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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018
ARTIGOS
Walytopias brutalistas: operações para uma clínica selvagem
Brutalists Walytopias: operations for a savage clinic
Walytopias brutalistas: operaciones para una clínica salvaje
Iacã Machado MacerataI; Luis Artur CostaII; Rodrigo Lages e SilvaIII
IDocente. Universidade Federal Fluminense. Rio das Ostras. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIIDocente. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
RESUMO
O processo civilizatório tem se sustentado sob o pressuposto de que a constituição de Aparelhos de Estado são conquistas evolutivas do ponto de vista dos coletivos. Tal premissa desqualifica os modos de organização dos chamados "bárbaros" ou "selvagens", em seu funcionamento dispersivo, descentralizado e assimétrico. No que tange à emergência da clínica psicológica, especialmente na sua interface com as políticas públicas voltadas para as pessoas em situação de "risco" ou "vulnerabilidade social", vemos operar um princípio similar. Apresentamos nesse texto uma abordagem crítica dessa distinção hierárquica, tomando como inspiração alguns operadores artístico-poéticos enunciados por Waly Salomão e Hélio Oiticica, notadamente a chamada "polinização cruzada" e o "pan-cinema permanente", no intuito de apontar possibilidades para um encontro entre prática clínica psicológica e políticas públicas que esteja mais próximo de uma "clínica comum" do que de uma razão civilizatória.
Palavras-chave: Clínica Psicológica; Barbárie; Políticas Públicas; Waly Salomão; Hélio Oiticica.
ABSTRACT
The civilizational process is based upon the assumption that the constitution of State's Apparatus is an evolution achievement of collectiveness. This premise underrates the organization way of the "barbarians" or "savages" in its dispersive, non-centralistic and asymmetrical forms. Concerning the psychological clinic moreover in its connections with the public policies for those in the so called "risk situation" or "social vulnerability", a similar perspective persists. We present in this text a critical approach to this hierarchical distinction, inspired by some artistic-poetical operators stated by WalySalomão and Hélio Oiticica, notably the "cross-pollination" and the "permanent pan-cinema", aiming to point options for an encounter between psychological clinic and public policies closer to a "common clinic" then to a civilizational rationality.
Keywords: Psychological Clinic; Barbarism; Public Policies; Waly Salomão; Hélio Oiticica.
RESUMEN
El proceso civilizatorio se ha sostenido bajo el supuesto de que la constitución de Aparatos de Estado son conquistas evolutivas desde el punto de vista de los colectivos. Tal premisa descalifica los modos de organización de los llamados "bárbaros" o "salvajes", en su funcionamiento dispersivo, descentralizado y asimétrico. En lo que se refiere a la clínica psicológica, especialmente en su interfaz con las políticas públicas dirigidas a las personas en situación de "riesgo" o "vulnerabilidad social", vemos operar un principio similar. En este texto se presenta un enfoque crítico de esta distinción jerárquica, tomando como inspiración algunos operadores artístico-poéticos enunciados por Waly. Salomão y Hélio. Oticica, especialmente la llamada "polinización cruzada" y el "pan-cine permanente", con el fin de apuntar posibilidades para un encuentro entre práctica clínica psicológica y políticas públicas que esté más cerca de una "clínica común" que de una razón civilizatoria.
Palabras clave: Clínica Psicológica; Barbarie; Políticas Públicas; Waly Salomão; Hélio Oiticica.
A antropofagia da máquina civilizatória: onde está a barbárie?
Na sua emergência histórica, tanto a antropologia (Morgan, 1877/2004; Tylor, 1958) quanto a sociologia (Durkheim, 1913/2012) estabeleceram uma separação substancial entre o civilizado e o selvagem: as civilizações e os agrupamentos primitivos. O que marcaria essa diferenciação seria o desenvolvimento (ou não), no seio do conjunto em questão, de uma estrutura que regulasse as relações internamente e externamente ao agrupamento: um "Aparelho" (Bobbio, Manteucci, & Pasquino, 1998) composto por uma série de atores regidos pela ação de um poder centralizado e centralizador. Segundo essa perspectiva que podemos chamar de socioevolucionista, seria fundamental para a distinção entre selvagens e civilizados a existência de um modo de organizar o plano existencial coletivo que operasse por centralização, convergência da gestão das riquezas e da conduta das condutas, sobrecodificando as relações sociais com normatizações binárias (sim ou não) nos mais diversos campos: trabalho, convivência, alimentação, reprodução, higiene, entre muitas outras. Centralização, convergência e sobrecodificação que estabelecem determinados universais reguladores: uma escrita oficial, em lugar da multiplicidade babélica; uma lei, ao invés da pluralidade de pactos e tratados locais; uma força militar perene, em vez do recrutamento tribal em seus diversos compromissos de lealdade. De todo modo uma unidade. Aparelho e operação centrípeta de cristalização das relações de poder. O surgimento do "aparelho de captura" (Deleuze, & Guattari, 1997), ou do Estado, é o acontecimento que estrutura, segundo esta episteme, que em um dado momento foi hegemônica nas ciências sociais, uma distinção clara e definitiva entre as formações sociais possíveis. Distinção esta que é, por sua vez, escalonar: da menos civilizada - sem Estado - à mais civilizada - com Estado.
