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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2018

 

ARTIGOS

 

Lei Maria da Penha, equipe multidisciplinar e medidas protetivas

 

Maria da Penha Law, multidisciplinary team and protective measures

 

Ley Maria da Penha, equipo multidisciplinario y medidas protectivas

 

 

José César CoimbraI; Ursula RicciardiII; Lidia LevyIII

IDoutor em Memória Social. Psicólogo no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, integrando equipe de atendimento de casos de violência de gênero. Professor do Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIMestre em Filosofia. Psicóloga no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, integrando equipe de atendimento de casos de violência de gênero. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIDoutora em Psicologia Cli
́nica. Coordenadora e professora do Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Investiga-se o papel da Equipe de Atendimento Multidisciplinar na aplicação das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, a qual cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A Equipe é composta por assistentes sociais e psicólogos. Com base em levantamento bibliográfico e documental exploram-se as demandas dirigidas à Equipe e as respostas por ela oferecidas, analisando-se os motivos de sua intervenção. Essas respostas apoiam-se nos profissionais envolvidos e relacionam-se com a interpretação da autoridade judicial. A intervenção da Equipe situa-se entre as expectativas e as dúvidas dos atores jurídicos e o acolhimento dos que se dirigem ao sistema judicial. Conclui-se que o aspecto punitivo da legislação não esgota os conflitos expressos nos casos de violência contra a mulher e as medidas protetivas sozinhas não garantem a integridade de sua demandante.

Palavras-chave: Violência contra mulher; Equipe multidisciplinar; Lei Maria da Penha; Medidas protetivas.


ABSTRACT

The role of the Multidisciplinary assistance team in the execution of protective measures foreseen in Maria da Penha's law, which creates means to prevent domestic and in-house violence against women, is investigated. The team is composed of social workers and psychologists. Based on a bibliographic and documentary review, demands directed to the team are identified, as well as its responses by assessing the team's reasons for intervention. Such responses are based on the professionals and are related to the interpretation of the judicial authority. The intervention of the team is situated between the expectations and the doubts with respect to the justice players and the acceptance of the demands that are directed to it. As a conclusion, the punishment aspect of the legislation does not exhaust the conflicts in the form of violence against a woman and protective measures alone do not guarantee the integrity of women.

Keywords: Violence against women; Multidisciplinary team; Maria da Penha Law; Protective measures.


RESUMEN

Se investiga el papel del Equipo de Atención Multidisciplinar en la aplicación de las medidas de protección previstas en la Ley María da Penha, la cual crea mecanismos para cohibir la violencia doméstica y familiar contra la mujer. El equipo está compuesto por asistentes sociales y psicólogos. Con base en levantamiento bibliográfico y documental se exploran las demandas dirigidas al Equipo y las respuestas por él ofrecidas, analizándose los motivos de su intervención. Estas respuestas se apoyan en los profesionales involucrados y se relacionan con la interpretación de la autoridad judicial. La intervención del Equipo se sitúa entre las expectativas y las dudas de los actores jurídicos y la acogida de los que se dirigen al sistema judicial. Se concluye que el aspecto punitivo de la legislación no agota los conflictos presentes en los casos de violencia contra la mujer y las medidas protectivas por sí solas no garantizan la integridad de su demandante.

Palabras clave: Violencia contra la mujer; Equipo multidisciplinario; Ley Maria da Penha; Medidas protectivas.


 

 

Introdução

A violência contra a mulher, particularmente no âmbito doméstico ou familiar, é alvo atualmente não apenas de políticas públicas, mas também de investigações e análises de diferentes campos do conhecimento científico e mesmo das artes, da literatura e do cinema (Santeiro, Schumacher, & Souza, 2017). O cenário desenhado pela Organização Mundial da Saúde aponta a América Latina com destaque quanto ao homicídio de mulheres no mundo, ocupando o Brasil o quinto lugar dessa lista, conforme publicado no Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015).

O quadro apresentado sugere que os significados e as causas da violência doméstica e familiar seguem requerendo análises. Do mesmo modo, algo da ordem de um sistema de garantia de direitos que possa efetivamente atender as demandas existentes exige ser implementado, ou ampliado, e avaliado (Waiselfisz, 2015). Neste momento, no que se refere ao Brasil, sabe-se que os níveis de institucionalização da Lei Maria da Penha e dos mecanismos de garantia de direitos ali previstos variam significativamente ao longo do território nacional (Cerqueira, Matos, Martins, & Pinto, 2015). Isto é, equipamentos especializados (tais como juizados, delegacias policiais, abrigos, centros de referência), profissionais treinados e em número suficiente para acolher e intervir nas demandas não são encontrados da mesma maneira e na mesma proporção em todas as partes do país. A maior parte dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por exemplo, encontra-se nas capitais ou principais cidades do país: 134 especializados e 111 exclusivos (Conselho Nacional de Justiça, 2017).

