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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.74  Rio de Janeiro  2022  Epub Sep 09, 2024

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp-2022v74.15090 

ARTIGO ORIGINAL

EPISTEMOLOGIA COMPLEXA E AUTISMO: NOVOS HORIZONTES

COMPLEX EPISTEMOLOGY AND AUTISM: NEW HORIZONS

EPISTEMOLOGÍA COMPLEJA Y AUTISMO: NUEVOS HORIZONTES

NIZE MARIA CAMPOS PELLANDAI 
http://orcid.org/0000-0001-6677-3442

IUniversidade Federal da Região do Semi-Árido – UFERSA. Mossoró, RN, Brasil.


RESUMO

Trata-se de uma abordagem paradigmática baseada na complexidade dos indivíduos diagnosticados com Transtornos do Espectro Autista (TEA). Ao não separar a cognição da ontogênese dos sujeitos, este projeto de pesquisa assume uma posição complexa, rompendo com posições comportamentais hegemônicas que não atendem às condições biológicas autopoiéticas (autoprodução) dos seres humanos, ignorando também o potencial neuroplasticidade deles ao lidar com os sujeitos autistas com repetições, reforços e outras atitudes mecânicas. A partir da explicação dessa epistemologia, parte-se para a explicitação do arcabouço teórico que sustenta a pesquisa, cujo eixo gira em torno da aprendizagem como experiência pessoal, acoplada à realidade e não à adaptação. Os seres vivos em seu funcionamento mudam continuamente sua estrutura, que é plástica e conservam sua organização, que é autopoiética. Como instrumento de acoplamento, é utilizado um dispositivo de tecnologia touch, o iPad, que garante ao usuário um tipo de interação muito ativo, desencadeando ao mesmo tempo emoções/cognição, bem como o sistema háptico envolvido (toque). Isso pode desencadear mecanismos neurofisiológicos que ajudam as crianças diagnosticadas como autistas a encontrar outras vias neurais que não as comprometidas pela patologia em questão. O artigo apresenta no final breves ilustrações do processo empírico e as transformações desencadeadas nesses sujeito’s ao longo do desenvolvimento do projeto. De acordo com a metodologia complexa, os pesquisadores do projeto atuam como parte do sistema observado, dando conta de suas próprias operações com seus sistemas autônomos.

Palavras-Chave: Educação especial; autopoiesis; autismo; complexidade; neuroplasticidade

ABSTRACT

This article explains a paradigmatic approach based on complexity for the subjects diagnosed with ASD (Autistic Spectrum Disorders). By not separating cognition from the ontogenesis of subjects, this research project takes on a complex position, thus breaking with hegemonic behavioristic positions that disrespect the autopoietic biological conditions (self-production) of human beings, also ignoring their neuroplasticity potential when dealing with autistic subjects with repetitions, reinforcements, and other mechanical attitudes. From the explanation of this epistemology, the theoretical framework that supports the research is tackled: learning as a personal experience coupled with reality and not with adaptation. Living beings in their functioning continually change their structure, which is plastic, and conserve their organization, which is autopoietic. A touch technology device, the iPad, is used as a coupling instrument; it assures the user a very active type of interaction by triggering at the same time emotions / cognition; also, the haptic system involved (touch) can trigger neurophysiological mechanisms that help autistic subjects to find other neural pathways than those compromised by the pathology in question. The article presents at the end brief illustrations of the empirical process and transformations triggered in these subjects throughout the development of the project. In accordance with the complex methodology, the project researchers act as part of the observed system, giving account of its own operations through its autonomous systems.

Key words: Special education; Self-management; Autopoiesis; Autism; Complexity; Neuroplasticity

RESUMEN

Este artículo aborda un abordaje paradigmático basado en la complejidad de los individuos diagnosticados con Trastornos del Espectro Autista (TEA). Al no separar la cognición de la ontogénesis de los sujetos, este proyecto de investigación asume una posición compleja, rompiendo con posiciones conductuales hegemónicas que no atienden a las condiciones biológicas autopoiéticas (autoproducción) del ser humano, ignorando además su potencial neuroplasticidad cuando se trata de sujetos autistas con repeticiones, refuerzos y otras actitudes mecánicas. A partir de la explicación de esta epistemología, se parte del marco teórico que sustenta la investigación cuyo eje gira en torno al aprendizaje como experiencia personal, acoplada a la realidad y no a la adaptación. En su funcionamiento, los seres vivos cambian continuamente su estructura, que es plástica, y mantienen su organización, que es autopoiética. Como instrumento de acoplamiento se utiliza un dispositivo de tecnología táctil, el iPad, que garantiza al usuario un tipo de interacción muy activa, desencadenando al mismo tiempo emociones/cognición, así como el sistema háptico involucrado (tacto). Esto puede desencadenar mecanismos neurofisiológicos que ayuden a los niños diagnosticados como autistas a encontrar otras vías neuronales, que no estén comprometidos por la patología en cuestión. El artículo presenta, al final, breves ilustraciones del proceso empírico y las transformaciones desencadenadas en estos sujetos a lo largo del desarrollo del proyecto. Según la metodología compleja, los investigadores del proyecto actúan como parte del sistema observado, manejando sus propias operaciones con sus sistemas autónomos.

Palabras-clave: Educación especial; Autopoiesis; Autismo; Complejidad; Neuroplasticidad

INTRODUÇÃO

Nessa abordagem, o profissional da saúde não foca sua atenção apenas nos déficits do paciente, por mais importantes que sejam, mas busca também áreas cerebrais saudáveis que possam estar saudáveis que possam estar dormentes assim como capacidades existentes que possam contribuir para a recuperação (Doidge, 2016, p. 20).