Enquanto nas culturas primitivas as segmentariedades moleculares (Deleuze, & Guattari, 1996), ou seja, as diferenciações minoritárias, não hierárquicas, e que não chegam a formar categorias, classes ou grupos identitários, estão justapostas, contingenciadas umas às outras, em um mosaico de tribos, clãs, hordas, famílias e bondes; os civilizados produzem sobre esta geometria complexa uma molaridade hegemônica que apaga as forças segmentares com formas circulares concêntricas e hierarquizadas (Deleuze, & Guattari, 1996). Isto significa dizer que sobre o complexo código dos primitivos e sua fragmentação heterogênea inscrevem-se círculos concêntricos (do geral, que a todos engloba, ao particular) hierarquizados em estruturas de comando descendentes. Modelos centrais que tendem a homogeneizar as diferenças periféricas através de uma cadeia de comando que exige a construção de aparelhos políticos, militares, policiais, de seguridade alimentar, de cura, de culto, entre outros fins. Em suma, trata-se de uma série de sobrecodificações através das quais são talhadas constâncias e simetrias a partir das anomalias selvagens.
Clastres (2013) diverge desta perspectiva socioevolucionista a qual considera que a construção desta dinâmica molar representada na figura do Estado é o resultado natural das culturas que ultrapassaram uma economia de subsistência, quando, ao vencer a precariedade e o risco inerentes a uma economia que produz o mínimo necessário para a existência, tais culturas adquiririam uma maior complexidade, fruto do acúmulo de bens. Disso decorreria a possibilidade de investir esforços em estruturas físicas e simbólicas que poderiam prover mais estabilidade, organização, complexidade e capacidade produtiva. Segundo esta perspectiva contraposta por Clastres (2013), o acúmulo de bens e produtos os permitiria dar um passo além da mera manutenção, possibilitando a construção de um Estado, de uma máquina civilizatória produtora de centralidade, estabilidade e homogeneidade. Essa seria, por exemplo, a distinção entre Incas, Astecas e Maias, de um lado, para com as diversas tribos amazônicas e do pampa latino-americano. Enquanto as primeiras teriam tido êxito em ultrapassar a precariedade e construir suas máquinas civilizatórias, as outras foram consideradas reféns das secas, inundações, pestes e outras variações na oferta de alimentos da floresta, jamais vencendo a instabilidade inerente a esta condição. Enquanto as civilizações expandem sua máquina de estabilidade e homogeneidade sobrecodificando novos territórios geográficos, culturais e existenciais, as supostas culturas de subsistência se transformariam a cada encontro, se desfazem e refazem, sendo consideradas incapazes de reproduzir a si mesmas. Assim, perspectivas socioevolucionistas incorrem em uma lógica de oposição binária que toma na figura do Estado a unidade de medida que distingue selvagens de civilizados. A cosmologia ocidental relaciona "arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado" (Clastres, 2013, p.202).
Psicologizando indivíduos, formando trabalhadores
Tal passagem da barbárie à civilização pelo (sobre)trabalho e acúmulo de bens serve como operação de cisão entre homem e natureza: aos intempestivos fluxos da natura o homem impõe as simetrias da cultura. O trabalho, portanto, se torna o cerne que diferencia o animal humano dos demais: de Adam Smith a Karl Marx será esta exclusiva atividade de transformar o dado natural em bens de consumo que construirá nossa cultura, nossa moral, nossos modos de existência. Sejam os princípios coletivistas materialistas ou individuais iluministas, ambos veem a história da humanidade como um processo de racionalização das relações entre os homens. A civilização emerge como a ordem que se constrói sobre a desordem dos bárbaros e da natureza. Tal desenvolvimento (dialético ou progressista) da barbárie à civilização se dá, portanto, através da ação transformadora do trabalho, a qual produz uma cultura centrada na sua atividade correspondente: o trabalhar. Daí que, embora o capitalismo na visão de Marx produza barbárie na exploração do homem pelo homem, sua contradição com o caráter civilizatório do trabalho o legaria a um inexorável declínio e decorrente superação (Marx, 1844/2004). Na barbárie dos nômades e tribos segmentares, por outro lado, não há uma centralidade do trabalho e da acumulação de bens (Clastres, 2013). Tais agrupamentos não guiam suas condutas em função da produção e apresentam comportamentos inesperados aos civilizados, ao preterirem o progresso do trabalho pela abundância do lazer:
Se em nossa linguagem popular se diz "trabalhar como um negro", na América do Sul, por outro lado, diz-se "vagabundo como um índio". [...] Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do Brasil. Grande era sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se empetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor suas áreas cultivadas [...] E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa em um tempo dez vezes mais curto (Clastres, 2013, p. 205-208).
