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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.74  Rio de Janeiro  2022  Epub Sep 09, 2024

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp-2022v74.21084 

Artigo original

NEGOCIAÇÕES IDENTITÁRIAS: POROSIDADES E DINÂMICAS EM UMA GALERIA PRISIONAL LGBT

IDENTITY NEGOTIATIONS: POROSITIES AND DYNAMICS IN AN LGBT PRISON GALLERY

NEGOCIACIONES IDENTITARIAS: POROSIDADES Y DINÁMICAS EN UNA GALERÍA CARCELARIA LGBT

I Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Serviço de Atendimento e Pesquisa em Psicologia (SAPP). Porto Alegre, RS, Brasil.

II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Escola de Ciências da Saúde e da Vida, Curso de Psicologia. Porto Alegre, RS, Brasil.

III Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional. Porto Alegre, RS Brasil.

IV Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Programas de Pós-graduação em Psicologia e em Política Social e Serviço Social. Porto Alegre, RS, Brasil.


RESUMO

Neste artigo se apresentam experiências de gênero e sexualidade na Cadeia Pública de Porto Alegre. O estudo foi realizado a partir de observação participante em uma ala prisional criada especificamente para trans, travestis, homossexuais e seus companheiros e de entrevistas narrativas com uma pessoa detenta.Diante de um panorama político que coaduna diversas formas de exercício de poder, especialmente da instituição prisional e da militância, a parcela de tensionamento que aqui é foco de estudo é a dos agenciamentos e protagonismos que compõem a singularidade das vivências de gênero e sexualidade de pessoas em privação de liberdade na então definida Galeria LGBT. Utilizam-se pressupostos da Teoria Fundamentada como forma de sinalizar elementos das experiências identitárias, que foram analisados considerando perspectivas discursivas. As formas de experienciar questões de gênero e sexualidade na Galeria LGBT mostraram-se dinâmicas, acomodando-se ininterruptamente em exercícios de violência e liberdade.

Palavras-Chave: Cadeia; Travestis; Homossexualidade; Performatividade; Identidade

ABSTRACT

This article presents the experiences of gender and sexuality in the Public Jail of Porto Alegre, based on both participant observation in a prison wing created specifically for trans, transvestites, homosexuals and their couples, and narrative interviews with a person arrested there. In a political panorama that combines various forms of exercise of power, especially of the prison institution and of the militancy, the agencies and protagonists that make up the singularity of the experiences of gender and sexuality of people in deprivation of liberty in the named LGBT Gallery represent the area of tension that is the focus of study here. We use assumptions of Grounded Theory as a way of signalizing elements of identity experiences, which are analyzed considering discursive perspectives. The ways of experiencing issues of gender and sexuality in the LGBT Gallery seem to be dynamic, uninterruptedly accommodating in exercises of violence and freedom.

Key words: Prison; Transvestites; Homosexuality; Performativity; Identity

RESUMEN

Este artículo presenta las experiencias de género y sexualidad en la Cárcel Pública de Porto Alegre, a partir de la observación participante en un ala carcelaria creada específicamente para personas trans, travestis, homosexuales y sus parejas y, de entrevistas narrativas con una persona detenida en tal lugar. Ante un panorama político que combina diferentes formas de ejercicio del poder, en especial la institución carcelaria y la militancia, la porción de tensión que aquí es foco de estudio es la de agencias y protagonismos que configuran la singularidad de las experiencias de género de las personas. y sexualidad en la privación de libertad en la entonces denominada Galería LGBT. Los supuestos de la Teoría Fundamentada se utilizan como una forma de señalar elementos de las experiencias de identidad, que fueron analizados considerando perspectivas discursivas. Las formas de vivir los temas de género y sexualidad en la Galería LGBT resultaron ser dinámicas, asentándose ininterrumpidamente en ejercicios de violencia y libertad.

Palabras-clave: Cadena; Travestis; Homosexualidad; Performatividad; Identidad

INTRODUÇÃO

Em diferentes áreas das ciências humanas e em correntes teóricas da Psicologia, especificamente, estudiosas(os) têm se debruçado sobre um dos mais polissêmicos conceitos do campo das humanidades: identidade (Vera & Valenzuela, 2012). Apesar de seu acoplamento tardio à Psicologia nos anos de 1980 (Prado Filho & Martins, 2006), tal conceito tem se confrontado com uma diversidade de desafios teóricos desde o final do século XIX. A modificação de cenário epistêmico operada por forças políticas como os feminismos, a linguística e as vertentes filosóficas pós-estruturalistas fez com que muitas das estratégias teóricas vinculadas a leituras mais tradicionais na psicologia fossem amplamente modificadas (Sutherland, 2014). Na esteira dessas desestabilizações, surgem novas apropriações da noção de identidade na psicologia e suas interfaces. Um exemplo está no uso das categorias identitárias no campo das disputas políticas pelos movimentos sociais – que se valem de conceituações estratégicas com objetivos em geral contra-hegemônicos –, em um processo de resistência e criatividade.

Uma das manifestações emergentes que pretendem tensionar o campo de análises e práticas políticas envolvendo mecanismos identitários e que se compõem no panorama acadêmico e de militância está presente na noção de queer. O queer, enquanto campo de ação política (e operador acadêmico), tem possibilitado críticas a perspectivas identitárias nas ciências humanas (Butler, 2003; Preciado, 2014) e transversaliza a produção de conhecimento na discussão das limitações decorrentes de categorias estanques. Trata-se de um campo de produção de saberes que – particularmente nos âmbitos dos estudos de gênero e sexualidade – culmina com argumentos a favor de análises que proponham problematizações do “ser homem”, “ser mulher”, “masculino” e “feminino” (entendidos como pluralidades, como possibilidades e não como sentenças – focando, em especial, na problematização e desnaturalização da cisheteronormatividade, que se embasa no pressuposto da coerência entre sexo, gênero, desejo e no da diferença sexual como verdade da qual se depreende uma relação linear e inequívoca com uma dada identidade1.