Pode-se também afirmar que a institucionalização dos mecanismos de garantia de direitos e de responsabilização nos casos relativos à violência doméstica contra a mulher avançou significativamente desde a promulgação da Lei Maria da Penha (Cerqueira et al., 2015). Essa legislação normatiza a atuação de diversos atores que intervêm no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, tanto no sistema judicial, como na saúde e na assistência social, cobrindo um arco que envolve defesa e promoção de direitos, bem como responsabilização. A eficácia e a efetividade almejadas dependem não apenas do desempenho de cada um desses atores, mas também do grau de articulação e coordenação deles. Dentre os atores previstos na Lei Maria da Penha (LMP) encontra-se a Equipe de Atendimento Multidisciplinar (EAM), que pode integrar os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Lei No11.340, 2006).

Ainda que a eficácia do sistema de proteção e responsabilização exija a articulação dos seus integrantes, o campo de análise desta pesquisa restringe-se a um segmento específico: a Equipe de Atendimento Multidisciplinar. Nessa perspectiva, pesquisas estão sendo realizadas com foco em outros segmentos, como as equipes de psicólogos das delegacias especializadas (Oliveira, & Moreira, 2016; Souza, & Faria, 2017). Sem desconsiderar a importância de se investigar o sistema e sua dinâmica, e igualmente sem deixar de ter em vista a complexidade do tema violência contra a mulher, é necessário analisar mais detidamente os integrantes do sistema em sua especificidade. Cabe mencionar que em 2016 havia 65 Equipes de Atendimento Multidisciplinar no país e outras 49 delas especializadas no atendimento à vítima, todas contando com 411 profissionais (Conselho Nacional de Justiça, 2017).

A EAM é composta usualmente por assistentes sociais e psicólogos e pode atuar em diferentes momentos da intervenção judicial nos casos de suspeita ou confirmação de violência doméstica ou familiar, tendo suas atribuições definidas no artigo 30 da LMP: fornecer subsídios ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção, voltados para todos os envolvidos na situação de violência, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. Em menor proporção, há também em algumas equipes a participação de pedagogos, sociólogos e médicos (Conselho Nacional de Justiça, 2017).

Uma parte importante do trabalho realizado pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM), e, por conseguinte, pela EAM, está relacionada à concessão de medidas protetivas de urgência, descritas na LMP. Essas medidas compõem um conjunto de ações a serem implementadas rapidamente com o objetivo de salvaguardar a integridade da mulher, a fim de que a situação de violência não se repita. Ela é decidida mesmo antes do juiz ter firmado cognição completa e definitiva acerca do que é alegado no processo judicial criminal. Uma dessas medidas é o afastamento do suposto agressor do lar; outra, a restrição de contato ou aproximação entre suposto agressor e vítima. É perceptível que a ideia de urgência permeia as medidas protetivas e que, portanto, a dimensão temporal, a demora ou não de sua realização, é variável a ser considerada quanto à eficácia da intervenção judicial. Em 2016 foram concedidas no Brasil 195.038 medidas protetivas de urgência. Nesse mesmo ano tramitaram na justiça estadual 1.199.116 processos relacionados à violência contra a mulher, dos quais 334.088 eram novos. Houve ainda 290.423 novos inquéritos policiais sobre o mesmo tema (Conselho Nacional de Justiça, 2017).

A relação entre a EAM e as medidas protetivas se expressa em uma série de questões que balizam a análise realizada nesta investigação: o que ela faz frente aos pedidos de medidas protetivas? Quais os seus desafios? Com quais dificuldades lida? Qual a extensão das medidas protetivas? De que modo as medidas protetivas e a EAM relacionam-se com outras respostas oferecidas pelo JVDFM àqueles envolvidos em situação de violência doméstica e familiar? Essas questões subordinam-se a uma interrogação central que está relacionada aos efeitos do possível desencontro entre as demandas apresentadas pelas mulheres no JVDFM e a resposta oferecida a elas, calcada na LMP. Ou, dito de modo diferente, trata-se de se indagar sobre os efeitos da distância entre os significados da experiência subjetiva da violência e aqueles que emanam da previsão legal. Essa abordagem é patente nos trabalhos de Gregori (1993a; 1993b; 2016) e Simião e Oliveira (2016). A fim de avançar sobre o campo delineado, esta pesquisa vale-se de levantamento bibliográfico e documental, tendo a LMP por eixo, explorando a relação entre a EAM e as medidas protetivas de urgência (doravante medidas protetivas).

É preciso assinalar que, embora seja farta a literatura sobre os temas violência de gênero e violência contra a mulher em seus mais variados aspectos, o mesmo não ocorre quanto ao papel da EAM na aplicação das medidas protetivas.

 

A Equipe de Atendimento Multidisciplinar, a violência e a lei

A Lei no 11.340/2006, LMP, trata diretamente da EAM em apenas quatro artigos: do 29 ao 32. Um aspecto que de imediato chama a atenção é a não obrigatoriedade dessa equipe no âmbito do JVDFM, como destacado no artigo 29. A despeito disso, a comunidade jurídica tem se manifestado no sentido da existência necessária da EAM junto ao JVDFM (Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, 2014; Portaria No15, 2017; Recomendação No9, 2007). Sobre as demandas dirigidas ao saber psi no campo da violência doméstica, um universo de referências revela as aporias, os papéis e as práticas de psicólogos nesse campo (Coimbra, & Levy, 2015; Cordeiro, 2014; Guimarães, e Pedroza, 2015; Medeiros, 2015).

