A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM DIÁLOGO
O conceito de estética está associado à capacidade ontológica de percepção subjetiva daquilo que agrada aos sentidos (Japiassú & Marcondes, 2001). Formulada como disciplina no século XVIII por Baumgarten, a estética foi considerada um saber sobre o “belo” e se constituiu como um campo filosófico de amplo espectro em que pensadores como Platão, Kant e Hegel se detiveram a problematizar. Kant, especialmente, amplia o conceito de estética, como uma estética transcendental, compreendendo-a como uma ciência não somente do que é tido como belo, mas de toda a sensibilidade a priori (Japiassú & Marcondes, 2001). Para o objetivo desta análise, não se pretende realizar um estudo filosófico acerca da estética, mas compreendê-la como a experiência vivida quando relacionada ao contato com elementos artísticos e sensoriais.
A experiência sensorial mediada por um elemento estético pode ser entendida, de acordo com a fenomenologia, como uma vivência que emerge na intencionalidade homem e mundo por meio de expressões artísticas e sensíveis, recebidas de forma tocante, agradáveis, perturbadoras e/ou mobilizadoras à percepção. O sentido da percepção na dimensão vivencial não se restringe ao entendimento psicológico com foco nas sensações, mas como algo integrado, relacional que emerge com a mediação do corpo, mas transcendendo-o (Reis, 2011). Trata-se de considerar a percepção, como viver algo (Erlebnis), estar vivendo exatamente algo nesse momento. Perceber algo mobilizador é o registro dado pela consciência intencional de algo que se passa, o que não implica que estejamos refletindo acerca daquilo que estamos vivendo (Bello, 2004).
Associado ao sentido sensorial e estético abordado anteriormente, faz-se necessário compreender a noção de “experiência”. O status da experiência distancia-se da busca por verdades, em sua dimensão racionalista e conceitual. A experiência em questão toca a dimensão da fugacidade e da mutabilidade, envolve um convite a outra dimensão de conhecer e de contatar o mundo. Retomar a palavra experiência é solicitar a relação temporal do homem no cotidiano, a sua provisoriedade, sem a busca de uma autoridade conceitual e normalizadora (Larrosa, 2018).
A experiência não enseja, pois, uma unanimidade, não é possível impô-la ao outro, é vivida no ímpeto do acontecimento, para tanto é necessário retomar a receptividade diante da intencionalidade homem e mundo. Antes do saber intelectivo, está a experiência: primária, crua. Trata-se, em alguma medida, da diferenciação entre a consciência intelectual e a intencionalidade mediante o mundo da vida (Husserl, 1936/2012),
Stein (1933/2000), com inspiração fenomenológica, remonta aos significados de vivência e experiência, auxiliando nesta compreensão. O termo vivência pura é retomado como uma estrutura peculiar de todo o ser humano, relativa aos atos de pensar, imaginar e sentir. O conteúdo dessas vivências, em complementaridade, é considerado como experiência e se refere à relação intencional entre o sentir e o que é sentido, entre o imaginar e o que é imaginado para cada situação (Stein, 1933/2000). A experiência, dessa forma, está ligada, de acordo com a autora, à dimensão espiritual, que diz respeito aos elementos especificamente humanos, não sendo partilhada por outro ser. Na dimensão espiritual, considera-se uma estrutura ontológica comum referente aos atos de refletir, decidir, criar que, por sua vez, se expressa em experiências das mais diversas. Essa análise se sustenta na compreensão da dimensão transcendental do humano e a maneira como o eu transcendental adquire a capacidade de constituir-se nas significações (Husserl, 1913/2006).
O significado de experiência, explicitado por Stein (1933/2000), somou-se aos esforços de Husserl (1913/2006) em estabelecer a intencionalidade fenomenológica e compreender o conhecimento em um movimento correlativo entre o mundo tido como “visado” e seu componente intencional humano que apreende o sentido (Husserl, 1913/2006).