O campo de produção de discursos (científico, moral, religioso) acerca de gênero e sexualidade se constituiu prolífico na produção de conceitos, categorias e teorias que tiveram como efeito certa ideia de “congruência” entre sexo, gênero e orientação sexual. “Tal naturalização [...] foi nomeada por autoras transfeministas como cisheteronormatividade, identificável em diferentes campos do conhecimento” (Mattos & Cidade, 2016, p. 135). A cisheteronormatividade, pois, se constitui como elemento subjetivante – de modo que as pessoas se entendem enquanto sujeitos nesse mecanismo normativo. A materialidade dos corpos e dos itinerários de vida, assim como as enunciações e os discursos cotidianos, nos mostra como a cisheternormatividade se atualiza, inscrevendo algumas vidas como possíveis (e dignas) de serem vividas.

Na esteira dessa discussão, Judith Butler, inspirada em autores(as) como Michel Foucault, defende que sexualidade e gênero são dimensões operadas a partir do que define como performatividade. Os atos performativos seriam expressões que, por serem constantemente repetidas e reiteradas, geram um efeito de substância (forma de racionalidade que significa a constituição dos sujeitos a partir de uma leitura “naturalista”). Esse efeito performativo diz respeito à capacidade de produzir aquilo que se nomeia, reiterando normas do que se entende por sexualidade e gênero (Butler, 2003).

Mais do que tomar as categorias elencadas como ponto de partida, interessa-nos, particularmente, analisar as condições de elaboração dessas composições, suas dinâmicas e os deslocamentos identitários que emergem no espaço prisional, particularmente – no caso de nossa pesquisa – em um âmbito institucional especificamente criado pelo deslocamento identitário, ou seja, a nomeada Galeria LGBT2 da Cadeia Pública de Porto Alegre (CPPA). Entendemos que, na operação política de deslocamento de uma objetivação normativa, as narrativas têm papel fundamental. Apostamos na atenção às narrativas, portanto, enquanto ficção sobre si e sobre os outros (Butler, 2003), capazes de produzir efeitos de desestabilização nas noções majoritárias de identidade.

CONTEXTO DA PESQUISA: CADEIA PÚBLICA DE PORTO ALEGRE

A CPPA tem sido um alvo importante no panorama da discussão carcerária no Brasil. A partir da criação do relatório de 2009, elaborado pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário (Congresso Nacional, 2009), que denominou a entidade como a pior do país, notaram-se diversos efeitos, tanto no que se refere a aspectos midiáticos quanto político-partidários no governo do estado. Naquela conjuntura, certa visibilidade das pessoas trans na CPPA se tornou possível. Como efeito das exposições midiáticas e da necessidade de mudanças da figura administrativa do presídio, diversos movimentos internos às diferentes galerias da CPPA (assédio, perseguições, abusos, violações) tornaram-se alvo de mecanismos fiscalizadores, em especial da organização não governamental – ONG Igualdade, fundada em 1999 em defesa dos direitos humanos de travestis e transexuais.

Como indicado em estudo realizado anteriormente (Baptista-Silva, Hamann, & Pizzinato, 2017), a Galeria 3ª do H3 é inaugurada nesse contexto, sendo direcionada, primeiramente, para a população de travestis e mulheres trans, posteriormente, abarcando gays e maridos, termo êmico utilizado para designar a companheiros afetivos e sexuais não identificados como gays ou homossexuais antes do relacionamento ser estabelecido no referido espaço. Implementada num período em que a CPPA necessitava desvincular sua imagem do ranking da pior cadeia brasileira, a galeria foi fruto de uma conjuntura política e um jogo de forças provenientes da CPPA e da ONG Igualdade. Esse acontecimento foi possibilitado, portanto, pela parceria estabelecida entre a CPPA, a Secretaria de Estado da Justiça e dos Direitos Humanos, a Superintendência dos Serviços Penitenciários e a Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul.

No período de sua implementação, o espaço foi intitulado como Galeria de Travestis, passando, depois de alterações de plantão (liderança local ocupada por uma pessoa detenta – que é integrante da galeria), à Galeria LGBT. Esta troca materializa uma série de outras modificações, intrinsecamente relacionadas à permanência da ONG Igualdade no espaço, mas também da necessidade de publicidade para a cadeia. A prerrogativa das travestis como sinônimo da galeria se altera para uma maior diversidade de pessoas contempladas no contexto, o que, para muitos(as) interlocutores(as) de pesquisa representam uma reviravolta em um panorama anterior de opressão (nas palavras de interlocutores da pesquisa) às pessoas não travestis. Este aspecto nos mostra uma tensão presente entre os diferentes sujeitos inscritos nesse contexto.

Ainda que a própria existência da galeria como um espaço de acolhida da diversidade sexual e de gênero na casa prisional tenha sido uma conquista articulada com protagonismo do coletivo travesti (liderado à época pela ONG Igualdade-RS e entendido, neste estudo, como coletivo justamente por posicionar politicamente a composição deste espaço), em dimensão micropolítica, acabou por gerar tensionamentos importantes que transcenderam o referido grupo. Identificou-se que, com o passar do tempo, houve uma importante legitimação política do coletivo travesti, como a alma mater da galeria. Entretanto, com o aumento da presença de pessoas com outros marcadores identitários, a mudança de demandas e os conflitos entre elas produziram uma alteração no panorama que passa a se materializar na figura da pessoa plantão, ou seja, a liderança reconhecida tanto pelo grupo da ala, quanto pela direção da cadeia. Pela primeira vez, durante nossa pesquisa, o plantão foi um homem cisgênero homossexual.

Se, no contexto da cadeia, a galeria pode ser intitulada de 3ª do H, de Galeria das Travestis, LGBT ou Galeria dos Putos – como era chamada, em especial, nos outros lugares do presídio que não na própria galeria –, vemos que o espaço se compunha de forma polissêmica. Ao mesmo tempo em que possibilitava segregação e controle, também engendrava formas de agenciamento e protagonismo. Entretanto, agenciamentos e protagonismos intrinsecamente marcados por estriamentos identitários que se manifestavam num movimento de produção de quem eram os(as) sujeitos(as) da Galeria 3ª do H.