Parte-se do Paradigma da Complexidade para elaborar um projeto de pesquisa que contemplasse alguns pressupostos teóricos fundamentais emergentes de algumas ciências complexas a serem aplicados na abordagem de crianças diagnosticadas com transtornos do espectro autista (TEA). Esses pressupostos se referem aos vetores das ciências complexas que têm a função operadora de juntar o que foi separado na ciência moderna, tais como: auto-organização, devir e inseparabilidade de todas as dimensões da realidade. Nosso grupo de pesquisa não se conformava com o tipo de abordagem à qual estavam e ainda estão submetidos estes seres humanos desrespeitados na sua dignidade de seres sensíveis, apreendentes e dotados da condição biológica de auto-organização, condenados pelos tratamentos hegemônicos a repetições, reforços e outros comportamentalismos mecânicos que não consideram os seres humanos autistas como seres inteiros constituídos de muitas dimensões vitais que funcionam de forma integrada e integradora. Revisando a vasta literatura sobre o tema, verificamos que a grande maioria das abordagens do autismo ainda hoje, com exceções, ignora descobertas relevantes advindas das neurociências, biologia, cibernética, epistemologia e outras adotando ainda práticas behavioristas e comportamentalistas superadas pelo desenvolvimento de uma ciência complexa. E ainda seria importante acrescentar: não faz a escuta de tantos depoimentos sofridos dos próprios sujeitos identificados como autistas e de seus familiares. Com essa pesquisa, portanto, rompe-se com o comportamentalismo e cria-se uma processualidade complexa com um papel de destaque para um objeto técnico (iPad) como instrumento de acoplamento estrutural. A partir deste trabalho seminal, porque ancorados em pressupostos fundantes da complexidade, organizamos nosso projeto de pesquisa tentando aplicar uma epistemologia complexa à abordagem do TEA. Nossa hipótese central de trabalho é explicitada da seguinte forma: uma abordagem integradora da realidade desses sujeitos usando um objeto técnico como disparador de emoções/cognição poderá ter implicações de transformação epistemo-ontogênicas significativas.

No fundo deste conjunto hegemônico subjaz uma concepção darwinista de aprendizagem como adaptação mecânica que não leva em consideração a experiência transformadora (estrutural) de cada um em sua autoprodução, o que chamamos de aprendizagem. O que adotamos, portanto, é uma concepção de aprendizagem como parte de um processo dinâmico no qual os seres vivos em sua autopoiesis (autogeração) acoplam-se com o meio (acoplamento estrutural) de maneira tal que modificam o meio e a si próprio o tempo todo. Os seres vivos no seu funcionamento mudam continuamente sua estrutura, que é plástica e conservam sua organização que é autopoiética porque criadora de si mesma. Nesta perspectiva, não há um mundo pré-dado, mas a vida de cada um de nós emerge na percepção que leva a uma ação configurando um mundo em ato do momento presente. Este é o conceito de cognição com o qual trabalhamos. Os sistemas vivos, portanto, são auto-organizados e, neste sentido, este trabalho auto-organizativo do qual eles dependem está relacionado às perturbações do ambiente para sua mobilização. Este é o eixo teórico desta pesquisa que constitui a teoria da “Biologia da Cognição” desenvolvida pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1980) e que será complementado por outros estudos complexos em consonância com ele.

A neurociência está avançando rapidamente mostrando a enorme complexidade do sistema nervoso humano e, a partir daí, tem passado a trabalhar com princípios organizadores que mudaram radicalmente a maneira como entendemos o funcionamento dos seres vivos e do próprio universo. Voltaremos a isso mais tarde, mas, nesta parte introdutória, o que interessa destacar são os princípios da auto-organização originários de uma ciência sistêmica que surgia nos anos 1930 e 1940 e a neuroplasticidade já anunciada no século XIX pelo neurologista espanhol Santiago Ramon y Cajal (Bayona Prieto, Bayona, & León-Sarmiento, 2011). Freud (1895/1966) já havia intuído este princípio no seu “Projeto de uma psicologia para neurologistas”, no qual pensou de modo complexo a articulação da experiência com as conexões cerebrais. Foi, pois, acreditando no princípio da auto-organização dos seres vivos que se produzem a si mesmos no processo de viver (Maturana & Varela, 1980) e na neuroplasticidade, ou seja, na capacidade de reorganização do cérebro e de realização de novas conexões neuronais (sinapses) que criamos uma processualidade para abordagem de crianças diagnosticadas com TEA. Esclarecemos aqui de início que nosso objetivo não era terapêutico, mas epistêmico/ontogênico: queríamos conhecer o processo cognitivo destes sujeitos de forma inseparável da emergência de um processo de subjetivação. O que nos movia e que continua nos movendo de maneira muito forte era e é a preocupação com o sofrimento de crianças com necessidades básicas do viver não atendidas e que expressam seu mal-estar com gritos, sons estranhos, expressões faciais e movimentos corporais. São pessoas que quase não sorriem e apresentam, muitas vezes, um triste semblante. Este sofrimento, na nossa percepção a partir do trabalho com estas crianças, procede principalmente de seu impedimento de subjetivação, de dizer eu para si mesmas, de não serem consideradas na sua singularidade e potencialidades e de serem privadas de aprendizagens significativas.

O grupo de pesquisa havia desenvolvido alguns anos antes o conceito operador de ontoepistemogênese, numa tentativa de entender a cognição de forma complexa e assim dar conta de uma demanda epistemo-ontológica criada com o paradigma da complexidade. Com este conceito procuramos mostrar que cognição e subjetividade emergem juntas no viver.