O mundo tido como visado, o mundo da vida (Lebenswelt) é correlato da experiência intencional e traduz um fundamento analítico imprescindível à análise fenomenológica. As construções husserlianas acerca do mundo da vida colaboraram na integração espaço-temporal da humanidade como uma unidade intencional (Husserl, 1936/2012). O mundo vivido destacou o reconhecimento de uma intersubjetividade e de uma historicidade ligadas às diferentes gerações, aquilo que Husserl chamou de uma análise da generatividade:
Sou faticamente, numa presença co-humana e num horizonte humano aberto de humanidade; sei a mim mesmo faticamente num contexto generativo, numa corrente de unidade, de uma historicidade, na qual este presente é, da humanidade e do mundo que lhe é consciente, o presente histórico de um passado histórico de um futuro histórico. Posso, sem dúvida, ficcionar e livremente transfigurar a “consciência do mundo”, mas esta forma da generatividade e da historicidade é inabalável, bem como a forma, que me pertence como eu-singular, do meu presente original da percepção, como de um presente recordado e de um futuro previsível (1936/ 2012, p. 204).
Por meio desse destaque, Husserl sugere a união primordial, pré-reflexiva, entre sujeito e mundo, de modo que a tessitura do sujeito é também tessitura do mundo (Gomes & Castro, 2010). A dimensão do mundo da vida (Lebenswelt) ressoa na experiência e traduz o mundo percebido no “entre” das construções do pensamento, o eidético está presente, mas como estrutura de sentido aberta.
Porém, a capacidade de emergência do sentido via experiência foi considerada como pressuposto para o intelectivo e, de certa forma, menosprezada pela ciência moderna, uma vez que a experiência resiste e escapa a qualquer conceito que busque fundamentá-la (Larrosa, 2018). Para tanto, a experiência associa-se a uma forma de habitar o mundo, encarnado num tempo, espaço e na companhia de outros seres.
O conceito de experiência também recebeu desdobramentos de teóricos da Fenomenologia da Religião com a intenção de compreender as dimensões intencionais entre homem e o sagrado, como nos trabalhos de Geerardus Van der Leeuw (1890-1950) e Luigi Giussani (1922-2005) (Giussani, 2000; Leeuw, 1970). Conforme aponta Solymos (2006) em diálogo com Van der Leeuw (1970), a pessoa conversa com a realidade segundo a compreensão que faz dela; em outras palavras, as respostas à vida são dadas, a partir da experiência contemplada dentro de uma realidade. A experiência inspira a totalidade de sentido na relação entre pessoa e mundo, pois é por meio da experiência que a vida se insere no eu e o eu se insere na vida. Dar atenção à experiência vivida envolve, desse modo, reconhecer a maneira como uma pessoa receptivamente é tocada pelo mundo, vive e reverbera os eventos que ocorrem em seu cotidiano. Traduz em alguma medida a relação de fragilidade do humano, no sentido de estar exposto a eventos e, ainda, de não ser possível controlá-los intelectivamente.
A revitalização do sentido da experiência tem sido usada para inspirar novas formas de desenvolver trabalhos em saúde e na educação, pelo potencial terapêutico e criativo que a religação do homem/mundo implica. Tem-se o investimento em novas modalidades de cuidado e ensino, como alternativas às visões tradicionalmente comportamentais, cognitivistas, críticas, racionalistas e hermenêuticas como nos trabalhos de: Amatuzzi (2009), Amatuzzi, Solymos, Ando, Bruscagin e Costabile (1991), Bondía (2002), Boris (2013), Cooper, O´hara, Schmid e Wyatt (2007), Ishara e Cardoso (2013), Larrosa (2018), Mahfoud (2012), Massimi e Mahfoud (2008), Moreira (2013), Rocha e Cardoso (2017), e Solymos (2006).