A elaboração da pesquisa que embasa as análises do presente artigo se deu em um momento de maior abertura institucional do que o vivido no atual panorama governamental. Constituiu-se em um momento de relevo “geracional”, no qual as posições de liderança pela primeira vez, dentro da galeria, não eram ocupadas nem por uma das pessoas pioneiras na reivindicação e conquista daquele espaço, como pela primeira vez, não era ocupada por uma pessoa trans ou travesti. Alinhado a uma posição acadêmico-política, o objetivo deste recorte é compreender a singularidade das vivências de gênero e sexualidade na então definida Galeria LGBT (ou 3a do H) da Cadeia Central de Porto Alegre, guiando-nos pela experiência de uma das pessoas detentas no local. Dá-se ênfase, neste aspecto, justamente para as dimensões que tensionam as premissas normativas identitárias, possibilitando um trânsito trans pelo espaço prisional – que coaduna, estrategicamente, estriamentos identitários e afastamentos das normas.

MÉTODO

PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS

O estudo que dá origem ao presente texto tem por abordagem metodológica a Teoria Fundamentada (TF). Segundo Charmaz (2009), com base em Strauss e Corbin (2008), a TF permite a construção de (micro)teorias localizadas. A atividade de pesquisa sob essa perspectiva compõe seu rigor na descrição detalhada e reflexiva dos acontecimentos observados, na criação e ordenamento conceitual, de modo que se possa elaborar uma compreensão sintética de determinada conjuntura social. Para Charmaz (2009), a TF tem três movimentos gerais que, como prerrogativa, são elaborados concomitantemente. Um dos movimentos é o de descrição, no qual os aspectos cotidianos são ordenados, a fim de sistematizar as sensações, imagens, cenas e acontecimentos. Os elementos que se sobressaem para a(o) pesquisadora(o) são agrupados em ordenamentos conceituais, ou seja, uma organização destes de acordo com suas dimensões e características. Por fim se opera formas de teorização, por meio das quais se busca sistematizar as apreensões realizadas durante o trabalho de investigação.

A CPPA foi escolhida como local para estudo pois é a única organização no Rio Grande do Sul que possui um espaço institucional destinado às diferenças de gênero e sexualidade. As particularidades desse local exigiram tramitações específicas. Após as negociações com a direção da cadeia, o projeto de pesquisa foi apresentado para a pessoa responsável pelo plantão, como orientação da equipe de segurança do presídio. Essa é uma liderança escolhida pelas pessoas detentas e que tem sua autoridade na mediação com a gestão formal da casa prisional. Posteriormente à sua análise e aprovação, houve a apresentação para o grupo como um todo, na Galeria 3ª do H. Nesse momento, foi reiterada a informação sobre a participação ser voluntária em todo o processo do estudo, conforme havia sido explicado à pessoa do plantão. Após a negociação político-institucional na CPPA, a pesquisa que originou esse artigo também foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pelo juiz da Vara de Execução Penal (VEP). Todas as pessoas que participaram da pesquisa foram convidadas e acederam à participação formal na mesma, firmando o termo de assentimento, tal como previa a legislação da época.

A primeira autora deste estudo realizou entrevistas narrativas com oito detentas e detentos da galeria, além de seis encontros grupais. Para cada entrevista e encontro grupal, desenvolveu um diário de campo, material analisado, posteriormente, por todos os pesquisadores desta investigação. A centralidade de uma abordagem idiográfica/qualitativa das entrevistas teve como princípios: a centralidade da narrativa na organização do pensamento e das identificações sociais e a construção de significados sobre a realidade à medida que os eventos são costurados em histórias. Nesse processo, a entrevista em profundidade possui papel privilegiado, pois reitera contextualmente os elementos particulares de cada narrativa (Souza, Branco, & Oliveira, 2008). Buscou-se que os momentos de realização das entrevistas fossem espaços interativos, dialógicos, permeados de significados co-construídos, nos quais as posições de entrevistadora e entrevistados(as) estabelecem-se flexíveis.

Ainda que se tenha realizado entrevistas individuais e grupais, no presente artigo se enfatiza uma – pela singularidade da narrativa em relação ao problema de pesquisa proposto. Essa escolha não é fortuita e encontra, em alguns fragmentos das outras entrevistas e encontros grupais, elementos que a destacam ainda mais. Assim, mesmo que se utilize a entrevista com Sabiá4 como material central, na análise e discussão dos resultados, se incorporam aspectos das outras fontes de informação (como a observação etnográfica, a participação nos espaços coletivos e grupais e as menções à Sabiá em entrevistas com outras pessoas lá internadas), seguindo os pressupostos de perspectivas discursivas. Estas evidenciam que as diferentes composições dos enunciados e discursos que constituem uma narrativa não se encerram na mesma (Foucault, 2003).

Segundo Jovchelovitch e Bauer (2002), a entrevista narrativa é uma forma de entrevista em profundidade que exige que a entrevistadora tenha influência mínima na fala do ou da participante, de modo a não estabelecer obstáculos na história narrada. Planejar as questões gerativas ou tópicos iniciais que vão dar vazão à fala é um dos processos fundamentais da técnica (Jovchelovitch & Bauer, 2002). Para esta pesquisa, as questões formuladas – e que estiveram sujeitas a uma aproximação aos termos nativos ao longo das entrevistas – foram: “Como foi a tua trajetória aqui na galeria?”; “Como se dão os relacionamentos afetivos e/ou sexuais na Galeria 3ª do H?”. Não se estabeleceu um tempo específico de entrevista, como indicado em literatura especializada (Jovchelovitch & Bauer, 2002), entretanto a duração média foi de 50 minutos. As entrevistas geradas foram gravadas em áudio e transcritas integralmente para posterior análise. Todos os termos e expressões derivadas do próprio campo (êmicos) serão apresentados em itálico, de modo a facilitar a caracterização e análise.

A despeito do exercício de teorização sistemática a partir da vivência em campo, este estudo não pretende a dissociação com as discussões de campo discursivo. O uso concomitante de TF e de análises do campo discursivo é uma interface já consolidada em estudos atuais. Segundo Charlotte Burck (2005), podem-se explorar interfaces entre a TF, as análises discursivas e as análises de narrativas, compreendendo que permitem uma visão sistêmica e conjuntural.

