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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.2 Rio de Janeiro mayo/ago. 2020

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72i1p.88-104 

ARTIGOS

 

Pessoas em situação de rua: cartografando um território existencial

 

Homeless people: mapping an existential territory

 

Personas en situación de calle: cartografía de un territorio existencial

 

 

Murilo CavagnoliI; Raica MoterleII; Eduarda MoroIII

IPsicólogo. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Titular da Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Chapecó. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIGraduada em Psicologia pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Chapecó. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIIGraduada em Psicologia. Mestre em Educação pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Chapecó. Estado de Santa Catarina. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Orientados pelo método cartográfico, visando compreender expressões da condição de morador de rua, traçou-se um plano de encontros entre pesquisadora e um sujeito em situação de rua, com o objetivo de analisar por quais vias o fluxo de suas experiências agenciam um território existencial, evidenciando afecções que dão consistência a tal território. Com base na pesquisa de campo e em reflexões ancoradas na Esquizoanálise e na Psicologia Social Crítica, constituíram-se três eixos de análise: Trajetória de um devir anômalo; Encontros com as políticas públicas; Relação com a alteridade e percepção da situação de rua. As análises demonstram a existência de mecanismos biopolíticos de captura da singularidade, coexistentes a movimentos de resistência e criação, enredados ao sofrimento ético-político. Concluímos que tal sofrimento merece atenção da sociedade e das políticas públicas e clama pelo investimento em experiências éticas, potencializadoras das vidas relegadas ao lugar anômalo da fronteira entre homem e animal.

Palavras-chave: Pessoas em situação de rua; Cartografia; Território existencial.


ABSTRACT

Guided by the mapping method, looking for an understanding of the homeless people's expressions, a meeting schedule between the researcher and a homeless person was established aiming at analyzing the paths by which his flow of experiences agencies an existential territory, revealing the affections that provide consistency to such territory. Based in the field research and reflections anchored in Schizoanalysis and Critical Social Psychology, three axes of analysis were constituted: the path of being anomalous; Access to public policies; Relationship with others and perceptions related to being homeless. The data showed the existence of biopolitical ways for capturing singularities, coexisting with resistance and creation movements, and entangled to ethical-political suffering. In conclusion, this suffering deserves society and public policies attention that potentiate the relegated lives to the anomalous place of the border between human beings and animals.

Keywords: Homeless People; Cartography; Existential territory.


RESUMEN

Guiados por el método cartográfico, para comprender las expresiones de la falta de hogar de los habitantes de las calles, se elaboró un plan de encuentros entre la investigadora y un sujeto sin hogar, con el propósito de analizar de qué manera el flujo de sus experiencias representan un territorio existencial. destacando las condiciones que dan consistencia a dicho territorio. Con base en la investigación de campo y las reflexiones ancladas en el Esquizoanálisis y la Psicología Social Crítica, se constituyeron tres ejes de análisis: Trayectoria de un devenir anómalo; Encuentros con políticas públicas; Relación con la alteridad y percepción de la situación de la calle. Los análisis muestran la existencia de mecanismos biopolíticos de captura de singularidad, coexistentes con movimientos de resistencia y creación, enredados en el sufrimiento ético-político. Concluimos que tal sufrimiento merece la atención de la sociedad y de las políticas públicas y llama a invertir en experiencias éticas, empoderando vidas relegadas a un lugar anómalo de la frontera entre el hombre y el animal.

Palabras clave: Personas en situación de calle; Cartografia; Territorio existencial.


 

 

Introdução

Este artigo apresenta resultados de pesquisa realizada a partir da imersão, orientada pelo método cartográfico, no fluxo cotidiano da condição de morador de rua. Investiu-se em traçar um plano de encontros entre pesquisadora e um sujeito em situação de rua, na busca por evidenciar formas, conteúdos, expressões e relações amalgamadas à composição da experiência deste com a/na cidade. Expomos o percurso da pesquisa enfatizando a experiência de campo e sua trajetória, engendrada pela possibilidade de deixar-se afetar, de "pesquisar-com" (Bonamigo, 2016), delineando certa visibilidade a um modo de subjetivação.

Na construção de análises, consideramos a implicação de estarmos imersos em um campo social que borbulha em produção de diferenças, mas que também segmenta e ancora, sob uma lógica capitalística incapaz de sustentar contextos éticos e processos políticos com potência à invenção de subjetividades emancipadas (Guattari, 1990). A pessoa em situação de rua é alijada da posição de produtora de capital, disposta diante de arranjos comunitários que excluem, selecionam e reificam marcas, em meio a busca frenética por uma identidade clichê (Rolnik, 1997), em uma interminável dialética inclusão/exclusão. Assim, "[...] exclui e inclui parcelas da população do exercício da cidadania, sem prejuízo da ordem social e legitimando a inferioridade socioeconômica da maioria" (Sawaia, 1999, p. 22).

Na política socioassistencial brasileira, dirigida à população de rua, definem-se tais sujeitos, através do Decreto nº 7.053 (Brasil, 2012), como grupo heterogêneo que vive na extrema pobreza, com vínculos familiares tênues ou rompidos e sem moradia habitual ou regular. São caracterizados ainda pela utilização de vias públicas e áreas desocupadas como moradia temporária ou durável e pela utilização de serviços de acolhimento provisórios. Esta percepção é disposta ainda em outros documentos e discussões dedicadas a estabelecer diretrizes técnicas ao trabalho socioassistencial e da saúde coletiva, como nos manuais de práticas com pessoas em situação de rua do Ministério da Saúde direcionados à atenção básica (Brasil, 2012; Teixeira & Fonseca, 2015).

Contudo, apesar da definição precisa e a primeira impressão, generalizável, quando embarcamos junto às vivências das pessoas em situação de rua, considerando suas condições concretas, percebe-se que tais "[...] indivíduos são dotados de intensas potencialidades que os habilitam a trafegarem na 'contramão' das normas sociais, constituindo modos de existências abalizados nas próprias singularidades" (Rozendo, 2011, p. 108). A experiência é singular e escapa das coordenadas identitárias territorializadas enquanto formações subjetivas supostamente estáticas no plano das políticas públicas e nos modos consensuais de partilhar sentidos.