A experiência envolve, pois, o reconhecimento essencial de uma intersubjetividade e da parentetização do conhecimento intelectual diante da realidade, para que se possa contemplar aquilo que habita. No português, a palavra experiência significa “o que nos acontece”, com raiz indo-europeia “per” remontando à noção de uma travessia (Larrosa, 2018). O autor (2018) destaca, entretanto, que, na travessia cotidiana, muitos elementos passam pela vida, mas, ao mesmo tempo, quase nada acontece à pessoa. Para Bondía (2002), atentar-se para a experiência, em outras palavras, é estar aberto à possibilidade de que algo aconteça ou toque, “requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar” (Bondía, 2002, p. 24).
Na relação cotidiana com o outro, o acontecer da experiência se dá na intropatia, por meio de uma comunicação redobrada, pela contemplação de suas apresentações de si, de como doa sentido (Tatossian, 2006). Trata-se quase de um ponto cego, uma surpresa, um esvaziar-se, envolve algo que não se pode “definir, nem tornar operativo, mas sim que de algum modo, só se pode cantar” (Larrosa, 2018, p. xx). O autor destaca a analogia de tal disposição com o que acontece nas artes, que, em sua religação mundana, tem a ver com o não saber e o não poder, tanto vivido na criação por seu mistério, quanto com a recepção via diferentes elaborações de uma experiência estética.
Mediante o investimento de destacar a experiência e seu elemento inspirador de práticas terapêuticas, buscou-se compreender como a experiência estética foi significada por participantes de um grupo, que tem como premissa a atenção à experiência cotidiana entre elas a de elementos estéticos como músicas, filmes, fotografias, paisagens etc.
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
O programa Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM) vem sendo desenvolvido desde 1997, em uma instituição referência em saúde no interior paulista, com o objetivo de ampliar o repertório de práticas de cuidado em saúde mental (Cardoso, 2012). O presente estudo foi desenvolvido neste serviço, embora, atualmente o programa GCSM ocorra em diversos locais e contextos, como Unidades de Saúde da Família, Espaço de Cultura e Extensão Universitária, Universidades, Centros de Atenção Psicossocial, entre outros, em diversos municípios brasileiros.
No início, o trabalho oportunizava o acesso a informações sobre doenças mentais e seus respectivos tratamentos por parte de usuários do serviço de saúde mental e dos familiares. Ao longo dos trabalhos e das discussões decorrentes, o foco foi se alterando, dada a percepção da riqueza da experiência múltipla como facilitadora da ajuda e da participação no grupo. Concomitantemente, houve um processo de inclusão, como participantes do grupo, de profissionais, estudantes e pessoas da comunidade com os usuários e familiares, sem delimitar atribuições diferenciadas em tal participação. Mediante essas mudanças no formato, o GCSM firmou-se como um grupo aberto, heterogêneo, que tem um coordenador figurando com o papel de mediador. O coordenador integra o grupo juntamente com outros profissionais e estudantes de saúde, incluindo técnicos do serviço, médicos residentes, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, familiares e usuários de serviços de saúde mental, todos convidados a participarem do grupo, sem uma função hierárquica, mas no intuito de compartilhar experiências vividas. Nesse processo de inclusão e da atenção à experiência vivida, o GCSM passou também por um aprimoramento teórico metodológico em diálogo com os pressupostos fenomenológicos. O GCSM tornou-se um programa pautado em ensino, pesquisa e extensão, que se singulariza por ter como finalidade a atenção à experiência cotidiana, entre elas a experiência com elementos estéticos.
Sob esse olhar de valorização da experiência inerente à relação pessoa-pessoa, pessoa-mundo e pessoa-cotidiano, o grupo acontece com duração de aproximadamente 1 hora e 30 minutos. As etapas que compõem o grupo são: a) Sarau, b) Relato de Experiências e c) Elaboração do Trabalho Grupal. Essas etapas são sequenciais no encontro grupal e o coordenador realiza a passagem de uma etapa para outra. Contabilizam-se, aproximadamente, 30 pessoas na composição do grupo por semana, neste serviço. Trata-se, pois, de um grupo no qual qualquer pessoa interessada no cuidado à saúde mental, de diferentes lugares (usuários, profissionais, familiares e comunidade interessada), fomentam o encontro grupal na qualidade de pessoas, independentemente de suas determinações funcionais, uma vez que, como pessoas que portam experiências, todos os participantes têm possibilidade de contribuir com o grupo.