PARTICIPANTE-CHAVE - SABIÁ

A escolha pela entrevista de Sabiá como foco de análise a ser aqui apresentada se deu apenas no final da experiência de campo da pesquisa e no contexto de análise de todo o corpus de entrevistas e relatos dos encontros grupais. Sua narrativa foi a que mais explicitamente apresentou os usos e efeitos de estratégias político-identitárias na Galeria 3ª do H. Além disso, do ponto de vista teórico-metodológico, Sabiá explicita de forma mais direta as transições políticas da galeria – de Travestis para LGBT, aspectos que serão explicitados a seguir – e seus desdobramentos nas estratégias de aproximação e afastamento normativas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A complexa rede de possibilidades que se delineiam na galeria não se dá deslocada de um conjunto discursivo que se circunscreve em questões de moralidade, periculosidade, delinquência, pela materialização de corpos marcados pelo que se considera abjeto, marginal, violento, e também por outras redes de afeto, compromisso e transformação. São processos que se tornam visíveis no cotidiano, espaço e tempo que envolvem as capacidades intelectuais e manipulativas, os sentimentos, as paixões e as motivações das pessoas (Heller, 1972/2000). Neste sentido, olhando para as particularidades e heterogeneidades da Galeria 3ª do H, vemos que é possível elaborar compreensões diante da polissemia e pluralidade de posições vinculadas a esse contexto hiperidentitário, especialmente no que diz respeito às transições políticas enquanto desdobramentos nas estratégias de aproximação e afastamento normativas no próprio processo de construção de si da pessoa foco de análise deste estudo. Assim como foi organizada a construção do corpus de informações, os resultados também são apresentados seguindo a narrativa de Sabiá, contando sua entrada na cadeia, os processos políticos de organização social, os relacionamentos de diferentes naturezas e os impactos na noção de si.

Para tanto, exploraremos a narrativa de Sabiá, uma pessoa de 30 anos, nível superior completo. Sabiá estava cumprindo pena de reclusão desde outubro de 2014, tendo ingressado na Galeria 3ª do H da CPPA após 45 dias em um isolamento na prisão da cidade onde o delito foi cometido. Sua origem é o interior do estado do Rio Grande do Sul, e ele foi encaminhado à capital em razão de sua orientação sexual, como medida protetiva do sistema penitenciário, visando a garantia de sua integridade física e psicológica.

Sabiá se autodeclarava uma pessoa branca, homossexual, de gênero masculino e afirmava estabelecer “boa relação com seu próprio corpo”. No entanto, indicava que, por apresentar características socialmente reconhecidas como femininas, como, por exemplo, cabelos mais longos, voz fina, mãos delicadas, pele do rosto sem pelos, muitas vezes foi considerado travesti na galeria. Além disso, Sabiá afirmava ter consciência de que sua postura mais passiva nos relacionamentos afetivos/sexuais era atrelada socialmente ao campo do feminino. Sendo assim, Sabiá considerou, ao longo da entrevista, circular de forma fluida entre posições identitárias femininas e masculinas na Galeria 3ª do H, reconhecendo-se tanto como “a Sabiá” quanto por “o Sabiá”, sem causar qualquer confusão.

Logo ao acessar a CPPA, ainda na triagem, Sabiá conheceu um homem detido na 3ª do H que, naquele momento, estava na sala de transição do presídio, aguardando seu encaminhamento para audiência. Sabiá refere ter recebido deste homem uma proposta de casamento (Baptista-Silva, Hamann, & Pizzinato, 2017), em troca de garantia de segurança. Segundo o relato de Sabiá, a proposta foi aceita como estratégia de proteção, pelo desconhecimento sobre a realidade da cadeia, o que causava “um terror”. Entretanto, logo que chegou à Galeria 3ª do H, percebeu que esse convite tinha aspectos de coerção e que não havia necessidade de manter um relacionamento para receber proteção – e, nisso, o papel da psicóloga e da equipe da ONG Igualdade foi destacado. Após cinco dias, Sabiá pediu a separação. Posteriormente a essa relação, Sabiá relatou que conheceu outro rapaz, por quem se “atraiu fisicamente” e, após passarem uma noite juntos, decidiram se casar. O casamento durou seis meses e a separação veio um mês antes de seu companheiro sair em liberdade, por razões de ciúmes e, também, para diminuir o impacto do rompimento de vínculo com a saída dele da prisão.

Após esse relacionamento, Sabiá falou sobre seu atual casamento, que se iniciou três dias após a saída de seu ex-companheiro da prisão e teve duração de mais de um ano. Sabiá afirmou ser a primeira experiência homossexual de seu companheiro. Ele estava alocado nos andares debaixo da Galeria H e, após se conhecerem através das grades, foi necessária a solicitação de transferência de seu marido para a 3ª do H. Essa relação foi descrita por Sabiá como mais consistente ao comparar ao marido anterior. Segundo seus relatos, não havia tantas brigas e desentendimentos com o atual companheiro, além de haver mais diálogos, confiança, parceria, carinho e, inclusive, a possibilidade de planejarem o futuro juntos.

Neste processo turbulento de entrada na galeria, que envolve o casamento como possibilidade estratégica e afetiva, outros processos são delineados. Um dos ritos identitários nesse contexto, destacado por Sabiá, foi o batismo. Esse acontecimento na galeria se promovia cotidianamente e de forma sistemática na entrada de cada nova pessoa. Ainda que não figurasse como dimensão burocratizada, esse acontecimento operava definindo subgrupos, que tipos de relações se poderia estabelecer e como o desejo seria socialmente gerido no espaço.

– [...] quando tu chegas aqui ou, na época, quando tu chegavas aqui, imediatamente te batizavam com um nome feminino.

Te batizaram?

– Me perguntaram se eu tinha algum nome de guerra, senão, iam me batizar de Ana Maria Braga, né, cheguei aqui loiro com o cabelo curto, eu tinha a franja comprida.

Acho que me lembro...

