INTRODUÇÃO
Atualmente, um dos principais problemas de saúde pública, a nível mundial, é o suicídio, responsável por cerca de 80.000 mortes no mundo. Embora subnotificado, no Brasil, no ano de 2016, houve 13.467 registros de mortes por suicídio (World Health Organization [WHO], 2019), sendo a Região Sul e Centro-oeste do país as que mais registraram esse tipo de morte. No que diz respeito, especificamente, à Região Sul do país, o Rio Grande do Sul (RS) está no topo, registrando altos índices de suicídio, principalmente entre os homens que conseguem consumar o ato suicida (Botega, 2015).
Embora os homens sejam as principais vítimas do suicídio, por se utilizarem de meios mais letais, são as mulheres que possuem o maior número de ideação e tentativas de suicídio (Baggio, Palazzo, & Aerts, 2009; Botega, 2015). O desejo, a busca ou qualquer outra ação proposital que cause lesão em si mesmo é entendida como comportamento suicida, podendo ser classificado quanto ao nível de complexidade e gravidade, em ideação suicida, tentativa de suicídio e o suicídio consumado (Moreira & Bastos, 2015; Schlosser, Rosa, & More, 2014).
O comportamento suicida engloba os pensamentos (ideação suicida), os planos e as tentativas de suicídio (Botega, 2015). No que diz respeito aos pensamentos, a ideação suicida envolve desde pensamentos passageiros acerca da desvalorização da vida, como a preocupação sobre os motivos para manter-se vivo ou morrer (Araújo, Vieira, & Coutinho, 2010; Botega, 2015). O termo suicídio refere-se ao ato executado pelo próprio indivíduo, de forma consciente, intencional e ambivalente, cuja intenção é a morte (Associação Brasileira de Psiquiatria [ABP], 2014; Botega, 2015). O risco maior de morte requer a avaliação da ideação, dos planos e das tentativas, sendo que a ideação, ou seja, os pensamentos acerca da própria morte, já indica risco de suicídio (Botega, 2015).
Embora o suicídio seja considerado um fenômeno que envolve fatores ambientais, sociais e individuais (Abasse, Oliveira, Silva, & Souza, 2009; Neves, Meleiro, Gomes, Silva, & Corrêa, 2014), o fato de um indivíduo ter pensamentos sobre a morte já é considerado fator de risco para suicídio (Botega, 2015).
Entre os jovens, no Brasil, o número de mortes por suicídio tem crescido significativamente (Dutra, 2012; Machado & Santos, 2015; Jaen-Varas et al., 2019), sendo a terceira maior causa de morte entre crianças e adolescentes estando atrás somente dos acidentes de trânsito e homicídios (Kuczynski, 2014). A taxa de suicídio em adolescentes aumentou 13% entre 2006 e 2015 (Jaen-Varas et al., 2019), sendo responsável por 3,7% das mortes de jovens com idade entre 15 e 29, além disso, entre 2002 e 2012 o aumento da taxa de suicídio foi de 33,6% (Ferreira Junior, 2015).
Especificamente no Rio Grande do Sul, apresentam-se os maiores coeficientes de suicídio quando comparado com outros estados brasileiros (Schmitt, Lang, Quevedo, & Colombo, 2008), destacando um aumento nos adultos jovens (Fraga, Massuquetti, & Godoy, 2017; Meneghel, Victora, Faria, Carvalho, & Falk, 2004). Em 2016, as mortes por suicídios registrados no RS foram de 1.166, sendo que esse número representa uma taxa de 11 por 100.000 habitantes. Quando comparados por sexo, há entre os homens uma taxa de 17,8% e, para as mulheres, 4,5%, sendo a faixa etária de 15 a 19 anos mais prevalente quando comparado a outras idades (Centro Estadual de Vigilância em Saúde [CEVS], 2018).