O Sarau, como etapa inicial do GCSM, tem como objetivo uma atenção aos diferentes elementos artísticos, literários, culturais, televisivos, cinematográficos, jornalísticos, e o convite para serem compartilhados no grupo, remontando ao valor de uma apropriação e a percepção do mundo humano em seu caráter estético (Ishara & Cardoso, 2013).
Diante desse contexto, buscou-se compreender como a experiência por meio de elementos estéticos no momento do Sarau foi significada no trabalho pelos participantes do grupo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética (CAAE 08669512.4.0000.5407). Os nomes utilizados no trabalho são fictícios para preservar a identidade dos participantes. O corpus do estudo foi constituído por dois procedimentos, a saber:
a.Entrevistas abertas em profundidade: com a colaboração de nove participantes (três usuários, três profissionais e três familiares), que frequentaram o grupo, no mínimo seis vezes, em um intervalo de 12 meses, visando o conhecimento e a apropriação da proposta do Grupo. A entrevista foi conduzida a partir da questão norteadora: “Conte sobre a sua vivência no Grupo Comunitário de Saúde Mental”;
a.Observação participante que consistiu na inserção da pesquisadora ao longo de dois anos e seis meses no contexto grupal, com o objetivo de vivenciar o seu cotidiano e estar presente nas diversas situações, a partir de inspiração fenomenológica (Katz & Csordas, 2003). As impressões foram registradas no caderno de campo, utilizado como instrumento que demarca a interlocução entre pesquisadora, participantes, contendo informações literais, sentimentos e impressões sobre os momentos vividos durante a participação nos grupos e após a realização das entrevistas.
O fundamento epistemológico e metodológico pautou-se na Fenomenologia (Husserl 1936/2012) que, em sua complexidade, convida ao retorno às coisas, buscando o significado sobre o conhecimento fundado na consciência intencional e sua característica relacional com o mundo vivido dos participantes. A postura da pesquisadora percorre o viés descritivo e compreensivo do fenômeno estudado. A análise, por sua vez, valoriza a autoria e a subjetividade dos envolvidos no estudo.
A relação entre pesquisa empírica e método fenomenológico é alvo de aprimoramentos, tendo em vista que nasce da inspiração husserliana em um campo filosófico e se volta para a empiria. A concretização da análise está pautada na busca do significado baseada na descrição parentetizada (epoché ou redução fenomenológica) e da condição intencional no processo de construção de um conhecimento (Husserl, 1913/2006). Trata-se de realizar a busca pelos traços comuns, eidéticos, transitando da singularidade a um exercício de generalidade da experiência em tema (Barreira & Ranieri, 2013), sem perder a dimensão de que se trata de um recorte temporal e espacial do fenômeno dado sua condição experiencial.
A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NO GCSM
No Grupo Comunitário, o convite à atenção à experiência é iniciado pelo compartilhamento de mediadores estéticos, delineando-se o primeiro momento do grupo. Os participantes posicionaram-se diante dessa possibilidade de se religarem ao mundo mediante a dimensão estética. Joana expressa como percebe esse momento inicial do trabalho:
Igual [nome do coordenador do GCSM], pede uma música, um... Como que é que fala? Uma poesia. Um... Uma... Um livro assim que, que tem. Se não prestar atenção, não sabe contar nada. Igual, quando eu trago o CD. Eu tenho assim meia... Uma música que eu vou levar, poesia, alguma coisa que eu trago. Aí eu fico tremendo, não sei se é nervoso... (Joana, familiar).
