudanças de valores, entre elas maior incentivo e preparo dos jovens para o mercado de trabalho. O jovem, diante dessas transformações, passa a ser compreendido como força de trabalho, nicho de mercado, e como potencial transformador por sua reconhecida "flexibilidade" (Sennett, 2004).
O modo contemporâneo de estabelecer as relações sociais delimita também as exigências e as necessidades do mercado, que se caracterizam por um elevado grau de competitividade, concorrência e qualificação. Como exemplo disso, o estudo de Lisboa e Welter (2009) apresenta dados referentes à realidade educacional e de inserção dos jovens brasileiros no mercado de trabalho, e aponta o ingresso precoce deles, o que contribui para um alto índice de evasão escolar, principalmente no ensino médio. Segundo esse estudo, 36,6% dos jovens brasileiros ingressam no mercado de trabalho entre 10 e 14 anos, e 24,2% o fazem entre 15 e 17 anos, demonstrando que parte dos 60,8% de jovens que ingressam no mercado está em idade escolar. Ainda, consideram que 82% dos jovens entre 14 e 29 anos com renda familiar per capita inferior a 40% do salário mínimo trabalham ao mesmo tempo em que completam sua escolaridade (ensinos fundamental e médio). Esses dados nos levam a inferir que o estudante de baixa renda está defasado em relação à escolaridade, seja por sua inserção precoce no mercado, seja pela evasão escolar (Lisboa & Welter, 2009).
Sarriera, Silva, Kabbas e López (2001) consideram que os jovens de baixa renda apresentam, em maciça maioria, baixa escolarização, fator que pode colocá-los no grupo dos desempregados. Os jovens pesquisados, quando provocados a refletir sobre suas possibilidades de mudança, manifestaram interesse em melhorar suas condições de vida mediante o aumento da escolarização e da qualificação, mas colocaram-se como os únicos responsáveis pelas mudanças possíveis, sem perceber a complexidade da situação.
Pochmann (2005) considera que a transformação da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento teve uma implicação direta sobre a exigência da educação e da formação profissional. Nessa transição, o capital humano foi recuperado pelo discurso da empregabilidade, tendência que se relaciona com a educação continuada ou educação profissional "voltada para a transferência tecnológica e para a multidisciplinariedade dos programas de qualificação" (Pochmann, 2005, p. 130). Em outras palavras, o jovem deve vir a tornar-se multifuncional. Essas transformações, segundo o autor, podem tornar-se a libertação da juventude da condenação ao trabalho. Tal análise parte de uma visão geral a respeito do crescente número de jovens que postergam sua entrada no mercado de trabalho em função do ciclo educacional, pois o conhecimento torna-se elemento fundamental na trajetória ocupacional. Ainda, o autor apresenta dados que contradizem essa realidade, ressaltando diferentes tipos de jovens: "Naturalmente há ainda diferenças gritantes quando se observa o modo de vida e inserção no trabalho referente ao jovem pertencente à família pobre e ao jovem pertencente à família rica" (Pochmann, 2004, p. 219). O autor esclarece que jovens de classe econômica menos favorecida estão condenados ao trabalho como condição de mobilidade social e, assim, abandonam os estudos, apresentam baixa escolaridade e, consequentemente, ocupam vagas com menor remuneração e posições subordinadas. O contrário acontece com jovens das classes média e alta, pois estes adquirem alta escolaridade, postergam sua entrada no mercado de trabalho e disputam as melhores vagas, obtendo, assim, maior remuneração. Trata-se, portanto, de uma dinâmica social que reproduz as desigualdades de classe e que determina os modos de inserção dos jovens no mercado de trabalho.
Diante dessa realidade, cabe tecermos alguns questionamentos que sinalizam o que vem sendo produzido e reproduzido pela sociedade capitalista quanto ao trabalho no contexto brasileiro.
Poderá o jovem que vive uma trajetória escolar marcada por desistências projetar um futuro profissional da mesma forma que o jovem com condições de manter sua formação? Os atores sociais responsáveis por essa população podem contribuir para a modificação dessa tendência? As políticas públicas podem tornar-se uma ação de transformação social? Que outros segmentos da sociedade podem envolver-se para que haja efetivamente mudanças?