O aumento da estatística de jovens por suicídio pode ser compreendido em função de algumas características peculiares desta etapa do ciclo vital. A adolescência é entendida como um processo psicológico e social importante do desenvolvimento humano no qual ocorrem mudanças biológicas, emocionais e sociais (Campagna & Souza, 2006; Santrock, 2014) diferenciando-se de acordo com o contexto histórico, social e cultural no qual o adolescente se desenvolve (Martins, Trindade, & Almeida, 2003). Desta forma, pode ser caracterizada como um fenômeno social e de construção social, pois é percebida de diferentes formas ao longo da história e por culturas e sociedades distintas (Bock, 2007). Atualmente, a adolescência passou a ser entendida por adquirir sentido em si mesma, sendo um estágio de um ciclo e não somente por ser uma preparação para a vida adulta (Schoen-Ferreira, Azner-Farias, & Silvares, 2010). É considerado adolescente aqueles com idade entre 12 e 18 anos (Brasil, 1990).
Nessa etapa do desenvolvimento ocorrem muitas mudanças e, no processo de adaptação, os adolescentes podem enfrentar dificuldades que causam sintomas psicológicos, podendo ser passageiras ou estáveis (Batista, & Oliveira, 2005). Alguns adolescentes vivenciam muitos conflitos e frustrações e pensam como saída tirar a própria vida, sendo vista como uma forma de alívio do sofrimento (Barbosa, Parente, Bezerra, & Maranhão, 2016). A solidão, ausência dos pais, influência dos amigos, o uso de álcool e drogas, desigualdade social e desemprego também contribuem diretamente para a idealização do suicídio (Ulbrich, Oselame, Oliveira, & Neves, 2017; Jaen-Varas et al., 2019).
Percebe-se, também, que tentativas de suicídio na adolescência são mais prevalentes, principalmente quando associados a transtornos psiquiátricos clínicos ou transtornos de personalidade (Bittencourt, França, & Goldim, 2015; Braga & Dell’Aglio, 2013). Um estudo de revisão sistemática pontuou que os transtornos mentais mais prevalentes entre crianças e adolescentes foram: transtorno depressivo, transtornos de ansiedade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, transtorno por uso de substâncias e transtorno de conduta (Thiengo, Cavalcante, & Lovisi, 2014). Sintomas depressivos e desesperança são fatores considerados de risco para que haja uma ideação suicida e, consequentemente, a morte consumada (Borges & Werlang, 2006a). Além disso, a ideação suicida é um sintoma que faz parte do quadro clínico do transtorno depressivo maior e, na adolescência, se apresenta como comportamentos típicos dessa fase, sendo que a sintomatologia pode se apresentar por meio de instabilidade e irritabilidade (Bahls, 2002).
Nesse sentido, a literatura destaca que é mais comum que ocorra um suicídio quando está associado a um transtorno depressivo maior, dependência de substâncias psicoativas e transtorno bipolar (Botega, 2014). Nos casos de um quadro clínico presente, a identificação precoce se torna muito importante, pois pode reduzir a possibilidade da consumação de um suicídio (Freitas, Prado, Mathias, Greschuck, & Dequech Neto, 2013). Além de aspectos desenvolvimentais e transtornos mentais, os indicadores de risco estão mais presentes quando há histórico de tentativa prévia de suicídio, além da presença de alcoolismo (Botega, Werlang, Cais, & Macedo, 2006).
Partindo da complexidade de fatores que estão envolvidos no comportamento suicida e considerando que a adolescência é um período de inúmeras mudanças que podem impactar no desenvolvimento, o presente estudo teve como objetivo investigar a presença de ideação suicida em adolescentes de escolas públicas e privadas. Além disso, levantou-se o perfil sociodemográfico da amostra e verificou-se se havia diferenças na ideação suicida por sexo, faixas etárias, tipo de escola (pública e privada) entre os que faziam ou fizeram psicoterapia, entre os que possuem e não possuem problemas de saúde e também, entre os que fazem ou não o uso de psicofármacos. As hipóteses que guiaram tal estudo foram: (a) haverá baixa presença de ideação suicida entre adolescentes; a ideação suicida estará presente, em sua maioria, no (a) sexo feminino, (b) em estudantes mais novos, (c) de escolas privadas (d) entre aqueles que não fazem ou nunca fizeram psicoterapia, (e) entre aqueles que não possuem problemas de saúde e (f) entre aqueles que não fazem uso de psicofármacos.