Levando em conta pois todas as considerações apresentadas nesta Introdução, formulamos o problema central de pesquisa:

- Ao observar crianças diagnosticadas com TEA manipulando iPads, sinalizamos algumas transformações significativas em termos cognitivos e subjetivos. Como podemos explicar tal mobilização como complexificação dos sujeitos envolvidos na pesquisa a partir do uso de uma tecnologia touch?

Para perseguir esta questão, elaboramos um quadro teórico baseado na complexidade e uma processualidade que aborda as crianças portadoras de TEA de tal forma que as contempla como seres inteiros: corpo, mente e emoções. Ou seja, seres capazes de pensar, subjetivar-se e amar de seu jeito. Para isso, usamos como instrumento provocador um objeto técnico, o iPad, com a dupla intenção de usar este objeto como um potencializador das capacidades das crianças em termos de emoção, como também para mostrar que o cérebro está presente ao longo do corpo dos seres vivos e, segundo Damásio (2004), inspirado em Espinosa, o corpo é a ideia que a mente tem dele. A unidade mente/corpo é incontestável. Por isso, escolhemos o sistema háptico (o tato) articulado a uma tecnologia touch para sinalizar a presença do cérebro na ponta dos dedos sinalização esta disparada por elementos perturbadores que, por sua vez fazem disparar mecanismos neurofisiológicos que provocam a emergência da cognição/subjetivação. A cognição emerge justamente desta atividade do vivo no processo vital.

Para a neurologia, as ações cognitivas disparadas pelo toque da ponta dos dedos podem levar a reconfigurações neurofisiológicas, ativando regiões do cérebro até então menos ativas.

Privar uma criança diagnosticada como autista de ricas experiências desafiadoras sob a alegação de que não podemos mexer nas suas rotinas devido ao risco de desorganização que ela corre é, na nossa compreensão e a partir de nossa experiência, privá-las de entrar em contato com sua própria potencialidade autopoiética. Acreditamos que o autismo, que é uma doença genética, sim, e que implica comprometimento de uma região do cérebro, não condena por isso seus portadores a terem uma vida pouco significativa e que não contemple a condição biológica de seres autopoiéticos, ou seja, seres produtores de si mesmos.

Na nossa pesquisa, como resultado de nosso trabalho com crianças portadoras de TEA configurada da maneira que rapidamente esboçamos neste início, temos constatado incríveis transformações em termos subjetivos, cognitivos, motores e comunicacionais dos sujeitos da nossa pesquisa o que nos sinaliza que estamos em um caminho produtivo. Nosso objetivo central com este artigo é apresentar os pressupostos epistemo-ontológicos seminais que configuram um novo paradigma de abordagem do TEA defendendo-os à luz da complexidade com breves ilustrações do processo empírico. Não é, portanto, um relato de pesquisa, mas a marcação de uma posição teórica frente a uma problemática de difícil abordagem.

UM APARATO TEÓRICO COMPLEXO

Nosso trabalho com o autismo parte da proposta de nosso grupo de pesquisa de juntar o que foi separado pela ciência clássica rompendo, portanto, com as abordagens fragmentárias da modernidade. As palavras de Edgar Morin (1991) nos servem de guia: “Complexus é o que é tecido junto” (p. 13).

A abordagem do autismo, apesar de toda a complexidade do espectro, ainda é predominantemente cartesiana com a separação das dimensões da realidade humana como tem sido referido aqui. Há uma marcada tendência para adotar procedimentos comportamentalistas com repetições, reforços e outras atitudes mecânicas que aprofundam ainda mais as dificuldades destas crianças dependentes que são de estereotipias e rotinas fixas. Se aprender está relacionado com experiência, com construção de autonomia e é inseparável das emoções, então o que se faz com as crianças portadoras de TEA é um grande desrespeito à sua dignidade de seres que têm a necessidade visceral de aprender e ser feliz. Além disso, sob o ponto de vista neurofisiológico, não oferecem ao cérebro condições de mobilizações e reconfigurações. Neste sentido, Varela (s.d.) nos mostra com muita clareza que conhecer não se refere à representação de um mundo externo e pré-existente com o qual nos relacionamos em termos de solução de problemas. Cognição é o conjunto de experiências concretas no presente com suas problematizações e breakdowns, ou seja, as quebras no fluxo cognitivo (Maturana & Varela, 1994). Os breakdowns correspondem àquilo que em nossa processualidade chamamos de perturbações.

Aprender e ser feliz: aqui começa nosso afastamento com o comportamentalismo. Estas expressões vêm carregadas de sentido epistêmico e ontológico. Para Maturana e Varela (1980), aprender é um processo vital que se desenvolve o tempo todo em um ser vivo. Para estes dois biólogos complexos, a aprendizagem envolve o próprio processo de viver com todas as experiências envolvidas: corporais, mentais e emocionais.

No caso dos sujeitos autistas, as dificuldades de aprendizagem são maiores no fluxo do viver, mas isso não quer dizer que elas não aprendam ou que não tenham condições de aprender, o que é o mesmo que dizer que elas não têm condições de ser, de subjetivar-se. Estas crianças apresentam um quadro de patologias cognitivas e afetivas devido aos comprometimentos neurofisiológicos. Mas não se pode tirar deles a condição de seres humanos autopoiéticos, ou seja, são seres que se autoproduzem ao viver e, devido a esta condição, seus cérebros são dotados de plasticidade. Em outras palavras, a experiência significativa oportunizada aos autistas pela oferta de ambientes e situações desafiadoras pode levar estas crianças a encontrar outros caminhos no cérebro construindo outras formas de conhecer/ser/estar do mundo.

