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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versión On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2018
ARTIGOS
Reinserção profissional: o trabalho após a aquisição de uma deficiência
Professional reinsertion: the work after acquiring a disability
Reinserción profesional: el trabajo tras la adquisición de una discapacidad
Joelma Cristina SantosI; Maria Nivalda de Carvalho-FreitasII
IMestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIDocente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei. Estado de Minas Gerais. Brasil
RESUMO
Os aspectos psicossociais do retorno ao trabalho são discutidos neste estudo, realizado por meio de entrevistas semiestruturadas com 10 pessoas que, por circunstâncias diversas, adquiriram uma deficiência (visual ou física) e se reinseriram no mercado de trabalho após esta aquisição. Pelo método de análise de conteúdo, observou-se que o retorno ao trabalho foi vivenciado positivamente pela maioria dos pesquisados, o qual foi inicialmente motivado pela necessidade financeira, mas permitiu, posteriormente, a atribuição de outros sentidos ao trabalho. Além disso, este retorno assumiu maior valor individual, quando os impactos produzidos pela deficiência também foram maiores, em comparação a deficiências que exigiram menos alterações no cotidiano. Considera-se que tais resultados são relevantes ao propor formas de (re)inserção no contexto organizacional, que, além de necessárias, contribuem para um mercado de trabalho inclusivo e uma sociedade mais participativa.
Palavras-chave: Inclusão; Reinserção profissional; Trabalho.
ABSTRACT
The psychosocial aspects of the reinsertion at work are discussed in this study, which was done based on semi-structured interviews with 10 people who acquired a visual or a physical disability, due to different circumstances, and then went back to the labor market after the incident. Through the content analysis method, it was noticed that the returning to labor was positively faced by the most part of the interviewed people. It was firstly motivated by financial necessity, but then allowed that other perspectives were attributed to work. Beyond that, the reinsertion assumed a greater individual value when the impacts resulted from the disability were bigger than when they demanded less changes in everyday life. Results are considered relevant for purposing ways of (re)insertion in the organizational context based on social and legal aspects and also for promoting an inclusive labor market and a more participating society.
Keywords: Inclusion; Professional reinsertion; Labor.
RESUMEN
Los aspectos psicosociales del retorno al trabajo se discuten en este estudio, realizado a través de entrevistas semiestructuradas con 10 personas que, por circunstancias diversas, adquirieron una discapacidad (visual o física) y se reinsertaron en el mercado de trabajo después de esta adquisición. Por el método de análisis de contenido, se observó que el retorno al trabajo fue vivido positivamente por la mayoría de los encuestados, el cual fue inicialmente motivado por la necesidad financiera, pero permitió posteriormente la asignación de otros sentidos al trabajo. Además, este retorno asumió mayor valor individual, cuando los impactos producidos por la discapacidad también fueron mayores, en comparación a deficiencias que exigían menos cambios en el cotidiano. Se considera que estos resultados son relevantes al proponer formas de (re) inserción en el contexto organizacional, que, además de necesarias, contribuyen a un mercado de trabajo inclusivo y una sociedad más participativa.
Palabras clave: Inclusión; Reinserción profesional; Trabajo.
Em meio às mudanças sociais dos últimos séculos, entende-se que o trabalho pode ter um grande impacto sobre questões econômicas, sociais e políticas, além de ser considerado, por muitos pesquisadores, um dos principais referenciais para uma pessoa e um dos valores centrais para a configuração da sua identidade. Considera-se, assim como Ramminger e Nardi (2008), que o trabalho deve ser analisado, não somente em relação aos modos de produção, mas pela forma como as pessoas o vivenciam e dão sentido às suas experiências laborais. Analisar o trabalho torna-se relevante, portanto, por gerar contribuições para a compreensão da vida subjetiva e da organização social. O presente artigo pretende colaborar para o conjunto de pesquisas acerca da reinserção laboral, ao focalizar as experiências subjetivas de pessoas com deficiência adquirida que retornaram ao trabalho após esta aquisição. Afinal, como a reinserção no trabalho se configura na vida das pessoas que interromperam suas atividades profissionais devido à aquisição de uma deficiência? Acredita-se que a compreensão deste aspecto possa enriquecer a literatura científica sobre o tema, de modo a favorecer práticas e relações mais inclusivas.
O trabalho situa-se, assim como a saúde e a educação, entre os direitos sociais básicos declarados na Constituição Federal brasileira. Num país com extenso histórico de desigualdades sociais, ter um trabalho pode representar o livre acesso a condições de cidadania, ainda mais quando se considera os direitos trabalhistas e previdenciários decorrentes de uma ocupação no mercado formal. Assim, com o intuito de assegurar a igualdade de oportunidades de ingresso às pessoas com deficiência a esse mercado, o Brasil, entre outros países - tais como Alemanha, Argentina, Bélgica, Espanha, França e Portugal -, instituiu políticas de ação afirmativa, a fim de retificar as desvantagens históricas acumuladas pelo conjunto de pessoas com deficiência. Desde a década de 1990, mudanças na legislação brasileira têm buscado proporcionar possibilidades mais concretas de ascensão material e de inclusão na sociedade, diante da insuficiência das medidas de cunho universal (Carneiro, & Ribeiro, 2008).