O culto ao trabalho, próprio da perspectiva moderna, afirma uma clara teleologia das culturas em muito similar às que são elaboradas pelas teorias psicológicas do desenvolvimento humano e de seus modos de interação. Em algumas obras de autores como Bion (1975), Freud (1921/1991) e Le Bon (1895/1963), por exemplo, fica totalmente evidenciada a teleologia civilizatória guiada pelos critérios de fixidez, simetria e trabalho. Em uma espécie de neuroticocentrismo laboral europeu, estes autores referem-se aos agrupamentos humanos em uma perspectiva hierarquizada sob a primazia dos mais formalmente e centralmente ordenados para o propósito do trabalho. Os coletivos flexíveis, de organizações pouco formais e pouco fixas, dedicados a atividades não produtivas, são vistos como agentes patogênicos ou regressivos que devem ser ou correm o risco de serem centralizados pela ação de um líder em um esquema normativo tão claro quanto rígido. Enquanto em Le Bon (1895/1963) temos a perspectiva de uma fragilidade constitutiva própria das massas, que teriam uma alma volúvel e influenciável como, supostamente, a das mulheres, em Freud (1921/1991) esse caráter errático de alguns agrupamentos anunciaria também o perigo das identificações totalizantes e seus fascismos. Bion (1975), por sua vez, aponta a dimensão regressiva que os coletivos imprimem sobre o sujeito, mobilizando defesas psicóticas. Na antropologia é Clastres (2013, p. 85) quem vai fazer a crítica do caráter regressivo-infantil que muitos antropólogos impingiram às "culturas de subsistência", acusando-as de "egocentrismo e agressividade que atestariam o (seu) infantilismo", outorgando às suas organizações políticas o atributo negativo de irracionais, ao invés de admitirem a racionalidade singular imanente às suas estilísticas existenciais. Bárbaros e civilizados são divididos nestas psicologias sociais binárias entre o patológico e o normal e nessas antropologias culturais evolucionistas, entre um nível primitivo-regressivo e outro avançado-evoluído de desenvolvimento, seja ele psicológico ou social/político.
Aqui a patologia e o regressivo são identificados à ausência de uma organização estável e molar obediente às simetrias desta (Deleuze, Guattari, 1996), voltada à produção pelo trabalho: o perigo está na flexibilidade e na fluidez para o prazer que seriam próprias das massas selvagens. Nestas perspectivas, vemos o elogio da organização neurótica racionalizadora contra o selvagem polimorfo em seu oceano afetivo. Vemos a função da clínica como promotora de uma certa concepção de saúde mental de colocar-se a serviço dos Aparelhos de Estado como dispositivos civilizatórios colonizadores das subjetividades anômalas-primitivas. A clínica nas políticas públicas, sob essa perspectiva, faria um consórcio com as estratégias do Estado em uma cruzada em prol da organização, simetria, planejamento e previsibilidade da sociedade, em especial, aos seus segmentos ainda não integrados nas tecnologias de subjetivação civilizatórias.
Esse artigo não pretende realizar uma apreciação da clínica psicológica em geral, mas, tão somente, de sua intersecção com as políticas públicas, especialmente aquelas que se ocupam dos sujeitos ditos "em situação de risco" ou em "vulnerabilidade social". Buscamos evidenciar algumas forças que atuam na emergência histórica desta articulação entre clínica e políticas públicas, assim como apontar certas operações clínicas que descortinam possíveis ao mesmo tempo para o âmbito do trabalho em políticas de assistência ou de saúde com sujeitos marginalizados e para o plano da produção de subjetividades que paradoxalizem essa oposição entre selvagens e civilizados.
Práticas no campo do social: o caso da clínica nas políticas públicas
Há uma articulação histórica na aurora da modernidade entre um plano de desenvolvimento produtivo que passa a depender cada vez menos da terra, do clima e das relações territoriais filiativas e se organiza a partir da unidade elementar do indivíduo assalariado em sua desterritorialização capitalística, com o plano da experiência subjetiva, a qual passa a se modular cada vez menos por sua inscrição em categorias abrangentes e massificantes (a tradição, a classe social, a identidade regional) e mais por singularidades flexíveis: os perfis, os estilos, as tribos, as gerações, as tendências (Deleuze, & Guattari, 1976). Garantir que nessa nova flexibilidade os efeitos massificantes não se percam integralmente, tem sido uma das atividades da psicologia. É, portanto, nesta nova dobra do sujeito sobre si mesmo, a primeira tendo sido operada através da democracia grega (Foucault, 1982/2004; Deleuze, 1992a) e a última, pela modernidade disciplinar (Foucault, 1976/1987) e pela sociedade de controle (Deleuze, 1992b), que surgem as condições para a emergência de uma clínica psicológica. Sendo, portanto, a clínica psicológica uma tecnologia de subjetivação (Rose, 2011) que age no sentido da individualização e da interiorização da experiência subjetiva ao mesmo tempo em que se oferece como remédio para as subjetividades desviantes (especialmente àqueles que não intermedeiam a sua relação consigo próprios pelo valor supremo do trabalho).
Seguindo as perspectivas que compreendem o surgimento da questão do social como a produção de uma série de tecnologias de subjetivação as quais visam formar novos homens para uma nova economia (Castel, 2003; Foucault, 1976/1987, 2006a, 1978/2006b; Rose, 2011; Silva, 2005), podemos compreender que em nosso tempo a distinção e batalha entre selvagens e civilizados se dá na ação da máquina estatal sobre os infames (Foucault, 1977/2006c), que precisam ser auxiliados pelo Estado a integrarem-se em uma certa modulação das suas existências: loucos, vagabundos, andarilhos, rebeldes, entre outros, devem ser reformados para poder se inserir nos fluxos de produção-consumo capitalísticos, evitando que sejam um obstáculo a eles. O Aparelho de Estado Moderno foi uma longa e árdua construção de uma série de tecnologias das relações de poder voltadas para a vascularização das mesmas no tecido social com fins de administrar fluxos de corpos e riquezas, gerir os campos de possibilidades de ações (pelo treino, formação, regulamentação, fomento, punição etc.) e, além disso, evitar que a barbárie irrompesse em meio à cidade civilizada. As políticas públicas no campo do social - esse campo de intervenção dos órgãos oficiais da sociedade sobre aquelas populações da margem (Castel, 2003; Silva, 2005) - são concebidas como afirmação da civilidade contra a barbárie: disciplina e biopolítica (Foucault, 2008) como ação de gerir as fraturas sociais entre a ordem jurídico-política do Estado Democrático de Direito e a ordem econômica da Liberdade de Mercado (Silva, 2005). A razão da invenção do campo de intervenção da sociedade moderna sobre ela mesma, isto é, o campo do social ou das políticas sociais, seria evitar potenciais insurgências, resistências, rebeliões e revoltas advindas deste hiato, ou da própria dupla mensagem esquizofrenizante da ordem moderna: todos são "iguais", porém uns mais "iguais" que outros (Orwell, 2007) - ou todos são iguais, mas a desigualdade é a mola propulsora da produção social.
