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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.124-138 

ARTIGOS

 

Das impossibilidades do racismo etnosemântico à fala como saída

 

From the impossibilities of ethno-semantic racism to speech as an alternative way

 

De las imposibilidades del racismo etnosemántico al discurso como salida

 

 

Daniele MenezesI; Jefferson NascimentoII; Rosa SchechterIII; Giselle FalboIV; Paulo VidalV

IDiscente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDiscente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIMestre. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IVDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
VDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da afirmação de Kabengele Munanga de que o racismo não se fundamenta em diferenças biológicas, mas sim que ele é etnosemântico, localizamos o racismo como um sintoma de discurso e tomamos esta articulação como o eixo que autoriza que a psicanálise possa se aproximar do tema e tratar este modo de segregação. Tendo como base as teorizações de Freud e Lacan, indicamos que o racismo nasce e se atualiza na e pela linguagem. E que, para que o psicanalista possa tratar do tema, é preciso tomá-lo como um sintoma do laço social, ou seja, um sintoma de discurso. Deste modo, discutimos de que forma o racismo no Brasil, velado, recalcado e desmentido, afeta e interfere no processo de constituição subjetiva dos negros. E, para finalizar, buscamos indicar como esse que antes era falado, destituído de sua posição de sujeito, excluído e situado no lugar de dejeto, pode vir a fazer uma torção, a partir do próprio discurso, de maneira a se colocar em uma nova posição.

Palavras-chave: Racismo; Psicanálise; Discurso.


ABSTRACT

Starting from Kabengele Munanga's statement that racism is not based on biological differences, and that it is an ethno-semantic matter, we pinpoint racism as a symptom of discourse and take this conjunction as the backbone that allows Psychoanalysis to approach that issue and address that kind of segregation. Based on the theories of Freud and Lacan, we suggest that racism arises from language and is enhanced by language use. Indeed, in order for the psychoanalyst to be allowed to deal with the subject, it is required to take it as a symptom of social ties, that is to say, a symptom of discourse. Thereby, we discuss how racism in Brazil, veiled, repressed and denied, affects and interferes in the process of subjective constitution of blacks. And, finally, we attempt to show that those which were previously spoken by, deprived from their position of subject, excluded and placed in the position of waste, may come to make a twist out of their own speech and claim for themselves a new position.

Keywords: Racism; Psychoanalysis; Speech.


RESUMEN

Partiendo de la afirmación de Kabengele Munanga de que el racismo no se basa en diferencias biológicas, sino que es etnosemántico, ubicamos el racismo como un síntoma del discurso y tomamos esta articulación como el eje que permite que el psicoanálisis pueda aproximarse del tema y consiga abordar este modo de segregación. A partir de las teorías de Freud y Lacan, indicamos que el racismo nace y se actualiza en y a través del lenguaje. Y que, para que el psicoanalista pueda abordar el tema, es necesario tomarlo como síntoma del vínculo social, es decir, un síntoma del discurso, De esta manera, discutimos cómo el racismo en Brasil, velado, reprimido y negado, afecta e interfiere en el proceso de constitución subjetiva de los negros. Y, finalmente, buscamos indicar cómo ese del que antes se habló, despojado de su posición de sujeto, excluido y ubicado en la posición de desecho, puede dar un giro, a partir del propio discurso, para ponerse en una nueva posición.

Palabras clave: Racismo; Psicoanálisis; Discurso.


 

 

Introdução

O racismo contra o preto no Brasil é um problema grave, difuso, e até muito recentemente pouco discutido. No nosso contexto cultural, no qual mais de cinquenta por cento dos brasileiros se autodeclaram pretos e pardos, as questões que atingem essa população desassistida e segregada tornam-se ainda mais agudas do que em outros pontos do planeta. E como consequência, elas interferem no processo de constituição subjetiva daqueles que delas participam. Como marcaram Freud - no modo como encaminhou sua práxis e teorização - e Lacan, o psicanalista deve estar à altura da subjetividade de sua época. Isso implica, portanto, que o psicanalista brasileiro esteja atento ao modo como esta questão velada atinge os sujeitos pretos e brancos. Com o objetivo de trazer esta discussão para o campo da psicanálise, partiremos dos estudos realizados por autores pretos de diferentes áreas. Nossa intenção aqui é, além de lhes prestar homenagem, localizar o problema e aprender com eles.

Através do trabalho empreendido por estes autores, buscaremos indicar o que autoriza que o psicanalista se debruce sobre a questão e qual operação é necessária para que possamos tratar do tema. Como Munanga nos ensina, o racismo é etnosemântico, ou seja, não se fundamenta nas características biológicas e sim na interpretação que se dá às diferenças anatômicas. Parafraseando Freud, poderíamos dizer que o racismo concerne às consequências psíquicas - e, portanto, de linguagem - das diferenças anatômicas. E por ser um fator que nasce e se atualiza na e pela linguagem, para que o psicanalista possa tratar do tema, é preciso tomá-lo não como um sintoma social, mas um sintoma do laço social, ou seja, um sintoma de discurso.

Sabemos que a psicanálise, desde muito cedo - em "Psicologia das massas e análise do eu" (Freud, 1921/2011) - traz para o centro de suas preocupações o racismo e a segregação, que se apresentam como fenômenos marcantes e inerentes à psicologia dos grupos. Freud, por sua experiência de vida como judeu, da práxis clínica e do contexto social no qual estava inserido, não recorta uma concepção ingênua do humano, nas suas palavras:

[...] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos, deve-se levar em conta uma poderosa cota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para ele, não apenas um ajudante em potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus (Freud, 1930/2011, p. 133).