– Ou eu escolhia um nome ou ia ser Ana Maria Braga, como eu sou o XXXX e na rua me chamavam de Sabiá, eu escolhi ser Sabiá, o que mudou foi que na rua me chamavam de “o Sabiá” aqui virou “a Sabiá”.

E como é pra ti ser chamado de “a Sabiá”?

– Tu sabes que eu acho que me acostumei, no começo eu estranhava um pouquinho, mas hoje vejo com naturalidade. Porque é aquilo que eu te falei, as pessoas da galeria inconscientemente se dividem em dois grupos, um grupo masculino e um grupo feminino. Então eu acabei me enquadrando, por ser gay e mais feminino, no grupo feminino, então. Como eu sou passivo me tornei “a Sabiá” (risos), não vejo como maldade, não me importo que me chamem de XXXX também. As travestis ficam furiosas, se tu as chamas pelo nome do registro, mas não é uma coisa que me incomoda.

Tu tens alguma preferência?

– Não, eu vejo Sabiá de uma forma carinhosa, independente de ser “O ou A Sabiá” eu vejo de uma forma talvez mais carinhosa, mais íntima, e XXXX de uma forma respeitosa, porque é o meu nome.

Nesse sentido de tu ser chamada de “a Sabiá” e todo o linguajar se referir ao feminino tu também não te importa?

– Me chamam de ela, me chamam de ele, depende de quem está falando comigo, é uma coisa que não me causa confusão, porque eu escolhi, tem as razões pelas quais isso acontece e ao mesmo tempo não me causa estranheza, porque eu vi que é um ato próprio do local, eu não estava mais em casa, então, querendo ou não, tu acaba tendo que se adaptar ao lugar.

O batismo, na galeria, remete-nos ao que Turner (1974) compreende como contexto de “liminaridade”. Diante dos setores diferenciados da vida pós-industrial eurocentrada, como saúde, alimentação, política etc., o conceito de liminaridade tenta constituir como espaço analítico os ritos de passagem, ou performances rituais, ocidentais. Turner, indicando o que compreende como eventos “liminoides”, dá ensejo para que se reflita sobre como esse momento na galeria participa da complexa rede de produção das possibilidades de vida das pessoas da 3ª do H. Diante dessa situação liminar, que se dá num panorama complexo de restrição e possibilidade de agenciamento, Sabiá se posiciona diante dos outros de forma alternativa.

Como considera Guacira Lopes Louro (1999), o campo das sexualidades envolve processos pedagógicos, na forma de “rituais, linguagens, fantasias” (p. 3). Tomando uma perspectiva foucaultiana, a autora indica que essas formas de tecnologia, que podem se estruturar pela via do rito, envolvem como resultado o investimento continuado e autônomo do sujeito sobre si (Louro, 1999). Neste sentido, ainda que o rito se dê num espaço e tempo fechados, seus efeitos continuam reverberando e atualizando-se no cotidiano de Sabiá na galeria. Engendra-se uma série de modificações, como o uso do artigo feminino, que são indicadas nas narrativas como um reposicionamento de si em relação às possibilidades do local.

Essa forma de estratégia narrativa não se restringe a uma questão relacional (no seu sentido operativo), mas justamente numa dimensão política, em que se negocia uma posição diante de um cenário normativo. Segundo Butler (2006), a norma constitui-se com certa forma dupla, orientando ações no mundo da mesma forma que atua pela via da normalização, da instauração de uma forma legítima de expressão (efetivamente, desse “ser”). Neste sentido, a norma é aquilo que nos constitui sob a forma ficcional de uma unidade totalizadora, coerente e inteligível (Butler, 2006). Entretanto, segundo a autora, os processos normativos criam estratégias de exclusão daquilo que mantém a coerência das hierarquias sociais, em que se produz a preservação da norma pela expressão do contraste com aquelas(es) que não a atualizam.

Ainda que Sabiá indique o uso do feminino como algo amigável e inclusivo, especialmente em um contexto no qual se identificava nas pessoas travestis uma possibilidade maior de exercício de poder na galeria, em outros momentos essa forma de sociabilidade não tem em suas memórias um significado equivalente. Sabiá vivenciou experiências de infância e vida adulta nas quais muitas das ofensas e agressões se materializavam associadas a uma aproximação com o pronome feminino.

Isso mudou depois que tu tinhas entrado aqui, antes tu não tinhas tido essa experiência de ser chamado sempre no feminino?

– Não, jamais, só em forma de bullying, às vezes, na tua infância, na tua adolescência, tu escuta te chamarem, mas é pra te ofender, diferente daqui [...] eu cheguei uma época a trabalhar com marketing, logo eu fui demitido, porque quem estava do outro lado da linha achava que era uma mulher que estava falando, porque a minha voz sempre foi mais fina [...] talvez mais puxada a forma como eu gosto de me vestir, com roupas mais justas. O cabelo deixei crescer aqui, já tive comprido na rua, assim por gostar da forma como ficava. Maquiagem sempre usei, mas não a maquiagem, não fazer a maquiagem feminina, sempre usei só base, pó, levemente um lápis no olho, nunca passei aquela coisa sombra, batom. Isso não, continuo não fazendo, cheguei a usar no tempo em que a XXXXX estava no plantão, mas hoje eu me sentiria um pouco ridículo, porque não me sinto à vontade dessa forma. Eu me vejo, me aceito, muito tranquilamente, como uma pessoa do gênero masculino, mas sinto atração pelo mesmo sexo e sou sexualmente passivo. Então isso me tornou aqui dentro mais ligado à imagem feminina.

Assim como Sabiá, outras pessoas no Brasil sofrem formas de violência relacionadas a performances de gênero e sexualidade não hetero e/ou cisnormativas. A escola, uma das instituições mais importantes por sua abrangência na educação formal, é um lugar em que jovens identificados como “LGBTQIA+” enfrentam, de maneira sistemática, violências de diversas naturezas perpetradas por colegas, professores, funcionários e dirigentes. Intervenções atuais que tentam promover espaços de diálogo e transformação dessa realidade se deparam com a reafirmação destas formas de violência, intrinsecamente relacionada com discursos potentes no Brasil, como o religioso (Moscheta, Souza, Casarini, & Scorsolini-Comin, 2016). Esse histórico de segregação, que se articula com certas atribuições corporais e comportamentais entendidas em discursos normativos como “incoerentes” e ameaçadoras, toma outra forma na Galeria 3ª do H.

