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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.74  Rio de Janeiro  2022  Epub Sep 09, 2024

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp-2022v74.20468 

Artigo original

PROGRAMA BEM VIVER: SAÚDE MENTAL, ATENÇÃO BÁSICA E SEUS ANALISADORES EM PEQUENOS MUNICÍPIOS1

WELL LIVING PROGRAM: MENTAL HEALTH, PRIMARY HEALTHCARE AND ITS ANALYZERS IN SMALL TOWNS

PROGRAMA BEM VIVER: SALUD MENTAL, ATENCIÓN PRIMARIA Y SUS ANALIZADORES EN PEQUEÑOS MUNICIPIOS

ONÉZIMO TADEU D’ASSUNÇÃOI 
http://orcid.org/0000-0002-9206-4364

MARCELO DALLA VECCHIAII 
http://orcid.org/0000-0001-7537-3598

TASSIANA GONÇALVES CONSTANTINO DOS SANTOSIII 
http://orcid.org/0000-0001-7792-4525

I Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG, Brasil.

II Universidade Federal de São João del-Rei, Departamento de Psicologia. São João del-Rei, MG, Brasil.

III Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO

Este artigo discute dilemas da articulação entre saúde mental e atenção básica por meio da interlocução com psicólogas/os que atuam no Programa Bem Viver, que abarca municípios de pequeno porte da microrregião de saúde de São João del-Rei, MG, Brasil. Foram realizados grupos focais como dispositivos para a análise institucional das práticas e discursos presentes no campo pesquisado. No processo de análise foram constituídos três analisadores: (1) Espaço, que destaca o lugar ambíguo do Programa Bem Viver na rede de atenção psicossocial, (2) Demanda, que ressalta a predominância do atendimento clínico individual na atuação das/os psicólogas/os e (3) Especialismo, que se refere ao incipiente trabalho interdisciplinar e intersetorial. Nota-se que o Programa Bem Viver, mesmo inserido no território e realizando acolhimento inicial do cuidado em saúde mental, funciona predominantemente como um serviço ambulatorial, em detrimento da integralidade de ações requeridas na atenção básica.

Palavras-Chave: Psicologia; Saúde mental; Atenção básica; Análise institucional

ABSTRACT

This article discusses dilemmas of the articulation between mental health and primary healthcare through the dialogue with psychologists who work at Programa Bem Viver (Well Living Program), which covers small towns in the region of São João del-Rei, Minas Gerais, Brazil. Focus groups were carried out as tools for the institutional analysis of practices and discourses in the field work. In the analysis process, three analyzers were created: (1) Space, which highlights the ambiguous place of the Programa Bem Viver in the psychosocial care network, (2) Demand, emphasizing the predominance of individual clinical care in the performance of psychologists and (3) Specialism, referring to the incipient interdisciplinary and intersectoral work. It is noted that the Programa Bem Viver, even inserted in the territory and providing initial reception of mental health care, works predominantly as an outpatient service, to the detriment of the integrality of actions required in primary healthcare.

Key words: Psychology; Mental health; Primary healthcare; Institutional Analysis

RESUMEN

Este artículo discute dilemas en la articulación entre salud mental y atención primaria a través del diálogo con psicólogos que actúan en el Programa Bem Viver, que engloba pequeños municipios de la microrregión de salud de São João del-Rei, MG, Brasil. Se realizaron grupos focales como dispositivos para el análisis institucional de prácticas y discursos presentes en el campo investigado. En el proceso de análisis, se constituyeron tres analizadores: (1) Espacio, que destaca el lugar ambiguo del Programa Bem Viver en la red de atención psicosocial, (2) Demanda, que destaca el predominio de la atención clínica individual en el trabajo de los psicólogos y (3) Especialidad, referido al incipiente trabajo interdisciplinario e intersectorial. Se observa que el Programa Bem Viver, aun insertado en el territorio y realizando la recepción inicial de atención en salud mental, funciona predominantemente como un servicio ambulatorio, en detrimento de la integralidad de las acciones requeridas en la atención primaria.

Palabras-clave: Psicología; Salud mental; Atención básica; Análisis institucional

INTRODUÇÃO

A interface entre saúde mental e atenção básica mostra-se fundamental para o avanço nas tecnologias do cuidado e também para a concretização de um sistema público de saúde que promova autonomia e emancipação. Por um lado, a reforma psiquiátrica busca a desinstitucionalização do cuidado em saúde mental operando, primordialmente, uma ruptura com a cultura da tutela institucional e manicomial. Por outro lado, a reforma sanitária aposta na atenção básica e nas ações da Estratégia da Saúde da Família (ESF) para sustentar e consolidar os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente, a integralidade.

Em levantamento feito pelo Ministério da Saúde em 2002 visando a inserção da saúde mental na atenção básica, mostrou-se que 56% das equipes da ESF referiram realizar “alguma ação” em saúde mental (Vieira & Neves, 2017). A atuação em saúde no território evidencia diversas formas de sofrimento decorrente de desassistências, desigualdade social e exclusão. A intersecção entre saúde mental e atenção básica, assim, requer a ruptura com dicotomias tais como saúde em geral versus saúde mental, convocando para um trabalho transversal. Isso implica ultrapassar as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder presentes no cotidiano das ações em saúde numa contínua negociação e pactuação, requerendo a consolidação das redes e o fortalecimento dos coletivos (Benevides, 2005).