No GCSM, os participantes compreendem um trabalho que aparece aberto a outras formas de simbolização e encontram essa possibilidade na música, nos temas textuais, em imagens, curtas cinematográficos, entre outros. Para os participantes, o mote terapêutico do GCSM envolve ter atenção à vida cotidiana, mas, além de ter atenção sobre a experiência vivida, os recursos estéticos são partes-alvo desse movimento. Joana apresenta uma disposição de buscar uma postura de atenção para esses elementos e reconhece que “se não prestar atenção, não sabe contar nada”. Compreende-se que tal disponibilidade é fundamental ao trabalho de elaboração e significação de experiências, e, portanto, ao GCSM como um todo e a outras práticas grupais de cuidado. Os elementos estéticos apresentam, ainda, a possibilidade de exploração do potencial encontrado nas linguagens simbólicas, que dão certo caráter de unicidade à prática do GCSM:
Mas o Grupo Comunitário tem uma certa fórmula nele. Você pode ver que quase sempre ele tem música. Então, no dia que não tem, é raridade (Cassia, usuária).
Assim, no geral, você... Todos os grupos você ouve... Mas é diferente, né? Porque aqui você tem que, você tem que ouvir de uma maneira pelo menos buscando um sentido. A pessoa tá falando de um texto, tá falando de uma música, às vezes, fala de história de vida. [...] Esse espaço ele dá oportunidade pra você pensar muita coisa... O céu é o limite, sabe? (Antônio, médico residente).
Essa oportunidade, ressaltada nos relatos de Cassia e Antônio, remonta ao uso de vários mediadores como a leitura de um trecho de livro que tenha provocado uma experiência significativa, a apreciação de uma música, de uma obra de arte, o relato de determinado jornalista, os quais mobilizaram sentidos e que, quando compartilhados, acabam por constituir a identidade do GCSM. Uma “fórmula” que o diferencia. No Sarau, a dimensão coletiva extrapola a composição dos participantes presentes e inclui os “ausentes”, na figura de poetas, compositores, autores, jornalistas, cientistas que se tornam colaboradores e protagonistas, compondo expressões “de atenção à vida” não padronizadas em uma única via de expressão e retomando a relação dos participantes com as dimensões cultural, artística e simbólica do mundo. A teia de reciprocidade é enriquecida e possibilita outras formas de cuidado. Conforme expressa Antônio, “o céu é o limite” para o grupo, diante das muitas maneiras de atribuir um significado, compartilhá-lo e recebê-lo.
Não se trata, em geral, de uma produção artística in loco, ou seja, as pessoas não produzem uma obra de arte plástica ou literária no momento do grupo, mas compartilham o que identificaram como significativo na obra de um terceiro ou que possam ter criado anteriormente, na tentativa de mostrar ao outro algo que foi significativo para si:
O primeiro... segundo Grupo Comunitário que eu vim, foi, foi mágico. Eu trouxe, foi o grupo que eu trouxe a música do Jeneci. É... [canta um trecho da música] “Melhor viver meu bem, pois há algum lugar, em que o sol brilha pra você. Chorar, sorrir também e depois dançar na chuva, quando a chuva vem...” Eu trazer a música e depois explicar, porque eu trouxe a música. Eu disse que. É... Que eu era muito rígido em questão de música. Que não era qualquer música que me fazia.... que me fazia... Vamos supor, mudar o sentimento, de eu tá com raiva e a música me fazer ficar feliz. Então, a música, eu era muito crítico com a música. Aí eu falando isso... [nome do coordenador] gostou muito, e disse que isso é uma boa lição para os outros do grupo. Então foi um dia que eu mais me gratifiquei assim, me senti bem de tá ajudando os outros. Eu... Eu... Eu levei as músicas que eu conhecia e tudo... Fez bem pra mim. E vai fazer pra outros. Não se pode saber que vai fazer... Meio que na marra, entende? Eu acreditava que ia. E eu acho que deu certo (Severino, usuário).