O sujeito que constitui o grupo de pessoas em situação de rua carrega consigo trajetória marcada pela constituição de um território fronteiriço, equilibrado no interstício do normal e do anômalo, num lugar de criminalização e culpabilização, como "coisa fora do lugar e impura" (Valencio, Pavan, Siena, & Marchezini, 2008, p. 558). Em busca de expressões desta vida fronteiriça, delineou-se o objetivo: analisar por quais meios o fluxo das experiências cotidianas da pessoa em situação de rua agencia um território existencial, evidenciando as afecções que dão consistência a esse território.

Na perspectiva esquizoanalítica, que oferece alguma de suas ferramentas conceituais as análises aqui desenvolvidas, a noção de território existencial é eixo fundamental à compreensão da subjetivação. Território, em tal leitura, transforma-se em categoria analítica que permite compreender a estabilização de certas práticas sociais, discursos e relações no delineamento de subjetividades singulares. A esquizoanálise permite compreender que é na relação entre indivíduo e forças que vem de fora, que são produzidas e persistem linearidades, binarizações e circularidades, agenciadas tanto como tecido de instituições no plano macropolítico, quanto como experiência particular, na diversidade micropolítica e desejante (Deleuze & Guattari, 1997a). Um território existencial é, apesar de sentido e vivido como um meio de individuação, sempre constituído no entrecruzamento de determinações coletivas, que assumem forma e força particulares no delineamento de uma certa duração à vida singular (Guattari, 1992). É o sujeito, portanto, perpétua produção provisória, efeito efêmero do contágio constante entre uma vida e a segmentaridade própria a ordem molar (Deleuze & Guattari, 1997b).

Espinosa (1950), referência imprescindível à Esquizoanálise, reitera em sua ética que a potência humana para a produção de bons encontros, para a criação de ideias e corpos inéditos, reside nas possibilidades que afecções, enquanto acontecimentos singulares, são capazes de erigir. Na proposição 9 da ética, afirma: "a ideia de uma coisa singular, existe em ato, é um modo singular de pensar, e um modo distinto dos demais" (Espinosa, 1950, p. 113). Singular, pois o pensamento, para Espinosa, não emerge comprimido ao invólucro de uma única vida, e sim é efeito das afecções que apenas as relações entre muitas vidas situadas podem produzir. É, portanto, por meio de uma analítica da qualidade das afecções (capacidade de afetar e ser afetado que faz variar a natureza das durações do devir), que reconhecemos tanto movimentos que paralisam, quanto aberturas para reexistir e criar, nesta pesquisa.

Desta forma, é o sujeito uma "dobra", agenciamento provisório de certa singularidade, que apenas sustenta unidade no entrecruzamento de forças heterogêneas, múltiplas, coletivas e rizomáticas (Deleuze, 1988). Junto a Simondon (2003), propomos a análise de uma singularidade como "individuação", expressão de um devir particular, mas atravessado por formações coletivas, desde que tomemos o indivíduo não como único e irredutível, mas como aquilo que é indivisível do que o compõe (Simondon, 2003). Assim, exploramos a presença paradoxal, na situação de rua, de invenção, resistência e emancipação e, ao mesmo tempo, de um devir colado a modos hegemônicos de produção da vida, às lógicas biopolíticas, necropolíticas e disciplinares que instrumentalizam à razão prática e as tecnologias próprias ao biopoder da modernidade tardia (Foucault, 1995, 1999; Mbembe, 2006).

Sawaia, Pereira e Santos (2018) desenvolvem revisão integrativa de produções científicas, publicadas entre os anos de 2004 e 2016, referentes à população em situação de rua. Em sua análise destacam que, em 2015, o número de pessoas em situação de rua no Brasil chegou a casa dos 100 mil, caracterizando expressão gritante e concreta das desigualdades sociais. Reafirmam a urgência do investimento na construção de perspectivas que sustentem uma práxis atenta às potências próprias a estes sujeitos, conectada ao compromisso social, ético e político da psicologia. A mesma revisão da literatura evidenciou a falta de estudos que partam de experiências do morador de rua, desenvolvidas nos espaços e contextos em que tais sujeitos estão inseridos, indicando ainda a falta de proposições que permitam a problematização do cenário atual e a humanização do trabalho das Políticas Públicas direcionado a tal população (p. 109).

Sob este prisma, buscamos uma compressão da produção de modos de vidas anômalos e paradoxais (Deleuze & Guattari, 1997b), problematizando relações com a cidade e suas instituições, produzindo alguma visibilidade a existências ruidosas, sem sobrecodificá-las pelo plano já composto por vozes outras, mas considerando a presença destas vozes na gênese e manutenção de territórios existenciais. Pretende-se aqui maquinar um discurso que surge dentre afecções, no encontro, que ganhe expressão na intersecção com o discurso da pessoa em situação de rua, que faça a linguagem acadêmica gaguejar quando tensionada pela singularidade, contribuindo para complexificar o olhar e o dizer. Da mesma forma, este trabalho serve também para dar expressão ao "sofrimento ético-político" (Sawaia, 2001) particular de uma vida que desvia do equipamento pré-formado das instituições e do enquadre ao biopoder encarnado nas políticas públicas, nas relações de trabalho e nas múltiplas capturas que homogeneízam devires, mas produzem durações estáveis.

 

Método

A pesquisa teve o método cartográfico como diretriz à gênese e análise dos dados. A cartografia desafia o pesquisador a um mergulho nos processos de produção de subjetividade. Isso implica em habitar um território existencial, tornando-se, o próprio pesquisador, parte da experiência imbricada na constituição deste território imanente (Barros & Kastrup, 2009). A cartografia permite deixar-se envolver pelas teias de forças e relações que constituem o campo, pelas formas e devires que nele estão conectados, exigindo disposição para experimentar a processualidade, no contato com intensidades que transbordam em subjetividades singulares, múltiplas (Barros & Kastrup, 2009, p. 73).