No Brasil, no que se refere especificamente à inserção no mercado de trabalho, destaca-se a Lei no 8.112/90, que define um percentual de até 20% das vagas em concursos públicos para pessoas com deficiência, em cargos cujas atribuições sejam compatíveis com as suas deficiências. De especial relevância na área, por proporcionar acesso ao emprego formal para um contingente maior de pessoas, a Lei no 8.213/91 estipula percentuais de postos de trabalho, em empresas privadas, que devem ser preenchidos por pessoas com deficiência habilitadas ou beneficiárias da Previdência Social reabilitadas.
Apesar da obrigatoriedade legal, Coelho (2009) alerta que o desemprego e o subemprego de pessoas com deficiência ainda são bastante comuns, e trazem consequências econômicas, sociais e psicológicas negativas para estas pessoas e para a sociedade, de modo geral. Em pesquisa com pessoas com deficiência física beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC), Silva e Ribeiro (2011) observaram que os participantes do estudo sempre tiveram oportunidades de trabalho precárias e de baixa remuneração, pois estavam inseridos em uma dinâmica social que não proporcionava acesso a empregos formais capazes de possibilitar realização pessoal e reconhecimento social. Souza e Carneiro (2007) argumentam que a relação entre deficiência e pobreza é recíproca, ou seja, a deficiência é um importante fator de desigualdade social (ainda mais quando se considera que pessoas com deficiência possuem menor participação no mercado de trabalho), assim como a pobreza pode "produzir" deficiências, ao dificultar o acesso a serviços de saúde ou oferecer menor proteção do aparato de segurança pública, por exemplo. Para a Organização das Nações Unidas (ONU, 2007), a deficiência pode se constituir uma das causas da pobreza ao impedir a plena participação na vida econômica e social, o que pode ser revertido, caso as pessoas com deficiência tenham acesso à educação e formação, graças a políticas de recursos humanos inclusivas, a locais de trabalho acessíveis, à legislação antidiscriminação, entre outros fatores que podem contribuir para a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho.
No mesmo período em que a legislação brasileira avançou em direção a iniciativas mais inclusivas voltadas para as pessoas com deficiência, observou-se também um aumento da produção acadêmica nacional relacionada à inserção delas no mercado de trabalho. Análise realizada por Suzano, Nepomuceno, Ávila, Lara e Carvalho-Freitas (2008) demonstrou que, no período de 1987 a 2007, o interesse científico em torno deste tema cresceu de forma acentuada, especialmente, após 1999. Este aumento decorreu, muito possivelmente, da regulamentação da Lei de Cotas, que data deste ano e que pode ter demandado mais conhecimento em relação ao assunto com o consequente crescimento da investigação científica. Neste período, a temática com maior número de publicações referiu-se à gestão da diversidade nas organizações, o que pode ter sido um reflexo do maior interesse das empresas em adquirir mais conhecimento sobre os aspectos relacionados à contratação e à gestão do trabalho das pessoas com deficiência (Suzano et al., 2008). É no contexto da inserção e, sobretudo, da reinserção de pessoas com deficiência no trabalho que este artigo se insere.
Não bastasse ser uma das principais formas de acesso à renda, a inserção numa atividade produtiva, em especial no mercado de trabalho formal, confere, aos indivíduos, o caráter de inclusão social e são espaços que possibilitam a aquisição e o desenvolvimento de características identitárias. O que uma pessoa faz profissionalmente informa o seu lugar social e é um indicador importante do seu modo de vida, interferindo no estabelecimento dos seus vínculos afetivos e na constituição das suas habilidades, além de contribuir para a sua saúde física e mental.
Neste contexto, pode-se dizer que o não trabalho - o desemprego, o afastamento do ambiente laboral ou mesmo a vivência de relações precárias de trabalho - apresenta, para muitos na contemporaneidade, uma conotação negativa e um estigma social. Castel (2010) aponta que existe uma correlação direta entre a precarização das relações de trabalho e a vulnerabilidade social a que o indivíduo está exposto, em virtude da relevância do trabalho para a integração social. Conforme Souza e Faiman (2007), não bastasse a ausência da renda própria, a impossibilidade de trabalhar tende a ser vivenciada como uma experiência de fracasso, uma vez que a imagem que a pessoa tem de si mesma bem como a que o meio social faz dela estão diretamente relacionados à profissão ou à atividade ocupacional que ela exerce. Assim, a perda da possibilidade de participar da vida social por meio do trabalho pode levar a sentimentos de exclusão, inutilidade, insegurança e fragilidade. Garbin (2012), em pesquisa com vítimas de acidentes de trabalho, observou que estas experiências fizeram com que cada pessoa repensasse suas condições de vida e de trabalho, e a exclusão, mesmo que temporária, do contexto social de trabalho, deixou traumas e modificou a percepção sobre as experiências anteriormente construídas pela atividade. Alguns trabalhadores apresentaram sintomas depressivos em virtude das sequelas físicas adquiridas que, além de gerarem a inatividade profissional por um período, provocaram a incerteza acerca do retorno ao antigo emprego e da receptividade dos colegas de trabalho (Garbin, 2012). Tendo em vista que o afastamento do trabalho tende a provocar sentimentos de angústia e, ao mesmo tempo, promover uma revisão sobre as condições de vida, acredita-se que estas circunstâncias atreladas à aquisição de uma deficiência podem ser potencialmente geradoras de sofrimento e incerteza quanto à receptividade no contexto laboral.