No trabalho desenvolvido no Sarau, está implicada uma relação sensível intencional entre sujeito e um objeto estético – Severino aponta que “não era qualquer música” capaz de captar sua sensibilidade e provocar uma mudança no estado subjetivo atual (“mudar o sentimento”). Além disso, a apreciação de algum mediador artístico ou cultural pode ser o instrumento de reciprocidade, como aponta Severino: o que eu acho “bom” pode fazer bem a alguém. Apesar da dúvida que Severino tinha se ia acontecer ou não o efeito que desejava, sentiu como um momento “mágico” poder compartilhar seu crítico gosto musical e ser recebido com “abertura” – nessa direção, nota-se também que o mediador estético pode ter facilitado a participação de Severino no Grupo. A fala do coordenador do GCSM sobre seu exercício de atenção e gosto musical também teve um efeito confirmatório sobre sua expectativa de compartilhar o que lhe fazia bem. Antônio oferece mais uma possibilidade de sentido para esse movimento de reciprocidade que parece estar ligado à ideia de inspiração:
Engraçado, né? Como, como que vai mudando com o tempo. É... Eu tenho vontade... até acho que é isso que é legal nos grupos [se referindo aos encontros do GCSM]... De dividir essas coisas, né?... Essas coisas que sei lá... como a música que eu coloquei hoje... As coisas que eu falo. Eu acho que é assim. As experiências que me mexem, né? Eu quero passar isso pras pessoas. Minha ideia. Acho que, às vezes, o que eu gosto do Grupo Comunitário... Por exemplo, é que as coisas que me inspiram, podem inspirar as pessoas. Uma coisa muito audaciosa, né? Inspirar alguém é um negócio, né? É muitoo, né? (Antônio, profissional).
Antônio pontua sua participação no grupo em uma visão temporal, reconhecendo mudanças ao longo do processo, especialmente por se dar conta da vontade de compartilhar algo seu, como a música1. Essa vontade de dividir a música corrobora o sentido de compartilhamento e de reciprocidade presente no relato de Severino, de que as coisas que os “inspiram”, “mexem”, poderiam “inspirar” outras pessoas. Essa possibilidade é tida como audaciosa, “é muito”, mas, apesar disso, se mostrou factível para ele na medida em que arrisca concretizar a vontade que surgiu. A fala de Antônio remete à possibilidade de uma descoberta, de algo mais profundo do que simplesmente “gostar” da música, significa despertar algo de criativo em si e no outro. A música que o mobilizava a reger almofadas, conforme compartilhou no grupo1, podia transcender e chegar a outras formas de contemplação.
Nessa medida, a experiência estética ganha um sentido de ruptura com a obviedade do cotidiano, seja no movimento de perceber algo no mundo que se possa escutar, ver, sentir e que mobiliza o viver, seja o de perceber que é possível contar isso para o outro e ele também pode vir a mobilizar-se. Os elementos ampliam as oportunidades de compreensão sobre o mundo como um convite ao enriquecimento, sobre o que a criatividade dispõe e do que eu posso dispor para vida, quando faço uso dela:
Aqui no Grupo Comunitário. Eu... eu olho... Eu consigo olhar pra mim, e vê que eu não posso ser a coitadinha, entendeu? Porque a vida é alegre. A vida é bonita. E eu tenho que olhar pra isso. Pra poder encontrar força pra continuar vivendo. [...] Aí é que tá o legal do Grupo Comunitário. Porque tem momentos que você tem uma emoção muito grande. Eu choro, nem uma, nem duas, nem três vezes não, no Grupo Comunitário, entendeu? Hoje até que eu não chorei. Mais na hora que contou... que eu lembrei. Me deu uma emoção tão grande daquilo. Que eu fiquei pensando. Uma criança desenhar a figura da mãe, que ela não tem mais. E deitar naquilo querendo o colinho dela. Que é que nem eu faço com a minha, que já não tá mais comigo também. Que eu penso que eu tô abra... agarradinha nela. Pensando nela. Então penso na minha bá... (Márcia, familiar).