Para Deleuze e Guattari (1997a), a individuação é composta e desvendada na trama da expressividade, na duração dos ritmos constituintes de consistência aos territórios existências. Assim sendo, "[...] cartografar é sempre compor com o território existencial, engajando-se nele" (Alvarez & Passos, 2009, p. 135). É necessário considerar o devir como sempre "entre dois", no mínimo dois, contágio operado por uma práxis ética do agenciamento entre corpos e pensamentos em um processo de aprendizagem profundo. Cartografar exige erigir um plano comum de comunicação entre os que estão em latitudes distintas, encurtando distâncias, possibilitando unir: mais que pesquisar sobre, pesquisar com.

A pesquisa de campo aconteceu em um município de médio porte de Santa Catarina, inicialmente de forma exploratória, em locais onde convivem pessoas em situação de rua. A partir da inserção de uma das pesquisadoras em território central da cidade e costumeiramente frequentado por pessoas em situação de rua, desenvolveram-se quatro incursões a tal contexto, permeadas por encontros e conversas informais com cinco possíveis participantes. Um deles, que demonstrou interesse em discutir sua experiência e em permitir que a pesquisadora acompanhasse seu cotidiano, foi convidado formalmente a colaborar com o processo de investigação. Tomando o interesse mútuo como critério de inclusão, a colaboração de "Barba", como prefere ser chamado, permitiu o compartilhamento de mais seis encontros do par, situados em diferentes contextos da cidade1. Os encontros, geralmente com duração de aproximadamente duas horas, foram definidos junto ao participante, ocorrendo em locais onde este costuma dormir ou nos quais mantém rotina, durante o dia. A inserção da pesquisadora no cotidiano se deu por meio da observação participante. Na perspectiva cartográfica, o observar não se constitui em isolar os acontecimentos, mas, sim, em flutuar na experiência, mapeando a rede de forças conectadas, permitindo um mergulho conjunto, incerto e imprevisível no próprio encontro (Kastrup & Passos, 2013).

Barba, na cidade em questão, está há três anos em situação de rua. Já andou muito por aí, como conta. Não foi a pesquisadora quem o encontrou, foi a abertura ao devir que os agenciou, em um acontecimento ao acaso que permitiu a possibilidade de fazer habitar entre dois uma realidade labiríntica, em que múltiplas linhas ou vetores de subjetivação se transversalizam (Deleuze & Guattari, 1997a). A partir de então, acompanhou-se seu cotidiano de formas distintas; andando pelas ruas, pedindo moedas no sinal, falando sobre o acesso às políticas públicas e no contato com outras pessoas, em diversas situações. A experiência cartográfica possibilitou a organização de eixos para a elaboração e exposição das análises, que apresentam a forma do percurso e o conteúdo dialógico das narrativas desdobradas a partir do reconhecimento, na relação entre pesquisadora e Barba, de um ritmo próprio, constitutivo deste território existencial. Tais eixos de análise, entendidos como expressões de forças distintas agenciadas a linhas de composição do território, são: Trajetória de um devir anômalo; Encontros com as políticas públicas; e Relação com a alteridade e percepção da situação de rua. No percurso da investigação, a pesquisadora utilizou-se do "diário de bordo" (Barros & Passos, 2009) como instrumento e técnica de registro e análise da incursão à experiência. Por isso, serão utilizados, neste artigo, trechos dos diários redigidos pela pesquisadora e algumas das falas de Barba.

Buscou-se, assim, evidenciar esse discurso não ouvido, recomposto na dialogia do pesquisar, o devir-minoritário, de minorias não são apenas numéricas, mas intensivas, são compostas por tudo o que se situa fora da vida consensual, que desordena a consonância política das maiorias (Deleuze & Guattari, 1997b).

 

Discussão

Trajetórias de um devir anômalo

É preciso partir da história que oferece consistência a esta pesquisa e que, ao mesmo tempo, nos faz viajar por um encontro instável e de constantes transformações. Barba permitiu o estar junto, o andar com, o sobrevoar e também o pouso em suas histórias e sua vida, sempre atualizadas na experiência dialógica que o presente oferece (Kastrup, 2009). Ele mostrou disposição ao encontro: "logo ele começou a me falar sobre as pessoas que encontra, que o chamam por vários nomes diferentes. Diz que algumas pessoas chegam e oferecem um cafezinho, dizendo que têm tempo para conversar" (Diário de Campo). O que expomos não é um relato completo de uma história de vida, pois "o que a história capta de acontecimentos é sua efetuação em estados de coisa, mas o acontecimento em seu devir escapa à história" (Deleuze, 1992, p. 210).

Barba compartilhou sua experiência, permitindo aproximação entre os diferentes em um plano imanente. Na cidade, costuma dormir sempre no mesmo lugar, conhece muitas pessoas e vai conversando com várias delas no decorrer de suas andanças. Barba conta ter andado menos que o desejado nos últimos dias, pois recentemente foi mordido por alguns cães de rua e está com dolorosas lesões nos pés. A trajetória foi sendo compartilhada em fragmentos, sempre ligados a cenas na experiência que oferecia "contexto extraverbal" (Bakhtin, 1997), agenciando a necessária relação entre palavra e mundo que dá vida ao discurso enquanto texto-contexto da pesquisa. Barba diz que prefere estar sozinho, que sempre esteve assim, mas que aprecia conversar. No encontro com a pesquisadora, fez-se escutar e escutou, sempre atento ao contato, seja no aperto de mãos, na troca de olhares, nas dicas sobre como manter discrição e segurança em diversas situações de rua, no compartilhar e criar de histórias.