As instituições responsáveis pela formação do sujeito em relação à aquisição do conhecimento e ao preparo para a vida adulta, fase em que se estabelece a atividade profissional, assumem o compromisso com essa formação, mas - é sabido - nem todos têm acesso ao ensino formal, por condições econômicas e/ou educacionais adversas. As políticas públicas para educação e trabalho de jovens parecem estar desenvolvendo-se na tentativa de ampliar possibilidades e de reduzir a exclusão social, mas somente serão válidas se forem concebidas não como ações assistencialistas, mas como ações de desenvolvimento pessoal e de formação para a vida.
Para Castro (2004, p. 300), não cabe pensar em "políticas públicas para a juventude, mas políticas de/para/com juventudes". Estas se constituem como preposições que mudam o lugar do sujeito diante da ação a ele dirigida. Abramo (1997) aponta que, ao olharmos os jovens como problema social, nos desviamos de olharmos e compreendermos os mesmos como protagonistas de seu processo educativo. Ou, como consideram Sposito e Carrano (2003 p. 37), "essas orientações devem pressupor os jovens como sujeitos dotados de autonomia e como interlocutores ativos das políticas a eles destinadas".
Nesse sentido, a OP, por caracterizar-se como uma prática que objetiva auxiliar as pessoas a conscientizarem-se dos caminhos possíveis, escolhendo a partir de uma apropriação de seu contexto e dos fatores que influenciam a escolha, pode sensibilizar o jovem para a construção de seu projeto de vida. Se o jovem não for o agente desse projeto, ficará alheio a seus próprios planos de vida. A OP com jovens de baixa renda e, consequentemente, de baixa escolaridade visa orientar para a ressignificação ou mesmo para a construção de um projeto de vida, compreendendo suas possibilidades e vislumbrando caminhos para a realização desse tipo de projeto.
O orientador profissional tem o compromisso social de sensibilizar os jovens para uma escolha profissional/ocupacional coerente com suas possibilidades. E, ainda, para a construção de uma identidade profissional pautada no autoconhecimento, na informação sobre o mercado de trabalho e no desenvolvimento de um posicionamento crítico e consciente a respeito de suas escolhas e de suas limitações. É necessário compreendermos a OP para além da escolha do curso universitário, posicionando-a como facilitadora de escolhas.
O compromisso social da orientação profissional e a construção de projeto de vida
A Orientação Profissional é uma área do conhecimento que articula a relação do homem com seu trabalho e suas implicações na construção de si e da sociedade, indo muito além de facilitar a escolha de uma profissão. A OP deve ser desenvolvida de forma contextualizada, articulada com as transformações e necessidades da sociedade atual, respeitando as juventudes. Nesse contexto, devemos ter o compromisso de ampliação das possibilidades de atuação da OP, entre as quais se destaca a ação junto aos programas de políticas públicas destinados aos jovens oriundos de classes sociais menos favorecidas. Por meio dessa ação busca-se a ampliação da população-alvo da OP, que historicamente se preocupou com a orientação de jovens de classes econômicas mais favorecidas (Lisboa, 1995).
Sob essa nova perspectiva, qual será a função do orientador profissional junto a populações de classes econômicas menos favorecidas? Sarriera et al. (2006) apontam-nos algumas diretrizes, como o compromisso ético de conscientizar o jovem da importância de ele se tornar um ator social, transformador de si e da sociedade, para com isso se reconhecer como membro ativo desta. Ao trabalharmos com uma população de jovens de baixa escolaridade e baixa renda, necessitamos focar as ações para a formação de cidadãos capazes de se reconhecerem como agentes de sua vida.
"A intervenção se justifica na promoção de um sentido de conscientização deste como agente participante nas modificações micro e macrossistêmicas. Busca-se, finalmente, fornecer subsídios para que o jovem seja agente de conhecimento, interação e controle em seu contexto, reconhecendo seu papel ativo na construção de um meio eficaz para o desenvolvimento humano integral." (Sarriera, Câmara & Berlim, 2000, p. 190).