Esta versão para o humano, decididamente, não pode ser questionada quando temos presente as cotidianas e recorrentes situações de racismo com as quais convivemos, de maneira quase que naturalizada, em nosso dia a dia.

Trazendo o problema da segregação para o campo psicanalítico, Lacan (1973/2003) cunha a expressão "racismo de discurso", expressão que faz ecoar as contribuições freudianas ao tema, marcando que o racismo é um sintoma do discurso, um sintoma que se torna ainda mais violento com a passagem do discurso do mestre antigo ao discurso do mestre contemporâneo: o capitalista.

Nesta mesma direção, outros psicanalistas também se dedicaram ao tema, trabalhando-o a partir dos diferentes contextos recortados pelo laço social no qual estavam inseridos. E para pensar as singularidades do racismo "à brasileira" e seus efeitos sobre a subjetividade daqueles que são lidos como pretos, contamos com a importantíssima contribuição de psicanalistas pretas, mulheres: Neusa Santos, Isildinha Nogueira e Lélia Abramo. Cada uma delas, em um trabalho de articulação potente dos conceitos psicanalíticos, nos permite localizar de que modo o racismo, velado pelo enganoso mito da democracia racial brasileira, afeta e interfere no processo de constituição subjetiva dos sujeitos considerados pretos, em um enquadramento de realidade configurado pelos ideais impostos pela herança cultural europeia, escravagista e branca, que se perpetua na branquitude brasileira. E fazendo ressoar as suas contribuições nos perguntamos: o que este, que foi destituído de sua posição de sujeito, excluído e situado na posição de dejeto e tomado como resto temido e perigoso, resto que não cessa de fazer retorno, tem a nos dizer? Qual a verdade sobre o gozo - satisfação pulsional não regida pelo prazer como princípio ele revela e que, de tão horrível, é preciso silenciar?

 

O que os autores pretos ensinam aos psicanalistas sobre o racismo?

A partir de um vasto levantamento histórico, Munanga (2003) nos aponta que a situação de racismo sempre esteve presente nas sociedades - mal-estar que, recorrentemente, encontrou meios de justificar sua existência nos discursos científicos de sua época. Biologia, filosofia e religião foram campos discursivos que defenderam e justificaram a classificação humana em raças e acirraram toda a situação de racismo em diferentes épocas fundamentando as ações e pensamentos racistas, atribuindo ao "grupo da vez" ao qual ele se dirige ações de subjugação, exploração, medo e ódio. Ainda em Munanga (2003) vemos que na história das ciências biológicas, o conceito de raça foi primeiramente utilizado em áreas como a zoologia e a botânica, com a finalidade de promover uma classificação de espécies na fauna e flora. Foi a partir disso que o naturalista sueco, Lineu (1707-1778), fez uso do termo para classificar as plantas conhecidas, até então, em 24 classes ou raças, classificação que hoje já caiu em desuso.

Outro uso histórico do termo raça deu-se durante a Idade Média, onde um determinado ideal - baseado no conceito anterior de raça biológica - foi utilizado para classificar grupos de pessoas que, tinham em comum, ancestrais e determinadas características físicas. Munanga (2003) nos traz uma observação sobre o emprego que François Bernier (1625-1688) fez do termo raça, para nomear a diversidade humana em grupos fisicamente contrastados, agregando certo peso científico à ideia de raças entre humanos. Com a era das grandes navegações europeias, entre os séculos XV e XVI, o branco europeu deparou-se com outros estilos de organização da vida humana. O encontro com a população africana, asiática, ameríndia e outros grupos interrogou o sentimento de exclusividade da posição de um humano único e universal. A partir desse sentimento de uma quase angústia coletiva, da ferida narcísica coletiva de se perceber deslocado da posição de único, foi preciso nomear e classificar esse estranho recém-"descoberto". Na "Era das trevas", a religião tinha grande influência nas explicações consideradas científicas, conforme aponta Munanga (2003, s/p):

Até o fim do século XVII, a explicação dos "outros" passava pela teologia e pela escritura, que tinham o monopólio da razão e da explicação. [] Para aceitar a humanidade dos "outros", era preciso provar que são também descendentes do Adão, prova parcialmente fornecida pelo mito dos reis magos, cuja imagem exibe personagens representantes das três raças, sendo Baltazar, o mais escuro de todos considerado como representante da raça negra.

Ainda hoje, em alguns grupos de estudos vinculados a determinadas igrejas, ensina-se - apoiado na passagem bíblica de Gênesis 9 - que a primeira linhagem do continente africano surgiu após uma passagem em que o personagem Noé amaldiçoou um de seus descendentes, Cam, por tê-lo visto nu e "zombado" de sua nudez. Como represália, Noé teria amaldiçoado Cam e sua descendência com o escurecimento de suas peles. E, para aqueles que acreditam que este mito está superado, basta olhar para o não tão longínquo ano de 2011, quando o deputado brasileiro Marco Feliciano reacendeu essa polêmica ao afirmar que o motivo das mazelas que afligem o continente africano relaciona-se com a tal maldição.