Apesar da referência principal no diálogo ser a rua, o encontro foi pautado pela trajetória de uma vida: história que não se fez em uma batida rítmica linear, mas sim, por marcas agenciadas por síncopes2. No percurso, Barba conta acontecimentos de sua vida:

eu tive um irmão por parte de pai e um outro também, mas nem temos contato [...], morava num apartamento, morava nas barragens quando ia trabalhar. Lá dividia quarto e não gostava, sempre gostei de ficar mais sozinho, com minhas coisas. Mas eu já fui casado, faz uns 12 anos, tenho dois filhos, mas nem vejo eles, nem sei onde estão (Barba, Diário de Campo).

Não ficam dispostos, linearmente, os acontecimentos, nem mesmo é este nosso objetivo. De qualquer forma, são estas experiências, atualizadas, constituintes deste território. Considerando a narrativa de Barba, entende-se neste caso que a situação de rua não é uma escolha deliberada, mas sim uma parada em um devir, território que se constitui no cruzamento de múltiplas dimensões que conectam vetores de subjetivação a uma experiência concreta, atualizada: "Quem gosta de ficar na rua? Ninguém! Alguns até sim, quando bebendo, mas não é uma questão de gostar, vai acontecendo, tu vai ali e bebe, depois consegue comer algo, depois dorme, e o que vira é uma rotina" (Barba, Diário de Campo).

É a rua constitutiva de território já agenciado a linhas de fuga, aberto ao devir e a compreensão da vida como percurso nômade: "sabe, aqui é uma caminhada, nem de um dia, nem de outro, nem de uma voltinha que você vai dar junto" (Barba, Diários de campo). Na duração desta experiência, o percurso se faz durante o caminhar, por movimentos nômades, como aqueles discutidos por Deleuze e Guatarri, (1997b, p. 8), em que o "nômade não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha". Ele os tem, provisoriamente, pois emergem desvios da linha retificada, abandono e ruptura de relações, mas também ordem e permanência em meio ao nomadismo. Diversos lugares são habitados, mas se reconstituem em estabilizações parciais, provisórias. Tal fluxo se mostra como um encontro de forças do devir que tomam, paulatinamente, forma, produzindo expressões à vida, mas que vazam para além de sentidos direcionais unívocos. Ganha assim consistência uma trajetória anômala em relação às linearidades e circularidades hegemônicas, com seus ritmos próprios.

Deleuze e Guatarri (1997c) expõem a diferença do anômalo em relação ao anormal. Este segundo classifica o que está reconhecido e identificado como inadequado pela norma, já o anômalo "designa o desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização" (Deleuze & Guattari, 1997c, p. 26) e diz respeito à "multiplicidade" não contada, minoritária, quase inapreensível. O anômalo, portanto, escapa ao modelo normal/anormal, ao indivíduo homogêneo, a características generalizáveis. É o anômalo efeito do cruzamento de linhas de subjetivação singulares. Lovecraft (2014, apud Deleuze & Guattari, 1997c, p. 22) o nomeia como "outsider". Sua obra é posteriormente referenciada por Deleuze e Guattari (1997c) como expressão apropriada à compreensão do desviante, "coisa" que causa repulsa e conduz a um "horror sem nome". Contudo, o sem nome também se constitui em território, existe mesmo que não reconhecido ou adequado, e não pode ser ignorado. Suas conexões fogem de definições fáceis, pois não são estáveis, abrem-se constantemente a polirritmia - têm duração, forma e conteúdo. Assim, exige-se uma escuta atenta e aberta às diferenças para que nele se reconheçam regularidades.

O território, que na experiência de Barba se delineia, é uma congregação de forças na contramão da ideia de um código linear construído por vetores apropriados a cada meio, evidenciando uma decodificação constante (Deleuze & Guattari, 1997c). Um território como tal está sempre à mercê de possíveis e outros agenciamentos e é sempre um caminho de desterritorialização, que se transforma e cria. A consistência de territórios de tal natureza se dá na consolidação de acontecimentos, na criação da mistura de elementos que se apresentam e ganham sentidos efêmeros. O que torna este movimento cada vez mais complexo é a possibilidade de o diferente estar junto sem deixar de sê-lo (Deleuze & Guattari, 1997a). Não se trata aqui, portanto, de uma trajetória instituída, mas sim de um devir cheio de rupturas, resistências e capturas, dadas no indissociável do existir. Por isso, um território anômalo.

A situação de rua configura a borda do instituído, e a existência na borda conduz a relações diversas frente à multiplicidade que a constitui. Nesta singularidade, os acontecimentos, a relação com a cidade, os agenciamentos, os encontros e as afecções vão delineando vetores relacionais e de subjetivação, que remetem aos eixos balizadores da análise aqui proposta. As experiências de Barba ganham contornos particulares, pois são perpassadas por atravessamentos e tensões em um conjunto imanente de relações, produzindo um lugar de experiências, encontros com coisas, pessoas, existências, dando movimento a processos provisórios e sem a linearidade constitutiva de territórios sedentarizados. "Aqui na rua, o que as pessoas veem, não é bem aquilo... fico aqui, arrumo minha moeda, consigo alguma coisa pra comer... é assim, queira ou não queira" (Barba, Diário de Campo).

Faz-se necessário, no cotidiano de Barba, transpassar o curso normativo pré-determinado e lançar-se ao devir para continuar a viver. Cabe a quem tenta significar tal empreitada, olhar para estes movimentos diminuindo as diferenças, com um viés engajado eticamente na compreensão de sua existência. Este fluxo incerto abre a experiência da pessoa em situação de rua a descontinuidades, mudanças de natureza e desestabilizações. Neste percurso tortuoso, as paradas são breves e as tormentas constantes, produzindo variações provocadas pelas relações, e não por anormalidades endógenas. São suas conexões e fugas traçadas a cada agenciamento com o plano instituído, que permitem compreender tal devir em encontros situados na cidade, mobilizando sentidos revelam particularidades emaranhadas ao uso de espaços coletivos, nos encontros com as Políticas Públicas e na relação com as pessoas, sempre permeadas tanto pela fabulação criadora, quanto pelo sofrimento engendrado e vivido em meio a estas experiências.