As questões arroladas aqui sobre auto-organização e neuroplasticidade são de fluxo vital numa outra concepção de ciência que trata a realidade em forma de devir sempre em produção pelos seres vivos no tempo, o que é muito diferente da ciência da estabilidade e das separações do modelo newtoniano-cartesiano. Maturana e Varela caracterizam muito bem este novo espírito científico:

Começou uma radical virada paradigmática ou epistêmica. O núcleo desta visão emergente é a convicção de que as verdadeiras unidades do conhecimento são de natureza eminentemente concreta, incorporada, encarnadas, vividas; que o conhecimento se refere a uma situacionalidade e que o que caracteriza o conhecimento - sua historicidade e seu contexto (Maturana & Varela, 1994, p. 14).

Como pano de fundo deste quadro teórico para contemplar a forma como colocamos as questões, contaremos com os estudos originários na Segunda Cibernética de Von Foerster (2003), que são os pressupostos de segunda ordem e seus desdobramentos na “Biologia da Cognição” de Humberto Maturana e Francisco Varela (1980) e da “Complexificação pelo Ruído” de Henri Atlan (1992). Heinz Von Foerster (2003) chamou a atenção do mundo científico sobre a necessidade de passarmos dos sistemas observados para sistemas observantes nos quais o observador é parte do sistema e tem que dar conta de suas próprias operações. O eixo destes estudos aponta para um conceito de cognição como experiência vivida e inseparável do processo de viver o que entra em ruptura com um conceito de cognição baseado na representação na qual o sujeito que conhece não faz parte do processo cognitivo.

O conceito-chave e organizador da Biologia da Cognição é o conceito de Autopoiesis, palavra formada de dois vocábulos gregos: auto – por si e poiesis – criação. Foi desenvolvido para expressar a natureza autoprodutiva dos seres vivos e o fechamento dos sistemas vivos no seu operar. Para Maturana e Varela (1980), os sistemas vivos são fechados para a informação e abertos para a troca de energia, o que vem de fora não determina o que acontece internamente, mas despoleta processos auto-organizativos que configuram a vida de cada ser vivo a partir de mecanismos internos. Se pensarmos nessa perspectiva, os seres humanos inventam a si mesmos no processo de viver e é justamente por isso que o papel da experiência, mais especificamente da autoexperiência é fundamental. E é por este motivo também que condenamos o conceito de representação que diz respeito a estímulos externos e à captação de elementos já dados procedentes do exterior, e não à ação autônoma de cada sujeito se fazendo a si mesmo no ato de viver.

Estes pressupostos nos conduzem a um conceito de aprendizagem que não é adaptação, como alertamos na introdução. O que predomina no tratamento com as crianças com TEA é a ideia de adaptação a um mundo pré-existente a partir de uma preocupação em aumentar a capacidade comunicativa destas crianças. Acontece, porém, que não existem mundos pré-existentes, como também não é assim que funciona a aprendizagem. Isso é uma ilusão, porque aprender implica criação de mundos no momento da ação no qual está em movimento um processo de subjetivação.

Optamos nesta pesquisa por usar o iPad por várias razões que vamos tratando de deixar explícitas ao longo do texto. O acoplamento com a máquina (e não adaptação) pode se tornar autoconstituinte na medida em que há recursividade, ou seja, a máquina responde ao usuário com desafios crescentes desencadeando com isso um processo de complexificação que leva a superações que são sempre alavancadoras de níveis cada vez mais complexos. Simondon nos ajuda a pensar o papel da técnica para o humano: “O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele do qual se eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um crescimento do automatismo, mas ao contrário, a uma margem de indeterminação no funcionamento de uma máquina” (Simondon, 1989, p. 11). E mais adiante: “A máquina que é dotada de uma alta tecnicidade é uma máquina aberta. O conjunto de máquinas abertas supõe o homem como organizador permanente, como intérprete vivo das máquinas umas em relação às outras” (Simondon, 1989).

A constituição dos seres vivos, segundo a “Biologia da Cognição”, vai se dando no acoplamento com o meio na qual sujeito e meio se modificam em reconfigurações constantes a cada desafio (perturbações). Daí nossa insistência em atitudes desafiadoras. Maturana e Varela (1980) chamaram isso de “acoplamento estrutural”. Quando este acoplamento é realizado por meio de um objeto técnico, existe a possibilidade de que o processo de aprendizagem seja potencializado. Entra aí a questão da neuroplasticidade. Alguns pesquisadores começam a pensar nesta direção e se preocupam com o desenho de ferramentas informáticas que incorporem os princípios de recursividade da Segunda Cibernética bem como, contemplem neste desenho uma dimensão ôntica. Este é o caso das pesquisas de Flores e Winograd (1989). Dizem eles: “A criação de um novo dispositivo ou domínio sistemático pode ter uma significação de grande alcance; pode criar novas maneiras de ser que não existiam previamente e um fundo para ações que anteriormente não faziam sentido” (p. 235).

Quanto ao sistema háptico envolvido, as operações cognitivas disparadas pelo toque da ponta dos dedos podem levar a configurações neurofisiológicas, ativando regiões do cérebro até então menos ativas. Para Damásio (2000), o tato discriminativo é uma forma de elaborar o conhecimento do mundo exterior. Para este neurocientista:

Seus sinais refletem as alterações sofridas na pele por sensores especializados, quando temos contato com outro objeto e investigamos sua textura, sua forma, seu peso, sua temperatura, etc. Enquanto a divisão do meio interno e das vísceras se ocupa em grande medida da descrição dos estados internos, a divisão do tato discriminativo se dedica sobretudo à descrição de objetos externos com base nos sinais gerados na superfície do corpo (p. 200).