A definição de violência apresentada na LMP estabelece os contornos dentro dos quais o JVDFM e a EAM encontram os fundamentos de sua atuação, inclusive quanto à aplicação das medidas protetivas. No artigo 5º pode ser lido: "[...] configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial" (Lei No11.340, 2006). Ali também, nos incisos I e II, a legislação especifica o que se deve entender por "doméstica" e "familiar" enquanto loci da expressão da violência: "no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas" (Lei No11.340, 2006) e "no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa" (Lei No11.340, 2006). O artigo 5º apresenta ainda o inciso III e o parágrafo único, que acabam por delimitar o domínio no qual a violência torna-se objeto da LMP: "em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação" (Lei No11.340, 2006) e "[...] As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual" (Lei No11.340, 2006).

Nota-se nas citações acima que a mulher vítima de violência ocorrida numa relação homoafetiva será acolhida no contexto da LMP, o que está firmado na jurisprudência, inclusive quanto aos diferentes tipos de relacionamento por ela abarcados: mãe e filha, padrasto e enteada, irmãos (Mello, 2009; Superior Tribunal de Justiça, 2017). Todavia, nem todas as relações citadas contam com a concordância unânime dos atores jurídicos quanto à inclusão delas nos limites da LMP. Os tipos de relações familiares citados esclarecem que se trata de destacar o âmbito privado, as relações de força e o desequilíbrio de poder que ali se estabelecem.

No entanto, a existência de uma definição legal acerca do que seja violência pode não ser suficiente para alcançar o que se revela como experiência subjetiva da violência. Por conseguinte, a defasagem entre a previsão legal e a vivência da situação tida por violenta repercute nas expectativas do entendimento do que deveria ser a intervenção no caso concreto (Gregori, 1993a, 2016; Oliveira, 2008; Simião, & Oliveira, 2016). A distância entre a previsão legal e a experiência subjetiva de violência aponta para o lugar a ser explorado pela EAM, em particular por psicólogos. Trata-se de apreender a disjunção entre o que é formulado como pedido de proteção ou responsabilização e o modo como isso é traduzido nas coordenadas legais, gerando, por vezes, distância significativa com o que é entendido como necessário pela mulher.

O parágrafo anterior pode ser ilustrado com dois exemplos que serão apresentados a seguir. Eles são oriundos da experiência de dois dos autores em uma EAM na cidade do Rio de Janeiro, entre 2013 e 2018. Ambos têm por objetivo descrever situações nas quais o aparato repressivo criminal não cobriria as questões em evidência, tanto quanto apontar possível distância entre a experiência subjetiva da violência e as definições de violência estabelecidas na LMP. De modo algum, contudo, pretende-se afirmar que os exemplos utilizados resumem o conjunto de casos atendidos nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Primeiro exemplo: não é incomum que casais de idosos recorram cada vez mais ao JVDFM. A mulher alega algum tipo de violência perpetrada pelo companheiro. Ambos estão na faixa dos 80 anos de idade, casados há décadas, e filhos e demais familiares não se envolvem na disputa. Ela entende que um determinado tipo de comportamento do homem deve ser modificado (ele a ofende, a ameaça, eventualmente joga sobre ela objetos). A mulher não quer necessariamente o afastamento do homem do lar, mas sabe que a situação vivida não pode prosseguir do mesmo modo. Como intervir nesse caso? Esse episódio teria como ser enquadrado nos limites responsabilização/punição/proteção?

No que tange mais especificamente à aplicação das medidas protetivas, a EAM pode colaborar para construir com a mulher parâmetros a partir dos quais a sua necessidade possa ser mais bem expressada no sistema judicial. A colaboração mencionada pode também ter como resultado o estabelecimento de modos pelos quais a mulher tornaria a concessão das medidas algo com maior probabilidade de ser eficaz e efetivo, permitindo a ela, em tese, evitar, eventualmente, algumas situações de risco. Deve ser recordado que, por diversos motivos, as medidas protetivas sozinhas não garantem a integridade de sua demandante. Não é por outro motivo que crescem no país iniciativas que associam as medidas protetivas a rondas policiais ou ao uso de botões de pânico, com base em diferentes tipos de aplicativo, geralmente usados no aparelho celular. De todo modo, a situação de risco pode persistir. Segundo exemplo: havendo histórico de violência física e a solicitação de medida protetiva, a mulher dirige-se ao ex-companheiro, no fim da noite, ciente de que ele está alcoolizado, para interpelá-lo diretamente sobre o não pagamento de pensão alimentícia. O porquê dessa atitude, nesse momento, poderia ser indagado. Esse fragmento sugere como a ambiguidade de algumas situações de violência precisa ser analisada. De outro modo, corre-se o risco de esquematicamente rotular-se a experiência, sem que se apreenda o seu significado para as partes nela envolvidas. Esse cenário já foi exaustivamente descrito por Gregori (1993a;b), que relata o fim de um serviço de atendimento a mulheres vítimas de violência devido à impossibilidade de se apreender ali as demandas e os significados que elas produziam acerca da experiência vivida, partindo-se de certezas preestabelecidas. A procura pelo referido serviço simplesmente deixou de existir.