A busca do belo, da alegria, referida por Márcia expressa um dos movimentos que o GCSM permite. A beleza, porém, não está necessariamente ligada a algo que a faz feliz, mas que atinge um nível de sensibilidade no qual podemos ser mais, transcender o que havia a priori. Márcia exemplifica a maneira como é mobilizada quando outro participante traz a foto de uma criança órfã deitada dentro do desenho que fez da mãe. A foto fora retirada de um livro e impressa para entregar ao grupo. Márcia recebeu aquele mediador e foi sensibilizada, movimentando-se de um lugar sensível imagético (dado a priori pela foto) para um novo lugar próprio e particular, despertado pelo outro “pessoa/foto” que, em si, não previa esse desdobramento, apenas o de compartilhar algo que o mobilizou. Estar no momento do Sarau favorece um engajar-se em um exercício de atenção ao que o outro traz em uma dimensão singular. Algo que ainda não foi apropriado, mas pode vir a fazer parte das nossas experiências na medida em que nos deparamos com algum elemento que entra em sintonia, em uma dimensão mais ampla que a mera percepção de um som ou da visão de uma imagem.
O relato de Márcia coaduna com o entendimento de que o trabalho do grupo acontece, por sua vez, não necessariamente quando se está a falar no grupo, mas quando o sentido de um elemento artístico ressoa no outro numa mutualidade. Esse movimento envolve uma correlação onde a pessoa se dispõe a olhar um objeto e fazer “viver”, reanimar aquilo que nele habita ou que já o significava de maneira implícita quando fora produzido (Dufrenne, 1970/2008). Tal noção dialoga com a ideia de extensão da sensibilidade, na medida em que o corpo sente e torna vivo um afeto, o sentimento sobre o que é vivenciado (Husserl, 1913/2006).
A vivência estética revela a possibilidade de um cuidado que emerge quando a atenção ao objeto artístico imprime a condição de um sujeito tornar um elemento concreto disponível culturalmente, em um sentido ontológico, ou seja, capaz de traduzir a si mesmo. Para que a música, o texto, a imagem façam sentido, é preciso encontrar ou ampliar o significado anterior que esses propõem:
Terça-feira mesmo eu trouxe um CD evangélico que fala sobre as dor, as tristeza. Ainda pus o CD pra tocar. Aí depois eu fui explicar a música. Porque eu tinha trazido, o [nome do coordenador do GCSM] pergunta, né? Porque que a gente trouxe aquilo lá, quê que a gente acha? Aí eu fui explicar aquele CD que eu tinha trazido. Era o que eu tava passando. Que eu ia... o que eu sentia, que eu sentia... Ah... Eu acho que ajuda muito a gente. Ajuda muito. Ajuda muito a gente e ajuda muito paciente também. Que depois que terminou de tocar a música, tava no fim da reunião. Aí logo o que falou foi o [nome de um participante]. Ele falou. “Eu gostei muito da música que a mãe da [nome da filha usuária] trouxe”. Eu ainda fui nele. Você quer que eu trago um CD desse? Eu vou mandar gravar. Eu mandei gravar e trouxe o CD pra ele. Aí ele ficou todo contente na quarta-feira. Todo contente... (Joana, familiar).
Joana, diante do seu contexto cultural e religioso, compartilha uma música que integra sua sociabilidade e ao mesmo tempo, uma música que exemplifica, por meio de outras simbologias, o que estava “passando” em seu cotidiano. O exercício de trazer o elemento e emitir um significado sobre ele é recebido como uma metáfora. Não se trata de uma apresentação sem um movimento dativo. É um exercício que permite que se amplie o movimento entre percepção e o todo da experiência, por meio de um exercício comparativo do tipo: “não consigo expressar o que sinto, mas encontro algo que possibilita tal comunicação, encontro um texto, uma piada, uma música que o faz”. Ao mesmo tempo, esse intermédio metafórico enriquece o relacionamento com o mundo intersubjetivo na medida em que a pessoa reconhece que pode coexistir com formas de simbolizar e que ampliam sua maneira de dizer sobre si. A dimensão criativa emergente no GCSM promove espaços de surpresas no mesmo:
E a gente pode até surpreender, né? Acho que nem a, a [nome de uma usuária]. Que ela num tá, nunca tinha participado e um dia resolveu trazer uma poesia. Participar do Grupo Comunitário assim e tal. Mais é... Acha que a pessoa não tá, tá lá só de corpo presente, mais está ouvindo, né? (Davi, profissional).