MÉTODO
DELINEAMENTO
Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo e transversal (Sampieri, Collado, & Lucio, 2013).
PARTICIPANTES
Por meio de amostragem não probabilística intencional, a partir da rede de contatos das pesquisadoras, participaram da pesquisa 117 adolescentes, 75 estudantes de escola pública e 42 de privada, com idades entre 13 e 17 anos que estavam frequentando o ensino fundamental ou ensino médio em quatro escolas de uma cidade localizada no norte do estado do Rio Grande do Sul.
INSTRUMENTOS
Foram utilizados os seguintes instrumentos:
Questionário sociodemográfico e de saúde: instrumento construído para o presente estudo, com o objetivo de mapear dados como sexo, idade, escolaridade, reprovações, se já realizou tratamento psiquiátrico ou psicológico e se tem algum problema de saúde.
Escala de Ideação Suicida de Beck (BSI) (Cunha, 2001): escala que detecta a presença de ideação suicida, mede a extensão da motivação e o planejamento de um comportamento suicida. Composta por 21 itens, sendo que os dois últimos itens não são incluídos no escore final, mas fornecem informações sobre o paciente a respeito de tentativas de suicídio e intenção de morrer. Os cinco primeiros itens da BSI são usados como triagem da ideação suicida. Dessa forma, se o examinando marcar a resposta 0 ao grupo de informações número 4 (indicando ausência de intenção suicida ativa) ou número 5 (indicando evitação de morte, se confrontado com uma situação ameaçadora para a vida), ele passará imediatamente ao item 20 (deixando de dar respostas aos itens seguintes). Caso ocorra qualquer resposta diferente de 0, o examinando fará suas escolhas referentes aos grupos de afirmações dos itens 6 a 19. O item 21 é respondido somente por indivíduos com história de alguma tentativa prévia de suicídio (Cunha, 2001).
Quanto à interpretação, a BSI aponta duas situações: 1) presença ou não de ideação suicida e 2) a intensidade com que cada indivíduo deseja e tem razões para morrer (intenção, planejamento detalhado e método, preparação para a execução do suicídio e o grau que admite isso). O instrumento não tem ponto de corte específico, no entanto, a presença de qualquer escore diferente de 0, em qualquer item, denota a existência de ideação suicida e mostra a necessidade de melhor investigação clínica. Quanto mais o indivíduo admite suas intenções, ou seja, quanto maior seja o escore na BSI, maior será o risco de suicídio (Cunha, 2001).
A estimativa de fidedignidade da escala, em um estudo com 647 adolescentes, alunos do ensino fundamental e médio de escolas públicas e privadas de Porto Alegre (RS) baseada no coeficiente alfa de Cronbach foi de 0,94. No estudo, não houve ponto de corte, considerou-se presença de ideação suicida em escores diferentes de 0 e ausência de ideação em escore 0 (Werlang, Borges, & Fensterseifer, 2004).
PROCEDIMENTOS E PROCEDIMENTOS ÉTICOS
Este estudo faz parte de um projeto de pesquisa denominado “Vítimas de bullying, sintomas depressivos, ansiedade, estresse e ideação suicida em adolescentes”, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da IMED sob número CAAE 77923817.1.0000.5319.
A coleta de dados ocorreu por meio da organização da agenda da coordenação de cada escola. No primeiro momento, a pesquisadora entrou nas turmas e fez o convite para os adolescentes participarem da pesquisa. Foram esclarecidos aos participantes a natureza e os propósitos do estudo, bem como a responsabilidade do pesquisador quanto ao sigilo da identidade do participante, podendo ser quebrado, conforme Código de Ética Profissional do psicólogo e comunicado aos responsáveis ou escola, informações estritamente essenciais para se promover medidas em seu benefício. Foram entregues e lidos com os adolescentes o Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e o Termo de anuência livre e esclarecida (TALE). Os termos estavam de acordo com a Resolução 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
Posteriormente, foi combinada uma data para a aplicação dos instrumentos. A coleta ocorreu na sala de aula, de forma coletiva, somente com os alunos que trouxeram os termos assinados. Primeiramente, os participantes responderam ao questionário sociodemográfico e de saúde e, posteriormente, a BSI.