Em 2008 se iniciou o processo de implementação de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). O NASF visa ampliar e fortalecer as ações dos profissionais da Atenção Básica pelo apoio de equipes multiprofissionais. Propõe o apoio matricial, ou matriciamento, como meio para a construção de relações mais horizontais entre os profissionais, buscando reverter a lógica da especialização, o isolamento dos procedimentos e a fragmentação com a atenção básica (Klein & D’Oliveira, 2017). Segundo Campos e Domitti (2007), o matriciamento pode se desenvolver em três planos: (1) troca de conhecimento e de orientações entre equipe e apoiador; (2) atendimentos e intervenções conjuntas entre profissional de referência e apoiador; e (3) atendimentos ou intervenções complementares especializadas do próprio apoiador. Nesse cenário, o apoio matricial se incumbe de oferecer retaguarda assistencial e suporte técnico-pedagógico às equipes de referência, fundado no pressuposto de que nenhum especialista, isoladamente, pode assegurar uma abordagem integral.

Queixas escolares, problemas relacionados ao uso de drogas, violência de gênero, questões relativas a conflitos familiares, luto, depressão e ansiedade são algumas das situações possíveis de serem discutidas e trabalhadas entre as equipes da atenção básica e as equipes do NASF. Estudos sobre a articulação entre saúde mental e atenção básica identificam que o matriciamento proporciona maior estreitamento do laço entre os profissionais possibilitando práticas inovadoras (Klein & D’Oliveira, 2017).

Quando consideramos o contexto nacional, 96% dos municípios possuem população inferior a 100.000 habitantes e 63%, população de até 20.000 habitantes, ou seja, a atuação cotidiana das instituições de saúde em municípios pequenos caracteriza a imensa maioria dos municípios brasileiros (L’abbate & Luzio, 2009). Tais municípios, a partir da criação do SUS, incluíram equipes de saúde mental nas unidades básicas de saúde (UBS). Porém, os municípios não assumiram, de imediato, uma política de saúde mental pautada pela interdisciplinaridade, intersetorialidade e pautada nos princípios e diretrizes da reforma psiquiátrica. Na maioria das vezes, conforme L’Abbate e Luzio (2009), os municípios constituíram “núcleos de saúde mental”, que acabam por se cristalizar em atendimento ambulatorial e encaminhamentos para os centros de atenção psicossocial (CAPS) ou internação, reproduzindo o modelo psiquiátrico hegemônico.

Apresenta-se um estudo que se propôs a analisar a relação entre saúde mental e atenção básica em municípios de pequeno porte a partir da atuação dos profissionais de Psicologia que coordenam e atuam um programa de saúde mental administrado por um consórcio intermunicipal de saúde, intitulado Programa Bem Viver. Este artigo é um recorte da pesquisa de mestrado do primeiro autor, que também foi psicólogo atuante no Programa Bem Viver. Por meio dessa experiência de atuação no serviço e de sua interação com os demais profissionais, se buscou identificar e analisar os processos instituídos e cristalizados, como também as práticas inovadoras e os processos instituintes, recorrendo-se, para isso, aos pressupostos teórico-metodológicos da análise institucional.

METODOLOGIA

O Programa Bem Viver, vinculado ao Consórcio Intermunicipal de Saúde das Vertentes (CISVER), visa prestar assistência em saúde mental na atenção básica na microrregião de saúde de São João del-Rei, estado de Minas Gerais, com unidades implantadas em 15 municípios dessa microrregião à época da pesquisa. Ele oferece atendimentos clínicos diários por profissionais de psicologia, atendimentos mensais por psiquiatra e neurologista e oficinas de grupo quinzenais com terapeuta ocupacional. A coordenação de cada unidade do programa fica a cargo de profissionais psicólogas/os que realizam cotidianamente atividades de assistência e gestão.

Na maioria dos municípios, o programa funciona em uma casa à parte das UBS, sinalizando o formato “híbrido” do Programa Bem Viver, transitando entre a atenção básica à saúde e um serviço ambulatorial especializado de saúde mental, ou seja, um tipo de serviço não instituído na rede de atenção psicossocial (RAPS). Outro aspecto importante é que o Bem Viver se institucionaliza na tentativa de melhorar a assistência em saúde mental na atenção básica, que se mostrava frágil e insuficiente antes da implantação do programa nos municípios pesquisados.

As demandas acolhidas são encaminhadas por diferentes instituições da saúde, educação, assistência social e órgãos judiciais. Há uma agenda de reuniões mensais entre as/os psicólogas/os para pensar a organização do trabalho, trocar experiências, programar atividades, manifestar desconfortos e dificuldades, e também discutir políticas de saúde e saúde mental, sempre que emergem temas a elas relacionados.

A análise institucional, considerando em especial sua vertente socioanalítica, oportunizou instrumentalizar a análise das implicações do pesquisador e dos demais participantes quando inseridos diretamente na prática estudada (Altoé, 2004). Busca-se, nesse sentido, compreender e explicitar os pertencimentos institucionais vigentes, considerando a micropolítica das relações na atuação profissional e de investigação. De forma geral, a implicação está sempre presente, até mesmo inconscientemente, em tudo que se faz. Implicações afetivas, ideológicas e profissionais estão envolvidas nos modos como participamos da vida social. Para os socioanalistas, para além de compreendê-las, devemos colocar em análise seus desdobramentos (L’Abbate, 2012).