Podemos entender que as políticas públicas que passaram a ser implementadas mais fortemente no Brasil pós-redemocratização, pós-Constituição de 1988, derivaram, embora apenas em parte, deste campo do social nascido junto com a sociedade moderna. Se ao longo da história esse campo teve como componente e produto a prática de um certo saber psi, também nas novas políticas públicas brasileiras - as chamadas políticas cidadãs - os psicólogos se fazem cada vez mais presentes, dentro ou fora da estrutura formal do Estado. Tomemos como exemplo o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Sistema Nacional de Socioeducação (Sinase), o trabalho de prevenção e promoção de saúde em doenças sexualmente transmissíveis/síndrome da imunodeficiência adquirida (DST/AIDS), a redução de danos, e uma série de outras políticas públicas que tem a escuta psicológica como um recurso fundamental para que os usuários consigam extrair plenamente os benefícios destas governamentalidades (Foucault, 2006a).
A prática clínica do psicólogo passa a encontrar-se, nesses espaços das políticas públicas, com outras clínicas. Por clínica entende-se não uma escola, instituição ou saber específico, já que, como argumenta Michel Foucault em "O nascimento da clínica" (Foucault, 2001), são menos os saberes científicos que produzem a clínica, do que a clínica que produz os saberes científicos na saúde e até nas ciências humanas. Afirmamos, portanto, a clínica como uma prática que se faz no encontro. Historicamente, o encontro entre alguém considerado doente - um paciente - e alguém que tem um sistema de referência de saber e intervenção sobre a doença - um médico, um psicólogo. Porém, nos espaços das políticas públicas construídas após a Constituição Federal de 1988, a clínica psicoterápica, a clínica médica, a ação de promoção em saúde dos agentes comunitários, o trabalho de visitas domiciliares dos assistentes sociais, as práticas de orientação em medida socioeducativas, enfim, todos estes saberes e práticas que emergem do encontro entre um sujeito colocado numa situação de demandar cuidado e de outro que se coloca na situação de poder cuidá-lo, passam a convergir para um espaço compartilhado de trabalho. Esse encontro com outras práticas passa a transformar a clínica psicológica e a própria psicologia: isso fica evidente na transformação que a psicologia sofre a partir da década de 1980, saindo dos consultórios (Ferreira Neto, 2004), ampliando o sentido de sua clínica e colocando em xeque a ideia mesma de terapêutica como simples reestabelecimento de uma ordem psicológica.
Uma transformação se expressa, com este encontro, também no próprio campo das políticas públicas, em especial da saúde. Campos (1997) fala que, embora as doenças sejam o verdadeiro objeto de trabalho da clínica, é necessária uma ampliação do objeto de saber e de intervenção da clínica. Além da enfermidade, o objeto tradicional de uma clínica moderna, seja médica, seja psicológica, também o sujeito e seu contexto devem ser objeto de estudo e de práticas clínicas. Nessa ampliação, a clínica, como sistema de referência, se encontra com um sujeito em um contexto (Campos, 1997). No contexto da saúde coletiva brasileira, se formula a noção de clínica ampliada, almejando que a prática clínica exercida, especialmente nas políticas de atenção básica em saúde, fosse mais coletiva, mais aberta a outros saberes técnicos e locais, que ela buscasse escapar à separação mente/corpo, individual e social (Cunha, 2004).
Na experiência brasileira, em especial no campo da saúde, mas não restrito a ele, foi necessário pensar uma ampliação da clínica no que diz respeito a uma transversalização de seus saberes. Tal experiência produziu efeitos no próprio campo psi brasileiro. A transversalização dos saberes, ao longo dos anos 2000 no Brasil, possibilitou uma nova formulação nas variantes da clínica psicoterápica: uma clínica de abordagem transdisciplinar. Nessa abordagem, clinicar é "propor estratégias teórico-clínicas particulares, singulares, que digam respeito aos problemas também singulares que a clínica nos propõe" (Rauter, 2012, p. 20). Ela não é uma técnica, embora as utilize. Não é um saber, embora os empregue e os retroalimente. Clínica é um modo de operar um cuidado (Macerata, 2015). Não há garantia científica na clínica. Há um engajamento ontológico permanente no qual aquele que se propõe a operá-la é sempre confrontado (Passos, 2002).