Encontros com as políticas públicas

As Políticas Públicas atualmente constituem rede de equipamentos, agentes, estabelecimentos e práticas instituídas pelo Estado, atravessadas paradoxalmente por lógicas biopolíticas e por movimentos potencializadores da vida, dirigidas concomitantemente a "impulsionar o desenvolvimento econômico e a promover a inclusão social de grande parte de sua população" (Souza, 2006, p. 21). A presença de uma rede de serviços, atores e instituições ordenados enquanto Políticas Públicas, além de sistematizar ações do Estado frente às questões sociais, constitui "forma contemporânea de exercício de poder nas sociedades democráticas" (Di Giovanni, 2009, p. 3). Este tecido de instituições permite a configuração de formas consistentes e variações no ordenamento social, existindo tanto enquanto plano macropolítico que estabiliza formas de pensar e agir, quanto na experiência micropolítica e cotidiana de quem recorre a uma rede de serviços ligados à saúde, assistência social, educação, segurança pública e outros (Guattari & Rolnik, 1996).

Barba, em suas andanças pela cidade que dão forma a esta micropolítica, tem necessitado em vários momentos de atenção desta rede instituída, principalmente frente a problemáticas ligadas à saúde e aos cuidados socioassistenciais. No que tange a sua experiência, podemos trazer algumas situações que explicitam tensionamentos próprios ao agenciamento deste território existencial movediço e nômade no encontro com o ordenamento macropolítico das políticas públicas. Os desdobramentos destes encontros fazem emergir tensões, fricções entre realidades desconexas, que geram, como efeito, um progressivo afastamento de Barba dos serviços oferecidos pelo Estado.

No plano instituído percebemos a expressão de múltiplos equipamentos direcionados a captura deste seu devir anômalo. As experiências que emergiram durante a pesquisa, sejam em meio a relatos de situações anteriores ou em acontecimentos inéditos, expressam conflitos. Barba relata:

eles querem que eu vá pra casa fazenda3, esses lugares aí. Aí você vai e fica preso. Tu fica uns tempos lá e depois te soltam, mas ficam em cima da gente. Assim não, eu sento aqui e eles veem que eu estou de boas, os que bebem eles levam meio na força às vezes (Barba, Diário de Campo).

Quando Barba se refere a "eles", diz sobre as equipes constitutivas de distintos serviços socioassistenciais, como o resgate social4, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).

Outro acontecimento, que se discutiu com ele, foi a situação de ter ido a uma unidade de saúde, pois havia sido mordido por cachorros na rua. Orientaram-no a se dirigir para "órgãos sociais", para fazer seus documentos, pois antes disso não seria atendido: Sem os documentos, Barba teve atendimento negado, o que evidencia a burocratização deste lugar, que tem como princípio a universalidade, traduzida enquanto premissa de prestar atenção integral e humanizada a todo e qualquer sujeito, sem oferecer restrições de acesso (Lei n. 8.080, 1990).

Scisleski e Bernardes (2014) contribuem para que analisemos estes acontecimentos de uma perspectiva que entrelaça a preocupação ética dirigida à qualidade das relações e à sua capacidade de ampliar a potência de agir, às formas biopolíticas que regem as práticas das políticas públicas no cotidiano: à medida que seus trabalhadores sustentam prerrogativas e práticas na micropolítica dos serviços, ignorando a diversidade dos modos de subjetivação e as possíveis diferenças que caracterizam singularidades, suas ações desembocam em estratégias de reprodução de um certo modo de vida, impedindo a relação de cuidado com o diferente ou investindo em ajustar à norma moral aquilo que se apresenta como anômalo. "Investigações nas áreas da saúde, assistência social e direitos humanos apontam para a constatação de que determinadas camadas da população vivem praticamente em um estado de exceção" (Scisleski & Bernardes, 2014, p. 129). Fica evidente aí a necessidade de investimento no plano ético e político da atenção à saúde e da assistência social, que permita multiplicar olhares frente à compreensão generalizante e excludente que se evidencia.

Em contraponto às estratégias de controle das políticas públicas, Sawaia (1999) abre possibilidades quando usa o termo "potência de ação", tomado de empréstimo da filosofia espinosista, como impulsionador de movimentos de afirmação e expansão da vida. Investir na potência de ação exige pressupostos de uma ética prática, preconizada por Espinosa como sustentada pela gênese de bons encontros (Espinosa, 1950). No espinosismo, bons encontros são aqueles pautados por uma relação lateralizada, não hierárquica, capaz de ampliar a capacidade de agir daqueles que se situam numa relação particular. Este movimento subsidia a luta pela preservação da capacidade de contemplar a diferença, opondo-se a uma "potência de padecer", que resulta na sujeição ao instituído. Na busca por acesso a saúde, Barba é capturado pela norma instituída, que impede a produção de um encontro pautado pelo cuidado implicado. Suas necessidades são situadas diante da condição da comunidade que, acolhe e potencializa, mas também exclui e seleciona, que produz a busca por uma identidade, determina direitos e privilégios e faz emergir uma expressão clara da dialética exclusão/inclusão. O acesso aos direitos fundamentais, no caso de Barba acaba condicionado ao assujeitamento.

Esta dialética é sustentada por um processo sócio-histórico, por isso a perspectiva funcionalista e pragmática das políticas públicas, em seus atos micropolíticos, não pode ser tratada apenas como geradora de exclusão, mas sim como movimento ambíguo, no qual "a sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição de ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão" (Sawaia, 2001, p. 9). O acontecimento que tomamos por analisador expressa relações corriqueiras nos encontros de Barba com os trabalhadores das políticas públicas. As afecções aí possíveis são, via de regra, pautadas por controle do corpo, privação da liberdade, moralização, constrangimento e inquisição, ou seja, desqualificam sua própria perspectiva sobre a vida e evidenciam incompreensão de sua situação concreta:

Diz que atendem, mas que tem que ficar lá esperando e se estiver sem documento tem que ir na assistente social, aí eles pegam o resgate e vão levar. Aí já parece que fica devendo uma obrigação, os caras falam pra tu ir tomar banho e tu já tem que ir, eles dão uma roupa e coisa assim, mas daí chego lá, sempre tem uns panos velhos pra mim... eu digo que não quero aquilo, viro as costas e acabou [sic] (Barba, Diário de Campo).