A noção de incoerência, tomada à luz dos estudos de Judith Butler, dialoga intrinsecamente com a ideia de ameaça social. Se tomamos, como a autora propõe, as identidades como ficcionais (Butler, 2003) – efeito de diferentes práticas discursivas que atuam de forma regulatória –, elas sempre se circunscrevem por meio de operações estabilizadoras, como nas marcações de gênero, sexualidade e cisnormatividade. Parte de seu funcionamento é, justamente, caracterizar certa forma regulatória por efeito naturalizador dessas instâncias nos processos de identificação, de modo que não se trata de realidades pré-discursivas (existentes previamente à própria expressão da linguagem).

Assim como acontece na narrativa de Sabiá, que alterna o uso de seu nome ou o artigo para colocar-se em determinada cena, o uso de categorias identitárias se altera conforme operam-se modificações da Galeria de Travestis para Galeria LGBT. As estratégias possibilitadas à Sabiá pelo uso da noção travesti se transformam quando há a possibilidade de exercício de outras formas de relação com gênero e sexualidade.

– Mudou bastante, logo que a plantão anterior assumiu teve uma mudança grande [...]. Antes, se eu fosse uma pessoa mais reservada, já era motivo pra eu sofrer, eu posso dizer bullying, eu acho, que não deixa de ser uma forma de bullying o que eu ouvia, ouvir no corredor que tu é narigudo, que tu é gringo, que tu é gordo, ou, que tu é magro demais, que tu é uma gay de cabelo curto, que tu não usa roupas femininas. Então tu é menos, então, querendo ou não, se estou num espaço homossexual e eu tenho que ser travesti pra ser respeitado, eu estou na verdade sendo oprimido pela minha sexualidade, por ser gay e não querer ser travesti.

E isso mudou de ser travesti ou gay na galeria?

– Hoje o que a gente entende é assim, eu falo de que foi uma coisa que nós construímos juntos, principalmente nós que estamos há mais tempo, é um espaço homossexual, a homossexualidade engloba os travestis, porque, embora eles tenham o desejo por um gênero sexual diferente de mudar a sexualidade, eles não deixam de ser do gênero masculino e sentir atração por pessoas do mesmo sexo.

Então esse espaço foi construído com o tempo?

– Exatamente.

Essa mudança não parece fortuita e implicou novas formas de exercício de poder, com menos protagonismo travesti e com atitudes revanchistas em relação a esse coletivo e, de alguma maneira também impactou a noção de si mesmo de Sabiá. Um exemplo da intersecção das dimensões micro e macropolíticas pode ser ilustrado pelo próprio processo de construção das compreensões nesta pesquisa. No período de desenvolvimento de grupos de trabalho e entrevistas individuais, foi preciso uma intervenção para que as travestis pudessem participar das entrevistas – desejo reiterado por elas nos trabalhos em grupo. Considerando que a mediação das entrevistas era realizada pela via da pessoa plantão, a dificuldade de organizar esses momentos com as travestis, indica certos jogos de representatividade, de represália e controle político dos quais dimensões identitárias fazem parte.

Esse processo não se dissocia de uma composição pessoal, corporal, uma aproximação às regras que se constituem na própria galeria. Como propõe Pino (2007), pessoas que vivem inscritas no que se compreende como paradoxos identitários estão sujeitas ao não reconhecimento por manterem uma relação de distanciamento (e tensionamento) com as normas e, portanto, serem consideradas menos humanas do que as “ajustadas”, as “normais”. Os sujeitos queer, entretanto, (co)existem com ambiências normativas e, por mais que possibilitem espaços de vida mais críticos e transformadores, são ameaçados cotidianamente a serem inscritos, inclusive pelos saberes do campo psicológico, em um lugar do não humano, de reiterada abjeção ou na fronteira do humanizável. Assim, pensar a produção discursiva destas vidas não significaria negar a materialidade dos corpos, mas, justamente, evidenciar o campo político que circunscreve as materialidades que passam a importar e que podem ser chamadas de humanas (Butler, 2002).

Essas pessoas podem saber que se não incorporarem essas normas de reconhecimentos suas vidas tornam-se inabitáveis e, assim, precisam negociar (re-inventar) identidades reconhecíveis (Pino, 2007). Assim, pode-se articular uma relação não segregada (nem metafórica) entre as visibilidades corporais e as discursividades, pois ambas compõem de forma integrada um campo dialógico de co-construção.

Eu reparei que vocês colocaram uma placa dizendo Galeria LGBT, mas antes era considerada Galeria das Travestis, não era?

– Isso! Era considerado das travestis, tanto que, na supervisão, tu chegavas: “Tu vai pra Galeria das Travestis. Então, se tu era gay, tu já era uns 10 degraus a menos que os outros, era muito comum [...] eu também passei por isso de talvez uma confusão mental, eu me sentia meio obrigado a usar roupas femininas, a usar maquiagem pra ser um pouco mais respeitado, então eu cheguei a fazer isso também.

Chegou a fazer?

– Cheguei a fazer.

E tu nunca teve vontade ou esse desejo de usar roupas mais femininas e maquiagem, a não ser quando já estava aqui dentro?

– É aquilo que eu te falei, eu usei aqui dentro não por vontade, mas pra ser respeitado, pra me sentir igual às outras pessoas. [...] Eu noto individualmente, dentro das conversinhas [...] que é uma coisa cultural, porque a travesti se considera evoluída, porque ela se veste de mulher, ou, porque ela já fez alguma mudança no corpo, então, às vezes, quando uma travesti briga com um gay, a primeira coisa: “Mas quem tu é? Tu é uma gay”, porque mentalmente se entende que o travesti é evoluído fisicamente porque está mais próximo da figura de uma mulher, mas o que eu percebo ao mesmo tempo, até uma vez eu falei isso pra uma travesti: “Tu já percebeu que ser próximo de uma mulher é algo importante pra ti e não pra mim?”, que é o que eu acho que as pessoas ainda precisam refletir, “o que é prioridade pra ti e o que é pra mim? Então, tu não me ofendes quando tu me chamas de gay, porque eu sou gay e as coisas que são importantes pra ti são só pra ti”. Que nem muitas vezes: “Ah, porque tu não tiras a barba com a pinça, que não fica marcado? Mas tu já paraste pra pensar que ser tão próximo de uma mulher é uma necessidade tua e não minha”?