Os gestos de uma criança diante do computador envolvem o teclar e aqui temos um teclado como intermediário entre o dedo e o objeto. Já quando está diante do iPad, temos o toque direto na tela, o que poderá trazer implicações neurofisiológicas. No caso das pessoas autistas, conforme tem sido amplamente divulgado na literatura especializada, estas crianças têm, paradoxalmente, dificuldade de serem tocadas pelos humanos, e uma grande necessidade de toque.

O que acabamos de expressar aqui nos parágrafos anteriores foi mais focado na auto-organização que é um processo dependente de neuroplasticidade pois os processos de autoprodução dos vivos são sempre transformadores. Passamos agora a refletir sobre a neuroplasticidade.

A neuroplasticidade já fora detectada no século XIX pelo médico espanhol Ramon y Cajal (Bayona Prieto et al. 2011) e também por Freud na mesma época. Ramon y Cajal foi um pioneiro num contexto científico positivista marcado pela estabilidade. Suas intuições de que o cérebro se reconfigura constantemente e que os neurônios cresciam em tamanho e número de dendritos e conexões a partir das experiências dos usuários, revolucionaram a neurologia. Estas intuições foram constituindo o corpus teórico da neuroplasticidade.

Freud (1895/1966), por sua vez, também teve intuições geniais em neurologia de maneira complexa porque articulada com a Psicanálise. No “Projeto para uma psicologia científica”), ele fez anotações de próprio punho em 1895 numa tentativa de entender o funcionamento do cérebro a partir de seus elementos constituintes, os neurônios e sua relação com a experiência e o inconsciente.

Neste momento de seu percurso pessoal, Freud tenta compreender o fluxo de energia que intuía fluir no cérebro, “como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livre de contradições.” Chama “Q” o que distingue repouso de atividade e toma neurônios como partículas materiais (Freud, 1895/1966, p. 295).

Atualmente, os estudos sobre neuroplasticidade atingiram um estado de grande consistência. Depois de examinar vários casos de pesquisa Nicolelis afirma: “A conclusão era inescapável: o cérebro dos mamíferos havia nascido para ser plástico” (Nicolelis, 2011, p.113).

Com esta atitude em relação à capacidade transformadora do cérebro estamos, portanto, situados num novo paradigma – do devir e não da estabilidade. Pensar na potencialidade de um cérebro que se transforma o tempo todo era impensável para a ciência moderna. Norman Doigde escreve sobre o cérebro plástico: “Por quatrocentos anos este empreendimento foi considerado inconcebível porque a medicina e a ciência dominantes acreditavam que a anatomia do cérebro era imutável” (Nicolelis, 2011, p. 11).

Foi pensando nestas potencialidades cerebrais “[...] um cérebro danificado pode se reorganizar” (Nicolelis, 2011, p. 13) que nos lançamos com muita energia neste projeto.

AUTISMO: UMA ABORDAGEM COMPLEXA

No âmbito da educação, uma enorme quantidade de métodos de intervenção tem sido descrita, porém um número muito pequeno tem sido pesquisado e avaliado na abordagem do autismo. Gadia (2006), referência internacional em autismo, faz uma sistematização do que existe de formas de abordagem do espectro:

A maioria dos métodos de intervenção e tratamento pode ser subdividida em três grandes grupos: aqueles que usam modelos de análises aplicadas do comportamento; os que são fundamentados em teorias do desenvolvimento e aqueles que são fundamentados em teorias de estudo estruturado (p. 429).

Dentre os métodos comportamentais, segundo Gadia (2006, p. 430-431), um dos mais utilizados é o ABA, sigla em inglês, para Terapia de Análise Aplicada de Comportamento, que utiliza princípios de teorias da aprendizagem para melhorar o comportamento destas crianças. Entre os métodos focados no desenvolvimento, o Floor Time é um exemplo, no qual os pais ou terapeutas seguem o que a criança faz e, a partir daí, desenvolvem princípios para melhorar as habilidades sociais, de comunicação e emocionais. E entre os métodos de ensino estruturado o Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children (TEACCH) é um que combina estratégias cognitivas e comportamentais, com base em reforço para modificar o comportamento e proporcionar intervenções que busquem melhorar comportamentos considerados inadequados.

Não é foco deste trabalho examinar os métodos utilizados com sujeitos autistas, portanto, não iremos destacar nenhum deles, bem como fazer avaliação e descrição mais aprofundada dos mesmos. A intenção aqui é mostrar o que existe no conjunto de intervenções e destacar neste panorama a sua inadequação no que diz respeito às necessidades dos sujeitos diagnosticados com TEA. Mas é preciso destacar ainda a defasagem entre as pesquisas das neurociências atuais em certas publicações como, por exemplo, no manual intitulado “Manejo comportamental de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo em condição de inclusão Escolar” (Khoury et al., 2014). O título já remete a ideias de controle de seres humanos que não podem ser manejados, mas cuidados, atendidos, ouvidos, ou seja, seres que entram em interação e que se transformam com ela.