Partindo da concepção de biopolítica, percebe-se que o que impede o acesso aos serviços ligados a direitos garantidos na constituição federal, é um conjunto de práticas e discursos que transformam em problema moral questões que fogem ou precisam de controle, que aparecem de forma sutil como um perigo que atormenta o exercício de poder, "um poder de regulamentação que consiste em fazer viver e em deixar morrer" (Foucault, 1999, p. 294). A biopolítica trata, então, por meio de mecanismos heterogêneos e emaranhados em dispositivos complexos, de aspirar um equilíbrio, para criar práticas reguladoras (Foucault, 1999). A fuga constante de possíveis capturas da singularidade, a não docilização de Barba, resulta em não acesso às políticas públicas.

O foco na retirada da pessoa da situação de rua, sem levar em consideração suas singularidades, sustenta práticas nas quais a relação ética com este território existencial particular não é incentivada junto aos operadores das políticas públicas. A biopolítica assim atua para fazer viver de certo modo, amparada por uma série de dispositivos dedicados a modular a experiência alheia. Deste modo, a desobediência e a anomalia levam a restrição de acesso e proteção. A percepção e a posição de Barba, em conversa informal durante a pesquisa de campo, corroboram tal posição:

Tem vários locais que se preocupam com a classe baixa, com os que precisam, esta é uma cidade que tem recurso pra isso, não tem pra quem não quer. Mas tem que seguir as ordens e ir aos locais que as entidades querem. Assim, muitos não querem (Barba, Diário de Campo).

Considerando estas questões, faz-se necessário encontrar formas de relação mais éticas entre o devir anômalo e as políticas públicas, que criem estratégias de resistência a partir de perspectivas formadas na relação e não a partir da reprodução do paradigma já instituído sobre o que é, o que pode e como deve ser tal sujeito. Para Foucault (1995), uma nova organização das relações de poder é possível ao passo em que se invista na recusa da modulação de individualidade que vem sendo exposta/imposta há séculos (Foucault, 1995). São urgentes formas de cuidado que, na prática, prezem pela reciprocidade ética, pautadas em encontros dialógicos com qualidade afetiva, que resultem em possíveis transformações das práticas, quando engajadas na composição com a diferença.

Relação com a alteridade e percepção da situação de rua

Em um dos encontros entre Barba e a pesquisadora, nas proximidades do terminal rodoviário, em uma tarde ensolarada e com bastante movimento, na qual um suco acompanha a conversa, o diário de campo nos serve de apresentação da cena:

Durante a conversa um homem estranho fica andando perto de nós, uma pessoa aparentemente vestida de "acordo com as normas sociais", fazendo parte da paisagem tradicional da cidade. Fico incomodada, porque ele nos olha intensamente. Observo quando entra em uma livraria, em cuja vitrine eu e Barba estávamos sentados na frente. O estranho se posiciona próximo a nós, estando separados agora apenas por um vidro. Barba me diz:

- Tu é observadora, né?

Pergunto-lhe o porquê, e ele diz que fico ligada em tudo e começa a explicar:

- Isso é bom. Precisamos fazer isso, porque as coisas sempre são perigosas, mas tu só tem que ser mais discreta.

Mostra-me, então, como fazer para observar de forma mais discreta e rimos a demonstração. Digo-lhe que ele também é muito ligado, ele responde:

- Sim, eu estou vendo tudo o que você está vendo, olho algumas coisas pelo vidro também.

Comento que aquele homem havia me deixado um pouco intrigada, ele diz que a ele também. Comenta Barba:

- As pessoas ficam olhando, né? Como se eu não pudesse andar com uma menina como você. Como se não fosse certo. Mas, nós estamos aqui numa boa conversando, não estamos cuidando da vida de ninguém e eles deveriam fazer o mesmo. O homem volta para perto de nós, eu e Barba nos olhamos e trocamos sinais de quem está achando aquilo estranho. Então o homem se aproxima:

- Ei, trouxe um dinheiro pra te ajudar!

Entrega R$2 para Barba. Ele pega, fica uma situação estranha porque nós dois estamos desconfiados.

- O que vocês estão fazendo aqui?, pergunta o homem.

- Estamos conversando, diz a pesquisadora.

- Mas, por quê? O que está acontecendo? Vocês são o quê?

Barba responde:

- Ela é minha amiga e estamos trocando uma ideia, cara.

O estranho questiona, dirigindo-se a pesquisadora:

- Tu gosta de conversar com as pessoas assim?

A pesquisadora responde:

- Olha, não sei o que você quer, mas pode nos dar licença, por favor?!

Ele sai andando, mas fica ainda nos observando enquanto se afasta. Foi uma situação muito desconfortável (Diário de Campo).

Optamos por relatar o acontecimento na íntegra por julgar sua expressão no campo de pesquisa significativa para compreender as relações entre Barba e a alteridade.

Afecção na pesquisa e efeitos sobre a pesquisadora

Na configuração contemporânea das relações sociais, a opção por agir ou não, ir a certo lugar ou não, fugir ou ficar, se define por uma modelação da ideia de perigo, desfigurado de uma presença concreta e reconhecido como existente frente ao encontro com traços estéticos e simbólicos colados aos corpos de alguns. A diferença é assim sobrecodificada como ameaçadora com o auxílio do dado estatístico, que antecipa e prevê, definindo, antes da experiência, a presença de "risco". O risco é expressão de um conjunto de tecnologias biopolíticas. Pautado na previsão probabilística, é dispositivo que afasta a vida do inédito e do desconhecido, antecipando seu sentido e convidando ao exercício da exclusão (Giddens, 1991). Os olhares dirigidos ao par, quando agenciados no encontro, provavelmente reconhecem na expressão do devir-pesquisadora-barba um risco, que pode ser antecipado e diminuído desde sua percepção, justificando uma intervenção que insiste em desfazer o contágio do contato com o perigo e "salva" a pesquisadora da tragédia posterior.