Uma deficiência pode ser adquirida em decorrência de doenças (como diabetes, glaucoma e caxumba), acidentes de trânsito ou ferimentos causados por armas de fogo e armas brancas, entre outras causas. Estudo feito por Castro et al. (2008) identificou que doenças e causas externas - fatores ambientais, acidentes domésticos, de trabalho e de trânsito - constituem as principais causas de deficiências físicas, auditivas e visuais. De acordo com dados da Conferencia Internacional del Trabajo (2007), mais da metade das pessoas com deficiência no mundo adquire algum tipo de deficiência depois dos 16 anos de idade, principalmente durante a vida laboral.
Estudos sobre a deficiência que se baseiam no modelo social consideram que, apesar das lesões biológicas, o que é, de fato, comum às pessoas com deficiência é a experiência de opressão social, marcada, muitas vezes, pela maneira como a sociedade capitalista se organiza, ao não fornecer serviços apropriados nem garantir, de forma adequada, o atendimento das necessidades das pessoas com deficiência (Oliver, 1996). Assim, a deficiência seria um fenômeno social que se revelaria, essencialmente, pela interação da pessoa com o entorno social, o qual poderia restringir, ou não, sua autonomia, sua acessibilidade e a expressão da sua capacidade. Tal perspectiva foi desenvolvida nos anos de 1960 e aperfeiçoada nas décadas seguintes, sendo bastante influenciada pelas teorias feministas que, entretanto, reafirmaram a importância de se levar em conta a lesão biológica ao se discutir deficiência, uma vez que certas pessoas nunca seriam capazes de adquirir uma completa independência, não importando quantos e quais ajustes arquitetônicos ou sociais fossem realizados (Diniz, 2007). Conforme Diniz (2007), a interdependência e o direito ao cuidado são valores que devem ser preservados, tendo em vista os desafios estabelecidos por lesões mais graves e crônicas. Nesse sentido, entende-se, como Shakespeare e Watson (2002), que diferentes deficiências produzem impactos distintos, seja na saúde, na capacidade individual ou nas respostas geradas no meio social mais amplo. Assim, deficiências congênitas têm diferentes implicações para a identidade em comparação às deficiências adquiridas, bem como outras características das deficiências podem originar distintas consequências psicossociais (Shakespeare, & Watson, 2002). Em contraste com as deficiências hereditárias ou congênitas, em que a pessoa, muitas vezes, nasce ou convive desde muito cedo com os impactos da deficiência no cotidiano, a deficiência adquirida na idade adulta pode gerar efeitos em todas as esferas da vida, pois ocorre, muitas vezes, sob circunstâncias traumáticas e obriga a pessoa à reorganização da vida e à revisão de valores e concepções.
Ao analisar o impacto da aquisição de uma deficiência no contexto laboral, ressalta-se que as relações entre deficiência adquirida e trabalho podem assumir múltiplas formas, cabendo destacar um dado europeu que indica que um em cada seis trabalhadores que adquiriram uma deficiência perderam o seu emprego dentro de 20 meses (Abberley, 2002). Teixeira e Guimarães (2006) afirmam que as pessoas com deficiência adquirida podem vivenciar movimentos contrários em relação à própria inserção no mercado de trabalho. Isto porque se é alto o número de adultos que adquire uma deficiência e solicita aposentadoria por invalidez devido, muitas vezes, ao receio de enfrentar o local de trabalho e/ou sofrer alguma discriminação, por sua vez a necessidade psicológica de retornar ao trabalho ou, talvez, de mudar de profissão por causa da deficiência, podem estimular a reconstrução da vida. Fechio, Pacheco, Kaihami e Alves (2009) sugerem que, nos casos de lesões medulares que acarretam em deficiências físicas adquiridas, a pessoa passa por uma ruptura da sua imagem ocupacional e, nestas situações, a intervenção psicológica por meio da orientação profissional, quando possível, pode facilitar a retomada profissional.
O rompimento com o cotidiano comum de trabalho, a reavaliação das condições profissionais, os impactos na identidade e os eventuais sentimentos de inutilidade social, entre outras consequências do afastamento do trabalho podem originar profundas transformações na subjetividade e nas relações da pessoa com o mundo. Em especial, considerando-se as dificuldades iniciais acarretadas pela deficiência adquirida e pelo afastamento do trabalho, acredita-se que tais condições associadas possam ser potencialmente geradoras de angústia, mas também de novas percepções acerca das experiências vividas, principalmente as relacionadas ao contexto de trabalho. Nesse sentido, as práticas de reinserção profissional podem se configurar, em determinados casos, como uma fonte de saúde, uma possibilidade de recomeço e uma oportunidade para a ressignificação das dificuldades vividas.