Além de considerar a trajetória do primeiro autor no Programa Bem Viver, foram convidados como interlocutores os profissionais atuantes nos demais municípios no período em que foi realizado o trabalho de campo, entre setembro e novembro de 2015. Na ocasião atuavam 23 psicólogas/os nos 15 municípios em que os serviços estão implantados. Deste total, 13 participaram da pesquisa. O vínculo empregatício de todas/os as/os psicólogas/os se dá diretamente com as prefeituras e não com o CISVER, que participa do Programa Bem Viver custeando as ações.

A utilização da análise institucional remeteu a um processo de desnaturalização, incluindo a análise do sistema de lugares, procurando assinalar a posição que os profissionais ocupam na relação com seu trabalho. Ao recorrermos ao grupo focal, é possível ressaltar determinados aspectos relativos à intersubjetividade dos participantes: o envolvimento dos informantes com a construção dos dados, a criação de “espaço de sentido” constituído a partir da percepção dos participantes sobre os propósitos da pesquisa e as intenções dos pesquisadores (Gui, 2003).

Adotou-se, aqui, o grupo focal como um analisador construído (Baremblitt, 2012), que é um dispositivo que os analistas institucionais introduzem nas organizações para propiciar o processo de explicitação dos conflitos e de sua resolução. É importante enfatizar que os analistas institucionais, ao nível de produção de analisadores construídos, se valem de todo e qualquer recurso. Dessa forma, a própria prática de pesquisa é considerada em si uma prática de intervenção institucional “que coloca em ação a relação mantida pelos indivíduos com a instituição” (Lourau, 1995, p. 143). Explicitar os analisadores provoca e estimula o coletivo à enunciação, revelando fatos e situações que surgem no processo de intervenção e que apontam aspectos contraditórios e ocultos no grupo, bem como na organização em que os participantes se inserem (L’Abbate, 2012). A prática de pesquisa, assim, seria análoga a uma intervenção institucional, buscando fazer emergir um material analisável (Altoé, 2004).

Para o grupo focal elaborou-se um roteiro condutor, contemplando: (a) percepções acerca das práticas profissionais das/os psicólogas/os no Programa Bem Viver, (b) relações entre suas atividades e as diretrizes institucionais, (c) manejo cotidiano da diversidade de demandas, (d) suportes técnicos e teóricos, (e) o que são consideradas “práticas inovadoras”, e (f) relação da equipe do Bem Viver com as ESF e outros setores das políticas públicas. O primeiro autor coordenou o grupo e a terceira autora ocupou o lugar de observadora. As/Os participantes dos grupos focais foram informados da garantia de sigilo, confidencialidade e anonimato, e todas/os consentiram com a participação e a gravação do encontro.

Antes de iniciar cada um dos grupos focais, foi aplicado um questionário para a caracterização sociodemográfica do grupo pesquisado e o levantamento da trajetória de formação e das práticas realizadas pelas/os psicólogas/os. Apresentou-se um rol de atividades e procedimentos, solicitando-se que fossem enumerados em ordem crescente, com base na frequência com que os realizavam no cotidiano de suas atividades no Programa Bem Viver. No mesmo questionário também constava uma lista das principais demandas ao serviço, solicitando-se também que enumerassem, pela ordem, as mais frequentes. Também foi realizada uma entrevista semiestruturada com uma das psicólogas idealizadoras do Programa Bem Viver, a fim de contextualizar a origem e objetivos iniciais em seu projeto de implantação.

O projeto foi aprovado para desenvolvimento pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos – Unidades Educacionais de São João del-Rei (CEPSJ) (CAAE 59088016.6.0000.5151). Após a conclusão da coleta das informações de campo, foi realizado um novo encontro com as/os participantes dos dois grupos focais visando a restituição da pré-análise dos dados construídos junto deles. No encontro compareceram 10 dos 13 participantes da pesquisa. O pesquisador introduziu o problema de pesquisa, apresentou seus objetivos, metodologia e resultados preliminares, convidando os interlocutores a se expressar, buscando análise e construção conjunta. Com a autorização dos participantes, a observadora dos grupos focais e o orientador da pesquisa (terceiro autor) também participam nessa oportunidade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O grupo de participantes da pesquisa foi composto por 13 psicólogos: 10 do sexo feminino e três do sexo masculino, com a idade variando entre 27 e 52 anos. Sua formação se deu em períodos e instituições diversas, o que poderia sugerir enfoques muito diversos nos modos de atuação profissional. Porém se verificou certa hegemonia na atuação em torno de uma prática clínica mais tradicional, na qual o trabalho do psicólogo é direcionado para intervenções individuais. Dentre os profissionais do grupo, 10 realizaram especialização lato sensu nas áreas de psicopedagogia, psicologia da saúde ou psicologia clínica.

A análise do questionário aplicado também forneceu indicativos sobre as práticas, sendo que o acolhimento e o atendimento individual foram as ações indicadas como as mais frequentes pelos participantes. As atividades menos frequentes foram a integração com a ESF e as ações de promoção e prevenção em saúde mental. Esse dado indica a persistência do setting clínico individual tradicional no cotidiano dessas/es profissionais, o que pode, assim, reforçar o lugar de especialistas que ofertam atendimento ambulatorial, gerando obstáculos à atuação em conjunto com as equipes de atenção básica. No que se refere às principais demandas ao serviço, foram enumerados: quadros de ansiedade, depressivos, transtornos psicóticos e problemas de aprendizagem. Isso sugere, tomando por base as informações prestadas, o acolhimento das demandas mais típicas do campo da saúde mental.