Após a coleta e a análise dos dados, a pesquisadora realizou a devolução dos dados para a coordenadora pedagógica e psicóloga escolar (nas instituições que tinham esse profissional) de cada escola, indicando os alunos que apresentavam ideação suicida. Na oportunidade, foi disponibilizado encaminhamento para a clínica-escola do curso de psicologia da instituição do qual o estudo faz parte.
PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DE DADOS
Os dados foram analisados quantitativamente, por meio do programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0. A fim de verificar a normalidade das variáveis investigadas foram considerados os valores de p > 0,05 para o teste de Kolmogorov-Smirnov (Dancey & Reidy, 2006). Como a distribuição das variáveis não atendeu aos pressupostos de normalidade, foram utilizados testes não paramétricos.
A análise descritiva e inferencial dos escores foi efetuada por meio dos postos médios dos instrumentos e teste U de Mann-Whitney com o intuito de verificar se havia diferenças na ideação suicida por sexo, escolas, uso de psicofármacos, tratamento psicoterápico. Com o intuito de verificar diferenças na ideação suicida por idades, o teste de Kruskal-Wallis foi realizado. O teste de tamanho de efeito também foi executado, considerando os seguintes parâmetros: tamanho de efeito nulo ou irrisório (valor 0,00–0,10), fraco (valor 0,11–0,25), moderado (valor 0,30–0,49), forte (0,50) (Cohen, 1988) nos resultados estatisticamente significativos, considerando p < 0,05.
RESULTADOS
A maior parte das(o)s participantes era; do sexo feminino (71%, n = 83), de cor branca (67%, n = 79), solteiros (99%, n = 116), moravam com os pais (73%, n = 85) e cuja família tinha como renda mensal o valor de R$ 1.448,01 a R$ 2.172,00 (26%, n = 31). A maioria dos adolescentes estava cursando o 9º ano do ensino fundamental (42%, n = 49), e estudava em escola pública (64,1%, n = 75), conforme a Tabela.
Variável | n | % | |
---|---|---|---|
Gênero | Feminino | 83 | 71,0 |
Masculino | 34 | 29,0 | |
Cor | Branca | 79 | 67,5 |
Parda | 33 | 28,2 | |
Negra | 5 | 4,3 | |
Estado civil | Solteiro | 116 | 99,1 |
Casado/União estável | 1 | 0,1 | |
Renda familiar | Entre R$ 0 e R$ 1.448,00 | 22 | 18,8 |
Entre R$ 1.448,01 e R$ 2.172,00 | 31 | 26,5 | |
Entre R$ 2.172,01 e R$ 4.344,00 | 28 | 24,0 | |
Entre R$ 4.344,01 e R$ 7.240,00 | 20 | 17,1 | |
Entre R$ 7.240,01 e R$ 10.860,00 | 12 | 10,3 | |
Acima de R$ 10.860,00 | 4 | 3,3 | |
Tipo de escola | Particular | 42 | 35,9 |
Pública | 75 | 64,1 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2020).
A média de idade dos participantes foi de 15,14 anos (DP = 1,06). No que tange à realização de tratamento de saúde mental, a maioria dos adolescentes não realizava tratamento psicológico (66%, n = 77) e tratamento psiquiátrico (92%, n = 108). Quanto ao uso de medicação psiquiátrica, a maior parte dos adolescentes nunca utilizou (85%, n = 85), seguida dos que já fizeram uso anteriormente (19%, n = 22) e dos que tomam psicofármacos atualmente (8%, n = 9). A categoria de medicação mais utilizada foi o antidepressivo (6%, n = 7), seguido de ansiolítico (3%, n = 4). Em relação a problemas de saúde, 85% (n=100) dos adolescentes relataram não ter algum problema de saúde. Dos que apresentavam, asma/problema respiratório (8%, n = 9), rinite alérgica (2%, n = 2) e problema de tireoide (2%, n = 2) foram os mais prevalentes.