Com a chegada dos ideais iluministas, durante o século XVIII, a presumida era da racionalidade, os filósofos contestaram o monopólio do conhecimento retido e concentrado nas mãos da Igreja e da aristocracia, apresentando um novo modo de conceber a existência da diversidade e diferença entre os povos. Assim, os "filósofos da luz" lançaram mão do conceito de raça que já existia nas ciências naturais, conforme nos aponta Munanga (2019):

No século XVII, era de se esperar que os grandes pensadores iluministas, criando uma ciência geral do homem, contribuíssem para corrigir a imagem negativa que se tinha do negro. Pelo contrário, eles apenas consolidaram a noção depreciativa herdada das épocas anteriores. Nesse século, elabora-se nitidamente o conceito da perfectibilidade humana, ou seja, do progresso. Mas o negro, o selvagem, continuava a viver, segundo esses filósofos, nos antípodas da humanidade, isto é, fora do circuito histórico e do caminho do desenvolvimento. Sexualidade, nudez, feiura, preguiça e indolência constituem os temas chave da descrição do negro na literatura científica da época. (p. 27)

A história nos aponta que autores iluministas como Buffon (1707-1788), Helvétius (1715-1771) e Voltaire (1694-1778) produziram obras que contribuíram para a construção e sedimentação de concepções racistas contra os negros - concepções que produziram marcas perpetuadas até os dias atuais. Uma das teses mais conhecidas é a de Voltaire, na qual ele afirma o seguinte sobre um grupo não branco: "os percebemos com os mesmos olhos que vemos os negros, como uma espécie de homem inferior" (Voltaire, 1963, p. 294). Nem Kant, filósofo tão presente (e importante) para a obra de tantos autores, foi capaz de escapar da "sedutora" tendência em classificar a diferença humana, que aqui concerne aos negros, a partir de uma lógica que o inferioriza em relação ao homem branco. Nas suas palavras:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. [...] Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (Kant, 1990, pp. 75-76).

Tomando a ação incitada por Kant - a dispersão e o ataque a pessoas negras por meio de pauladas - é possível compreender certa origem comum no pensamento das ações que organizações como a Klux Klux Klan e a Polícia Militar tomam para com os negros. Não é possível seguir o texto, sem fazer uma pausa diante do horror que é ler isso.

Em "Peles Negras, Máscaras Brancas", Frantz Fanon (2008) narra, a partir de sua experiência como estudante de medicina negro numa França do início do século XX, que se percebeu na condição de negro que está sendo enxergado e tratado pelos outros como "o meio do caminho no desenvolvimento do macaco até o homem" (2008, p. 33). Tal trecho evidencia as possíveis marcas sentidas pela população negra no cotidiano - marcas que se relacionam com concepções biológicas, religiosas e filosóficas acerca das pessoas negras.

No século XIX a história apontou a utilização da palavra raça com a finalidade de explicar as diferenças anatômicas entre brancos e negros. O termo raça foi ganhando cada vez mais inclinações morfológicas: o formato do nariz, dos lábios, do queixo, do crânio, do ângulo facial e outras características físicas. Conforme Munanga (2003) nos aponta, estudos antropológicos do início do século passado, realizados por Franz Boas, observaram a contestação de certos conceitos biológicos justificadores do termo raça, colocando em xeque concepções que marcavam as características físicas como base da crença na raça biológica. O autor marca que estudos da genética humana, realizados no século XX, revelaram também que grupos de sangue, certas doenças hereditárias e outros fatores eram encontrados com mais frequência e incidência em algumas raças do que em outras, podendo configurar o que os próprios geneticistas chamaram de marcadores genéticos. O cruzamento de todos os critérios possíveis (cor da pele, aspectos morfológicos e químicos) deu origem a dezenas de raças, sub-raças e "sub-sub-raças".

Essa nova visada introduziu e explicitou ainda mais a inconsistência das concepções biológicas, pois as pesquisas comprovaram que, por conta do patrimônio genético, dois indivíduos lidos como de uma mesma raça podem ser mais distantes, geneticamente falando, que os pertencentes a raças até então consideradas diferentes. Com isso, constata-se que a herança genética de determinados grupos existe, mas não seria suficiente para classificar esses grupos como raças. A partir de então, deu-se o declínio do conceito de raça biológica.

Fazemos a ressalva de que a questão é menos o apontamento da diferença entres os seres humanos, mas sim o seu uso com o intuito de hierarquização entre povos. Em nome do discurso de hierarquização, criou-se um link ideológico entre a biologia e o pensamento crítico, para justificar essa "escala de valores", como marca Munanga (2003, s/p):

Assim, os indivíduos da raça "branca", foram decretados coletivamente superiores aos da raça "negra" e "amarela", em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação.

A classificação da humanidade em raças, conforme vimos acima, ajudou a instaurar uma teoria doutrinária, a raciologia, que teve bastante repercussão no século XX. Tal teoria tinha entre seus objetivos a legitimação dos sistemas de dominação racial. Em algum momento essa teoria caiu em desuso nos círculos de poder (intelectuais, acadêmicos, cientistas etc.), mas conseguiu imprimir uma marca na linguagem se espalhando entre a população. A "raça" à qual no referimos hoje, no século XXI, (quase) nada tem de biológico. Segundo Munanga (2003, s/p) este: "É um termo carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação".