É preciso ser cuidadoso com o manejo dos exemplos analisados. Certamente não se trata de atribuir culpa a quem precisa de proteção, mas de estar disponível para apreender o significado atribuído à experiência tida por violenta. Além disso, verifica-se que algumas iniciativas podem, em certos casos, colaborar para proteger ou, ao contrário, expor ainda mais ao risco de incidência de violência doméstica ou familiar. Cabe mencionar que um número significativo de assassinatos de mulheres ocorre durante a separação conjugal ou logo depois dela, tratando-se, portanto, de período de extremo risco, assim interpretado em diferentes partes do planeta (Dawson, 2015; Lucas, 2015; Soares, 2002). Não é por outro motivo que os procedimentos de avaliação de risco em casos de violência doméstica e familiar tratam desse tema. No caso de Portugal, por exemplo, o protocolo utilizado pela polícia para o atendimento de casos de violência doméstica ou familiar prescreve o método para que se avalie o risco envolvido. Após a avaliação, uma das possíveis medidas a adotar, dentre outras tantas previstas, é o reforço junto à mulher para que se afaste do ofensor e implemente iniciativas próprias para proteção pessoal1.

Vale recapitular que antes de 2006 boa parte dos casos relativos à violência doméstica ou familiar era remetida aos Juizados Especiais Criminais, que funcionam sob o âmbito da Lei no9.099/1995. Aparentemente esses casos acabavam por ser identificados como de menor potencial ofensivo, culminando muitas vezes em transação penal que se traduzia no pagamento de cestas básicas e, também, sem a existência de medidas protetivas. No entanto, é importante apontar que a arquitetura legal que embasa o funcionamento dos Juizados Especiais, notadamente a Lei no9.099/1995, dispõe de mecanismos próprios para lidar com a experiência de violência. Esses mecanismos têm como critérios, dentre outros, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade. Em parte, esses critérios podem estar presentes na aplicação da LMP.

Deve ser frisado, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou de modo definitivo no Habeas Corpus no106.2122 acerca da impossibilidade de se utilizar os benefícios legais da Lei no9.099/1995 na aplicação da LMP. Um desses benefícios é a suspensão condicional do processo; o outro, a transação penal (ou seja, a negociação entre o promotor de justiça e o acusado, consistindo na possibilidade de o primeiro não iniciar ação penal, desde que respeitadas certas condições).

À diferença da Lei no9.099/1995, a LMP não apenas veda o pagamento de cestas básicas, como tipifica, de modo não exaustivo, as violências que seriam objeto de tratamento legal, conforme seu artigo 7o: física; psicológica (ameaça, constrangimento, humilhação, vigilância etc.); sexual; patrimonial (subtração, retenção, destruição de patrimônio) e moral (calúnia, injúria ou difamação). As medidas protetivas cabíveis estão relacionadas à classificação aplicada à situação de violência dirigida pela mulher ao aparato policial-judicial e o modo como este sucessivamente a interpreta.

Todavia, em alguns casos percebe-se uma defasagem entre o que o aparato judicial identifica como violência e aquilo que a mulher reconhece como tal. Essa defasagem pode levar os integrantes do sistema judicial, dentre eles psicólogos e assistentes sociais da EAM, à realização de uma tradução do pedido da mulher para as coordenadas jurídicas, distanciando-se, por vezes, daquilo que efetivamente apresentava-se como problema no pedido original. Ainda que sem a ênfase dada sobre à EAM, esse problema já foi apontado por Oliveira (2008) e Simião e Oliveira (2016). Eles questionam a interpretação de um ato como violento se dele não puder ser depreendido um componente moral, o qual se apoia em duas premissas, segundo Oliveira (2008): violação a direitos que não se traduzem materialmente e "desvalorização ou negação da identidade do interlocutor" (p. 136). Dessa perspectiva, por vezes, uma ofensa seria mais danosa que um soco; uma pisada involuntária menos dolorosa que uma dada de propósito (Oliveira, 2008). Nesse sentido, pode ser indagado se o aparato judicial está apto a lidar com a experiência de sofrimento e com a demanda de proteção e responsabilização que lhe é dirigida. Igualmente, é pertinente interrogar-se sobre os possíveis efeitos da impossibilidade daquele aparato responder apropriadamente à demanda que lhe é endereçada.

A eventual discrepância apontada acima deve suscitar nos integrantes do sistema judicial a desconfiança da necessidade de lidar com o que lhe é impossível, no rastro do que Felman (2014) apontou: "A função do julgamento torna-se exatamente articular a impossibilidade de narrar por meio do processo jurídico e converter essa impossibilidade narrativa em significado jurídico" (p. 213).