É importante acrescentar, porém, que nenhum destes métodos está em consonância com a postura teórica que adotamos porque não contemplam as condições biológicas autopoiéticas. Como já referido, o conjunto hegemônico do que existe se centra na ideia de adaptação sendo que a solução de problemas é o seu corolário. A referência é sempre externa, o que tira dos indivíduos a oportunidade de uma aprendizagem mais rica que articule dimensões cognitivas e subjetivas. Nesta perspectiva, Kastrup (2004) expressa muito bem o que estamos querendo defender:

Muitas crianças são encaminhadas para terapias de enfoque cognitivo- comportamental, que têm em vista aumentar a capacidade de atenção para a realização de tarefas. O que prevalece nesse domínio é o entendimento da cognição como processo de solução de problemas e, no que diz respeito à atenção, a ênfase recai sobre seu papel no controle do comportamento e na realização de tarefas. Ela é a condição para que se dê o processo de aprendizagem, a solução de problemas e o desempenho de tarefas cognitivas. Tomada como uma espécie de processo subsidiário à aprendizagem e estando a seu serviço, sua análise é restrita à atenção voltada para objetos e estímulos do mundo externo, ou seja, para a captação e busca de informações. A falha no trato com as informações externas é sinal de pouca atenção e baixa capacidade de concentração. Tendo em vista que a noção de cognição é restrita à solução de problemas e que a proposta clínica é declaradamente adaptativa, a questão é como restabelecer a capacidade de prestar atenção, ou seja, como promover a aprendizagem de uma atenção que é necessária à realização de tarefas (p. 8).

Em se tratando da abordagem de TEA, estes dois princípios – auto-organização e neuroplasticidade – são eixos epistêmicos organizadores. A emergência destes transtornos numa criança, quer seja de origem genética, infeciosa, ou qualquer outra, acarreta sempre o comprometimento de uma região do cérebro responsável por um pensamento complexo de pensar no qual há uma tendência de articular informações. Como este modo de pensar/ser não acontece nas crianças diagnosticadas com TEA, tendem a ter pensamentos mais segmentados o que repercute obviamente nas suas ações. Por isso, ela tem dificuldade de perceber a si mesma como subjetividade, pensar por metáfora, entre outras. Nossa abordagem aposta na ideia de que, devido às condições autopoiéticas e plásticas do cérebro e a partir da oferta de um ambiente rico e pleno de desafios que correspondem às necessidades destas crianças, seus cérebros podem encontrar outros caminhos com a emergências de novas sinapses que configurem modos singulares, autônomos e significativos de ser como é o caso de tantas pessoas autistas descritas na literatura. O importante aqui e é o que estamos tentando fazer é identificar as necessidades destas crianças em termos da singularidade de cada um e oferecer então, como já referido, o ambiente mais adequado possível. As palavras de Oliver Sacks (2008), conhecido neurologista inglês, são muito expressivas destas necessidades: “Nesta perspectiva, deficiências, distúrbios e doenças podem ter um papel paradoxal, revelando poderes latentes, desenvolvimentos, evoluções, formas de vida que talvez nunca fossem vistas, ou mesmo imaginadas, na ausência desses males. Nesse sentido, é o paradoxo da doença, seu potencial criativo” (Sacks, 2008, p. 13).

Pelas nossas observações atravessadas de muitas conversações e narrativas da equipe sobre as atitudes das crianças, sujeitos de nossa pesquisa, identificamos algumas questões fundamentais a serem trabalhadas e revertidas de forma a proporcionar autoexperiência e não manejos e condicionamentos. São elas:

  1. dificuldade de subjetivação, de dizer “eu” a si mesma;

  2. dificuldade de fixar o olhar no outro;

  3. limitação ou ausência da fala;

  4. problemas comunicacionais e sociais;

  5. dificuldade de pensar com metáfora;

  6. tendência a repetições e estereotipias;

  7. prazer em organização por categoria;

  8. baixo nível de resistência a frustrações;

  9. alta sensibilidade háptica;

  10. extrema dificuldade aos ruídos intensos;

  11. dificuldade de enfrentar mudanças de rotinas;

  12. dificuldade de pensar diferentes variáveis ao mesmo tempo.

A partir destas constatações, vamos trabalhando no sentido de afinar uma “escuta sensível” (Barbier, 2007) com o objetivo de entender como cada criança singulariza sua patologia e, então, podermos ir oferecendo os desafios adequados a cada uma.

Os sujeitos desta pesquisa aqui descrita e em desenvolvimento neste momento são quatro: uma menina de 11 anos (L), uma menina de 8 anos (J), um menino de 12 anos (M) e um menino de 4 anos (P). Eles participam do projeto com entradas bem diferentes no tempo.

Estes sujeitos têm sido atendidos uma vez por semana por um membro da equipe numa sala especializada da universidade separada com um espelho unilateral de uma outra sala onde os demais pesquisadores e bolsistas do projeto observam o processo empírico. Nos atendimentos, as crianças trabalham com o iPad a partir de aplicativos que disponibilizamos para elas. O pesquisador em contato com a criança faz poucas intervenções, mas procura ser afetivo e atento. Sempre que necessário, intervém no sentido de desafio. Os aplicativos selecionados envolvem pressupostos epistemológicos que estejam de acordo com as necessidades do projeto tais como oportunidade de fazer relações entre elementos muito diferentes, flexibilidade no sentido de quebrar padrões estabelecidos na arquitetura dos jogos, estratégias de subjetivação, entre outras. Nossa exigência principal em relação ao tipo de aplicativo é que eles tenham a função de breakdown, isto é, perturbadores desafiando os sujeitos no sentido de um trabalho de reconfiguração. Sistematicamente, conversamos com as famílias para que relatem suas observações sobre as crianças em casa. Estes encontros são filmados.