Kilomba (2019) nos aponta que na situação do racismo se presentifica uma construção da diferença (onde a pessoa é vista como "diferente" devido sua etnia, crença religiosa e outros). Essa diferença é tomada a partir do referencial estabelecido pela branquitude. Outra característica presente é a atribuição hierárquica a essas diferenças. Há neste processo a tendência de considerar o negro não somente como diferente, mas como desonrado, estigmatizado, inferior. Na companhia desses dois processos, vem o poder: histórico, político, social e econômico, que afirmam a supremacia branca sobre as outras "raças". Além de discutir o racismo na lógica estrutural e institucional, Kilomba (2019) apresenta o racismo cotidiano como aquele em que a pessoa negra ocupa o lugar de Outridade, que segundo a autora, articula-se como: "a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca" (p. 78). Os significantes que se apresentam articulados à cadeia simbólica do termo negro, nesse tipo de cena, e que podem ter marcado singularmente o sujeito, são do tipo: indesejado, intruso, perigoso, violento, passional, sujo, excitado, selvagem, exótica e muitos outros. Para a autora, no racismo cotidiano, a pessoa negra é utilizada como tela de projeção para o que a sociedade/civilização tornou tabu. Fanon (2008) já havia levantado tal hipótese ao apontar diversos estereótipos que encerram as pessoas negras em um determinado lugar na sociedade. Tais concepções nos afirmam que, como bem localizou Munanga (2003), o racismo já não se justifica mais por argumentações pautadas nas supostas diferenças biológicas como outrora. Segundo Santiago (2018) as raças constituem um mito criado por diversas manifestações dos discursos dominantes. Hoje a problemática da raça transformou-se numa discussão de "categoria etnosemântica", ou seja, da palavra.

Podemos aproximar tanto a definição de Santiago quanto a de Munanga com o que Jacques Lacan (1973/2003, p. 463) chamou de "racismo dos discursos em ação". O autor apresenta esta ideia no texto "O aturdito" (1973/2003) no qual afirma que a ciência, a antropologia e o estruturalismo são estudos cerebrais e que são responsáveis pela classificação humana em raças ao fazer de suas respectivas teorizações saberes universais; problema que, aliás, já explicitamos bastante através das contribuições de Munanga. Como primeiro efeito da produção desses universais, Lacan aponta a "servidão ao cérebro", que é para o autor uma servidão à ciência. E ironiza essa servidão propondo um trocadilho, adicionando o "c" de cerveau (cérebro) em lugar do "s" de servage (servidão), formando o neologismo cervage (cervidão). Tal observação é importante porque aponta a incidência do discurso científico na criação e proliferação de raças não biológicas, mas etnosemânticas (Munanga, 2003) - raças de linguagem e raças engendradas pelo discurso.

De acordo com Lacan (1973/2003) uma raça se constitui pelo modo como se transmite, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos. Na perspectiva lacaniana, o discurso é o que aparelha o gozo. Esse termo, no senso comum vinculado e restrito ao ato sexual, ganha um valor expandido em psicanálise e se refere à satisfação pulsional não necessariamente regida pelo prazer como princípio. Deste modo, se estabelece uma ligação estreita entre o discurso e a ordenação do gozo. Em Freud, através do termo satisfação pulsional, e em Lacan com o termo gozo, o que está em jogo é precisamente uma satisfação por vezes insuportável e muitas vezes difícil de reconhecer e que, não raras as vezes, atribuímos ao outro quando este se revela em sua dessemelhança.

Como nos ensina Freud (1921/2011) em "Psicologia das massas e análise do Eu", aquilo que encontramos nos sintomas dos grupos são correlativos aos processos em jogo na constituição do psiquismo. Assim, os efeitos de universalização que observamos no discurso científico também se explicitam na própria constituição do ego. O ego, que é a imagem de si como corpo, é um mito ultrarreduzido e que vela sua própria divisão. Esta unidade, este uni-verso, se edifica ao custo de uma parte de si que é expulsa como não eu e que comporta um gozo que é vivenciado pela unidade egoica como estranho e odiento. Esta porção excluída de sua suposta integridade é, recorrentemente, atribuída ao diferente que ocupará o lugar da encarnação do mal e, consequentemente, será alvo do ódio, do desprezo e da vontade de exterminar.

Batista (2018) nos aponta, a partir de sua leitura de "O aturdito", que ao lançar luz sobre esta dinâmica, o discurso psicanalítico nos induz a pensar em uma "Clínica do Racismo", possibilitando estudar a ação do discurso racista caso a caso, um a um. Sabemos que isso só é possível porque, como aponta a autora, o discurso analítico prescinde da "cervidão", com "c", e tem como proposição ir à contramão da universalização subjetiva que está na ordem do dia. E isso é, precisamente, subverter a lógica mortificante do racismo.

Conforme mencionamos anteriormente, o discurso científico já produziu teorias desastrosas como é o caso da eugenia - termo que faz ressoar o tamanho do ego implicado neste projeto. Criada no século XIX pelo inglês Francis Galton, a eugenia apostava em um "aprimoramento da raça humana", onde se acreditava que a capacidade intelectual dos seres humanos seria transmitida através da hereditariedade. Ao apostar na seleção natural, a eugenia tinha como pressuposto que as características comportamentais, assim como as de caráter fenotípicas, seriam transmitidas para as futuras gerações. Isso servia para sustentar um ideal político, para que se pudesse intervir e coibir a reprodução dos cidadãos. Sustentando que a capacidade humana só poderia ser aprimorada através das proibições de casamentos interraciais e, também, de outros grupos sociais tidos como inferiores, Galton não considerava a educação ou qualquer outro fator colocado pelo meio social como causa das supostas defasagens intelectuais (Schwarcz, 1993). Além disso, havia também uma questão de classe. Para aqueles que acreditavam na eugenia, haveria um determinismo social selado desde o berço. Os pobres, considerados como inferiores, não poderiam alterar o próprio destino, já que haviam nascido na pobreza.