Felman trata do tema do trauma em sua pesquisa, que, não obstante, serve para que se interprete o que se denominou neste texto como distância entre o direito e a experiência vivida. Talvez seja o reconhecimento e a positivação da existência da distância entre a racionalidade do direito positivo e a experiência subjetiva da violência que permita a invenção de formas mais adequadas de lidar com a proteção, a responsabilização e o eventual sofrimento em jogo nos casos de violência doméstica ou familiar. É nessa defasagem que repousam as possibilidades de intervenção da EAM, situando-se no limiar do que exige a máquina judicial e da expressão de sofrimento e reparação da mulher. Seguindo Felman, que investiga a duplicação da experiência traumática promovida no âmbito judicial, é possível postular o seguinte: ao se querer suprimir ou ignorar pura e simplesmente a distância que marca a demanda da vítima e sua recepção no espaço jurídico, corre-se o risco de produzir uma nova situação de violência ou de trauma. Isso porque não se admitiria o desencontro entre o que se formula como pedido de solução de um problema e as coordenadas legais nas quais se busca enquadrá-lo. Como consequência, sua demanda seria desconsiderada ou interpretada de modo diverso ao que seria esperado.

 

A Equipe de Atendimento Multidisciplinar e as medidas protetivas de urgência

As medidas protetivas são tratadas na LMP no capítulo II, do artigo 18 ao 24. A duração da medida encontra interpretações distintas conforme o entendimento da autoridade judicial a se incumbir do caso. Deduz-se que a ideia geral é que a medida protetiva possa ser concedida o mais prontamente possível, embora isso implique vasta gama de interpretações possíveis. As medidas protetivas aplicáveis aos agressores, previstas no artigo 22, dizem respeito à suspensão da posse ou restrição do porte de arma; afastamento do lar; proibição de contato com a ofendida e de frequentar lugares determinados; restrição ou suspensão de visitas aos filhos e alimentos provisionais ou provisórios.

Mello e Bortoleto (2010) especificam a relação entre o trabalho da EAM e as medidas protetivas quando localizam sua atuação no campo dos processos de conhecimento. Todavia, a atuação dela nos processos de execução igualmente é prevista. Conhecimento e execução são fases do andamento processual. Na primeira, o juiz recebe informação sobre os fatos e os fundamentos jurídicos da causa a ser julgada; na segunda, trata-se do cumprimento da decisão judicial. A EAM ao longo da execução pode realizar diferentes procedimentos relativos à prestação de serviço à comunidade (escolha do estabelecimento, orientações diversas) e/ou à participação em grupos, nos quais o tema gênero e os motivos e desdobramentos da situação de violência são retomados com aquele que foi sentenciado. Entende-se que a análise da pertinência das medidas protetivas ocorre na fase relativa ao conhecimento. É nessa etapa que um conjunto de elementos, tais como o registro de ocorrência, a manifestação dos envolvidos na suposta situação de violência e mesmo a análise da EAM, contribuirá para a cognição do magistrado acerca do pedido. Porém, não é obrigatório que a EAM seja acionada para analisar o pedido de medidas protetivas, sendo, em tese, apenas a manifestação da mulher suficiente para se ponderar sobre a concessão delas.

Dentre as possibilidades de intervenção previstas na LMP, não há nenhuma que vincule, especificamente, a atuação da EAM às medidas protetivas. Contudo, empiricamente nota-se que parte da demanda jurisdicional encaminhada à EAM recai na avaliação da necessidade de deferimento de medidas protetivas. Thiago Pierobom, promotor de justiça, em palestra no Ministério Público do Rio de Janeiro, em agosto/2015, durante o seminário "Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres", aponta nessa direção, baseado na pesquisa de doutorado realizada por Medeiros (2015). De fato, ele entende haver diferentes níveis ou momentos de avaliação da situação de risco para a mulher, os quais estariam distribuídos conforme os atores envolvidos na rede de proteção e a competência deles para intervir. Logo, os policiais deveriam ser capazes dessa avaliação, tanto quanto os atores jurídicos e, como em um sistema de filtros, também a EAM, que receberia parte dessa demanda. Essa formulação deixa notar que nem todos os casos seriam encaminhados à EAM. Considerando-se a urgência de muitas situações, os prazos estipulados em lei e a forte demanda existente no JVDFM esse é um ponto de grande importância. Isso porque, de outro modo, o sistema de proteção e responsabilização que pressupõe a atuação da EAM e a salvaguarda daquelas que aguardam do aparato jurídico-policial resposta tempestiva revelar-se-ia inoperante.

É preciso reiterar que a ideia de filtros entre o atendimento inicial de um caso até sua chegada à EAM sugere a existência de graus diversos de risco para a mulher na vivência do caso concreto. Ou seja, há situações absolutamente díspares entre os casos de violência doméstica e familiar e isso se reflete no respectivo grau de urgência e de dano potencial ou efetivo. Essa disparidade foi notada por Rifiotis (2015) desde o período de atendimento dos casos de violência doméstica pelos Juizados Especiais Criminais.