Essas diferenciações se operam também na criação de um léxico da galeria. As vivências se dão circunscritas dentro de um campo de inteligibilidade, associadas ao uso estratégico de códigos linguísticos na negociação das identidades de campo dialógico (Borba, 2015). As diversas práticas sociais que se compõem nestes diferentes léxicos têm o poder de construir e (des)legitimar certo lugar social (Borba, 2015). A partir dessa perspectiva – de que enunciados como práticas produzem as coisas das quais enunciam – podemos compreender que certos aspectos linguísticos possibilitam determinadas ações, podendo ser, concomitantemente, atualizados ou subvertidos. Esse funcionamento, que analiticamente possibilita a construção de compreensões de como fenômenos macro produzem sujeitos considerados abjetos, dão ênfase para a linguagem como ação. Na perspectiva de Butler (2002), a noção de abjeto é direcionada para espaços existenciais inóspitos da vida social. Neste sentido, esses lugares subjetivos seriam ocupados não por indivíduos abjetos, mas por sujeitos de abjeção e, desta forma, conjunturalmente regulados.

Na galeria, o uso desses léxicos e sua composição narrativa como possibilidade de identificação falam tanto da produção e reiteração de noções identitárias que se fazem nas demandas de um espaço específico como das possibilidades de agenciamento e, principalmente, de (r)existência dentro desse panorama. Estas formas, entretanto, não estão deslocadas de atualizações normativas hierarquizantes, como é o caso das nomenclaturas: homossexual, gay e bicha.

– [...] dentro do linguajar da galeria, sim, porque eu não me considero travesti. Eu entendo o travesti como a pessoa que tem o desejo de ser do sexo feminino, ela tem a vontade de mudar o corpo, mudar a aparência. Eu me considero um gay, eu me aceito como homem do gênero masculino, entendo que eu sou do gênero masculino, tenho um jeito mais afeminado, mas não tenho essa vontade de mudar meu corpo, de me transformar, de ser uma mulher. Isso eu não tive, então eu me considero gay mais afeminado.

Tá, entendi, tem essas diferenciações lá na galeria e também tem as travestis, as bichas e os gays...

– tem as travestis, as bichas, os gays e aqueles que são chamados de companheiros dos homossexuais, porque eles são também homossexuais do meu ponto de vista, porque se relacionam com o mesmo sexo. mas eles mesmos negam a homossexualidade, eles usam expressões do tipo “eu gosto de comer um cu, mas eu não sou homossexual”.

Essa forma de organização, ativo/passivo, penetrado/penetrante, ainda que não dê conta das economias de prazer e desejo dentro do contexto prisional em questão, organiza muitas das narrativas e colabora na diferenciação de certos espaços ocupados nesta lógica de gênero e sexualidade. Essa dicotomia tradicionalmente foi referida na literatura, com ênfase em contextos como os da prostituição exercida por homens (Perlongher, 2008; Hamann, Pizzinato, & Rocha, 2017). Ainda que as diferentes marcações de sexo e gênero desestabilizem uma visão dicotômica em termos de análise, nas narrativas os sistemas classificatórios propostos indicam que a dicotomia atividade/passividade continua sendo um marcador de discussão, em especial se considerarmos como aspecto presente a atualização de dimensões tradicionais de feminilidade e masculinidade como organizativas de muitas facetas na galeria.

Na verdade, o que acontece seria assim, existe [...] aquela questão da intimidade e o público, pro público muitos dizem pra toda a galeria que eles são só ativos, mas, às vezes, na intimidade com o parceiro, eles gostam de fazer o passivo também, mas, pra não serem chamados de mariconas, termos que são usados, eles negam e dizem que são só ativos, alguns são realmente são só ativos.

Essa economia de passividade e atividade pode dar ensejo a várias discussões. Numa perspectiva contrassexual, por exemplo, poderia potencializar a descontrução do público e privado dentro do próprio privado – do corpo – num processo de identificação de certas partes mais privatizadas (menos públicas) que outras, como pênis e ânus (Coelho, 2009). Entretanto, ainda que se operem formas desse descentramento pela via da emergência de casais, o funcionamento dessas relações se dá muito vinculado a uma composição normativa – em relação aos e às colegas de galeria, como também no que se refere à circulação fora do espaço da 3ª do H:

– Eu vejo assim que é uma questão mais de vergonha, de constrangimento, a palavra certa é vergonha, timidez de tirar a roupa na frente de um homem, do que constrangimento. Estou num ambiente que é masculino, que as regras são, e, querendo ou não, o gênero que eu nasci é masculino. Não me incomoda tanto, me deixa tímido, mas não constrangido, não me sinto humilhado nem nada e, claro, eu não posso, se eu sair da minha galeria com meu companheiro, eu não posso sair de mão dada com ele, porque os outros presos vão se sentir incomodados e possa gerar todo um tumulto também.

Por isso eu te perguntei aquela hora, mas, no dia do pátio, por que, daí, o pátio é só pra vocês?

– O pátio é só nosso.

No pátio vocês andam, mas até chegar lá não...

– Mas se eu sair da galeria num atendimento, eu e ele, muitas vezes tu está andando assim, parece que tu nem conhece teu companheiro, mas é pela segurança de ambos.