Método
A abordagem metodológica aqui proposta situa-se entre as perspectivas qualitativas, que são aquelas que abrangem o conjunto de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes. O acesso aos participantes foi feito por indicações de empresas, de profissionais e órgãos públicos da área da saúde, além de sugestões dos próprios participantes, no processo conhecido como "bola de neve". No total, o estudo contou com 10 pessoas com deficiência adquirida, sendo uma pessoa com deficiência visual e nove com deficiência física (uma paraplégica, duas pessoas com dificuldades de locomoção, duas pessoas amputadas de membro superior e quatro amputadas de membro inferior). Todos os participantes estavam inseridos no mercado de trabalho (formal ou informal) quando adquiriram a deficiência e se licenciaram do trabalho por causa da aquisição da deficiência, ficando afastados por meses ou anos e retomando as atividades no mercado de trabalho, posteriormente. Os participantes do estudo receberam explicações sobre os objetivos da pesquisa, a participação voluntária, a possibilidade de desistência e o sigilo de suas identidades, concordando com a participação ao assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Entre as causas das deficiências dos pesquisados, cinco deles adquiriram a deficiência em razão de acidentes de trabalho, dois por causa de acidentes de motocicleta, dois como sequela de doenças e uma pessoa devido a um acidente em que ela foi atingida por duas grandes pedras que rolaram da encosta de um balneário. Na época de aquisição da deficiência, três participantes tinham Ensino Fundamental incompleto, um tinha Ensino Fundamental completo, quatro possuíam Ensino Médio completo e duas pessoas possuíam Ensino Superior completo. Entre as quatro pessoas que tinham Ensino Médio completo na época de aquisição da deficiência, duas cursaram Ensino Superior após adquirirem a deficiência. Os pesquisados tinham entre 22 anos e 52 anos de idade, quando adquiriram a deficiência, sendo que o tempo de convívio com a deficiência variou de um ano a 26 anos. Quando concederam as entrevistas, os entrevistados tinham entre 27 e 59 anos.
A coleta de dados foi feita mediante entrevistas semiestruturadas, as quais foram gravadas e transcritas integralmente, a fim de permitir uma análise mais apurada das informações obtidas. As questões do roteiro previamente elaborado abordavam, de maneira ampla e em profundidade, os objetivos pretendidos no estudo, ao mesmo tempo em que buscavam deixar os entrevistados livres para acrescentarem dados que pudessem ser relevantes para a temática investigada e permitir a introdução de outras perguntas relacionadas às hipóteses previamente formuladas. O roteiro de entrevista coletou, inicialmente, algumas informações objetivas acerca dos participantes, tais como formação escolar, trajetória profissional e circunstâncias de aquisição da deficiência, para, então, abordar questões que pudessem se referir aos sentidos atribuídos à atividade laboral e ao processo de reinserção no ambiente de trabalho. Além disso, algumas questões foram inspiradas em outros roteiros de entrevista disponibilizados em dissertações que envolviam pessoas com deficiência ou sujeitos que se afastaram do trabalho por algum motivo, como, por exemplo, Coelho (2009). Como complemento ao que foi verbalizado, foram registrados os dados não verbais e paraverbais do contexto de entrevista, tal como sugerido por Fontanella, Campos e Turato (2006). Estes dados auxiliaram na confirmação, no complemento ou na contradição do que foi dito pelo entrevistado, ampliando o refinamento analítico.
A análise de conteúdo foi o procedimento de análise escolhido para esta pesquisa, a qual é definida, por Bardin (2011), como um conjunto de instrumentos, de caráter metodológico, aplicado a tipos diversos de discursos. Nesta perspectiva, foi adotado o critério semântico de categorização por temas, utilizando-se frases como unidades de registro. Inicialmente, cada entrevista foi analisada separadamente, a fim de se identificar os núcleos de cada ponto discutido, observando-se as recorrências e os eventuais desvios. Então, os temas individuais previamente levantados foram sistematicamente comparados, considerando-se o conjunto das entrevistas, em busca de características em comum e semelhanças acerca de um mesmo tópico. Assim, a classificação em categorias foi realizada de forma não apriorística, isto é, as categorias criadas emergiram do contexto das respostas analisadas. Com base nestas análises, foram identificadas quatro categorias relacionadas aos aspectos psicossociais presentes no processo de reinserção no trabalho de pessoas com deficiência adquirida: (1) necessidade financeira como primeiro motivador; (2) mobilização de expectativas e receios de retorno à mesma empresa, em casos de acidente de trabalho; (3) aspectos positivos relacionados à reinserção no trabalho; (4) mudanças na relação com o trabalho pelo impacto da aquisição da deficiência.
Resultados e discussão
Os resultados da presente investigação são apresentados a seguir, acompanhados de trechos das entrevistas realizadas, sendo que os nomes atribuídos aos participantes são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.
Necessidade financeira como primeiro motivador
Para a maioria dos participantes, os motivos de retorno ao trabalho se concentraram na necessidade financeira, como no caso de Dirce, que optou por não se aposentar por invalidez, em razão da necessidade de manter a renda a que estava habituada:
[...] eu tive que tomar a decisão: ou eu me aposentaria por invalidez e proporcional ao tempo de serviço, o que era muito ruim, porque eu perderia em torno de 60% do meu salário, ou eu encarava e voltava a trabalhar. Aí, foi a redenção porque eu escolhi voltar a trabalhar. Esse foi o meu grande salto. Aí que veio a verdadeira adaptação, recuperação. [...] Foi a verdadeira terapia que eu tive, foi a volta do trabalho. [...] Mas, o primeiro momento pra voltar, pesou o bolso, porque o deficiente tem muita despesa e além das duas filhas, da escola, tudo. Aí, eu vi que mais precisava (Dirce, 57 anos, ensino superior completo, professora, paraplegia).