Quanto ao BSI, os resultados mostraram que 57 adolescentes (48,71%) apresentaram ideação suicida. A média foi de 1,75 (DP = 2,34), sendo que se considera a presença de ideação quando há um escore diferente de zero, que pode variar de 1 a 9. Com o intuito de avaliar a gravidade na ideação suicida, foram somados os escores das afirmativas 1 a 19. A variação nos escores variou de 3 a 28, sendo a média 12 (DP = 6,64).
Com o intuito de comparar a ideação suicida por faixas etárias, o teste Kruskal-Wallis foi realizado e apontou que não houve diferença significativa entre diferentes idades (X2 = 4,885, p = 0,09). Também, foi verificado se havia diferenças estatisticamente significativas no BSI por sexo, tipo de escola (pública ou privada). O teste U de Mann-Whitney indicou haver diferença, sendo que as meninas apresentaram maior escore de ideação suicida quando comparadas aos meninos (U = 1030,000; p = 0,026), com fraco tamanho de efeito (d = 0,21). Não foi encontrada diferença estatisticamente significativa, na ideação suicida, entre adolescentes de escolas públicas e privadas (U = 1343,500, p = 0,23).
Além disso, houve diferenças estatisticamente significativas entre adolescentes que faziam e que não realizavam tratamento psiquiátrico tendo os primeiros, maior ideação quando comparados com os adolescentes que não realizavam (U = 204,500, p = 0,002), com moderado tamanho de efeito (d = 0,28). Adolescentes que fazem tratamento psicológico também possuem maior ideação suicida quando comparados com os que não realizavam (U = 302,00; p < 0,001). O tamanho do efeito da diferença foi moderado (d=0,35). Ainda, os adolescentes que possuíam algum problema de saúde tiveram maior ideação suicida quando comparados aos que não tinham nenhum problema de saúde (U = 1545,000; p = 0,003) com tamanho de efeito moderado (d = 0,27).
Por fim, U de Mann-Whitney foi utilizado com o intuito de verificar se havia diferenças, na ideação suicida, entre adolescentes que faziam ou já fizeram uso de medicação psiquiátrica e entre aqueles que nunca utilizaram. O resultado do teste indicou que há maior escore na ideação suicida em adolescentes que usam ou já fizeram uso de medicação (U = 7070,000; p = 0,0016) com tamanho de efeito moderado (d = 0,28).
DISCUSSÃO
Com relação à pontuação de ideação suicida, os resultados apontaram que 48,71% dos participantes apresentaram ideação suicida. Faz-se importante estudar sobre a ideação suicida, já que ela se torna um preditor de risco para que haja o ato consumado (Werlang, Borges, & Fensterseifer, 2005). Cabe destacar que o estudo foi realizado em uma cidade do Rio Grande do Sul, um estado onde há altos índices de suicídio, quase duas vezes maior do que a brasileira, o que representa uma média de três mortes a cada dia (Centro Estadual de Vigilância em Saúde, 2018). Além disso, a ideação suicida é maior em pessoas do sexo feminino e, no presente estudo, houve maior participação das meninas.
A maior participação de meninas neste estudo corrobora outras pesquisas semelhantes realizadas na cidade de Porto Alegre (Borges, & Werlang, 2006a), em Portugal (Nunes & Mota, 2017) e na Polônia (Zygo, Pawlowska, Potembska, Dreher, & Kapka-Skrzypczak, 2019). Ainda, em uma investigação sobre fatores de risco e de proteção em relação à ideação suicida em jovens também houve maior participação do sexo feminino (Brás, Jesus, & Carmo, 2016). No que diz respeito à ideação suicida, um importante fator de risco e foco do presente estudo, embora haja necessidade da maior participação masculina pois são os que mais cometem o suicídio, o sexo feminino possui importante participação. O alto índice de ideação suicida encontrado no presente estudo pode derivar, também, deste aspecto.