A seguir, esses dados são destacados, e discutidos vis a vis os analisadores construídos no decorrer do desenvolvimento dos grupos focais. O conteúdo da entrevista com uma das psicólogas idealizadoras do Programa Bem Viver se entrelaça aos analisadores respaldando as informações acerca do processo de implementação do Programa Bem Viver.

ANALISADOR “ESPAÇO”

Na perspectiva da análise institucional, entende-se que o analisador é polissêmico e, ao mesmo tempo, singular ao contexto em que está inscrito (Baremblitt, 2012). Nesse sentido, o espaço constituiu-se como analisador por aparecer no debate imbuído de vários sentidos para dizer de um contexto singular. Questões relacionadas ao “espaço” do Programa Bem Viver foram enunciadas com vários sentidos: conquista de poder, espaço físico, lugar na rede, reconhecimento pelos outros serviços.

No contexto de implantação, no ano de 2002, o Programa Bem Viver se apresentava como um espaço inovador de acolhimento e acompanhamento em saúde mental para os municípios. De acordo com os relatos dos participantes, nesse período a região contava com uma rede de saúde mental precária e pouco resolutiva, acarretando muitas e recorrentes internações psiquiátricas. Algumas falas elucidam as oportunidades e as contradições sobre a conquista desse espaço (como conquista de poder) que, certas vezes, aparece como privilegiado e, em outras, como segregado.

Pra mim, eu vejo um diferencial. Como eu trabalhei antes, desde o início, é a questão do acolhimento. Você tem um espaço diferenciado, não só um espaço físico, mas um espaço de escuta, que é diferenciado a partir do momento que o usuário se apodera desse serviço também (Participante 8).

Nesse discurso, o programa mostra-se como uma inovação por oferecer um espaço para escuta antes inexistente. O Programa Bem Viver, assim, é mencionado como um lugar adequado por seus usuários serem acompanhados por uma equipe específica de saúde mental. Dessa forma, asseguraria um espaço (como lugar, espaço físico) de circulação e interação dos usuários da saúde mental, e também um lugar “protegido” de eventuais julgamentos ou conflitos que estes usuários podem sofrer dentro das UBS:

E essa fala do preconceito é real, porque já aconteceu lá em [município]. Várias pessoas esperando o ginecologista e a pediatra também, e a psiquiatria é perto ali. Aí uma pessoa surtou lá, daí um olha pro outro, o outro olha pro outro, aquele bochicho, aí ela foi ficando irritada, ela foi agarrando no pescoço das pessoas que estavam lá. Foi um senhor problema, sabe? Porque geralmente nem todo mundo sabe entender, sabe respeitar. Porque na casa a gente já tá mais treinada, receptivo, né? (Participante 13).

Eu já trabalhei na unidade de saúde, só que era a psicóloga, né? Não tinha isso, os usuários não tinham uma sala... Então, né, e aí o tratamento era ambulatorial. E aí, quando abriu espaço para os grupos e para circulação de pacientes, aí, então, assim, a maior rejeição, não é contra os profissionais que entram no serviço, mas quanto aos usuários, quanto à circulação deles na unidade... E outra coisa, quando o paciente entrava em crise, eles... Surtar ou alguma coisa assim assustava a equipe como um todo (Participante 7).

O espaço físico do Programa Bem Viver ocorrer em um lugar específico apartado da atenção básica pode ter como consequência a reprodução da segregação do subsetor da saúde mental no SUS, criticada pelo movimento da luta antimanicomial (Severo & Dimenstein, 2013). A existência de um espaço “privilegiado” pode estar permeada pela ideia de controle social da loucura, reproduzindo a lógica manicomial de distanciar usuários da saúde mental. Além disso, essa suposta “proteção” tem o risco de enfraquecer a corresponsabilização das equipes das ESF, o matriciamento e a preparação dessas equipes e da população para lidar com as crises.

Ao analisar o Programa Bem Viver quanto à sua localização na RAPS, verifica-se um lugar (no sentido da posição em uma rede) de certo modo impreciso. Isso pode ser positivo por um lado, considerando que a oferta pode se adequar melhor à demanda local, mas negativo por outro, visto que o funcionamento pode reproduzir práticas cristalizadas e promover segregação. Na proposta original do Programa, trata-se de um dispositivo que teria a função de realizar ações de atenção primária à saúde mental, porém, com uma articulação ambígua com as equipes da ESF, levando a compreensões distintas: “eu entendo que é saúde mental, acolhimento à crise, a urgência, demanda de álcool e outras drogas, pessoas que estão em situação de angústia naquele momento... É um serviço de urgência” (Participante 1). “Eu vejo que a nossa prática ainda está um pouco distante da proposta do Bem Viver. Eu tenho a percepção de que o Bem Viver vem com uma proposta de ser uma UBS da saúde mental. Unidade Básica recebe aquilo que não é emergente...” (Participante 5).

Nota-se, assim, a reiteração da polissemia do espaço do Programa Bem Viver, entendido por alguns como serviço para acolhimento de urgências subjetivas em saúde mental, o que remete à analogia com um CAPS, e por outras/os como um dispositivo de promoção à saúde e prevenção do sofrimento mental, ou seja, da atenção básica. Outras/os profissionais destacam que o distanciamento físico do Programa Bem Viver ocasiona um processo de trabalho fragmentado do restante da rede, especialmente das ESF, funcionando de modo isolado, recebendo encaminhamentos e respondendo de forma unilateral a essas demandas: “Eu acho que, de certa forma, com essas divisões, acaba que se perde um pouco o trabalho em equipe. Ainda mais pensando em Bem Viver que fica lá, naquela casinha, separado, como se fosse até excluído” (Participante 12).