A variedade de casos mencionada há pouco pode suscitar dúvidas nos atores jurídicos sobre como interpretá-los. A determinação para atuação da EAM, particularmente quanto aos pedidos de medida protetiva, pode estar associada à expectativa de que o contexto será mais bem avaliado se estiver sob a atenção de psicólogos e assistentes sociais. Logo, é no espaço da dúvida que a EAM realiza sua intervenção com vistas à análise do pedido de medidas protetivas. Nesses casos a entrevista acaba por ser o instrumento predominantemente utilizado. O diálogo que aí se estabelece revela, às vezes, dúvidas por parte da mulher, sobretudo quanto à competência do JVDFM e à da vara de família, mas também se o homem será preso. Por vezes, a mulher imagina que o divórcio, a guarda dos filhos, a pensão alimentícia, serão equacionados definitivamente no JVDFM, quando em verdade isso deverá ter encaminhamento próprio na justiça de família. Igualmente, essas dúvidas abarcam o alcance das medidas aplicáveis no âmbito da LMP e o que o sistema judicial pode oferecer de fato a mulher, em particular no que tange à sua segurança.

Pelas dúvidas expressas pode-se deduzir que a demanda das mulheres ao judiciário, mesmo no contexto da LMP, não se esgota no binômio medida protetiva - processo criminal. Por exemplo, a mulher não quer mais ser ofendida, mas quer continuar sua união com seu companheiro; ou a mulher quer o divórcio, o homem a ameaça ou não lhe quer dirigir a palavra, e ela espera que o judiciário possa facilitar a comunicação entre um e outro a fim de tratar de assuntos relativos aos filhos, ao patrimônio, ao passado de ambos, sem que precise aguardar até a audiência na justiça de família, o que pode exigir meses.

Os procedimentos conduzidos pela EAM explicitam a situação conjugal e amorosa atual da mulher, a existência ou não de redes de apoio, bem como sua condição socioeconômica e estado subjetivo ante os eventos alegados. Nesse estado subjetivo pode haver condições, ainda que incipientes, para a formulação do significado da experiência narrada, inclusive das dúvidas quanto ao sentido a ser aplicado a ela. Como apontado por Gregori (1993a), a escuta da narrativa dos envolvidos em casos de violência é fundamental para apreender seus significados inauditos, inclusive quanto ao entendimento se o que ocorreu teria sido entendido como violência ou não. É nessa escuta que se desenha a mistura que se mostra em graus variados de culpa, responsabilidade, medo, raiva e o modo distinto de se posicionar frente a esses sentimentos e de buscar solução para os problemas. Esses problemas expressam-se tanto no campo do patrimônio (divisão de bens), da família (dificuldades na manutenção do bem-estar dos filhos, da efetivação do regime de visitação a eles), como da segurança pessoal (perseguições, ameaças reiteradas, vivência de diferentes tipos de violência), da valoração de si e dos conflitos relativos ao desejo do outro.

A intervenção da EAM visa à avaliação da necessidade das medidas protetivas em cada caso e a confirmação se ainda haveria interesse no seu deferimento por parte das mulheres. Este segundo ponto se justifica porque há um lapso temporal variável entre o registro de ocorrência na delegacia de polícia - quando são requeridas as medidas protetivas - e o seu deferimento ou não pelo juiz (ver artigos 12 e 18 da LMP). Em muitos casos, o tempo decorrido, por menor que seja, é suficiente para que algo da cena inicial se modifique e faça com que a mulher reconsidere seu pedido. Todavia, esse movimento não significa necessariamente que a demanda por responsabilização esteja ausente. Apenas indica que naquele momento a sensação de insegurança não seria manifesta. Isso ocorre por vários motivos: não mais ter sido contatada pelo companheiro(a); mudança de residência; não haver histórico de situações de violência familiar; acordo firmado com o suposto autor de violência.

Cabe à EAM ponderar junto à mulher sobre os critérios utilizados para avaliar o grau de risco envolvido em cada caso concreto. Avaliar a necessidade de aplicação das medidas protetivas não significa dar voz exclusivamente a um especialista que opinaria sobre a experiência de violência, desconsiderando aquela que se dirige ao poder público. Diferentemente, trata-se de acolher o pedido de proteção, situando-o nos marcos próprios da LMP e do funcionamento da máquina judicial, notando o que ali não se conforma, de modo que ele, se confirmado, tenha chance de ser articulado com os mecanismos de proteção, mostrando-se então efetivo.

Reconhecer também o que escapa à LMP, ou especificamente ao JVDFM, e buscar mecanismos institucionais para acolher o pedido formulado, pode ser algo de extrema valia a quem se coloca no lugar de receber as palavras dirigidas ao aparato judicial. Nesse caso, é capital o alinhamento, por mínimo que seja, entre a EAM, o juiz, o promotor de justiça e a defensoria pública em torno do reconhecimento do que fazer com o que escapa à interpretação corrente da LMP. Sobretudo quanto ao entendimento de que há demandas que não podem ser capturadas diretamente no eixo medidas protetivas - processos criminais, embora talvez exijam reconhecimento por parte do aparato judicial. Esse alinhamento mínimo é um requisito porque, no limite, a EAM intervirá sobre casos que lhe são designados pelo juiz; as sugestões feitas serão aceitas pelo juiz na medida em que elas fizerem sentido para ele; se os demais atores jurídicos não vislumbrarem o sentido e a possibilidade legal para a proposta, dificilmente ela chegará a um bom termo.