Pesquisas semelhantes, com a aplicação da BSI, e com maior participação feminina (de 56 a 57%) encontraram 36% de ideação suicida (destes, 67,6% eram do sexo feminino) em adolescentes entre 15 e 19 anos residentes em Porto Alegre (Borges & Werlang, 2006a) e 34,7% da amostra (destes, 69,6% eram meninas) entre 13 e 19 anos de Erechim e Porto Alegre (Borges, & Werlang, 2006, 13 e 19 anos). No estudo realizado na microrregião de São Carlos (SP), 40% dos participantes apresentaram ideação suicida (sendo estes, 75% do sexo feminino), avaliados por um Questionário Sociodemográfico e de Investigação de Ideação Suicida, sendo justificativas para ideação, as relações familiares, relações sociais e pensamentos negativos (Luca, Costa, & Souza, 2017).
Em outra pesquisa, realizada com estudantes de escolas públicas na Colômbia (também com maior prevalência de meninas) com o Questionário de Depressão Infantil (CDI) e o Inventário de Ideação Suicida Positiva e Negativa (PANSI), 30% dos participantes apresentaram ideação suicida, sendo considerada alta em 37% das meninas e em 20% dos meninos (Macías, Mendoza, & Camargo, 2017). Ademais, uma investigação na Polônia, com 70% da amostra constituída por meninas, mostrou que 24,66% dos adolescentes tinham ideação suicida, sendo utilizado um formulário elaborado pelos próprios autores para realização do estudo (Zygo et al., 2019).
Em relação a sexo e ideação suicida, o resultado desta pesquisa apontou haver diferença significativa, ou seja, as meninas apresentaram mais ideação suicida quando comparadas aos meninos. O achado também foi confirmado por Brás et al. (2016) que evidenciaram valores elevados no sexo feminino quando comparados ao masculino (t=3,8, p < 0,001). Neste mesmo sentido, Zygo et al. (2019) constataram que as meninas tiveram mais pensamentos suicidas do que os meninos (X2 = 97,86, p < 0,001), sendo que as tentativas de suicídio são influenciadas por sentimentos como: solidão, desamparo, culpa, rejeição, raiva e conflitos com colegas e pais.
Uma das justificativas para as meninas terem mais ideação suicida do que os meninos se deve ao fato de o sexo feminino apresentar mais sintomas depressivos (Baggio et al., 2009; Botega et al., 2009). Além disso, aspectos sociais e culturais podem influenciar no suicídio: as meninas recebem mais apoio social e afetivo, enquanto os meninos devem ser fortes e menos sentimentais (Braga & Dell’Aglio, 2013). As características epidemiológicas de indivíduos que tiveram tentativa de suicídio ou consumaram a tentativa mostram associação com o transtorno depressivo (Braga & Dell’Aglio, 2013). Nesse sentido, uma investigação sobre tentativa de suicídio no sexo feminino mostrou que o meio para tentativa de suicídio mais utilizado foi a ingestão de medicamentos e o transtorno depressivo foi a patologia mais encontrada entre os casos (Trevisan, Santos, & Oliveira, 2013).
Na comparação entre idade e ideação suicida, este estudo não encontrou uma diferença significativa. Embora este resultado esteja em consonância com outro estudo (Pérez-Amezcua et al., 2010), há pesquisas que indicam diferenças na ideação suicida, quando comparadas às idades dos indivíduos. Por exemplo, no estudo de Ribas, Mendonça, Sabino, Teixeira e Santos (2018), a faixa etária de 15 a 19 anos teve mais tentativa de suicídio por intoxicação exógena quando comparada com pessoas com 20 anos ou mais (p < 0,001), indicando que a adolescência é um período de risco para a ideação. No Brasil, as taxas de mortalidade por suicídio se mostram em diferentes faixas etárias, algumas com índices maiores ou menores, contudo, independentemente da faixa etária, pode haver risco de suicídio (Ribeiro & Moreira, 2018).