Nas unidades do Programa Bem Viver que se encontram em situação de baixa articulação com a atenção básica, sobrevém sua caracterização como um serviço especializado em saúde mental, com todo o subsequente risco de criação de um circuito segregado desse setor. Considerando a existência de um CAPS de referência na região, pode-se recair na circulação das demandas somente entre esse serviço e o Programa Bem Viver, o que pode ocasionar baixa resolutividade e excesso de demandas para esses serviços. De certo modo, se o Programa se ambulatoriza, sem articulação com outras políticas públicas e do território como um todo, corre-se o risco da cronificação dos usuários (Severo & Dimenstein, 2013).

Contudo, visto o candente debate sobre o lugar das ações ambulatoriais na RAPS, cabe reconhecer as características inovadoras do Programa ao ofertar esse tipo de ações. Seu funcionamento híbrido, abarcando funções ambulatoriais assim como também atividades com características de Centro de Convivência (CECO) com eventual aproximação com a atenção básica, possibilita uma abertura para construção de ações de acordo com as demandas locais. Os CECO são dispositivos instituídos enquanto serviços extra-hospitalares enquanto espaços de circulação, inclusão, socialização e promoção de encontros entre os usuários da saúde mental e a população/comunidade geral.

Nesse sentido, é possível conceber o programa Bem Viver para além de um ambulatório depositário de demandas especializadas, com funcionamento singular em cada um dos municípios. Destaca-se, aqui, a autonomia no processo de trabalho das unidades do Programa como fator positivo, não obstante as contradições acerca de seu lugar na rede.

ANALISADOR “ESPECIALISMO”

O trabalho interdisciplinar e multiprofissional, com base no território e em práticas de promoção da saúde e prevenção de agravos e doenças, encontra-se entre as propostas da ESF visando à reorganização da atenção básica em saúde na direção da consolidação do SUS. Preconizam-se trocas de saberes e experiências, com o intuito de conhecer o território e planejar ações de acordo com as necessidades da população atendida, visando à autonomia e emancipação das/os usuárias/os e comunidades (Ministério da Saúde [MS], 2013).

A atuação no SUS desafia as/os profissionais a trabalharem a tensão existente no entrecruzamento de saberes, no qual dialogam e divergem, demandando o reconhecimento do outro na produção de saúde, dada a persistência da especialidade profissional enquanto marca da atuação. Spink (2007), neste sentido, aponta a importância da articulação entre diferentes competências, do fortalecimento dos diálogos entre diferentes domínios do saber e do fazer pertencentes ao campo da saúde, e do reconhecimento da participação popular no planejamento das ações.

Durante um dos grupos focais, duas psicólogas debatem a atuação no Programa Bem Viver, discutindo se é válida ou não sua caracterização como atenção especializada em saúde mental, tomando por base o e-SUS, ferramenta de registro eletrônico da informação em saúde na atenção básica. Ao final da discussão, as participantes concluíram que, de acordo com o sistema, suas ações são registradas como não especializadas: “no e-SUS não tem essa questão de especialista. Você tem lá: PSF [Programa Saúde da Família], NASF e outros profissionais de nível superior” (Participante 10).

A gente trabalha com demanda secundária porque nós somos especialistas, ou seja, o psicólogo [contratado pelo Programa Bem Viver] é o psicólogo especialista do município. Do serviço todo, a atenção básica não tem. A rede não tem o psicólogo do PSF. Trabalho do psicólogo não é institucionalizado. Nós somos atenção especializada que atua na atenção primária (Participante 7).

A pesquisa de Spink (2007) retratou os centros de saúde e as UBS como os estabelecimentos do SUS que concentravam 39% das/os psicólogas/os no país. Isso faria supor que a maioria das/os profissionais estariam atuando na atenção não especializada, ou seja, como profissionais de atenção básica. Ferreira Neto (2011) problematiza essa questão, ressaltando que essa interpretação desconsidera o fato de que a maioria está ligada/o a, ou inserida/o em, algum programa de saúde mental, como o Programa Bem Viver. Concordando com este autor, nota-se uma tensão na identidade da/o psicóloga/o no Programa, com dificuldades no diálogo entre uma tendência mais clínica/liberal/individual e as ações sociais/psicossociais/comunitárias. Ao atuar nos serviços do SUS pautados pelo especialismo, há uma tendência em se reforçar a fragmentação do sujeito e das ações, e em se estabelecer procedimentos específicos e desvinculados do contexto social dos usuários. Isso conduz não apenas a uma tensão produtiva entre o campo da saúde mental e o da atenção básica, mas também a marcantes controvérsias com relação a esse último campo.

O cenário contemporâneo das políticas em saúde instaura uma tensão emblemática na atuação da/o psicóloga/o no Programa Bem Viver. Ao se depararem com agendas inesgotáveis de atendimentos clínicos individuais, lado a lado ao incentivo das diretrizes das políticas para a adoção de ações pautadas no território, essas/es profissionais são provocadas/os a novas reflexões, o que desestabiliza seus lugares de especialistas: “no meu caso, não sei só se é uma relação boa, mas somos muito bem atendidos pela UBS, apesar de ter aquela coisa: saúde mental é lá, e a saúde é aqui” (Participante 2). “Por isso é que eu acho que o psicólogo lá dentro da UBS é muito melhor. Porque se você quer conversar com a enfermeira ela está ali; o médico, por mais que ele tenha muita coisa, está ali. E vai conversando e, assim, é difícil ser distante por causa disso” (Participante 4).