A pragmática clínica aqui apontada tem como foco acessar os processos de produção da subjetividade: não somente o sujeito e seu contexto, mas seu processo de produção, de subjetivação, ali onde ele se forma, ali onde o sujeito é processo. Clínica que se faz a partir de dois operadores: um operador analítico, no qual se decompõe, desnaturaliza as formações subjetivas/sociais, que fazem advir vários planos existenciais; e um operador articulacional, no qual os sistemas de referência que estão aparecendo na análise vão poder ser articulados de outras formas, de maneira que outras coordenadas existenciais possam advir (Rauter, Passos, & Benevides, 2002; Passos, 2002). Esta noção de clínica modula o agenciamento entre dois sentidos: acolhimento, que vêm do grego klinicós, como movimento de debruçar-se sobre a singularidade no leito do doente; e produção de desvio, tomando o sentido da palavra grega klinamen, como abertura do campo de possibilidades do átomo para além do determinismo no choque entre partículas, provocando desvio e indeterminação Rauter, Passos, & Benevides, 2002; Passos, 2002). Clínica pensada na sua inseparabilidade com o não clínico: com a ética, com a estética, com a política. Ali onde estes vetores engendram processos de singularização. Clínica, nessa perspectiva, envolve promoção de desvio nos modos de ver e agir, é uma operação, não uma disciplina: tem o sentido de acolhimento e criação, opera por análise e composição, em vários dispositivos (consultório, equipes, grupos) diferentes (Macerata, 2015).
É por essa perspectiva da clínica pensada como inseparável da política que não se pode deixar de colocar em análise a paisagem social contemporânea, na qual, uma linha insiste: o processo civilizatório. Mas tal perspectiva da clínica é também inseparável da estética. Por isso, ao longo do texto, é através da arte e de algumas experiências artísticas brasileiras que vamos colher elementos que nos ajudem pensar práticas clínicas nas políticas públicas. É que sem essas relações político-ético-estéticas, a própria clínica tende sempre a restar de modo totalitário em seu histórico como prática de reestabelecimento do "normal": questão inserida na lógica do aparelho de captura. Há um modelo hegemônico de clínica que, fundado na crença de uma postura neutra, busca produzir a "correção" daquilo que entende estar desviado e fora da norma, impondo-se como modelos de identificação a serem reproduzidos em nome da ordem e do bem-estar (Fonseca, & Kirst, 2004). Pensar a clínica em relação aos processos de produção de subjetividade históricos e situados implica a crítica/análise política, ética e estética das formas sociais instituídas (Rauter, Passos, & Benevides, 2002; ).
Arte e antropofagia: como construir para nós protocolos selvagens?
Em nosso repertório civilizado ocidental, onde podemos encontrar operações que propiciem a paradoxalização entre o selvagem e o civilizado, rompendo com esta segmentação binária? Podemos adiantar que um dos campos férteis na transgressão destes limites é a arte, em especial uma parte da arte brasileira que buscou sua inspiração justamente na antropofagia e no rompimento com a norma civilizada no interior da própria. Hibridização que articula o que Rolnik (2000) chama de princípio constitutivo da subjetividade no Brasil: o princípio antropofágico. Esse princípio, que em nada se parece com um centro organizador, mas mais como uma operação, um "princípio-ativo", consiste em engolir o estrangeiro, aquele que seria diferente, de modo que "partículas do universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e, na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação" (Rolnik, 2000, p. 10). A antropofagia é uma hibridização da cultura dita selvagem, ou não ocidental, com a cultura ocidental. Essa mistura está colocada já no Manifesto antropófago de Oswald de Andrade (1924/1990) que vislumbrava um primitivismo ou matriarcado tecnológico. A antropofagia de Oswald de Andrade propõe uma articulação entre selvagem e civilizado, entre ocidental e não ocidental, através da devoração do segundo pelo primeiro.
A verve antropofágica já colocava a pergunta: ao invés de responder o que a civilização faz aos selvagens, o que os selvagens podem fazer com a civilização? Podemos dizer que está em questão para a antropofagia a criação do mundo: "da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu" (Andrade, 1924/1990, p. 49). Vemos nos anos 1960/1970 o início de uma série de movimentos que retomam a questão antropofágica da devoração e digestão do estrangeiro, da articulação entre selvagem e civilizado, dentre os quais o Tropicalismo seria um estandarte. Entendemos que nestes movimentos há como que uma atualização do problema antropofágico e, ainda, um desdobramento de suas estratégias.
Estes movimentos apontam importantes indicações para uma possível clínica que se articule com o Estado, mas que não se reduza à máquina civilizatória que acultura os selvagens. Para mostrar o que intuímos vamos nos centrar na vida/obra de dois artistas que em nosso entender levam adiante a questão antropofágica através da Tropicália e para além dela: Hélio Oiticica e Waly Salomão. Estes, paradoxalmente, unem em suas operações artístico-poéticas a "alta cultura" dos salões e galerias com a "cultura marginal" da periferia e dos selvagens incultos. A operação antropofágica de afirmar a barbárie pela civilização e vice-versa, o labor de rebaixar a cultura marginal ao erudito e de elevar este aos guetos, faz destes artistas possíveis aliados em pensar uma clínica dentro do Aparelho de Estado que possa pensar selvagerias e brutalismos em meio aos seus protocolos e normativas regulamentares.