Rancière (1996) expõe formas consensuais e estáveis de percepção e significação em uma comunidade humana, com a noção de "partilha do sensível". Este conceito contribui a análise da constituição de um plano de experiência sensorial (estética) e simbólica (de significação) compartilhado, que faz reconhecer numa comunidade, por todos que nela habitam, uma realidade comum, mas dividida em partes exclusivas. Ou seja, o reconhecimento de um risco inerente à presença sensível de Barba em agenciamento a pesquisadora demonstra evidências, de certo modo, de modo de subjetivação que pulveriza consenso sobre a natureza das identidades e sobre diferenças entre humanos e humanos, na medida em que se estabilizam marcas estéticas e simbólicas que dão a perceber, de antemão, qualidades e capacidades inerentes a cada uma das partes que compõe uma comunidade.

A condição de Bios, de vida capaz de deliberar sobre aquilo que é comum, em condições de igualdade, é descolada dos traços que expressam a existência de alguns, como Barba, frente aos demais. Estes são, assim, relegados à condição de Zoé, vida animal ruidosa: Bios e Zoé podem ser entendidos em sua diferença qualitativa:

uma que toca a política, Bios, é vida com qualidades para deliberar sobre o justo e o injusto, sobre o útil e o nocivo. É Bios quem possui o logos, capaz de atribuir sentido à vida comum, compartilhada por todos. Já phoné, mero ruído, é propriedade inerente a Zoé, vida animal (Cavagnoli, 2018, p. 41).

Esta perspectiva possibilita compreender as motivações da ação do sujeito que percebe pesquisadora e Barba juntos como evidência de um risco a uma das partes. Barba, enquanto expressão identitária (para os demais) de uma vida animal e perigosa (Zoé), ganha o sentido de um risco no momento do contato com a pesquisadora, identificada na partilha como expressão do Bios. Chama atenção o movimento em questão: é justamente o agenciamento, o contato entre estes dois corpos considerados, na partilha, como possuindo naturezas diferentes, que retira Barba da condição ruidosa passiva, situando-o, aos olhos dos demais transeuntes, como um perigo que pode afetar a vida digna, identificada por traços outros, axiologicamente reconhecidos como adequados. De um animal perigoso, mas isolado e invisível quando só, passa-se a perceber a conexão de Barba com outra vida como evidência de um risco eminente, no encontro com a alteridade. O prejulgamento, na experiência de Barba junto aos demais, é uma constante.

Em outra situação, ao andar no terminal urbano, pesquisadora e Barba se deparam com muitos olhares intimidadores e desconfiados: "acho que isso é muito injusto, as pessoas ficam julgando, eu aqui carregando meu saco e tu do meu lado" (Barba, Diário de Campo). Continua-se a andar e a pesquisadora se oferece para carregar o saco que ele carregava, pois Barba estava com os pés machucados e com dificuldade para caminhar. Ele diz: "seria engraçado, iam te chamar de mulher do saco. Daí sim iam ficar olhando o que nós estamos fazendo" (Barba, Diário de Campo). "Respondi que eu não me importava e que também me incomodava pelas pessoas ficarem olhando desse jeito. Realmente é uma sensação desconfortável e que gera a sensação de julgamento constante" (Pesquisadora, Diário de Campo).

Nestes encontros perpassados pela identificação compulsória da estética de Barba a uma condição ruidosa, dor e sofrimento se entrelaçam - dor ao caminhar, sofrimento ao ser visto, ao se tornar visível, quando junto a uma vida com território semelhante àquele que constitui os olhares dirigidos a ele. Sawaia (1999) contribui para aguçar a compreensão de tal experiência ao diferenciar dor e sofrimento: "dor é próprio da vida humana. Um aspecto inevitável" (p. 103). Já o sofrimento é "[...] a dor mediada pelas injustiças sociais. É o sofrimento de estar submetida à fome e à opressão, e pode não ser sentido como dor por todos" (Sawaia, 1999, p. 105). O sofrimento de Barba pode ser vivido como dor, mas é dor socialmente significada.

Barba, desta forma, comunica em seu gesto a escolha por sentir dor ao carregar o saco no lugar de ser afetado novamente pelo sofrimento da relação com o olhar do outro. Barba sofre por estar amalgamado em seu devir a marca identitária que não tem origem nele, mas sim na intersubjetividade. A postura do outro é de busca por formas de adestramento moral e controle, ou de reconhecimento imediato da presença de uma vida do instinto, distante do pensamento e sem capacidades (Zoé). A percepção é a da vida nua, que não pode deixar de ser incluída, mas que só pode ser incluída se transformada em Bios. Inclusão e exclusão assim se atravessam (Scisleski & Bernardes, 2014).

A relação com a cidade, nestes encontros, nos tocou como sendo incessantemente permeada pela partilha da percepção da figura do morador de rua como sujo, imoral e perigoso. Barba é, nestes muitos encontros, produzido pela alteridade e colocado em um lugar à parte, tropeçando em identificações compulsórias e preconceitos. Estes encontros demonstram a hegemonia de um modo de subjetivação dado a partir das dobras que se constituem por linearidades, devires feitos estáticos que resultam no reconhecimento de identidades pré-conceituais fundadas na simples recognição, que tornam este lugar invisível ou, quando visível, um risco potencial. Ao se conceber o espaço público como um não lugar, espaço de passagem entre um universo privado e outro, com pensamentos respaldados na noção de risco que identifica conexões entre corpo e delinquência, constitui-se um modo hegemônico de subjetivação que reconhece no que difere, deste modo, uma ameaça, e impede qualquer relação ética.