Para a professora, no entanto, a importância da compensação financeira pelo trabalho diminuiu com o passar do tempo e cedeu lugar para outros sentidos, de modo que, atualmente, ela já poderia ter se aposentado por tempo de serviço há seis anos, sem perdas na sua remuneração, mas prefere continuar trabalhando. Em pesquisa de Moreira (2011), com seis professores universitários aposentados que se mantinham em atividade, foi observado que o fato de continuar trabalhando proporcionava diversos ganhos, como a permanência da valorizada identidade de trabalhador e o afastamento dos fantasmas de perdas e limitações da velhice. Além disso, constatou-se que a manutenção do vínculo empregatício não estava relacionada a problemas econômicos, mas ao reconhecimento pelas atividades desempenhadas e à vivência de saúde, enquanto a aposentadoria representava uma condição de incapacidade, morte e perda da identidade.
Apesar de outras razões poderem motivar este retorno ao trabalho, Garbin (2012) assinala que a necessidade de sobrevivência e de manter os compromissos financeiros em dia faz com que muitas pessoas que sofreram acidentes laborais considerem o retorno ao trabalho como uma obrigação. Na presente pesquisa, entre os entrevistados que adquiriram deficiência por causa de acidente de trabalho, a maioria relatou pouco ou nenhum interesse em voltar a trabalhar na empresa em que se acidentou, mas retornou em virtude, principalmente, de questões econômicas:
[...] todo acidentado tem que voltar pra empresa, só que a minha intenção já não era mais voltar pra lá, eu apenas voltei meio obrigado [...]. Minha intenção era continuar estudando. Pra mim continuar estudando, eu tinha que voltar a trabalhar. [...] Passava um filme na minha cabeça, ainda mais quando eu vi a máquina descendo, a máquina que eu trabalhava, porque, querendo ou não, eu gostava de trabalhar na máquina e eu não poderia mais trabalhar com esse serviço [...]. Eu voltei em área de escritório, tipo assim, é como todo deficiente volta, né, arruma nem que seja um papel pra você rasgar ali, pra falar que você tá fazendo alguma coisa, mas eu tava sem ânimo nenhum pra trabalhar, então não tinha clima [...]. Pra mim entrar num outro lugar diferente, aí já seria, ninguém saberia da minha história, eu poderia até contar, mas entrar num lugar diferente, às vezes, eles iam agir de uma outra forma, agora na mesma empresa é muito complicado, você sai, igual eu saí de lá, correndo, praticamente, pra voltar, entre aspas, carregado, aí é complicado (Henrique, 27 anos, ensino superior completo, auxiliar administrativo, amputação de membro inferior).
O retorno ao trabalho de Henrique se sustentou sobre a necessidade econômica, de modo que a sua percepção acerca do trabalho aparece vinculada a um meio de obter recursos para estudar. Percebe-se que, para ele, o trabalho na empresa em que se acidentou era tido, principalmente, como uma forma de sobrevivência antes mesmo da aquisição da deficiência, pois ele estava estudando para concursos públicos e pretendia sair do emprego, caso fosse aprovado no concurso do Corpo de Bombeiros, para o qual estava se preparando. Como discutido por Antunes (2003), pode-se dizer que o trabalho, para Henrique, estava relacionado à alienação, uma vez que visava apenas à manutenção da vida.
Para Cláudio, que se aposentou por invalidez após o acidente de trabalho que o deixou cego e abriu mão da aposentadoria no valor de um salário mínimo depois de ser aprovado num concurso de nível federal, a oportunidade de assumir o cargo público representou, além da melhoria financeira (a qual foi a grande mobilizadora do retorno), uma conquista após o término do curso superior:
Não, lá eu não voltei [empresa que se acidentou], não, porque não tinha, também não ia ter condições psicológicas, não ia ficar legal de ficar trabalhando num lugar onde eu entrei de uma forma e saí de outra. [Retornou ao trabalho] por causa do salário de aposentadoria [risos]. A tendência é só piorar, só piorar. É lógico que a gente tem que olhar o lado, o lado financeiro da coisa, mas tem também aquela autoestima, já que eu estudei, já que eu fiz alguma coisa, eu achava que eu não devia parar, entendeu? Tinha que ir mais além e dar sequência naquilo que eu comecei, mostrar que se eu cheguei aonde eu cheguei, eu posso chegar mais ainda, ter mais um pouquinho (Cláudio, 40 anos, ensino superior completo, servidor público, deficiência visual).
Como Cláudio e Henrique possuíam Ensino Médio completo na época em que sofreram os acidentes de trabalho e cursaram Ensino Superior após a aquisição da deficiência, destaca-se que a busca por qualificação profissional pode ter contribuído para a percepção que ambos demonstraram acerca do retorno ao trabalho e do exercício das novas tarefas atribuídas, as quais eram diferentes das executadas na ocasião em que adquiriram a deficiência. A formação profissional pode ser considerada, portanto, um fator de grande relevância e, até mesmo, condicionante dos aspectos psicossociais relacionados a essa reinserção no mercado de trabalho, aspecto que deve ser mais bem explorado em estudos posteriores.