Mesmo quem nunca participou ou aparentemente estava alheio ao grupo, surpreendentemente, como expressa Davi, pode compartilhar algo concretamente disponível como elemento estético e cultural, seja um poema, uma imagem no folheto da propaganda, a música que expressa o vivido e até uma “piada” que faz rir nos momentos de aflição. Essa maneira de compartilhar exige uma atenção e uma elaboração metafórica prévias, mas, por outro lado, não requer que o participante realize uma exposição mais refinada para ser comunicada ao GCSM, muitas vezes os elementos escolhidos são justificados como algo que é “bom” ou que “fez sentido” para alguém, por si, uma justificativa que se encerra em si mesma, sem maiores colocações.
A dimensão do Sarau, segundo os participantes, dialoga com uma compreensão perceptiva em uma dimensão integral da pessoa, uma totalidade ligada à ordem experiencial (Reis, 2011). A noção está distanciada de uma leitura clássica de percepção como uma ação encerrada e localizada no pensamento, sem integrar a condição dativa e correlativa entre pessoa e mundo, em uma totalidade que transcende a si mesmo. Conforme aponta Bello (2004), inspirada em Husserl (1913/2006), a percepção não está no ouvido que escuta, ou no dedo que toca, porém o ouvido e o dedo são importantes para a percepção: “E quando eu canto, né? Tenho até uma voz bonita, né? [risos]... Aí eu canto de verdade. Eu canto com a alma. Eu canto com a minha alma” (Cassia, usuária).
Cassia, que compartilha as músicas de que “gosta” cantando no GCSM, pode colaborar para compreensão da dimensão mais ampla de uma vivência estética. Ela não canta e nem escuta somente com a voz e os ouvidos, mas com a “alma”. A vivência estética no GCSM, nas palavras de Cassia, dialoga com o potencial simbólico, metafórico e contemplativo, ontologicamente compartilhado por toda pessoa. Este potencial, por sua vez, favorece um olhar diante do mundo que sai e pode criar uma ampliação de significados em torno da própria vivência, no encontro dativo entre pessoa e elemento estético. O encontro dativo entre pessoa-pessoas-elemento estético-mundo traduz, por sua vez, a dimensão de pertencimento: ter uma comunidade e fazer ressoar em si o outro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência por meio da atenção a elementos estéticos angaria uma relevância, que não se resume à transposição da criação artística para o campo da saúde mental, mas de uma associação entre as diferentes expressões e a atenção à experiência. Convida-se, no GCSM, a uma forma de acessar o cotidiano aproveitando as linguagens disponíveis a serem fruídas, ampliando, assim, as formas de significação sobre si e sobre o outro. Nesse contexto, o Sarau figura como momento privilegiado de exploração do potencial simbólico de elementos culturais e da criatividade dos participantes, uma vez que não se trata de uma apresentação de determinado elemento sem um movimento dativo da pessoa. Compreende-se que esta relação intencional e dativa entre pessoa-realidade-elemento estético é abarcada pela condição primária e ante predicativa de padecer, de um imperativo de deixar-se abordar por aquilo que se passa. Tem-se, a partir do elemento experiência, tal como proposto pelo Grupo Comunitário, a abertura da pessoa para inúmeras formas de expressão, de modo que o cotidiano permaneça vivo, a partir da dimensão de abertura ontológica ao mundo e ao outro. Além disso, a dimensão estética do trabalho grupal foi constitutiva de encontros, de reciprocidade e de surpresas na relação com o outro, fortalecendo a dimensão comunitária e de formação de redes horizontais entre os participantes da atividade.
Aponta-se, como limite do estudo, a circunscrição a um recorte de tempo e de número de participantes. Considera-se, no entanto, que ele permitiu compreender a vivência estética em um trabalho grupal em saúde mental, o GCSM, a partir da perspectiva dos participantes. Este trabalho contribui, assim, com a literatura científica da área de grupos e de saúde mental.