No Brasil do século XX, a elite intelectual a tratou como solução para o tão almejado desenvolvimento - isto é, o embranquecimento de sua população. Os considerados como inferiores não deveriam se casar para que não perpetuassem as suas linhagens. Aos brancos descendentes de europeus seria estimulado o casamento e, também, a imigração para o Brasil, sendo favorecidos com uma série de políticas públicas, tornando o povo brasileiro cada vez mais branco.

A imigração foi inclusive debatida no I Congresso Brasileiro de Eugenia, que ocorreu em 1929, no Rio de Janeiro. Sendo Roquette-Pinto o seu presidente, e Renato Kehl o secretário-geral, as discussões ocorridas serviram para propor medidas políticas ao Congresso Brasileiro. Como exemplo, temos a medida de número 10, na qual pensadores e intelectuais brasileiros aconselhavam a exclusão de todas as correntes migratórias para o Brasil que não fossem da raça branca (Maciel, 1999).

Não podemos também deixar de mencionar a presença dos ideais eugênicos nas Constituições de 1934 e 1937. O mais significativo é o artigo 138, que constou na Constituição de 1934, e que determinava que a União, os Estados e os Municípios deveriam estimular a educação eugênica no Brasil. Em outras palavras, estas instâncias deveriam propiciar a conscientização sobre os fundamentos dos ideais eugênicos aos jovens em idade escolar, para que se evitassem o casamento entre diferentes classes e raças de modo a garantir o aprimoramento racial. Tais ideais tinham o objetivo de evitar que a população miscigenada se unisse com os brancos de classes mais elevadas já que, na eugenia, a mestiçagem representava a degeneração do povo brasileiro, sendo a sua única saída o branqueamento da população (Rocha, 2014).

 

As palavras determinam direções e realidades

Diante de todo o percurso que foi feito até aqui, nos perguntamos: quem são aqueles nomeados como pretos e quem são os nomeados como brancos? De acordo com Clóvis Moura (1988), no censo de 1980, os brasileiros que não eram brancos utilizaram as seguintes palavras para definir a própria cor:

[...] acastanhada, agalegada, alva, alva-escura, alvarenta, alva-rosada, alvinha, amarelada, amarela-queimada, amarelosa, amorenada, avermelhada, azul, azul-marinho, baiano, bem branca, bem clara, bem morena, branca, branca avermelhada, branca melada, branca morena, branca pálida, branca sardenta, branca suja, branquiça, branquinha, bronze, bronzeada, bugrezinha, escura, burro-quando-foge, cabocla, cabo verde, café, café-com-leite, canela, canelada, cardão, castanha, castanha clara, cobre corada, cor de café, cor de canela, cor de cuia, cor de leite, cor de ouro, cor de rosa, cor firme, crioula, encerada, enxofrada, esbranquicento, escurinha, fogoió, galega, galegada, jambo, laranja, lilás, loira, loira clara, loura, lourinha, malaia, marinheira, marrom, meio amarela, meio branca, meio morena, meio preta, melada, mestiça, miscigenação, mista, morena bem chegada, morena bronzeada, morena canelada, morena castanha, morena clara, morena cor de canela, morenada, morena escura, morena fechada, morenão, morena prata, morena roxa, morena ruiva, morena trigueira, moreninha, mulata, mulatinha, negra, negrota, pálida, paraíba, parda, parda clara, polaca, pouco clara, pouco morena, preta, pretinha, puxa para branca, quase negra, queimada, queimada de praia, queimada de sol, regular, retinha, rosa, rosada, rosa queimada, roxa, ruiva, russo, sapecada, sarará, saraúba, tostada, trigo, trigueira, turva, verde, vermelha, além de outros que não declararam a cor (p. 63).

Os termos "negro/a" e "preto/a", embora utilizados, foram também substituídos por dezenas de outras cores e termos que demonstraram, segundo Moura (1988), uma fuga da realidade étnica por parte dos entrevistados. Ao invés de se identificarem como negros, muitos dos brasileiros utilizaram de cores e outros termos para se definir. Como marca Neusa Santos Souza (1983), a cor negra está associada a algo pejorativo. Ao consultar o dicionário Aurélio, a psicanalista se deparou com os atributos "sujo" e "sujeira", dentre outros sempre de caráter aviltante, o que explica, em parte, o motivo pelo qual as escolhas de outras nomeações se deram. E os brancos?

Já o sociólogo Guerreiro Ramos colocou o branco no centro da discussão. Ao se questionar sobre quem seria o branco brasileiro, o seu trabalho "Patologia Social do 'Branco' Brasileiro" (1955/1995), apresentou o "branco" entre aspas. O motivo das aspas, de acordo com Ramos (1955/1995), é que os brancos padecem de uma patologia social, principalmente os do Norte e do Nordeste do Brasil, já que:

Esta patologia consiste em que, no Brasil, principalmente naquelas regiões, as pessoas de pigmentação mais clara tendem a manifestar, em sua auto-avaliação estética, um protesto contra si próprias, contra a sua condição étnica objetiva. E é este desequilíbrio na auto-estimação, verdadeiramente coletivo no Brasil, que considero patológico. Na verdade, afeta a brasileiros escuros e claros, mas, para obter alguns resultados terapêuticos, considerei, aqui, especialmente, os brasileiros claros (p. 222).