Mobilização de expectativas e receios de retorno à mesma empresa, em casos de acidente de trabalho
Retomando as falas de Henrique ("você sai, igual eu saí de lá, correndo, praticamente, pra voltar, vamos supor, entre aspas, carregado") e de Cláudio ("não ia ficar legal de ficar trabalhando num lugar onde eu entrei de uma forma e saí de outra"), identifica-se o uso da mesma analogia sobre o retorno à empresa em que adquiriram a deficiência: entrar de um jeito e sair de outro. Nesta perspectiva, percebe-se que, de certo modo, o acidente ficou "colado" à imagem da empresa, como o lugar que tirou um membro ou uma capacidade. Por sua vez, Flávio voltou a trabalhar na empresa em que sofreu o acidente laboral e, apesar de o retorno não ser desejado, como nos casos de Cláudio e Henrique, ocorreu devido à necessidade econômica associada à baixa escolaridade e ao receio de não conseguir uma recolocação no mercado por causa da deficiência: "[...] eu achava que por causa de ser deficiente eu não ia conseguir, sabe? Eu acho que se eu fosse procurar emprego em outra firma, não sei se eles iam me aceitar com essa deficiência". Ele relata que passou por um processo de adaptação na empresa, sendo realocado em um setor diferente do qual trabalhava:
[...] voltei, só que eles me transferiram pra outro setor, porque onde eu trabalhava não tinha condições, até psicologicamente, de... aí, pra mim, não dava [...]. Hoje é normal, trabalho normal, vou lá na área onde eu trabalhava, chego lá, eu vejo a máquina, ainda dá assim, a gente fica um pouco, como eu vou te falar, lembra do acidente que aconteceu, passa aquele filme todo de novo [...]. Na época, com a minha mãe, "acho que não vou conseguir trabalhar de novo lá, não, e chegar lá ver a máquina onde eu machuquei"... mas, só que depois, conversando com o pessoal lá mesmo, no dia que eu fui fazer a avaliação médica, ele falou que eu não ia voltar pra onde eu trabalhava (Flávio, 50 anos, ensino fundamental incompleto, auxiliar de produção, amputação de membro superior).
Por estas falas, observa-se a abertura de novas possibilidades de pesquisas que investiguem a representação/imagem das (antigas) empresas para pessoas que adquiriram uma deficiência devido a acidentes de trabalho. Além disso, destaca-se que os relatos da maioria dos entrevistados levam a acreditar que a questão primordial na motivação para a volta ao trabalho, independentemente da causa da aquisição da deficiência (por acidente laboral ou não), seja a sobrevivência, isto é, a necessidade financeira. Isso faz pensar que o primeiro sentido associado à volta ao trabalho/emprego seja o da continuidade material da vida, que pode abrir (ou não) possibilidades para a construção de novos sentidos. Desta forma, o trabalho, como emprego, parece estar associado muito mais a uma necessidade de sobrevivência do que de uma necessidade subjetiva de outra ordem. Destaca-se que Morin (2001) assinala que o recebimento de um salário está presente em todas as definições de trabalho, sugerindo que, para a maioria das pessoas, são poucas as diferenças entre trabalho e emprego.
Ao retornar às atividades, as preocupações e expectativas negativas dos pesquisados mostraram-se vinculadas à reação dos colegas de trabalho, a não adaptação às atividades (antigas ou novas) ou à diminuição da produtividade. Neste último caso, conforme exigência pessoal dos próprios entrevistados e, provavelmente, devido à socialização anterior no trabalho, que impõe a questão da produtividade como central no processo de reconhecimento e valorização profissional na sociedade capitalista. No entanto, todos os entrevistados relataram que o retorno foi melhor do que o esperado, como pode ser percebido pelas falas de Antônio, Geraldo, Henrique e Dirce:
Pensava que ia ter dificuldade, mas não tive, não. Achei que não ia conseguir mais produzir como eu produzia, produzo até mais (Antônio, 58 anos, ensino fundamental incompleto, artesão, amputação de membro inferior).
A minha expectativa é que eu não ia dar conta, exatamente por causa das minhas dificuldades, limitações, né, eu achei que eu não ia dar conta, assim, o ponto que eu cheguei, o tanto que eu estou dando conta, apesar das dores que eu sinto, de caminhar [...]. Se não desse conta, eu ia sair, não desse conta de andar, de trabalhar, né, aquela coisa ali que eu tinha ficado um ano à toa, parado, deitado, né? Mas, graças a Deus, eu tô me sentindo muito bem (Geraldo, 53 anos, ensino fundamental completo, vendedor, dificuldades de locomoção).
[...] a reação do pessoal, como que eles agiriam comigo, se iriam agir do mesmo jeito, se não iriam, se iriam ficar com dó, com pena de mim, eu imaginei várias coisas [...]. A gente não sabe muito a reação das pessoas [...], se vão te apoiar, se vão falar assim: "ah, ele é desse jeito, eu não vou nem dar isso pra ele tentar fazer, não, ah, deixa ele de lado, vamos dar pra outra pessoa". De verdade, nossa, me apoiaram muito, me deram muita força e, tipo assim, o máximo que eles poderiam me ajudar, eles me ajudaram, foi muito melhor do que eu esperava (Henrique, 27 anos, ensino superior completo, auxiliar administrativo, amputação de membro inferior).