É sob essa visão que articulamos o compromisso social da OP como prática junto aos programas de políticas públicas, a fim de construir com os jovens as possibilidades de mudança.
Ferretti (1988) considera os fatores sociais e as condições de vida do jovem e de sua família advindos de uma condição social menos favorecida como restritivos, pois essa população sujeita-se às oportunidades profissionais que aparecem. Discute sobre uma autonomia comprometida, na qual os valores dominantes influenciam os comportamentos, desencadeando aspirações que não podem ser realizadas, devido à realidade socioeconômica.
Há mais de 20 anos, Ferretti (1988) já apresentava uma nova proposta de OP, em que criticava a manutenção do individualismo e do discurso de liberdade e igualdade para todos, mesmo percebendo as desigualdades socioeconômicas, refletidas em trajetórias profissionais diferentes e desiguais para as diversas juventudes.
Portanto, é necessário dispormos de um referencial de análise mais amplo, trabalhando a qualidade da escolha e nos questionando sobre a quem beneficia a orientação profissional desenvolvida hoje.
Para Lisboa (2002), a OP deve propor ao jovem uma escolha realista, contextualizada, analítica, reflexiva e crítica, que contribua para a apropriação do que seja essa realidade, de forma a ampliar os caminhos do indivíduo e da sociedade. Em outras palavras, uma OP que possibilite uma reflexão o mais ampla possível, levando em conta o conhecimento e a análise da sociedade, uma prática que auxilie o jovem a pensar, a exercitar a criatividade e a capacidade de busca.
Guichard (2001) também contribui para a uma redefinição das práticas de OP, que assegure o desenvolvimento humano como construção mútua: ao realizar sua própria identidade, contribui para que se construa a do outro. Para tal, as práticas de OP devem estimular discussões sobre o individualismo no que se refere à escolha profissional como ato que realiza aquele que a faz, mas deve também considerar a relação dessa escolha individual com a sociedade.
Os autores acima citados manifestam suas preocupações quanto à reprodução da ideologia dominante e à manutenção da discriminação e dissimulação diante das questões que envolvem o homem e o trabalho, propondo uma reflexão sobre o processo de escolha profissional, para fazê-la de modo mais autônomo e consciente.
Identidade e projeto de vida
Nossa tentativa de construir uma prática capaz de oportunizar o jovem a se perceber como agente de transformação vem-se fundamentando na categoria projeto de vida, articulada com a identidade, segundo autores como Ciampa (1987), D'Angelo (1994) e Velho (1994), que articulam o projeto de vida como elemento definidor da construção da identidade, a partir de uma perspectiva histórica e temporal.
O projeto de vida está associado a uma possibilidade de futuro, implicando um movimento através da temporalidade. Falar de projeto é falar de possibilidades de vir a ser, de "[...] identidades futuras possíveis. Todas poderiam estar expressando a inesgotável plasticidade do humano contida naquela tenra vida" (Ciampa, 1987, p. 35). Ciampa (1987) defende que cada um configura uma identidade pessoal a partir de suas relações sociais, cada um apresenta uma história de vida, um projeto de vida, não apenas visto como reprodução do que é dado culturalmente, mas como possibilidade de mudança e, portanto, de futuro não reproduzido.
Relacionar projeto de vida e identidade significa expor as diversas relações estabelecidas pelo homem em sua trajetória de vida. Sendo assim, o passado e o presente são dimensões que preparam o futuro. Segundo Soares (2002, p. 76),
"o projeto é, ao mesmo tempo, o momento que integra em seu interior a subjetividade e a objetividade e é, também, o momento que funde, num mesmo todo, o futuro previsto e o passado recordado. Pelo projeto, se constrói para si um futuro desejado, esperado."
D'Angelo (1994) conceitua o projeto de vida a partir da perspectiva multidimensional, ao integrar as dimensões psicológica e social, a maneira de agir da pessoa em seu contexto relacional com a sociedade. A noção de projeto de vida aponta uma realidade constitutiva da pessoa e da coletividade, contextualizada culturalmente e abrindo-se para o domínio futuro. Segundo o autor, todo projeto de vida se distingue por seu caráter antecipatório, organizador e regulador das principais atividades e comportamentos do indivíduo.