Para o sociólogo, são raros os brasileiros que não têm ascendência negra, logo, o branco brasileiro é um mestiço. Ao observar que os negros ocuparam um lugar negativo, criticou o padrão estético social, relatando que os "brancos" dos estados do norte e nordeste não se identificaram com as suas origens étnicas, dissimulando as suas origens raciais. Há um ideal de brancura propagado no Brasil que, segundo Ramos (1955/1995, p. 231), "é uma sobrevivência que embaraça o processo de maturidade psicológica do brasileiro, e, além disso, contribui para enfraquecer a integração social dos elementos constitutivos da sociedade nacional". Ainda de acordo com o autor, há uma tradição de brancura no país, que deve ser ultrapassada por alguma outra tradição, que proporcione circunstâncias mais dignas para os brasileiros.

Se, desde o período colonial, o termo negro foi criado e associado a algo pejorativo, e continua ainda hoje a carregar este estigma, conforme apontado por Souza (1983), concluímos que esta questão não se encerrou. Por meio de lutas políticas, começaram a surgir outras possibilidades que extrapolaram seu sentido original. Há um deslizamento possível, um deslocamento semântico dos significantes. Um exemplo disso se refere ao uso político do termo "negro" proposto por Avtar Brah (2006). Brah analisa o uso do termo "negro" para nomear tanto pessoas de ascendência afro-caribenha quanto sul asiáticas na Grã-Bretanha. No período pós-guerra, os imigrantes oriundos da África, Caribe e do sul da Ásia que foram para a Inglaterra, apesar de suas diferentes origens, eram descritos como "pessoas de cor". "O termo não era um simples termo descritivo. Tinha sido o código colonial para uma relação de dominação e subordinação entre o colonizador e colonizado" (Brah, 2006, p. 331).

Em comum, essas pessoas tinham apenas a nova posição no país para onde emigraram: os de trabalhadores subalternos e não qualificados. Brah chama atenção para o fato de que essas pessoas foram, então, racializadas - "... os grupos africanos-caribenhos e do sul da Ásia experimentaram a racialização de sua posição de classe e gênero através de um racismo que punha em primeiro plano sua 'não-brancura' como temática comum no discurso sobre as 'pessoas de cor'" (Brah, 2006, p. 331). De acordo com a autora, o termo "negro" surgiu como algo eminentemente político para inscrever pessoas de origem afro-caribenha e sul asiática dentro de uma política de resistência contra o racismo. Influenciados pelo movimento Black Power dos Estados Unidos, ativistas afro-caribenhos e sul asiáticos tomaram o termo para combater preconceitos contra as pessoas definidas como "pessoas de cor" (Brah, 2006, p. 333).

O termo negro, ao conquistar a possibilidade de ser utilizado sem um cunho pejorativo, pôde ser transformado em uma identidade grupal de reverência e respeito. Se antes a imposição da nomeação "pessoas de cor" tinha sido atribuído de fora para dentro por europeus brancos que racializavam diferentes grupos a partir da sua não brancura e criavam uma unidade até então inexistente, agora o termo negro passa a ser uma atribuição feita a partir de dentro, com a finalidade de se criar uma unidade de resistência política contra o racismo, "transformando-o numa expressão confiante de uma identidade afirmativa de grupo" (Brah, 2006, p. 233).

Os desdobramentos dessa discussão incluem também aqueles que não estão localizados dentro das categorias branco e negro - denominações coloniais impostas pelos europeus. Utilizado desde o período colonial, o termo mulato servia para indicar negros de pele mais clara, na maior parte das vezes descendentes de estupros dos sinhôs dos engenhos com as mulheres que foram escravizadas. A respeito do termo mulato, Kilomba (2019) relembra a sua etimologia, algo que remonta ao cruzamento de duas espécies distintas, como o cavalo e a mula. Utilizado para inferiorizar uma determinada identidade, faz um vínculo direto com uma condição animal. Para Clóvis Moura (1988), o sistema classificatório de consciência de cor que vigora aqui, ainda é o imposto pelos portugueses, sendo que o termo mulato atua "como dobradiça amortecedora dessa consciência" (p. 70). Para Moura (1988), os mulatos assimilaram a ideologia étnica dos colonizadores, pois atuaram como "anteparo contra essa tomada de consciência geral do segmento explorado/discriminado" (p. 70).

Embora os termos negro/preto possam ser usados como uma identidade política há os que escolhem não mais operar a linguagem por meio de termos com um passado etimológico racista. Optando por uma "desmontagem da língua colonial", Kilomba (2019, p. 18), em suas obras, propõe a escrita de negra/o como negra/o (sempre gravando em itálico e em letras minúsculas), com o objetivo de diferenciar, problematizar e não compactuar com a reprodução de uma linguagem utilizada para oprimir e violentar. Já o termo preta/o, foi abreviado e escrito em letra minúscula pela autora como "p", com o intuito de se afastar e não reproduzir uma palavra que traz consigo uma terminologia racista, utilizada muitas vezes como insulto e/ou inferiorização.

 

Para finalizar: o que pode falar

Lacan (1972) termina o seu Seminário "... ou pior" com a seguinte frase, já citada anteriormente: "Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele" (1972, p. 227). O "dele" se refere ao racismo. Seguiremos então aqui ouvindo mais sobre o racismo e seus desdobramentos. Para ouvirmos é necessário que alguém fale. Mas, para alguém falar, seria necessário um ouvinte, um interlocutor, um Outro. Aquele que se coloca como o que pode receber a fala dirigida a este.