Essas falas, dentre outras enunciadas no decorrer dos focais, possibilitam inferir a predominância de um modelo assistencial fragmentado e funcionando pela lógica do encaminhamento a especialistas. Apesar de haver certa comunicação entre os profissionais da saúde e relações de trabalho cordiais, o trabalho coletivo, com trocas de saberes, ou é pontual, ou não se concretiza. Mais de um depoimento apontou para a falta da participação da/o profissional médica/o nas discussões em equipe. A Participante 4 ainda aponta que não estar dentro da UBS – devido ao tipo de “espaço” do Programa Bem Viver no município, conforme discutiu-se anteriormente – traz dificuldades adicionais a esse diálogo.

O trabalho em saúde é relacional e dependente do trabalho vivo em ato, ou seja, do trabalho em processo, no decurso de sua produção (Merhy, 2002), de modo que relações profissionais estabelecidas fora dos consultórios (como nos casos da visita domiciliar, da interconsulta e de atividades em grupo) também se configuram como trabalho multiprofissional em saúde. Compartilhar o mesmo espaço físico pode criar condições de disponibilidade para encontros e trocas. Por outro lado, apartar fisicamente as equipes (de saúde mental e de atenção básica) pode dificultar o exercício multiprofissional e a interdisciplinaridade.

O princípio da integralidade pressupõe um esforço em compreender e lidar com esses conjuntos de saberes e práticas intercessoras que atravessam, ainda que com potencial de transversalizar, o cuidado em saúde (Ferreira Neto, 2008). Este princípio considera que a saúde das pessoas se configura por um processo multideterminado, sendo fundamental considerar as múltiplas necessidades de indivíduos, famílias, grupos sociais e territórios na oferta dos serviços e programas de saúde. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Dentre os empecilhos apontados pelas/os participantes dos grupos focais para isso estão (a) o despreparo das/os profissionais para trabalhar de forma interdisciplinar, (b) a organização do trabalho com base em agendas de atendimentos clínicos individuais e pela lógica do encaminhamento, (c) o descrédito de certas/os profissionais pelo trabalho em equipe, e (d) a cultura de valorização do atendimento clínico individual. Não obstantes os esforços, relatam-se dificuldades de integração desses recursos assistenciais:

Eu acho que a rede está enfraquecida, não está tecida. Mas dentro do PSF eu consigo ver uma equipe. Tem estudo de caso com as agentes, tem umas enfermeiras que são mais acessíveis. Mas ainda se supõe que saúde mental é responsabilidade do psicólogo. Só que assim a rede fica meio complicada. Porque não basta a contrarreferência do CAPS. Alguma coisa ficou meio aberta aí (Participante 10).

A qualificação dos cuidados em saúde mental na ESF é importante porque assim não se valoriza ou se estimula excessivamente o “papel de doente” de quem se encontra em sofrimento mental (Amarante, 2007). Nesse sentido, a ESF pode se consistir em um dispositivo importante para a atenção integral, dispensando encaminhamentos a serviços médicos especializados. Na atenção básica em saúde, as respostas assistenciais precisam ser mais complexas, incorporando a família, a vizinhança e os atores sociais do território. A fala do participante 10, acima mencionada, ilustra a ainda incipiente articulação entre os profissionais de saúde mental com as equipes da atenção básica.

ANALISADOR “DEMANDA”

No excerto a seguir destaca-se um debate sobre o “atropelo” por excesso de demanda que emerge em um dos grupos focais. Os participantes discutem que os encaminhamentos para o Programa Bem Viver são realizados de forma unilateral, quase sempre com pouca ou nenhuma discussão e corresponsabilização a respeito dos casos. Apontam que as demandas são encaminhadas por diferentes setores e instituições, a maior parte pelas equipes de UBS, escolas e unidades do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), além de órgãos judiciais como o Ministério Público e a Comarca Regional. O mote da discussão é o atendimento individual enquanto ação mais demandada à/ao psicóloga/o, tanto pela população atendida, quanto pelos demais serviços da rede intersetorial local:

A gente é realmente atropelada por essa demanda. A gente pega também nesse gancho do social, não tem como se desvencilhar disso, até mesmo por esse contato com as agentes, esse contato com a UBS. Se a gente pertence, a gente faz todo o trabalho (Participante 2).

Aí eu tenho os grupos, porque nos grupos eu abarco uma demanda que estaria na minha fila. Não que eu não tenha fila, tenho uma fila de espera também (Participante 5).

[...] tem municípios que a gente tem uma dificuldade enorme de ficar fazendo grupo. Porque a pessoa já vem demandando o atendimento individual, dizendo que “pra mim é o que serve”. Então a gente tem que lutar pra mudar isso também, e é difícil (Participante 3).

Eu não consegui restringir demandas, mas, com o passar do tempo, realmente, você não dá conta. Eles mandam caso, mandam demanda, e a gente não dá conta (Participante 11).

Na atuação da/o psicóloga/o na UBS, a magnitude das demandas acarreta uma sobrecarga de trabalho às/aos profissionais ao tentarem responder recorrendo unicamente à oferta de psicoterapia. Ou seja, seria relevante ampliar a oferta de ações e redimensionar as práticas, caso contrário, o excesso de demandas não atendidas pode se tornar um obstáculo para a resolutividade dos cuidados em saúde mental (Dimenstein, 1998).