A noção de espaços públicos e privados da cadeia e, em especial, da galeria potencializam certas maneiras de performar(-se). Os corredores são indicados como espaços arriscados e a galeria, como uma “ilha” diante deste cenário. Neste sentido, diversas formas de se fazer visível (e invisível) fora do território da 3ª do H tornam-se parte das pedagogias locais. As redes de afeto e estratégia que se possibilitam neste contexto demandam cuidados e articulações para além das demandas internas do espaço LGBT. Nestas formas de circular pelo espaço as possibilidades de reconhecimento são elementos importantes. Se, por um lado, ser reconhecida(o) como moradora(o) da Galeria dos Putos pode indicar certa probabilidade de se casar, estabelecer um outro itinerário experiencial no sistema prisional, pode também fazer reconhecer-se como um alvo de represálias homofóbicas e transfóbicas.

Esse espaço de relações delicado, que envolve um equilibrismo entre demandas externas e internas à galeria, é circunscrito pelo uso de certos elementos estéticos (ou o não uso destes em função das possíveis represálias), certos acoplamentos corporais, como maquiagem e roupas que muitas vezes não são concebíveis para a pessoa em sua vida fora desse espaço. Particularmente neste caso, somam-se às demandas institucionais e organizacionais, politicamente construídas e legitimadas como espaço para um ethos travesti. Assumir o performar travesti e/ou resistir a ele são escolhas de implicação política em diferentes configurações temporais na galeria, como indica Sabiá:

Assim, de tu sair no corredor, a pessoa, no caso ela, debochar da tua aparência, debochar do jeito que tu se veste, que mais ela fazia? Das ameaças de viagem, não vou com a tua cara, eu vou te viajar. Ela, naquele momento, como plantão, ela achava que tinha um poder ilimitado, que podia fazer tudo, e quem não compactuava com isso se tornava automaticamente inimigo. Então, eu fui uma pessoa que não aceitei me unir a ela pra humilhar quem quer que fosse, ou pra dividir o dinheiro da minha visita que venho com ela. Então, a partir daquele momento eu me tornei um inimigo pra ela e eu me sentia muito pressionado, eu tinha muito medo de viajar, porque, pra quem é homossexual, esse é o único espaço no estado em que você pode ser alguém, que você poder ser você mesmo, que você pode falar, que você pode pensar. Nos outros espaços até tem o espaço, mas não tem a oportunidade, então, você tem o espaço pra você dormir, pra você se alimentar e pra você cumprir a sua pena, não pode dar uma opinião, você não pode... porque você é o diferente das outras pessoas, porque aqui é o único lugar que você não é, não deveria ser oprimido por ser quem você é. Então, naquele momento eu tinha medo que pudesse sofrer agressões físicas, mais agressões ainda.

Essas questões articulam um espaço de agenciamento e de controle. As ameaças de viagem – a transferência para outra galeria ou cadeia – ou “ensacolar”, como é referido por Seffner e Passos (2016), as negociações financeiras que supõem o acesso aos bens materiais de subsistência, higiene e estética e, até mesmo, as condições de habitabilidade do espaço transcendem exclusivamente as referências financeiras. As condições de articulação dessas negociações dependem de como cada pessoa se posiciona no imbricado campo das relações político-identitárias da galeria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa da experiência de ser travesti e gay na Galeria 3ª do H, mais que a uma unidade e linearidade, diz de um complexo e dialógico campo de reflexão sobre o corpo, sexo, gênero. Trata-se de como Sabiá vivenciou estas esferas de maneira afetada por uma noção de “outro”, pessoas e contextos diversos. Sabiá constitui uma narrativa sobre sua vivência, em processo, como situada e não acoplada a uma instância pré-discursiva. Indica, entre todas as particularidades da experiência de ser sujeito da galeria, como ser travesti ou gay não representa uma condição estável, constante. Sendo o contexto identitário um campo histórico, portanto, mutável, envolve processo de fratura e articulação, dando ensejo para manifestações de sexualidade e gênero que se fazem no potencial performativo da própria linguagem.

Neste sentido, não estabelecendo uma relação causal das narrativas de Sabiá sobre si, compreende-se que este processo de reconhecimento se dá na convocatória da própria narrativa. Trata-se de como, num convite a falar sobre si se compõem e tecem-se, narrativamente, significado, atribuições à experiência de sexualidade e gênero que são constituídas tendo por condição de possibilidade um cenário político particular. Além disso, é o campo quem diz de espaços de agenciamento na relação dos desejos e formas de cumplicidade.

As histórias de coabitação, entre distanciamentos/aproximações normativas (como dos homens heterossexuais que, na galeria, descobrem um espaço possível de vivência sexual e afetiva com pessoas trans, ou das mudanças operadas nas formas de se relacionar dependendo do contexto político), indicam espaços dialógicos de existência que se articulam entre violência e exercícios de liberdade de formas nem sempre planejadas ou lineares. A análise aqui apresentada, ainda que em perspectiva microanalítica, serve como mais um disparador das atualizações discursivas que circulam socialmente, chancelando ainda noções essencialistas, determinantes e biologizantes sobre o exercício de gênero e sexualidade.

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1 Nesta questão, é particularmente importante que a palavra cisgênero tenha sido um caso de ocupação epistêmica. Segundo Dumaresq (2016, p. 126), “foi adotada por diversas pessoas transgêneras, travestis, mulheres transexuais e homens trans para designar aqueles que não são tratados como transgêneros pela sociedade”.

2 Termos êmicos, ou seja, derivados do próprio campo de pesquisa, serão apresentados em itálico.

3 Composta por nove pavilhões, cada um deles com várias galerias, dependendo de do tamanho dos pavilhões, que são denominados com as letras “A” até “J”, tendo sido o “C” demolido em 2014. É ainda o maior presídio do estado do Rio Grande do Sul., cada um deles com várias galerias, dependendo de do tamanho dos pavilhões, que são denominados com as letras “A” até “J”, tendo sido o “C” demolido em 2014. É ainda o maior presídio do estado do Rio Grande do Sul.

4 Nome fictício, escolhido pela pessoa entrevistada para uso e publicização no âmbito desta pesquisa. Segundo a pessoa participante, associa-se o nome Sabiá à sua sensação de pássaro engaiolado dentro da cadeia.

Recebido: 15 de Agosto de 2019; Revisado: 17 de Agosto de 2020; Aceito: 05 de Setembro de 2022

Correspondência: Adolfo Pizzinato. adolfopizzinato@hotmail.com

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