Em relação ao tipo de escola, não foi encontrada diferença significativa neste estudo, na ideação suicida entre adolescentes de escolas públicas e privadas. No estudo de Jatobá e Bastos (2007), em Recife com alunos entre 14 e 16 anos, houve diferença significativa, ou seja, os estudantes de escola privada tiveram mais ideação suicida quando comparados com os alunos da pública (p = 0,005). No entanto, na pesquisa de Dominguez et al. (2010), houve diferença comparando o tipo de escola, sendo a ideação suicida maior em estudantes de escola pública do que em escola privada (p < 0,001). Em um estudo qualitativo que buscou identificar os fatores de risco e de proteção relacionados à tristeza e ao suicídio, não houve diferenças relevantes entre adolescentes de classe social A (que estudavam em escola particular) e de classe D (de escola pública), contudo o sentimento de desproteção foi identificado como uma particularidade da classe mais alta, na qual destacou o quanto é importante o adolescente ter uma rede de apoio (composta por amigos, namorada/o e familiares) para manejar a tristeza (Benincasa, & Rezende, 2006).
Uma pesquisa que analisou as taxas de suicídio entre adolescentes de seis grandes cidades do Brasil e a relação entre taxas de suicídio de adolescentes e indicadores socioeconômicos entre 2006 e 2015 mostrou que houve correlação entre a desigualdade social com as taxas de suicídio entre adolescentes (p = 0,012). Também, indicadores econômicos como o desemprego são determinantes sociais relevantes do suicídio na adolescência (Jaen-Varas et al., 2019).
Embora o perfil dos estudantes de escolas públicas tenha indicado a reprodução das desigualdades sociais no país e, consequentemente, o enfraquecimento do acesso à bens de consumo e serviços de saúde (Fritsch, Vitelli, Rocha, & Fensterseifer, 2019), há diferentes instituições públicas com formas diferenciadas de funcionamento e diferentes perfis socioeconômicos, o que pode contribuir para a não diferença, na ideação suicida. Além disso, outros fatores podem ter maior contribuição na ideação do que o tipo de escola (pública ou privada).
Referente à ideação suicida e ao tratamento psiquiátrico, neste estudo houve diferenças estatisticamente significativas, isto é, os adolescentes que faziam tratamento psiquiátrico apresentam mais ideação suicida quando comparados com aqueles que não faziam. No estudo de Botti et al. (2018), com indivíduos com diagnóstico psiquiátrico que realizavam tratamento no Centro de Atenção Psicossocial em Divinópolis (MG), constatou-se que pacientes com comorbidades psiquiátricas tiveram mais tentativa de suicídio quando comparados aos que não tinham comorbidades (X2 = 24,7, p < 0,001). Outro estudo, realizado em unidades públicas de saúde na cidade de Fortaleza com pacientes que tiveram tentativa de suicídio, foi constatado que pessoas que fazem tratamento para problemas de saúde mental tentam mais o suicídio do que aqueles que não fazem o tratamento (p = 0,007) (Oliveira, Bezerra Filho, & Gonçalves-Feitosa, 2014). Este aspecto pode indicar que, de fato, os adolescentes estão realizando tratamento, pois estão em maior risco e, assim, buscam o tratamento adequado. No entanto, embora estejam em tratamento, ainda apresentam maior ideação suicida quando comparados aos que não estão em tratamento.
No que se refere a tratamento de saúde mental, neste estudo a maioria dos adolescentes não realizava tratamento psicológico e psiquiátrico. Em pesquisas semelhantes, 96,8% (Borges & Werlang, 2006a) e 96,2% dos jovens afirmaram não ter doença psicológica (Borges & Werlang, 2006b). Um dos principais fatores de risco para ideação suicida é a presença de transtorno mental (Botega et al. 2006; Schlichting & Moraes, 2018). Cabe ressaltar que 50% a 60% das pessoas que morrem por suicídio nunca buscaram um profissional de saúde mental, ou seja, indivíduos com ideação suicida podem ter sintomas e diagnóstico de alguma psicopatologia, no entanto não buscaram tratamento (ABP, 2014). Quanto ao uso de medicação psiquiátrica, nesse estudo, a maior parte dos adolescentes nunca utilizou. Os psicofármacos são indicados nos casos de ideação suicida, proporcionando controle dos sintomas e alívio de sofrimento psíquico (Cardoso & Galera, 2009).