Além da ênfase no atendimento clínico individual, as/os entrevistadas/os pontuam que outros fatores contribuem para o excesso de demandas não atendidas: (a) o isolamento da/o psicóloga/o do conjunto do processo de trabalho na atenção básica; (b) a desvalorização das ações generalistas de cuidado em saúde praticadas pela atenção básica; e (c) uma cultura assistencial hegemônica, historicamente constituída, para a qual o único tipo de cuidado resolutivo é o atendimento individual.

Os relatos giram em torno da desmotivação, do desgaste profissional e do sentimento de impotência frente ao que é entendido como baixa resolutividade, gerando movimentos de restrição da clientela a ser acolhida: “como eu vou direcionando, eu vou descobrindo. Eu acabei descobrindo um pouco dessa demanda. É difícil dar conta de tudo. A demanda é muito grande, então eu não abri as portas pra clientela infantil” (Participante 8); “no meu caso, eu procuro não atender à demanda escolar, tem uma demanda escolar muito grande com a questão de aprendizagem, uma fila de espera grande com essas questões” (Participante 3).

Nota-se nas falas justamente as limitações do trabalho isolado da/o profissional psicóloga/o, respondendo às demandas com atendimento individual. A atenção básica recebe demandas de diversos setores, o que requer um leque de ações que convoca ao interdisciplinar e intersetorial. As dificuldades em sua concretização levam a uma delimitação mais estrita dos espaços de atuação, ao acúmulo de demandas não atendidas, à restrição de acesso e ao adoecimento dos profissionais.

É difícil, muito difícil. Porque a gente sempre faz reunião, explicando as prioridades do Programa Bem Viver, explicando como tem que funcionar, como tem que funcionar os encaminhamentos e a gente não tem sucesso assim. Sempre chegam os mesmos encaminhamentos, de forma confusa. Encaminhando coisa que, na verdade... Não tem nada que indique que a pessoa tenha um transtorno psiquiátrico, alguma coisa associada e... É difícil. Eu tenho uma dificuldade muito grande com isso (Participante 4).

A gente começou a fazer um trabalho com o município, de orientar como o Programa Bem Viver funciona, devido à grande demanda. Então a gente pede que vá pelo posto [UBS]. A gente orientou a equipe, no geral, mostrando quais são os casos mais graves. Álcool e outras drogas em primeiro lugar da lista, psicose, para poder fazer uma avaliação e o médico encaminhar para a gente. Para essa demanda também não ficar tão solta devido a tantas urgências que vêm pra gente atender (Participante 1).

Os participantes acima delimitam a oferta de ações do programa para uma demanda específica: “transtornos psiquiátricos”, ou seja, sofrimento mental com diagnóstico psiquiátrico, e casos entendidos como “graves”. Levando em consideração essas falas, o programa Bem Viver se apresentaria como um serviço especializado de saúde mental, de atenção ambulatorial mais tradicional. A delimitação indicada afasta o serviço das ações mais típicas da atenção básica em saúde, ou seja, de ser porta de entrada do SUS, na qual não deveria haver delimitação de demandas a priori, mas sim priorização com base no princípio de equidade, ou seja, de se acolher mais prontamente pessoas em situação de maior risco e vulnerabilidade.

Conforme as/os participantes dos grupos focais foram estabelecidos acordos que indicam que os encaminhamentos ao Programa Bem Viver têm que ser efetuados a partir da consulta médica, reforçando a hierarquização entre as profissões de saúde.

Rodrigues e Souza (1991) discutem que, ao ser convocada para atuar no campo social, a psicologia passa a questionar sua própria divisão de trabalho e busca não se deter aos limites psi instituídos. Essas tensões da prática profissional da/o psicóloga/o indicam a necessidade de incorporar questões sociopolíticas às ações de cuidado, tanto nas intervenções mais tradicionalmente “clínicas” quanto psicossociais. Entretanto, as autoras ressaltam que a desprofissionalização evoca a análise das implicações das/os psicólogas/os como profissionais e desestabiliza certos lugares de poder corporativos instituídos, questionando, na prática, seu papel de expert, no caso, em saúde mental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na interação com as/os psicólogas/os que atuam no Programa Bem Viver, através dos grupos focais e no momento da devolutiva, foi possível constituir um espaço de escuta e de problematização da identidade dessa atuação, das suas funções no Programa, da maneira de conceber o trabalho e das práticas que foram constituídas no decorrer do processo de institucionalização. Os dispositivos criados propiciaram avançar na compreensão da relação entre saúde mental e atenção básica neste contexto, e algumas particularidades das políticas de saúde mental em municípios de pequeno porte.

Não é preconizada a implantação de CAPS, como serviços de acolhimento das crises em saúde mental, em municípios com até 20 mil habitantes, a não ser como parte de um território de abrangência regional. Assim, o dispositivo recomendado pelo Ministério da Saúde como organizador da RAPS não atende as condições prévias para sua implantação na imensa maioria dos municípios brasileiros, considerando que 70% deles possuem uma população de menos de 20 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2011). No estado de Minas Gerais, onde foi realizada a presente pesquisa, esse índice sobe para 79% (Jesus, 2013).