O projeto desdobra-se em três etapas:

  1. As crianças são atendidas na universidade em 12 sessões semanais;

  2. As crianças ficam dois meses em casa e recebem um iPad para usarem durante este período sob a observação das famílias;

  3. Os sujeitos voltam à universidade para um período de mais 12 sessões. Nesta volta, a primeira atividade é o relato dos pais.

Tratamento das emergências da pesquisa com vistas a responder o problema central e redação do relatório final. Este material de estudo inclui a produção subjetiva dos pesquisadores dando conta de suas próprias afecções.

Os pesquisadores fazem um diário de bordo, no qual se incluem como parte da realidade observada mostrando como estão sendo afetados pela pesquisa e relatam o processo de acoplamento tecnológico das crianças com o Ipad. No final de cada encontro, a equipe se reúne para discutir a sessão cruzando dados das observações com as percepções de cada pesquisador. As sessões são gravadas em vídeo.

As emergências de cada sessão são analisadas à luz dos pressupostos teóricos. Para isso, não usamos categorias que engessam uma realidade em devir deixando escapar sutilezas de singularização, mas sim marcadores oriundos dos pressupostos teóricos por nós utilizados e que tem a finalidade de dar conta de uma realidade complexa em constituição. Não se trata de uma realidade abstrata, mas da forma viva na qual cada sujeito singulariza sua vida. Os marcadores usados são: processo autopoiético, acoplamento estrutural e processo de complexificação. Estes marcadores servem para sinalizar transformações nos sujeitos no devir dos processos vividos.

Conforme anunciado no início, o objetivo deste artigo não é o de descrever uma pesquisa empírica com todos os seus desdobramentos, mas sim de apresentar os pressupostos teóricos complexos para justificar uma nova abordagem do autismo. Por isso, vamos aqui apenas fazer um recorte de emergências empíricas de alguns sujeitos com a finalidade de ilustrar o que defendemos teoricamente. A atitude de desafiar a criança para que ela se mobilize em todas as suas dimensões e a criação de instrumentos autopoiéticos de autoafirmação e narratividade (eu posso, eu fiz, essa ou esse sou eu, atitude narrativa) são estratégias centrais neste processo metodológico.

Dos sujeitos, primeiramente escolhemos a L que está desde agosto de 2014 no projeto. L chegou com 9 anos ao projeto. No início, falava muito pouco (a maior parte por monossílabos) e, segundo depoimento da mãe, suportava muito mal as frustrações e tinha muita dificuldade de entender a lógica embutida nos jogos, mas assim mesmo jogava muito, com visível prazer. No início de nosso trabalho, ela foi se relacionando de uma maneira muito interessante com o iPad, sorria quando se reencontrava com ele a cada início de sessão e se mostrava apreensiva quando não o encontrava logo. Logo no começo do trabalho empírico, ela foi pegando a lógica dos jogos e ia mostrando grande satisfação quando ia superando gradativamente cada fase de dificuldade. Tudo isso ia sendo acompanhado por outras transformações subjetivas e cognitivas, o que reforça nossa posição teórica de o que conhecimento emerge na ação no fluxo do viver. Não existe um sujeito cognitivo separado do sistema observado. A ontoepistemogênese (cognição e subjetivação emergem juntas no viver). Segundo depoimento da mãe desta menina, iniciou-se um processo de aumento gradativo de tolerância às frustrações com o qual a própria mãe se surpreendeu, pois comentava com a equipe que, desde que ela era muito pequena, este era um problema preocupante. A criança começou também a se interessar por roupas e adereços e mostrava prazer em relação a isso. Observamos ainda um aumento na interação com as pessoas que a atendiam no projeto: olhares mais focados e toques.

Iniciou-se, depois de 6 meses do início do projeto, o processo de inclusão escolar da L, que vai se complexificando cada vez mais com algumas regressões causadas por problemas burocráticos da escola, mas seguia de maneira consistente. Hoje podemos constatar um processo de complexificação muito significativo, com um crescimento de autonomia acompanhado de aprendizagens do viver, pois ela vem executando tarefas cotidianas que antes ficavam apenas a cargo de sua mãe. A capacidade cognitiva de entender lógica nos jogos cresceu e sua escrita melhorou.

Acreditamos que o que está impulsionando estes avanços atualmente é o uso intenso das mensagens pelo celular que ela troca com a mãe e com alguns membros da equipe de pesquisa. Ela demonstra uma alegria incrível nesta comunicação.

O segundo caso escolhido neste grupo para mostrar um pouco da empiria desta pesquisa é o da J, que foi diagnosticada com uma síndrome complexa que inclui autismo entre outros problemas severos como consanguinidade e microcefalia. Este foi realmente um caso instigante que nos desafiou bastante, mas principalmente ao autor da dissertação de mestrado, orientando de uma das pesquisadoras da equipe, que teve J como seu sujeito de pesquisa. O referido mestrando é membro do grupo de pesquisa responsável pela presente investigação e fez sua dissertação abrigada neste ambiente. No início da pesquisa, a menina, com 6 anos de idade na ocasião, não caminhava, arrastava-se e ficava sentada no chão. Era um quadro desolador, pois, além das cenas impactantes da menina arrastando-se, J não fixava o olhar em nada, apresentava movimentos repetitivos constantes e não falava.