Em suas considerações, Velho (1994) define a categoria projeto de vida como metamorfose, que se realiza como processo temporal a partir da memória e que apresenta os meios de alcançar esse projeto, não o limitando a apenas aspirações. A memória, para o autor, dá consistência à biografia, ou seja, permite a visão retrospectiva, que embasa a condução do projeto. Para ele, o projeto é uma forma de comunicação, um instrumento de negociação da realidade, e servirá como maneira de expressar e articular interesses, aspirações e objetivos.
"O projeto é a antecipação no futuro dessa trajetória e biografia, na medida em que busca, através do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos. [...] O projeto e a memória associam-se e articulam-se ao dar significados à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade" (Velho, 1994, p. 101).
Projeto de vida é uma categoria que contempla a dinâmica sócio-histórica e o movimento de construção das identidades. "O humano é sempre uma porta abrindo-se em mais saídas. O Humano é vir a ser humano. Identidade humana é vida! Tudo que impede vida impede que tenhamos uma identidade humana" (Ciampa, 1987, p. 36). É a partir do projeto de vida que o "bicho-humano" vai dando sentido a sua vida e orientando-a. O processo de construção da identidade é compreendido, paradoxalmente, como transformação e multiplicidade, de um lado, e como unicidade e permanência, de outro.
A identidade é o processo de construção e representação de si, a partir do contexto social e da historicidade. É compreendida como relacional e em constante transformação. Segundo Ciampa (1987, p. 128), a "identidade é metamorfose. E metamorfose é vida". Sendo assim, não pode ser encarada como uma unidade imutável, idêntica ou imediata, mas sim compreendida como processo em constante reatualização ou reposição da identidade pressuposta, aquela que ao nascer identifica quem ele(a) é, de onde vem. As relações sociais vão possibilitando as transformações ou as reatualizações da identidade pressuposta. É nesse sentido que a identidade é considerada um processo de alterização. Para Ciampa (1987), a identidade, por tratar-se de um fenômeno social de transformação, dá condições ao homem de negar e superar situações contrárias a seu desenvolvimento e de tornar-se outro, ao alcançar uma condição de desenvolvimento diferente da atual.
Podemos, então, considerar que a identidade é um processo temporal de significações produzido pelas representações do que somos. Articular essas duas categorias é uma tentativa de construirmos junto com os jovens sua identidade profissional, pensando-a como um processo que acontece no decorrer da vida e que, fundamentalmente, necessita de meios para ser alcançada. Assim, o como realizar o projeto de vida passa a ser de fundamental importância. A possibilidade de o jovem perceber-se como agente desse projeto também faz parte dessa forma de redefinir a prática da OP.
Com a busca por pesquisas que trabalham a categoria projeto de vida, foi possível conhecer como os jovens a entendem e quais os elementos que dela fazem parte. Valore e Viaro (2007) pesquisaram os elementos componentes do projeto de vida de jovens do ensino médio, de escolas públicas e privadas, em Curitiba, participantes de um projeto de extensão universitária de OP. Quanto aos elementos constituintes do projeto de vida dos jovens, independentemente do contexto socioeconômico, aparecem profissão, constituição de família, estudo e preparo profissional, realização e felicidade, viagens, amigos, aquisição de bens materiais e, por fim, melhoria do mundo, sendo estes dois últimos os elementos mais citados por jovens de escolas públicas.
Sarriera et al. (2001), em seu estudo sobre a formação da identidade ocupacional de jovens de escolas públicas, mostram que eles apresentam projetos de futuro pouco definidos, bem como pouca clareza quanto a sua escolha profissional. Os estudos e o trabalho são categorias de pouco interesse. Os autores associam esses dados à baixa escolarização, situação que poderá, mais adiante, colocá-los no grupo dos jovens desempregados. Para esses jovens, o projeto de vida está relacionado com independência financeira, construção de uma família e aquisição de bens materiais, necessariamente viabilizados pelo trabalho.