A busca da viabilidade operacional com base na lógica regionalizada de atendimento, com um CAPS que cobre uma microrregião com múltiplos municípios, muitas vezes com realidades socioeconômicas, históricas e culturais específicas, pode comprometer práticas comunitárias pensadas no âmbito do território do usuário e sua família (Boing, 2009). Para organizar a rede buscando, por um lado, dar conta de um modelo de atenção territorial e, por outro, evitar encaminhamentos para internação de casos estáveis, são constituídos programas de saúde mental como o Programa Bem Viver. Na sua implantação, o Programa Bem Viver apresentou-se como um dispositivo instituinte, na direção dos princípios da reforma psiquiátrica, como mais um ponto da rede visando à desinstitucionalização dos usuários da saúde mental, ofertando tratamento nas comunidades onde vivem. Contudo, a criação de ambulatórios de saúde mental aumenta o risco de cronificação em um circuito de saúde mental à parte da rede.

Desde a fundação do Programa Bem Viver, as políticas de saúde, em geral, e de saúde mental, mais especificamente, convergiram para uma busca do fortalecimento da atenção básica. A interlocução entre saúde mental e atenção básica colocou-se, crescentemente, como pauta na formulação das políticas de saúde, porém, por muitos anos, a interface se daria concretamente somente através dos serviços substitutivos de saúde mental. Em 2008, 15 anos após a implantação da ESF, o MS instituiu o NASF e, a partir daí, a psicologia e outras especialidades se tornam oficialmente profissões reconhecidas na atenção básica (Jimenez, 2011). No processo de construção dos dados de pesquisa, foi possível observar movimentos ambíguos. O analisador “Espaço” revela que há profissionais que se posicionam na defesa do lugar “diferenciado” e conquistado pelo Programa Bem Viver como a referência em saúde mental dos municípios, notando-se certa tendência de consolidação enquanto ambulatório, com a centralidade no atendimento clínico individual. Porém, em outros momentos, as/os profissionais colocam em questão a segregação das ações de saúde mental nos municípios, o escasso diálogo com as ESF e a sobrecarga de ações clínicas.

É importante, neste sentido, que se busque a sustentação de novos modos de cuidado que não se cristalizem em um tipo único de atividade, ao mesmo tempo em que é preciso trabalhar a corresponsabilização de toda a equipe pela saúde mental. Esses apontamentos não pretendem menosprezar o lugar do atendimento clínico individual – trata-se de uma intervenção possível e, eventualmente, necessária. No entanto, restringir a atuação da/o psicóloga/o na atenção básica a este setting gera o risco de distanciamento das diretrizes de sua atuação no SUS e de cronificação dos usuários, de produção de uma “clientela cativa”. A diversidade de demandas exige a ampliação do escopo de ações no trabalho que se realiza (Alvarenga et al., 2004).

A partir do analisador “Especialismo”, percebe-se que as práticas relatadas pelos participantes são ainda incipientes quanto ao trabalho interdisciplinar. A atuação na atenção básica tem o potencial de ampliar as possibilidades de ações dos psicólogos, com estratégias que podem mitigar a lógica da especialização e do isolamento de procedimentos, que fragmentam o cuidado e dificultam a oferta da atenção integral. As práticas de matriciamento e de cuidados colaborativos, por exemplo: convocam os profissionais para o apoio técnico/institucional, construindo resolutividades de forma coletiva para os casos. Outro aspecto importante é o trabalho de promoção e de prevenção em saúde que deve ser realizado pelos profissionais da atenção básica, incluindo os psicólogos que, nesse sentido, podem ser agentes de práticas transformadoras, centradas no território e no estímulo aos recursos comunitários.

O analisador “Demanda” possibilita apontar que, quando as práticas psicológicas ficam restritas apenas às respostas emergenciais e aos encaminhamentos para acompanhamento individual, provocam filas de espera para atendimento, sobrecarga e adoecimento dos psicólogos e a não corresponsabilização de mais atores nos casos de saúde mental. A imensa variabilidade das demandas revela paradoxos e desestabiliza o lugar de especialista dos psicólogos que atuam em municípios pequenos. Os atravessamentos sociais da saúde presentes nessas demandas que chegam ao SUS causam certo desconforto nos psicólogos, imbuídos de sentimentos de impotência. No entanto, essa mesma diversidade de demandas também pode se constituir como um elemento que motiva práticas inovadoras.

É preciso fortalecer o lugar da/o psicóloga/o como um agente em dispositivos de transformação que busca apoio nos princípios norteadores do SUS, o que significa eventualmente ter que buscar brechas na inflexibilidade da lógica biomédica que instrumentaliza grande parte das instituições sanitárias. Essa atuação implica mais do que se apropriar de certas competências técnicas: é preciso um posicionamento político que demarque a necessidade de redução das desigualdades e de justiça social, ao mesmo tempo em que se busca minimizar a situação de sofrimento em que se encontram as pessoas acolhidas. Para essa atuação política e humanizada, é necessário estar atento aos movimentos de constituição, reprodução e invenção na saúde (Alvarenga et al., 2004). Trabalhar na atenção básica em saúde é lidar com a necessidade do inventivo, de romper com certos lugares-comuns e de experimentar ou perceber possibilidades de politização da saúde, visando propiciar construções coletivas na direção da autonomia de indivíduos e coletivos.

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1 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Recebido: 15 de Agosto de 2019; Revisado: 17 de Agosto de 2020; Aceito: 05 de Setembro de 2022

Correspondência: Onézimo Tadeu D’Assunção. tadeu.assuncao@gmail.com

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