No que diz respeito ao tratamento psicológico, neste estudo também houve diferença significativa. Os adolescentes que faziam tratamento psicológico possuíam maior ideação suicida do que os que não faziam. De acordo com Carlton e Deane (2000), os jovens procuram mais ajuda psicológica quando possuem pensamentos suicidas do que com qualquer outro problema pessoal ou emocional. Diante de casos de ideação suicida, se faz fundamental a psicoterapia para haver a diminuição do sofrimento psíquico do indivíduo e, consequentemente, diminuir os fatores de risco, além disso, os fatores de proteção poderão ser explorados (Fukumitsu, 2014). O fato de alguns adolescentes estarem fazendo uso de psicofármacos e realizarem tratamento psicológico nesta pesquisa indica a necessidade de tratamento. No entanto, é um fator preocupante que mesmo em acompanhamento ainda estejam apresentando ideação suicida. Por outro lado, sabe-se que há diferentes tipos de tratamentos psicoterápicos e psicofarmacológicos e que é necessário um tempo para que produzam efeitos. Estes aspectos não foram perguntados na presente pesquisa, portanto, não há como prever se os tratamentos não estão causando efeitos esperados ou se estão em fase inicial.
Além disso, os pacientes que têm histórico de internação psiquiátrica tentam mais o suicídio quando comparados àqueles que não foram internados (p = 0,001) (Oliveira et al., 2014). Em relação ao uso de medicação psiquiátrica, neste estudo houve maior escore na ideação suicida em adolescentes que usavam ou que já tinham feito uso quando comparados aos que nunca fizeram. Os resultados de Oliveira et al. (2014) mostraram que os pacientes que tomavam medicação psiquiátrica tinham mais tentativas do que os que não faziam uso (p = 0,001).
Entre os adolescentes participantes deste estudo, os que possuíam algum problema de saúde tinham ideação suicida maior do que aqueles que não possuíam. Indivíduos com doenças clínicas crônicas apresentam taxa de 52% a 88% de comorbidade com transtornos psiquiátricos e estão associados ao suicídio (ABP, 2014). De acordo com Goodwin (2011), as pessoas portadoras de doenças físicas apresentam taxas maiores de ideação suicida. Os primeiros meses após o diagnóstico de uma doença clínica, bem como quando os pacientes percebem que os sintomas não respondem ao tratamento, são período de risco para o suicídio (ABP, 2014).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados desta pesquisa mostraram que aproximadamente metade dos adolescentes apresentavam ideação suicida, um achado muito preocupante haja vista que a ideação suicida é um fator de risco para o suicídio. A ideação suicida foi mais prevalente em meninas, nos jovens que realizavam tratamento psiquiátrico e psicológico, que faziam uso de medicação psiquiátrica e que tinham algum problema de saúde. Porém, devido à maior participação de meninas no estudo, isso pode causar algum efeito nos resultados de maior prevalência nesse gênero.
Na maioria das vezes, os dados epidemiológicos não conseguem mostrar a totalidade dos acontecimentos, portanto, em muitos casos, não se tem conhecimento que a morte se deu por suicídio. Dessa forma, a presença de ideação suicida nesta amostra demonstra que o suicídio pode ainda ser um tabu, pois mesmo que grande parte da amostra possua ideação, não faz nenhum tipo de tratamento. Tais aspectos indicam a importância de trabalhar com a temática, tanto no âmbito escolar quanto familiar, além da relação escola/família. Acredita-se que identificar a ideação suicida de forma precoce e encaminhar para tratamento de saúde mental são as melhores formas de se diminuir a prevalência de suicídio nos jovens.
Como limitação deste estudo, destaca-se que as escalas utilizadas são de autorrelato, sendo assim, a expressão verdadeira do sentimento do adolescente pode ser dificultada. Além disso, também houve o fato de nem todos os adolescentes participarem do estudo, devido ao não consentimento dos pais. Sugere-se que estudos futuros sejam realizados a fim de investigar os fatores pelos quais as meninas vêm apresentando mais ideação suicida do que os meninos, bem como quais são os fatores que estão relacionados com a ideação.