A complexidade dos casos recebidos no JVDFM advém de diferentes origens (Coimbra, & Levy, 2015). Uma delas diz respeito aos próprios conflitos conjugais institucionalizados com os quais se deparam os profissionais que compõem a EAM. Alguns aspectos recorrentes aparentam acompanhar de forma subjacente ou manifesta o discurso das mulheres em seus pedidos de medidas protetivas. Por um lado, observa-se a tentativa de restabelecer a ordem familiar perdida ou idealizada, havendo o apelo a um terceiro que intervenha no conflito; ou ainda a aposta pura e simples de manutenção do relacionamento amoroso. Por outro, espera-se romper com um determinado padrão de relacionamento, no qual o recurso ao judiciário sinaliza um passo em direção à emancipação social e psicológica; escapar de uma persistente vigilância e perseguição; punir o agressor, utilizando-se da lei em sua dimensão repressiva; obter resposta que ainda não tenha sido dada na justiça de família. Nota-se que oferecer as condições de explicitar o lugar da mulher no conflito instalado e seu movimento de retificação desse quadro é algo capital. No entanto, o peso da dimensão penal da legislação pode apagar o lugar do sujeito que se enuncia no conflito. Isso porque, de pronto, será muitas vezes buscado o enquadramento vítima - agressor, a fim de se definir as penas e as medidas protetivas previstas; e, em alguns casos, como os de lesão corporal, a decisão de prosseguimento do processo judicial nem cabe à mulher, mas ao Ministério Público (ação penal pública incondicionada).

Em certas situações, como sugerido acima, mulheres mostram-se temerosas diante das consequências da intervenção judicial: não desejam o afastamento do homem, nem que ele seja preso. Ao contrário, elas desejam a resolução dos conflitos, no sentido de restabelecer o diálogo perdido no decorrer de uma convivência conturbada. Não à toa, por vezes, em casos de lesão corporal que envolva flagrante e a consequente prisão do homem, a fiança é paga pela própria companheira. Ou, mesmo diante da condenação do homem e a consequente aplicação da pena, o casal permanece junto.

Em diversas situações, a mulher quer que sua vida siga um novo curso, longe do homem. E, para tanto, luta para que ele entenda isso, do modo que for preciso. O desejo isolado de punição do autor geralmente é manifestado quando não há mais a intenção de manter a relação conjugal ou mesmo qualquer tipo de relação familiar. Nesses casos é comum não haver dependência econômica envolvida, tendo ocorrido uma sucessão de episódios tomados como violentos. A busca de uma resposta não alcançada tempestivamente na vara de família, como a suspensão de visitas ao filho ou a resolução da disputa quanto ao patrimônio, o afastamento do lar, também pode estar em jogo no pedido junto ao JVDFM, o que denota o uso instrumental dos mecanismos legais existentes. Todavia, como adiantado, a expectativa de poder se sentir segura e iniciar uma nova etapa em sua vida, aparenta ser muitas vezes o motivo principal do acionamento do judiciário.

Entende-se com base nas situações descritas que o apelo ao direito penal, ainda que incontornável em alguns casos, mostra-se insuficiente para a melhor abordagem das diferentes questões associadas à violência contra a mulher. A despeito disso, o espaço propriamente jurisdicional é relevante para que os casos de violência doméstica não sejam capturados pela lógica privada, na qual a assimetria de gênero pode ser acentuada (Rodriguez, 2015). Isto é, a intervenção do poder público sinaliza que o problema revelado não é simplesmente algo a ser tratado no âmbito privado, no qual, pode haver desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. No entanto, vale insistir que muitas das expectativas formuladas pelas mulheres podem não ser apreendidas pelo dispositivo judicial, gerando frustração e incompreensão quanto ao que de fato lhe pode ser oferecido com base nas normas vigentes (Oliveira, 2008).

Existe uma tensão na aplicação da LMP entre o aspecto punitivo e o que sinaliza a importância de intervenções não punitivas nos casos de relações continuadas (Batista, 2008; Coimbra. & Levy, 2015; Karam, 2015; Ramírez, 2013). De todo modo, a LMP possibilita tratar a demanda de responsabilização e proteção de forma abrangente e específica, trazendo o tema do gênero para o primeiro plano.

Do cenário apresentado, vislumbra-se que o atendimento voltado para o pedido das medidas protetivas deveria acabar por se conectar a outras intervenções que estariam ao alcance daqueles que circulam pelo JVDFM. Isso porque as medidas protetivas não seriam um fim em si mesmas. Não é por outro motivo, sem se discutir os efeitos e a frequência da condenação criminal dos acusados no âmbito da LMP, ou a eficácia dos mecanismos listados a seguir, que a literatura descreve há tempos certas práticas realizadas no plano do JVDFM. Ainda que importantes e merecedoras de avaliações específicas, elas não são objeto de análise neste artigo, embora possam ser citadas: Grupo Reflexivo de Homens (Cordeiro, 2014; Prates, & Andrade, 2013); Justiça Restaurativa (Giongo, 2009; Ramírez, 2013); Mediação (Hanada, 2007; Nobre, & Barreira, 2008) e Grupo de Mulheres (Coelho, Natividade & Gaetani, 2008; Meneghel et al., 2005). A prática psi nas delegacias de polícia, em situações relativas à violência doméstica, também vem sendo atualmente objeto de análises (Oliveira, & Moreira, 2016; Souza, & Faria, 2017).