Foi difícil, foi. Ficava pensando como que eu ia enfrentar uma sala de aula sentada. Eu era o capeta, subia dois, três degraus de uma vez. Eu não andava, eu corria. E aí foi muito bom pela convivência com os alunos [...]. Mas, a partir do dia que eu tive a primeira aula, o primeiro contato, aí, isso acabou [receio do retorno ao trabalho], eu falei "eu vou" e vim, com tudo (Dirce, 57 anos, ensino superior completo, professora, paraplegia).
Aspectos positivos relacionados à reinserção no trabalho
O convívio social, como relatado por Dirce, tende a ser considerado um dos pontos positivos do retorno ao trabalho, pois, segundo Ferreira e Oliver (2010), a desvinculação do mundo do trabalho e as dificuldades de circulação social das pessoas com deficiência física adquirida geram prejuízos significativos nas relações de convivência, ao impedir as trocas sociais decorrentes, muitas vezes, do simples fato de ir de casa para o trabalho. Além disso, o estudo empírico das autoras observou que o afastamento do trabalho reforçou sentimentos de frustração, solidão e isolamento nas pessoas com deficiência. No caso de Cláudio, por exemplo, a retomada da história profissional também representou a reafirmação da própria capacidade, a possibilidade de levar a vida da mesma forma que pessoas sem deficiência, em seus aspectos bons e ruins, além de permitir maior autonomia e independência, não apenas financeira, mas também perante as diversas circunstâncias sociais:
O convívio com outras pessoas, que se eu fosse não aceitar minha situação, hoje em dia, eu não estava me relacionando com ninguém [...] mas o trabalho me rendeu uma série de coisas que no final vai virar, não só a parte financeira que pra mim, não é, no momento, hoje, não é tudo, entendeu? Essa coisa mesmo de você estar interagindo com outras pessoas, estar sentindo que você pode ser útil, entendeu? Essa sensação de realização também [...], a gente tem que mostrar que tem capacidade de fazer alguma coisa que, pra muitas pessoas, "ah, coitado, não enxerga", "ah, tá, ah, é um coitadinho", parece que você tem sempre que ficar numa redoma de vidro e todo mundo passar ali e ficar te olhando, mas essa parte de ter que sair de casa [para trabalhar], ter que, às vezes, passar raiva, uma vida normal, entendeu? (Cláudio, 40 anos, ensino superior completo, servidor público, deficiência visual).
Assunção e Sette (2010), quando narram os processos subjetivos do primeiro autor ao adquirir deficiência visual em virtude de uma lesão por arma de fogo num assalto, descrevem pontos em comum aos narrados pelo entrevistado Cláudio. Entre estes, ressaltam-se as incertezas e os sintomas depressivos após a aquisição da deficiência, mas também a recuperação gradual do sentimento de confiança nas próprias capacidades e o papel do trabalho como um dos caminhos para a realização pessoal. Assunção e Sette (2010) expõem que o retorno ao trabalho se tornou uma experiência gratificante, apesar da insegurança inicial ao lidar com as limitações agora propiciadas pelo ambiente, da necessidade de pedir ajuda aos outros nas pequenas rotinas do dia a dia e do medo da reação das pessoas, entre outros aspectos. Embora tenha sido, a princípio, fonte de ansiedade, o retorno ao trabalho se tornou recompensador e trouxe a sensação de que a vida continuava. Destaca-se também o amadurecimento pessoal e a construção de um novo projeto de vida, ambos decorrentes da experiência adversa da aquisição da deficiência (Assunção, & Sette, 2010).
Alguns participantes da pesquisa relataram que traziam expectativas boas na época de retorno ao trabalho, como Bernardo que era garçom quando se acidentou, mas, ao retomar as atividades de trabalho após a amputação da perna, tornou-se taxista: "eu comecei a dirigir, já era habilitado e vi que dava pra dirigir legal e, eu dei sorte, consegui a licença, o alvará. [...] Foi justamente por causa da deficiência, caso contrário, não seria taxista". Nas palavras de Bernardo, sobre o que esperava ao voltar a trabalhar:
Sinceramente, eu esperava coisas boas, mas não esperava que fossem tão boas. Eu acho que eu tirei de letra, eu entrei aqui no táxi, o que eu tenho de elogio, de freguês, eu tenho um diploma de honra da minha profissão em casa, foi muito bom, fantástico. [...] Hoje, talvez, eu consiga me aposentar por invalidez, mas eu não quero. Acho que no táxi é melhor do que me aposentar, depois se eu me aposentar por invalidez, eu não vou poder trabalhar, entendeu? (Bernardo, 59 anos, ensino fundamental incompleto, taxista, amputação de membro inferior).
Mudanças na relação com o trabalho pelo impacto da aquisição da deficiência
Pelas falas dos entrevistados, observou-se que o exercício da atividade profissional não passou por grandes reestruturações subjetivas, mantendo os mesmos sentidos para a maioria dos pesquisados. Os dados que contrastam com este resultado geral e que devem ser destacados são os de pessoas cuja deficiência gerou um impacto maior na vida cotidiana, como são os casos de Cláudio, que ficou cego, e de Dirce, que ficou paraplégica. Nestas situações, percebeu-se que o trabalho ganhou maior relevância e novos sentidos, sendo que a relação com o trabalho se alterou em função da aquisição da deficiência:
Antes, trabalho, pra mim, seria uma forma de ganhar dinheiro, antes, né? Hoje, na situação que eu me encontro, além de ser realização pessoal, é uma forma de melhorar minha autoestima, entendeu? [...] É lógico que, antes, trabalho seria, você tem a sua força de trabalho, você trabalha e quer ganhar, quer receber, hoje, é lógico, tô trabalhando não é de graça, mas hoje tem uma série de coisas que vieram agregadas. Essa experiência de vida que eu tive, que eu tenho, a forma de pensar em trabalho, entendeu? [...] agora existe essa espécie de realização, de conquista, antes eu simplesmente trabalhava, hoje além de trabalho, é uma conquista, entendeu? (Cláudio, 40 anos, ensino superior completo, servidor público, deficiência visual).