O início do processo foi muito difícil, pois o pesquisador-mestrando munido de todos seus instrumentos metodológicos não tinha muito o que fazer. Acreditamos que ele não desistiu porque, desde o primeiro momento, estabeleceu um vínculo muito interessante com a menina que foi ficando, no decorrer do processo, cada vez mais complexo. Decidiu, então, provocar em J um processo de autorreconhecimento: pegou a filmadora, começou a filmá-la e, na sequência, virou o visor da filmadora para a menina que se surpreende com a própria imagem. Transcrevemos a cena com as palavras do autor da dissertação em seu diário de bordo:

[...] olhou novamente para a câmera, olhou para mim, voltou a olhar para a câmera e então se reconheceu, olhou mais uma vez para mim e fui me enquadrando na imagem e ela chegando cada vez mais perto da câmera, olhando para ela e para mim e passamos a “conversar” [...] (DB, J, 14/04/2015).

Aos poucos, J foi se aproximando do iPad e começando a jogar. Ela fazia isto dentro de suas possibilidades sem, muitas vezes, entender a lógica dos jogos, que eram bem simples. Mas o jogar, o fato de se autoexperimentar nesta ação, o arremedo de narrativa que isso envolve, a relação ontogênica com o objeto técnico, o tocar e o disparo de mecanismos neurofisiológicos fizeram disparar em J transformações físicas, cognitivas e subjetivas da maior importância evidenciadas pela marcha que hoje é quase perfeita, pela inclusão escolar que vai se aprofundando e pelo aumento da capacidade comunicacional.

Nestes dois casos como também em todos os outros, constatamos fatos simples e significativos: a ação desafiadora que exige atenção-presença leva a transformação. Esta transformação se deve principalmente às condições de neuroplasticidade do cérebro humano.

O objeto técnico, o iPad, com suas possibilidades de toque e, portanto, de mobilizar o sistema háptico, e sua função cognitiva e ontogênica e como máquina complexa aberta ao indeterminado, comparece como instrumento de criação de um ambiente desafiador.

Então vamos trabalhando as emergências (não chamamos de dados porque não estão estabelecidos a priori, mas emergem nos acoplamentos) à luz dos marcadores – processo autopoiético, acoplamento estrutural e processo de complexificação para perseguir a resposta à nossa questão central. Nos dois casos citados, podemos identificar com relativa facilidade a presença destes elementos.

Ao final, o trabalho interpretativo com as três ordens de emergências geradas (registros das sessões, diários de bordo dos bolsistas e pesquisadores e narrativas dos pais) é tramado com vistas a responder o problema central de pesquisa. O que aparece mais evidente é uma verdadeira cartografia de emergências que adquirem sentido à luz dos marcadores. Trata-se, portanto, de topologias ou de caminhos se fazendo ao caminhar o que pode ser abdutivamente comparado com o trabalho que é feito no cérebro ao mesmo tempo que vai criando caminhos e engendrando novas sinapses. Não se trata, então, de programações prévias ou de resultados esperados, mas de todo o sistema cognitivo afetivo que se abre para indeterminações.

CONCLUSÕES PROVISÓRIAS

O que estamos fazendo até aqui ao ir compondo uma nova abordagem do TEA é, na verdade, uma cartografia de um novo paradigma, para extrair disso uma epistemologia complexa que dê conta de problemas cruciais de sujeitos que sofrem profundamente com tratamentos que os isolam cada vez mais porque são incapazes de atingir dimensões mais sutis do humano. Métodos fragmentadores que separam dimensões da realidade como é a marca do paradigma clássico não tem condições de abordagem de problemas humanos complexos.

Que epistemologia é essa? Certamente não é algo abstrato informado por classificações e categorias formais já estabelecidos preocupado com a velha questão – como é possível o conhecimento? Conhecer depende da ação de cada um no mundo de modo singular, de como cada um se relaciona com seu ambiente dando sentido a este processo, singularizando suas ações. Pensando em termos de patologias, por exemplo, podemos dizer que não existem doenças genericamente, mas formas singulares com as quais cada doente singulariza seus problemas de saúde. Da mesma forma, podemos dizer que não existe uma epistemologia, mas epistemologias com letra minúscula. Bateson (2000) chamava isso de “epistemologias locais”.

É, portanto, a partir destas premissas epistemo-ontológicas vivas que estamos configurando nosso aporte teórico. Como se pode ver de forma breve nos relatos sobre os sujeitos o que mais valorizamos foi o processo de autonomia (autopoiesis) devido ao significado que isso tem em relação à força gerada com a alegria de ser autor de si mesmo ao ir singularizando sua própria experiência ao aceitar suas próprias experiências. A outra questão é entender a própria gênese destas situações no processo de acoplamento com a realidade. E, finalmente, o processo de complexificação emerge como resultado de tudo isso na medida em que vão se criando condições de pensamento um pouco mais elaborado produtor de articulações, do sujeito poder sentir alegria ao aprender algo e da capacidade de olhar o caminho percorrido. As transformações ocorridas nos sujeitos da pesquisa nos mostram que o acoplamento estrutural segue caminhos muito diferentes em cada indivíduo. Cada ser humano, no seu processo autopoiético (autoprodução), cria caminhos singulares e, em consonância com isso, o sistema nervoso cria caminhos originais mesmo uma parte do cérebro esteja comprometida por uma patologia importante. Para concluir, citamos as palavras de Oliver Sacks, o neurologista que expressa muito bem nosso projeto de pesquisa:

Para mim, como médico, a riqueza da natureza deve ser estudada no fenômeno da saúde e das doenças, nas infinitas formas de adaptação individual com que organismos humanos, as pessoas, se reconstroem diante dos desafios e vicissitudes da vida (2008, p. 13).

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Recebido: 03 de Fevereiro de 2018; Revisado: 09 de Julho de 2020; Aceito: 17 de Maio de 2021

Correspondência: Nize Maria Campos Pellanda. nizepe@gmail.com

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