Essas pesquisas demonstram que o projeto de vida está relacionado, fundamentalmente, com o trabalho/emprego e que é constituído por elementos centrados na aquisição de bens e na melhoria da qualidade de vida.
Se o projeto de vida é visto como constituído nas relações, ele também deve ser vinculado às transformações das relações humanas. Leccardi (2005) analisa as formas de criação de projetos juvenis a partir do panorama social de incerteza característico do momento atual. Nesse estudo, o projeto de vida subtrai-se em favor de um contexto imediatista, cujas mudanças ocorrem em um ritmo acelerado. No cenário social contemporâneo, o significado da idade juvenil transforma-se, a estabilidade perde o valor, e a ideia de projeto parece esgotar-se, pois "uma trajetória socialmente normalizada em direção à idade adulta deixou de existir. O ponto de chegada desta trajetória, por sua vez, é incerto, bem como os itinerários para alcançá-lo" (Leccardi, 2005, p. 49). Essa autora aponta para um momento de crise do futuro e do projeto.
As políticas públicas com o interesse de desenvolver a cidadania dos jovens mediante programas de profissionalização/inserção profissional podem associar-se à OP, a fim de refletir sobre as ações necessárias à construção de projetos futuros. Essas atuações conjuntas ampliarão as possibilidades dos jovens diante de suas escolhas e promoverão a apropriação consciente do lugar destes no mundo do trabalho.
Considerações finais
Discutimos sobre as diferentes juventudes e, principalmente, sobre a necessidade de práticas que considerem as diversidades relacionadas com o contexto socioeconômico e cultural dos jovens atendidos por programas de OP. Se existem diferentes juventudes, são necessárias diferentes práticas, contextualizadas com a realidade do mercado de trabalho. Nosso foco é refletir sobre a relação do jovem com o trabalho, concebido como uma categoria central para a construção da subjetividade, mais especificamente a construção de um projeto de vida.
A partir dessa relação, é importante refletir sobre a ampliação da OP junto aos programas de políticas públicas de inserção e profissionalização de jovens. Essa intervenção deve abordar temas que estimulem a construção de um projeto de vida, ressignificando a participação no mundo do trabalho a partir da ampliação de possibilidades, visão de mundo e compreensão de escolhas e do projeto de vida. Essa proposta busca refletir sobre o mercado de trabalho, suas exigências e seu discurso por qualificação, elaborando com os jovens um posicionamento crítico e reflexivo diante das exigências do atual mundo do trabalho. Pretende-se apresentar a eles a possibilidade de se tornarem protagonistas de suas vidas e de seus projetos. Para esse fim, o orientador profissional deve ter o compromisso de pontuar junto aos jovens suas dificuldades e suas limitações, bem como de promover a reflexão quanto às possibilidades de construção de ações concretas para superá-las, como uma maneira de apresentar um futuro ressignificado.
A OP vista como prática social visa à construção de um lugar de reconhecimento social para o jovem que está preparando-se para ingressar no mercado de trabalho e busca construir suas oportunidades. Os programas de políticas públicas voltados para a inserção de jovens no mercado de trabalho apresentam, como um dos eixos fundamentais, além da contribuição para a formação de profissionais mais capacitados, a preocupação com a promoção da cidadania. Assim, cabe de imediato a pergunta sobre como promovê-la. Um dos fóruns onde essa discussão pode ser desenvolvida passa pela OP, pois sua introdução nos programas de políticas públicas possibilita intensificar a formação social, embasada no autoconhecimento, na informação sobre o mercado de trabalho e nas oportunidades de realização de escolhas diante do contexto e realidade social. Em síntese, a OP constitui-se numa prática que visa ampliar a percepção do sujeito de si próprio em relação ao mundo do trabalho, uma intervenção que possibilita a formação de um pensamento crítico e a apropriação da autonomia do sujeito diante de seu futuro.
Referências
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Submetido: 12/11/2010
Revisto: 19/04/2011
Aceito: 15/08/2011