A potência do bruto: a poética transgredindo civilidades
Em Hélio e Waly, vida e obra são experimentadas como dimensões amalgamadas, produzidas em um mesmo plano de experimentação. E muitas destas experimentações eles realizaram um em companhia do outro. É em Oiticica que a primeira obra de Waly ganha eco. "Apontamentos do Pav Dois", de 1971 é o primeiro texto poético de Waly, resultado de uma "decida do poeta ao inferno". Waly fora preso em São Paulo, com uma porção de maconha, e na casa de detenção Carandiru escreveu o texto: "foi uma concentração até espacial do desejo e saiu o texto... quer dizer, o que era prisão virou liberação de forças" (Nader, 2008). "Boca do boi = orifício sanitário. Aqui igualou todo mundo ao nível do merdame: do ordenamento jurídico à observância das leis sanitárias: para sua comodidade e higiene, conserve limpo este lugar. A mesma ordem superior" (Salomão, 2003a, p. 63).
Saído da cadeia, Waly mostrou o texto a muitas pessoas, sem retorno. No entanto, meses depois Oiticica já diagramava e lançava o poema. Havia algo ali que lhe interessava: o processo de produção exposto, tanto da obra como do artista. Além disso, as condições de possibilidade de criação do "Apontamentos do Pav Dois" eram justamente a de uma aproximação com o território social desvalorizado, um inferno da sociedade. Podemos dizer que em Oiticica a imersão em territórios à margem da sociedade também operaram transformações fundamentais em sua vida/obra. É este tipo de aproximação e imersão o primeiro ponto que queremos destacar em Salomão e Oiticica: poética sofisticada do brutal quando da relação entre a dita alta cultura ocidental com suas zonas marginais.
A ideia de bruto aparece no comentário de Salomão (2003b) sobre a obra de Oiticica. Waly descreve a experimentação de Hélio pela aproximação com a favela, com o samba, com a rua. Esta experimentação partia de uma vontade de transformação de si e de uma vontade de chegar ao "bruto do mundo em seu nascedouro", marca Waly (Salomão, 2003b, p. 37). Bruto é matéria bruta, ou a matéria do mundo in bruto, ainda não lapidada, categorizada por qualquer máquina social instituída. O acesso a um bruto do mundo em seu nascedouro é a condição mesma da criação - de si e do mundo - ali onde as formações estéticas não estão totalizadas, ou são totalidades abertas, com seu processo de produção exposto. Bruto que Hélio (Salomão, 2003b) identificava na estética da favela, do morro.
Este é um ponto fundamental para esse movimento que aqui vamos chamar de brutalista. Movimento que tem como cavalos Hélio e Waly. Cavalos no sentido mesmo que a cultura afrobrasileira a empresta, isto é, de suporte, mas não de contenção; de possessão, mas não de posse. O ponto decisivo dessa antropofagia brutalista é, entendemos, a aproximação e a contaminação com o outro que está na margem. Esta aproximação é vital para a criação da obra e para transformação de si e do mundo.
Antropofagia brutalista na Polinização Cruzada e na clínica: experimentação, contágio e composições delirantes
Waly, ao abrir seu livro sobre Oiticica (Salomão, 2003b), enuncia seu método: estilo enviesado, conversa entrecortada como o labirinto dos morros cariocas; zigue-zague entre escuridão e claridade, "juntar materiais heteróclitos multiformes almejando um sentido esperto de forma" (Salomão, 2003b, p. 10); do caos ao cosmos e o inverso como capacidade de se esvaziar de novo. Experimentar o experimental, juntar diferenças, amalgamar distâncias, variar variações. O sintagma polinização cruzada reúne estas operações. Cremos ser a polinização cruzada a grande operatória de Waly. Para isso ele precisa constituir seu corpo sensível "outinside - os dentros de whitin" (Salomão, 1983, p. 81) a polinização cruzada se faz por corte/conexão onde ele seleciona os mais variados elementos alheios a si, os separa como o "açougueiro sem câimbra" (Salomão, 1998, p. 23), que é como ele define o poeta brutalista.
Esse jogo de corte/conexão elide sujeito e objeto, e torna possível a polinização, o contato criador, o momento erótico da concepção: "O jogo elide sujeito e objeto, o amor elide sujeito e objeto" (Salomão, 1993, p. 41). É disposição a uma contaminação que se faz criação: "Não me venha pedir uma fala não infestada de vírus, não inoculadora de vírus infiltráveis ultravírus... eu desejo o próprio ato de criação" (Salomão, 1983, p. 163). Nesse sentido o poeta é brutalista: "faço versos como quem talha. A facão. [...] aparto de mim uma ruma de poemas. Ao escrever (sem lume, vista turva, cego no olho bruto) o ego some, esfuma [...]. E o nume Ninguém Nenhures é quem assume a autoria" (Salomão, 1998, p. 23).
A polinização cruzada como um misto de linguagem de rua e erudição, de tradição oral e tradição escrita, entre o lido e o vivido. Ele não quer um ou outro, quer sua hibridização:
[...] de um vértice: a orelha tornada orelhão para captar a fala atravessada das ruas. De outro vértice: os livros vasculhados com a obsessiva monomania de personagem de Dostoiévski. Preciso ler, ler e ler como se nada nunca bastasse. Assim é que me caracterizo, como se caracteriza os ônibus de trajetos circulares: terminais em aberto. Voraz atrás de novas camadas de leituras, de interpretações do mundo, inconclusivas e inconcludentes, pois não há interpretação finalista do mundo. O que surge com a marca evidente da derivação vivencial deve passar pelo crissol do lido para que não permaneça um produto naturalista. E a operação inversa deve ser buscada para o que surgir precipitado por leituras: deve passar por uma real imensidão nos líquidos amnióticos da vivência. Penetrar até o âmago de cada código e desprolongar bulas e posologias prévias. Usar em mão dupla o arco que une caos e cosmos. Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado. Entre a confissão e o jogo. Entre o vivenciado e o inventado. Entre o propósito e o instinto. Imbróglio d'álgebra e jogo de azar. Procura do ponto de liga alquímica [...]. Entre o ponto e o poroso. Entre: a coleção na corda bamba da ponte pênsil. Entre: nas brechas em que lacuna vira cesura, cadência e, quem sabe, ligação. Vir a ser um traço de união. Uma rede perambulante (Salomão, 1993, p. 88-89).