As práticas mencionadas, que podem estar associadas ou não às medidas protetivas, sinalizam outros tipos de atuação para a EAM. De certo modo, o uso limitado delas revela que o aparato judicial stricto sensu pode, em alguns casos, não estar captando a demanda efetiva das mulheres quando a interpreta apenas à luz do direito positivo, em particular o de natureza criminal. Do mesmo modo, sinaliza que a condenação à prisão per se não se oferece como alternativa suficiente em todos os casos, mesmo na sua versão mais branda, de prestação de serviço à comunidade. Em que pese essas considerações, as práticas indicadas são muito desigualmente aplicadas, a depender do entendimento dos atores jurídicos quanto à sua legalidade, eficácia, pertinência do uso de dispositivos não punitivos no âmbito da LMP e dos recursos disponíveis em cada JVDFM (Coimbra, & Levy, 2015).

 

Considerações finais

Apesar de a LMP não ser taxativa quanto à necessidade da EAM, legislações estaduais e o próprio posicionamento da comunidade jurídica apontam nessa direção, tal como ressaltado pelo Conselho Nacional de Justiça com a Portaria no15, de 2017.

Dentre as possibilidades de atuação da EAM no âmbito da LMP, encontram-se aquelas originadas a partir das demandas para aplicação das medidas protetivas de urgência. Observa-se que um dos motivos para a intervenção da EAM nesses casos diz respeito a dúvidas dos atores jurídicos sobre a necessidade de aplicação das referidas medidas. A partir desse momento inicial, abre-se um horizonte para a EAM e para aqueles que se encontram sob a jurisdição do JVDFM. Esse horizonte tem como eixo a demanda original dirigida ao poder judiciário e a previsão legal, aspectos que muitas vezes não têm uma relação entre si. Isso porque pode ser demandado algo que não esteja previsto em lei, ainda que importante para o sujeito que se apresenta ao JVDFM.

É no espaço entre o pedido do sujeito e o ordenamento jurídico que a EAM está situada, buscando, muitas vezes, a tradução que permita algum alinhamento entre o sujeito e a lei. Essa operação de tradução pode implicar o distanciamento do que efetivamente moveu o sujeito em direção ao JVDFM, tendo por resultado algo que o frustrará. Todavia, o reconhecimento de que talvez subjaza um resto nessa operação de tradução aponta para algumas importantes vias de trabalho da EAM, as quais a levam a explorar perspectivas não presentes no direito penal em sentido estrito. Se isso for viável, revela-se a necessidade da construção de um alinhamento estratégico a diretrizes comuns que reúnam EAM, juízes, promotores de justiça, defensores públicos, a fim de que recursos institucionais possam ser mobilizados de modo a melhor equacionar os problemas desenhados em cada caso concreto. Esse resto também aponta para a relevância de não partir de certezas prévias frente ao que seja a experiência de violência. Poder recolher dos envolvidos os significados subjetivos da vivência da situação de violência é condição de base para a realização do trabalho da EAM.

O entendimento de que as medidas protetivas não podem ser um fim em si instaura a importância de que a atuação da EAM esteja conectada a outros tipos de propostas a serem oferecidos àqueles que se encontram na órbita do JVDFM. Daí a literatura descrever Grupos de Homens, Grupos de Mulheres, Mediação, Justiça Restaurativa, uma lista que variará conforme o caso e com base no entendimento de sua aplicabilidade por parte dos atores jurídicos e dos demais agentes envolvidos.

A constatação de que o aspecto criminal e as diretrizes punitivas não esgotam as respostas urgentes aos conflitos e às situações próprias ao JVDFM aponta direções a serem trilhadas, algumas das quais foram aqui indicadas. Para a EAM, em particular, resta também a interrogação sobre o seu papel, o qual se situa entre as demandas dos atores jurídicos e o acolhimento daquela ou daquele que se encontra no horizonte da máquina judiciária. Sem isso, a enunciação que acompanha os pedidos de medida protetiva poderá permanecer inaudível, perdida nos labirintos do judiciário, sem encontrar o eco que colaborará na criação dos meios de sua própria superação.

 

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Endereço para correspondência:
José César Coimbra
arcoim@yahoo.com.br

Ursula Ricciardi
ursularicciardi@yahoo.com.br

Lidia Levy
llevy@puc-rio.br

Submetido em: 10/01/2018
Revisto em: 13/03/2018
Aceito em: 21/03/2018

 

 

1 A avaliação de risco em Portugal materializa-se no uso de formulários padronizados. A Ficha RVD-1L é usada na primeira avaliação de risco e a ficha RVD-2L, na segunda avaliação e posteriores. Elas estão disponíveis respectivamente em: http://bit.ly/2DwnMvo e http://bit.ly/2DwArON.
2 Disponível em: http://bit.ly/2G1DP9K.

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