A máscara do silenciamento retratada por Grada Kilomba em seu livro "Memórias da Plantação" nos dá uma pista de por onde iremos seguir. Esta máscara era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca, que ficava entre a língua e o maxilar, usavam-se duas cordas que passavam por detrás da cabeça para poder fixar a máscara. Essa máscara era utilizada pelos senhores brancos nos homens negros escravizados e tinha como principal função impor numa cajadada só a mudez e o medo. A máscara atuava como estratégia muito eficiente de conquista e dominação através do silenciamento: "Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?" (Kilomba, 2019, p. 33).

Pois bem, como falar então? Ora, a máscara foi utilizada no período da escravidão, agora que todos são livres podem falar livremente. O que os impede de falar? O que os impede de serem escutados? A "máscara do silenciamento" era uma peça que agia diretamente no corpo, impedindo a fala. Mas para além de uma peça introduzida ao corpo existem outras "máscaras de silenciamento". E elas podem ser operadas no Discurso.

O negro é falado pelo Outro, não fala em nome próprio, existe na fala do Outro, e é situado através deste em um lugar de segregação: do terror, do perigo, do não humano, da caricatura, do exótico. O que não goza como eu, o que goza diferente de mim. Entendendo que esse "mim" tem como referencial o homem branco Universal.

Kilomba, ao se referir ao Racismo Cotidiano, fala de algumas formas como o negro é percebido: primitivo, incivilizado, animalizado, erotizado. Poderíamos sortear aqui qualquer uma dessas formas e teríamos uma bela discussão pela frente. Mas escolhemos o "Incivilizado", aquele que não é civilizado e que poderia não estar incluído na civilização - o que está segregado na civilização. Em "O Mal-Estar na Civilização" podemos ler que, para a manutenção da civilização, todos teriam que abrir mão de parte de suas satisfações pulsionais para o bom convívio em sociedade (Freud, 1930/2011, p. 43). E aqui seguimos com Eric Laurent (2014), apoiado em Lacan, para fomentar o debate:

Não sabemos o que é o gozo a partir do qual poderíamos nos orientar. Só sabemos rejeitar o gozo do Outro. Com o fato de nos meter, Lacan denuncia o duplo movimento do colonialismo e da vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, emigrado em nome de um dito «bem dele» [grifo nosso]. "Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido (p. 2).

Voltaremos agora a Grada Kilomba. Ao localizar o negro como incivilizado ele se conforma à posição do outro violento e ameaçador, o criminoso, o suspeito, o perigoso, o que está fora da lei. O negro, então, é significado como o que representa o perigo. E passar do que é perigoso para o que é eliminável é um pulo. Olha o perigo disso! Articulando com a citação acima podemos afirmar que a imagem do "negro perigoso" está relacionada a um movimento do colonialismo. Em nome da civilização, o negro é tido como incivilizado, e, portanto, deve ser submetido ao modo de gozo do Colonizador, do homem branco. Do que o negro abre mão para estar na civilização? Muitas vezes, de sua própria vida.

O negro é visto como ameaça, como violento e é repelido por isso. Curioso esse movimento de o negro ser entendido como a ameaça. Como falamos acima, na suposta ameaça ao outro é ele próprio que pode ser eliminado. O resultado é justamente o inverso do que se prega, pois ao invés de o negro ser o que mais mata é o que mais morre.

A categoria dos elimináveis é composta também, não raras vezes, pelos que não são considerados como merecedores do luto por sua perda, já que são significados como criminosos - alguém que teve então o destino que lhe coube a partir do seu lugar. E que lugar é esse? O lugar que há séculos, conforme recortamos através dos estudos de Munanga e de tantos outros, vem sendo construído e destinado para o negro é o lugar de resto, de lixo, do que não presta ou é reduzido à sua categoria utilitária como mercadoria, como na escravidão.

Lélia Gonzalez (1984) no texto "Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira" aponta para a necessidade de aprofundarmos as reflexões, pois a perspectiva socioeconômica elucida uma série de problemas propostos pelas relações raciais, mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafia as explicações.

Não temos aqui a ousadia de elucidar problemas, mas discorrer sobre alguns dos pontos que podem nos ajudar no caminho que articula o Discurso e o racismo.

Lélia Gonzalez traz em seu texto uma citação de Jacques-Alain-Miller na "Teoria d'alíngua": "Psicanálise e Lógica, uma se funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou ainda: a análise desencadeia o que a lógica domestica" (Miller, 1976, p. 17 citado por Gonzalez, 1984, p. 225).

Gonzalez parte da provocação de Miller para pensar a lógica da dominação sobre o corpo negro. Ela afirma, naquele texto, que seu suporte epistemológico se daria a partir da psicanálise, assim como nós também aqui. E segue afirmando algo que nos é muito caro: o ato de falar. "E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados [...], que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa" (Gonzalez, 1984, p. 225).

Trazemos aqui o ato de falar em nome próprio, em primeira pessoa. Anteriormente dizemos que o que foi construído por séculos foi o lugar do negro como dejeto, resto. Gonzalez subverte essa lógica ao afirmar que o lixo vai falar, e numa boa. Atribui ao estatuto de resto o ato de falar. O resto vai falar, o resto fala e como fala. E Falar constitui Lugar.

A psicanálise tem como mandamento ético de sua práxis a escuta à fala do outro e também um interesse especial ao que é tido como resto, como lixo, o que está à margem, o que está segregado e excluído. "Os psicanalistas integram o trabalho de tantos que buscam promover esta ideia simples mas que, muitas vezes, pode parecer impossível: sempre se pode inventar um novo rumo e ganhar outro ponto de chegada" (Lutterbach & Vieira, 2008, p. 11).