Esta passagem apresenta uma tentativa de totalização do pensamento de Salomão acerca da polinização cruzada, mas totalização a sua maneira, isto é, sempre com a margem inconclusa e precária do gesto de Waly de incluir e, ainda, inconcluir. O cineasta Carlos Nader, amigo e diretor do documentário sobre Waly, "Pan-cinema permanente", para o qual Waly dedicou a poesia de mesmo título, fala que Waly: "encarnado em poesia era uma pedra intensamente lapidada para continuar bruta, uma seiva repetidamente filtrada para continuar impura" (Nader, 2008).
Em resumo, quisemos destacar algumas pistas nos planos-experiências de Hélio Oiticica e Waly Salomão, pistas que entendemos serem fundamentais para uma clínica Pública para além das Políticas de Estado e de Governo (Barros, & Passos, 2005; Bobbio et al., 1998). Uma clínica que toma inspiração numa perspectiva pan-cinemática, como modo de ver a partir de um realismo delirante, realismo da margem, da fronteira, uma capacidade transitar entre as perspectivas. Modo operativo da polinização cruzada, operação "geleia geral" de criação, mistura, que entendemos ser uma operação clínica (Macerata, 2015; Passos, 2002; Passos, Barros, 2000). A inserção da psicologia nas políticas públicas, na saúde pública, mais especificamente, convoca a uma nova atitude frente ao campo e frente ao método mesmo. Atitude esta que pode encontrar na arte uma aliada para não se deixar capturar na lógica civilizatória de capacitação dos homens para que suportem uma vida ordenada pelo valor do trabalho e do consumo, ainda que na condição de precarização do trabalho e privação do consumo.
Arte como operadora de paradoxos entre civilização e barbárie nas políticas públicas
A operação de Polinização Cruzada não busca apenas constituir um pensamento selvagem, como uma outra lógica singular que se diferencia da Ocidental, como fizeram, cada um ao seu modo, Lévi-Strauss (1962/1989) e Castro (2006), ao explicitarem as complexas ontologias dos indígenas que definem os seres para além das metafísicas essencialistas centradas na utilidade de produção e consumo bem próprias à civilização ocidental. Falamos de contágio entre as diferentes lógicas, possibilitando novos acoplamentos e novas possibilidades de ser, fazer e pensar. A consideração do pensamento dos bárbaros e suas brutalidades é que tornam possíveis estas rachaduras nas representações ocidentais e sua reinvenção híbrida, por isso nosso foco recai sobre este delirar do nosso bom senso em novos sentidos.
Do mesmo modo, ao propormos tal aproximação com o universo da poesia e das artes plásticas, na esteira do que propõe Badiou (2002), não se trata de um imperativo para simplesmente substituir as ciências pelas artes, em uma bravata romântica que vê a "verdadeira verdade" nos fluxos sensíveis e não nas representações abstratas. Trata-se antes de apostar na potência inventiva advinda do hibridismo entre as artes e suas composições de sensíveis com as ciências e suas coordenações de representações (Deleuze, & Guattari, 1992). Em vez de focar nas sensibilidades concretas contra representações abstratas ou vice-versa, vamos buscar as sensibilidades concretas das abstrações e os conceitos das concretudes sensíveis. Movimento Antropofágico que se guie pelas misturas e impurezas. Evidentemente outras experimentações e movimentos artísticos para além da Antropofagia Brasileira também realizam esta operação de paradoxalização entre selvagem e civilizado: vemos nos próprios hibridismos entre ciências e artes as operações que pervertem tal binarismo. Pensemos, então, acerca das potências advindas por estes hibridismos entre artes e ciências nas Políticas Públicas.
O plano das ciências pode ser denominado como Plano de Coordenadas (Deleuze, Guattari, 1992). As coordenadas delimitam um quadrante com dois eixos (X e Y) constituídos por variáveis independentes os quais permitem o total e preciso esquadrinhamento do plano. Podemos afirmar ou negar a existência e localização de qualquer objeto no mundo a partir destes eixos: há ou não esquizofrenia neste corpo, ele é pobre ou classe média, vulnerável ou não, etc. Assim, o plano de coordenadas serve para objetivar entidades ou atributos (variáveis) e emitir juízos que delimitem claramente a existência ou não de certos objetos. Sua principal operação no mundo é a busca de generalizações e replicações, de controle e previsão: entidades são tornadas abstratas e homogêneas a partir de sua simplificação, assim como o tempo futuro é previsto a partir dos padrões passados.