Primeira coisa, pode ser em qualquer situação, mas se tiver o mínimo de condição, trabalhe. Tem que trabalhar, não pode ficar dentro de casa. Acho que hoje é melhor [trabalho depois da deficiência], embora tivesse muito mais agilidade antes, mas você consegue isso de outra forma e tal, compensa. Eu acho que é melhor (Dirce, 57 anos, ensino superior completo, professora, paraplegia).
Além disso, como exposto por Geraldo, o trabalho pode se caracterizar como uma forma de superação de traumas e de reinserção na sociedade, possibilitando a continuidade da vida: "[...] eu fiquei numa situação que, pra mim, é mais importante trabalhar hoje, pra mim esquecer do acontecido e tentar me recuperar mais do que eu tô passando".
Observa-se que, apesar dos receios e da resistência inicial em voltar ao trabalho, as experiências de retorno (para o mesmo emprego ou para outros) possibilitaram uma ressignificação da questão da deficiência. Para as pessoas que tinham o receio de serem vistas como "coitadas", a reinserção no mercado de trabalho trouxe a percepção de reconhecimento pela capacidade e produtividade, amenizando as dificuldades da vivência de aquisição da deficiência. Sob este ângulo, compreende-se o trabalho como algo que se aproxima de uma atividade com consequências terapêuticas, capaz de motivar a reconstrução da rotina e de mobilizar sentimentos de confiança e de superação, proporcionando, consequentemente, uma autoimagem positiva.
Considerações finais
A aquisição de uma deficiência na vida adulta pode se apresentar como um grande desvio do que seria o curso natural de um projeto de vida já traçado e que seria seguido com poucas alterações em sua linearidade. No entanto, o retorno ao trabalho, após a fase de elaboração das ocasionais perdas e dos aprendizados decorrentes das novas habilidades necessárias à vida cotidiana, mostra-se como uma possibilidade de retomada do antigo projeto, ao permitir uma vivência, muitas vezes, semelhante a que se tinha anteriormente ou a que a maioria das pessoas sem uma deficiência tem. Nesta pesquisa, o retorno ao trabalho de pessoas com deficiência adquirida foi determinado, em grande parte das vezes e, pelo menos, inicialmente, por questões de ordem material, relacionadas à necessidade financeira e à sobrevivência. Assim, observa-se a predominância deste fator sobre questões de caráter subjetivo, as quais aparentaram ganhar maior relevância com o passar do tempo e o decorrer do processo de adaptação pós-deficiência.
Tendo em vista que o trabalho tem um papel essencial na configuração da subjetividade e uma função extremamente relevante na sociedade contemporânea, o retorno à atividade laboral pode representar uma experiência rica em significados e ter grande impacto nas novas relações estabelecidas entre a pessoa e o mundo ao seu redor. Observou-se, neste estudo, que a volta às atividades de trabalho foi cercada, na maioria dos casos, por muitas expectativas e receios associados à retomada da própria produtividade, à reação dos colegas de trabalho e a não adaptação às tarefas e rotinas, experiências que foram, entretanto, bem vivenciadas por praticamente todos os pesquisados. Cabe ressaltar, no entanto, que, como neste estudo os participantes estavam reinseridos no mercado de trabalho, existe a possibilidade de que eles tenham sido complacentes em relação ao trabalho. Portanto, caso fossem entrevistadas pessoas que não retornaram às suas atividades profissionais, os motivos e as experiências pessoais destas talvez indicassem outros pontos de vista.
Esta pesquisa verificou que o retorno ao trabalho foi vivenciado positivamente pela maioria das pessoas com uma deficiência adquirida, como reflexo da interação entre aspectos subjetivos (necessidades, sentidos atribuídos à realidade, expectativas, receios) e aquisição da deficiência. Ao se fazer uso, para análise, de recortes das falas dos participantes, pretendeu-se mapear as aproximações e distanciamentos entre as vivências dos entrevistados, de modo a contribuir para um conhecimento mais rico sobre o retorno ao trabalho mediante a aquisição de uma deficiência. Por essa perspectiva, acredita-se que reinserção profissional, após a experiência da deficiência adquirida, apresenta-se como um fator importante para a continuidade da vida social, tanto nos seus elementos materiais como emocionais, e representa um ganho importante para a construção de uma sociedade mais inclusiva.
Agradecimentos
À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
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Endereço para correspondência:
Joelma Cristina Santos
joelma.psicologia@yahoo.com.br
Maria Nivalda de Carvalho-Freitas
nivalda@ufsj.edu.br
Submetido em: 03/04/2018
Revisto em: 26/04/2018
Aceito em: 19/05/2018