Neuza Santos Souza traz isso de diversas formas ao afirmar em seu livro que ser negro é tornar-se negro. É vir a ser. Os pais, a cultura, ensinam o negro a ser um negro embranquecido. E como diz Gonzalez, a lógica da dominação tenta e, muitas das vezes, consegue domesticar o negro. Isso pode se dar de várias formas, pois a segregação assume formas renovadas e radicais, como já falamos. Então, seja ao tratar o negro como incivilizado, seja com uma falsa promessa de que quanto menos negro você aparentar maior seria a possibilidade de ganhar um lugar à mesa, o que está em jogo é a segregação. Um negro com traços que se assemelham ao de um branco, negros com cabelos alisados, que usam maquiagem que deixa o nariz mais fino, que tenham aparência e jeito de pessoas brancas, não é branco. Ele vira uma caricatura, como diz Neuza. Não é branco, mas também não se vê negro. Não pode ser negro, pois nega isto ao tentar se encaixar, ao tentar se embranquecer (Souza, 1983).

Podemos pensar o racismo, mais especificamente, o racista, como aquele que não suporta a forma de gozar do outro e quer lhe impor a sua, tomando o outro como subalterno, subdesenvolvido. E assim diz que o outro não é homem, não é humano. Ele não goza como eu, não vive e não se relaciona como eu vivo. Não é assimilável. Então posso fazer barbaridades, pois não é humano. Não é à toa que uma forma eficaz de eliminação é essa que aparece pela via do acordo. O negro topa parecer o mais branco possível para ganhar um lugar. Ora, mas sabemos que lugar ninguém dá, é preciso tomá-lo. E como diz Lélia Gonzalez, tomar lugar assumindo falar não é sem implicações. Mas é um risco necessário a se tomar.

Marina Recalde, ao falar de sua experiência de fim de análise, o passe, tenta demonstrar como foi a sua construção subjetiva, as saídas singulares que precisou ter e fazer com as cartas que vinham do Outro. Marina era filha de uma mulher branca, proveniente da classe média e seu pai, era um homem negro proveniente de uma classe pobre.

Ainda na infância, Marina sofria de insônias recorrentes. Na tentativa de conciliar o sono, vinha uma tela branca em sua cabeça. Essa tela ia se enchendo de pontos, que eram pequenos desenhos negros, que a deixavam muito angustiada a ponto de começar a tremer por conta disto. Marina só conseguia parar de tremer quando a tela, que agora já estava cheia de coisas negras, ficava branca novamente. "Levou muitos anos, e um longo percurso analítico, para me dar conta da lógica fantasmática que animava esse recurso: fazer o negro tornar-se branco. Só assim conseguia dormir" (Recalde, 2014, p. 180).

Marina associava a necessidade de embranquecer como uma forma de caber, de ser aceita e amada pelo Outro. Tinha um anseio desesperado por branquear-se. Marina colocava-se à mercê do Outro, fazendo de tudo para agradá-lo, acalmá-lo como forma de garantir seu amor.

"Negra de merda", esse era o significante injurioso que Marina se localizava a partir da injúria que vinha do Outro. Tudo de ruim, de dejeto, estava ligado ao desprezo que tinha por sua cor de pele e à angústia que advinha disso. Os sintomas que Marina enfrentava desde nova eram a insônia, tremores e uma alergia na pele com erupções.

No decorrer de seu processo analítico, foi localizando sua posição de submissão ao Outro, sua necessidade de dizer sempre sim na tentativa de cavar um lugar, um lugar amoroso. Em suas construções analíticas, "negra de merda" dá lugar ao significante "negra decidida". Marina, agora como "negra decidida" podia dizer não ao Outro, mas também podia dizer sim, só que de outra maneira. Um "sim" que não tinha mais como missão acalmar ou preencher o Outro. "O sinthoma, entendido assim, dá um nome próprio ao sujeito, dá um nome ao que não cessa de não se escrever, um nome singular, que não forma classe, que não faz conjunto, mas faz série, e que permite que o significante não mortifique o corpo, e sim que o vivifique, enlaçando-o novamente ao Outro" (Recalde, 2014, p. 185).

Os significantes "merda", "lixo", "perigoso" podem ser mortíferos ao corpo negro. E essa mortificação pode se dar de diversas formas. O termo injurioso confere a quem o recebe um ser. Uma injúria que vem do outro constitui um ser ao sujeito. Como escapar disso? É possível se desfazer dessa injúria que lhe foi posta por toda uma vida, se livrar de uma história que antecede até mesmo o nascimento de cada um?

Os caminhos que Neuza Santos Souza aponta em seu livro, assim como os caminhos traçados por Marina Recalde em seu processo analítico e por Lélia Gonzalez em sua escrita, são saídas singulares que constituem uma nova forma de se relacionar com o outro. Marina Recalde e Lélia Gonzalez tomam a injúria que veio do outro e fazem uma torção. A "negra de merda" para a "negra decidida" e o lixo que se torna o lixo que "vai falar e numa boa". Tomar a palavra em nome próprio, torcendo a injúria que vem do outro racista, se tornando um novo caminho de chegada com novos significantes.

Temos visto que é possível ao negro falar, como negro. Tornar-se negro é uma tomada de posição que passa pela fala, pelo discurso, passa pela nomeação.

 

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Submetido em 05/10/2020
Revisto em 02/11/2020
Aceito em 02/11/2020

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