No entanto, nas práticas das Políticas Públicas nem tudo pode ser generalizado e homogeneizado, nem tudo deve passar pela transcendência do Estado em busca de um todos nós abstrato e geral. Certas práticas devem se desenvolver na artesania da construção de um plano comum, onde não se produz uma unidade geral e una entre o mínimo ou máximo denominador comum da população (abstração do todos mediada pelo Estado e suas estatísticas), mas sim a possibilidade de encontros e vínculos singulares entre diversos sujeitos quaisquer (trama complexa de relações singulares e fragmentares). Para compor este comum aquém e além de um denominador geral qualquer, temos que confeccionar diversos pontos de contato entre o Estado e a multidão, desfazendo o primeiro em uma capilaridade fragmentar guiada pela segunda.
Para elaborar esta artesania de relações que tece o plano comum dos encontros, precisamos de outra operação do saber que não aquela das coordenadas com sua simplificação, homogeneização e generalização. Precisamos de um modo de produção do saber que não quer apenas definir as fronteiras duras do que é dado, mas sim desfazer as fronteiras instituídas para permitir novos pensares, abrir mais os regimes do visível, do dizível, do que nos afeta e do que podemos afetar. Um saber que não quer apenas simplificar nossas relações com o mundo para prever e controlar seus efeitos, mas sim multiplicar a biodiversidade, a heterogeneidade das nossas tecnologias de produção singulares do mundo e de nós.
Para este outro modo de produção do conhecimento, que ultrapassa a definição estrita da ciência, é que necessitamos das artes como aliadas do pensamento. Se o Plano de coordenadas se guiava pela produção de mundos coerentes, sem sobreposições, ambiguidades, paradoxos, imprecisões, fragmentariedades, incoerências etc., no plano das Artes, aqui denominado Plano de Composições (Deleuze, Guattari, 1992), nosso objetivo é a produção de novas afetações possíveis. Não existem leis ou princípios que delimitem a priori como deve ser composta uma obra de arte, um bloco de percepções e afetações possíveis, a única condição da existência de uma obra de arte é que este bloco provoque novas afetações, desloque os regimes de pensamento, visibilidade, sentimento. Em vez de buscar a produção de uma unidade coerente e simétrica como no plano de coordenadas, o plano de composição se volta para adensar e complexificar a trama de composições, mesmo que isso redunde em um plano fragmentar, paradoxal e pleno de ambiguidades-tensões. Enquanto a ciência busca articular planos com limites únicos dados pelo juízo, a arte quer desarticular tais planos para promover a emergência de novos limites, outras composições possíveis de afetos e percepções: "tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo" (Deleuze, Guattari, 1992, p. 235).
A clínica como pragmática radical é este campo de experimentação ou crisol mistura entre o lido e o vivido no vivendo; como ética de acolhimento e interesse pelo bruto do mundo, mas acolhimento (klinikós) que não é apenas aceitação, glorificação ou fetichização do bruto, do sofrido ou do pobre, mas que é também devoração antropofágica, desvio (klinâmen) transdução, aproximação com o diferente na diferença, problematização da experiência do encontro através do encontro. A clínica aqui referida se afasta radicalmente daquela dita ortopédica, a clínica da adequação à norma ou à retidão, mas se afasta igualmente da clínica que essencializa o sujeito como valor em si, opondo o homem-sujeito à máquina. Falamos aqui de uma clínica que não distingue os modos produtivos da natureza (polinização) dos modos produtivos mundo: mecânica das máquinas (cinema). Tanto há misturas, cruzamentos, hibridações na natureza (polinização cruzada), como há extravasamentos, duração, delírio, nas máquinas (pan-cinema permanente).
Este campo do viver permite a rachadura, a emersão do bruto nas técnicas e tecnologias concêntricas e simétricas, tais como são produzidas na ciência e nos planejamentos de Estados e governos. A arte, como bem fala Waly, permite que os elementos advindos de um pragmatismo radical não sejam tomados como dados naturais: ela transforma a matéria do concreto bruto vivido na clínica em material de fábula. Fornece não só conteúdo, mas movimento em expressão para tomar o concreto do vivido em matéria bruta para composições delirantes, quer dizer, inventivas, flexíveis, que tentam menos a estabilidade e mais a vivacidade, matéria para produção estética de obras, de si e do mundo: produção de outras subjetividades, outros modos de subjetivar.
Quando somos afetados para além de nossas linhas estabelecidas do dizível, pensável, sensível, ampliamos também nossa potência de afetar ao mundo. Quando somos afetados por uma nova melodia, ao adentrarmos em um novo universo ficcional, ao sermos afetados por um sentimento insuspeito durante um filme, estamos produzindo novas relações possíveis com o mundo que adensam sua realidade. A imersão e contágio com outras atmosferas, outras práticas, outros modos de existir nos permitem compor mais realidade para o mundo em nossas Políticas Públicas atravessadas por políticas de construção do Comum. Uma realidade muitas vezes singular, fugidia, brumosa, delirante, mas tão real quanto a vida e a morte. É exatamente este hibridismo entre a produção de coordenadas precisas e composições delirantes que nos permitirá a constituição de Políticas do Comum aquém e além do Estado e suas abstrações populacionais: trocamos o todos e o bem comum pela singularidade do um qualquer.
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Endereço para correspondência:
Iacã Machado Macerata
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Luis Artur Costa
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Rodrigo Lages e Silva
lagesesilva@gmail.com
Submetido em: 23/11/2015
Revisto em: 10/06/2017
Aceito em: 27/10/2017