Percebe-se Barba como um sujeito politicamente construído, na relação com os modos de partilhar o real compartilhado pela sociedade, como ruidoso. Um modo de subjetivação excludente, baseado na individualidade e no projeto do capital, que invisibiliza e/ou disciplina a diferença. O sofrimento ético-político assim experimentado reflexivamente e afetivamente por Barba é inominável para nós que dele não compartilhamos. Tal sofrimento merece atenção da população e das políticas públicas em geral, não na direção de seu controle, mas sim como motor do traçado de experiências éticas, que potencializem a vida relegada ao lugar anômalo da fronteira entre o homem e o animal.

 

Considerações finais

A pessoa em situação de rua representa um contraponto à ordem da sociedade, pois não faz parte dela e nem mesmo dela consegue se distanciar. A viagem em um território, concedida no encontro entre Barba e pesquisadora, evidenciou forças que geram sofrimento e imobilizam a resistência e a potência de ação. A pesquisa possibilitou, no devir-pesquisadora-barba, experimentar uma trajetória em constituição. Os três eixos de discussão acima desdobrados buscam compilar percepções e análises, sem esgotá-las, oferecendo indícios, na esperança de mobilizar novos olhares. O percurso metodológico que guiou a investigação ofereceu formas de afetar e ser afetado por este território existencial que nos apresenta uma composição nômade, anômala, sem definições, sem engessamentos, mas, ao mesmo tempo, permeado por vulnerabilidades, faltas e perigos constantes, por sofrimentos emergentes, múltiplos mas sempre conectados ao engessamento identitário reiterado pela alteridade. A estratégia cartográfica de engajar-se no devir de Barba gera audibilidade e visibilidade a uma condição e a um lógos próprio à vida nua e contribuir para problematizar nossos discursos, olhares e ações. Contudo, reconhecemos em nossa incursão ao campo limitações, pois a experiência compartilhada foi deveras singular e breve. Concordamos com Sawaia, Pereira e Santos (2018), quando afirmam que não basta gerar visibilidade, pois é preciso atentar ainda aos modos como o discurso científico circunscreve a vida e fomentar o compromisso social com a ampliação da potência de ação daqueles que se encontram enredados pelo sofrimento ético-político.

Cabe à psicologia oferecer reflexões de como é vivida a desigualdade nas formas mais perversas, para compreender o 'subsolo humano da exclusões e alimentar a práxis apoiada na preocupação de resguardar o sujeito potente (Sawaia, 2001, p.12-13).

Novas pesquisas, que transversalizem o olhar de barba ao olhar do conjunto heterogêneo de atores outros implicados na produção da situação de rua, são necessárias para complexificar nossa compreensão e abordagem das formas de sofrimento aí evidentes.

A situação de rua não apresenta trajetórias lineares. Cada situação se compõe no cruzamento singular de vetores heterogêneos, que ganham a consistência própria de devir feito por rupturas, resistências e capturas, não palpáveis nem possíveis de circunscrever em definições estáticas. Este anômalo depara-se com frequência com o ordenamento macropolítico das Políticas Públicas, com a estagnação da própria identidade e com a incapacidade alheia ao engajamento em uma experiência ética. A clausura no território nômade assim constituído, é movimento, no caso de nosso colaborador, de resistência frente ao dano reiterado na relação com o outro e com o Estado.

O incentivo ao investimento na potência de ação (Sawaia, 1999), a partir da lógica dos bons encontros (Espinosa, 1950), é contraponto à persistência deste tipo de sofrimento. A tentativa biopolítica de gerar equilíbrio através de práticas reguladoras faz com que a fuga ao controle e ao adestramento da liberdade resulte em não acesso às Políticas Públicas, mesmo a legislação garantindo acesso universal. Estas situações entrelaçam dor e sofrimento (Sawaia, 1999). É necessário, então, criar relações éticas entre o devir anômalo, o olhar e ação do outro e as políticas públicas, para resistir a partir de perspectivas formadas na relação e não na reprodução do pensamento instituído.

 

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Endereço para correspondência:
Murilo Cavagnoli
murilocavagnoli@unochapeco.edu.br

Raica Moterle
raicamoterle@unochapeco.edu.br

Eduarda Moro
eduardamoro@unochapeco.edu.br

Submetido em: 21/01/2019
Revisto em: 22/06/2019
Aceito em: 29/07/2019

 

 

1 A participação na pesquisa foi condicionada à ciência e concordância mediante explicitação clara dos objetivos e das atividades, nas quais houve interação com a pesquisadora, sendo que a concordância do sujeito participante foi garantida e formalizada através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Nos amparamos, essencialmente, na Resolução n 510/16 do Conselho Nacional de Saúde - CNS (Resolução n. 510, 2016), respeitando a dignidade humana e prezando pelo respeito e proteção.
2 Na música, a síncope representa um deslocamento na acentuação rítmica ou acentuação de um som não usualmente acentuado na música ocidental erudita, mas comum na música de origem africana. A síncope gera a sensação de movimento mais intenso, inusitado, que sustenta, no jazz, o swing, impulsionando o corpo a acompanhar a entonação frenética (Cavagnoli, 2018).
3 Casas de tratamento para dependentes de álcool e outras drogas.
4 O "Resgate Social" é serviço socioassistencial ligado à Secretaria de Assistência Social do município em que a pesquisa de campo se desenvolveu. Seus objetivos são a garantia de direitos da população de rua, identificação de situação de risco, vulnerabilidades e violações de direitos, pronto atendimento a necessidades básicas como alimentação e abrigo e encaminhamento aos demais serviços socioassistenciais e a outros setores das Políticas Públicas. Sua equipe realiza rondas periódicas no território urbano e abordagens frente a identificação de sujeitos em situação de rua. Ainda, a população local pode acionar o serviço, solicitando a realização de abordagens.

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