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Revista da Abordagem Gestáltica
Print version ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.17 no.2 Goiânia Dec. 2011
ARTIGOS
A ontologia da carne em Merleau-Ponty e a situação clínica na Gestalt-terapia: entrelaçamentos
The ontology of the flesh in Merleau-Ponty and clinical situation in the perspective of Gestalt-therapy
La ontología de la carne en Merleau-Ponty y la situación psicoterápica desde la perspectiva de la terapia Gestalt
Monica Botelho Alvim*
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Departamento de Psicologia Clínica)
RESUMO
Neste trabalho discutimos a clínica da Gestalt-Terapia como campo de experiência, buscando ampliar sua compreensão por meio do diálogo com Merleau-Ponty. Nosso ponto central é a experiência no mundo com o outro e o lugar dessa experiência no processo de significação da existência. Sublinhando na Gestalt-Terapia: a) as noções de campo organismo-ambiente e fronteira de contato como concepções descritivas da experiência no mundo, um processo de desdobramento temporal que envolve diferença e criação de sentidos; b) a proposta metodológica de que a psicoterapia deve buscar concentrar-se na situação, na estrutura da experiência aqui e agora; c) a consideração da psicoterapia como uma situação que envolve eu e outro em diálogo. Considerando que Merleau-Ponty comunga com a Gestalt-Terapia raízes e influências e que faz um retorno ao mundo e à experiência na busca do sentido, buscamos fazer aproximações com seus últimos escritos, quando propõe uma ontologia da carne e pensa a experiência como fissão, diferença e reversibilidade, introduzindo com a noção de intercorporeidade a possibilidade de “sentir com”, ou seja, encontrar o outro não no espaço objetivo, da reflexão, mas no campo do irrefletido e da experiência em estado bruto.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, Merleau-Ponty, Intercorporeidade, Ser bruto, Carne.
ABSTRACT
In this work we discuss Gestalt therapy clinical practice as a field of experience, seeking to broaden its understanding through dialogue with Merleau-Ponty. Our focal point is experience with the other in the world and the place of experience in the process of signification of existence. Underlining in Gestalt-Therapy: a) the notions of environment-organism field and contact boundary as descriptive conception of the human experience, an unfolding temporal process that involves difference and meaning-making; b) Its methodological proposal that psychotherapy should seek to focus on the situation, ie, the structure of experience here and now; c) The consideration of psychotherapy as a situation involving self and other in dialogue. Considering that Merleau-Ponty shares with Gestalt Therapy roots and influences and both propose a return to the world and experience in the search for meaning, we seek to make comparisons with his late thought, when he proposes an ontology of the flesh and thinks experience as fission, difference and reversibility, to introduce by the notion of intercorporeality, the possibility of “feeling with”, ie, find the other not in the objective space of reflection, but in the realm of thoughtless.
Keywords: Gestalt-therapy, Merleau-Ponty, Intercorporealty, Brute being, Flesh.
RESUMEN
Hablamos de la atención clínica de la terapia Gestalt como un campo de experiéncia, tratando de ampliar su comprensión mediante el diálogo con Merleau-Ponty. Nuestro punto central es la experiencia con otros en el mundo y el lugar de la experiencia en el proceso de significación de la existencia. Destacando en la terapia gestalt: a) las nociones de campo organismo-entorno y el frontera-contacto como concepción descriptiva de La experiencia en el mundo, un proceso de desarrollo temporale que implica la diferencia y la producion de significado; b) la metodología propuesta que la psicoterapia debe tratar de centrarse en la situación, la estructura de la experiencia aquí y ahora; c) la consideración de la psicoterapia como una situación de diálogo entre yo y el otro. Teniendo en cuenta que Merleau-Ponty comparte con las raíces de la Terapia Gestalt e influencias y ofrece regreso al mundo y la experiencia en la búsqueda de sentido, tratamos de hacer comparaciones con sus últimos escritos, cuando el filósofo propone una ontología de la carne y piensa en la experiencia como fisión, diferencia y reversibilidad. Ali introduce la posibilidad de “sentir con” a través de la noción de intercorporeidad , es decir, encontrar el otro en el espacio oscuro de la irreflexión.
Palabras clave: Terapia Gestalt, Merleau-Ponty, Intercorporeidad, Ser Bruto, Carne.
“Doravante somos plenamente
visíveis para nós mesmos,
graças a outros olhos”
(Maurice Merleau-Ponty, 1990, p. 139)
Introdução
A Gestalt-terapia introduziu, no âmbito da psicologia, um pensamento que ressignificava as relações pessoa-mundo, transitando de um paradigma intrapsíquico para outro organísmico, definindo a psicologia como o estudo da operação da fronteira de contato no campo organismo-ambiente. A fronteira não é lugar, mas campo de presença, vivido temporalmente, corporalmente, quando nos deparamos com o novo, diferente ou estranho, que buscamos significar a partir da criação. A psicoterapia busca concentrar-se na situação, na estrutura da experiência aqui e agora, uma gestalt formada a partir do campo organismo-ambiente e que engloba eu e outro, eu e mundo. Estrutura que não tem o centro no sujeito, tampouco no ambiente ou no outro, indicando uma concepção que considera o ser-no-mundo e que não pretende atribuir, senão à experiência e à espontaneidade corporal situada, a fonte da produção de sentidos. Tal processo, denominado contato, envolve, assim a recriação de formas, um processo interminável de ressignificação da história a partir da experiência que é temporalidade.
Partindo de minha filiação à Gestalt-Terapia e concebendo a situação clínica como um campo de presença, busco, em minhas reflexões, ampliar o significado do trabalho psicoterápico com a experiência, pesquisando e discutindo suas origens fenomenológicas e dialogando com Merleau-Ponty. Em seus últimos escritos, Merleau-Ponty enfatiza a noção de carne e pensa “a experiência já não como acoplamento, mas, ao inverso, como fissão (...) sobre o fundo de unidade da carne” (Dupond, 2010, p. 15). A carne “é uma noção última que não é união ou composição de duas substâncias, mas pensável de per si e mostra uma relação do visível consigo mesmo que me atravessa e me transforma em vidente” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 137). Conclui que esse movimento pode animar igualmente outros corpos, aludindo a uma possibilidade de reversibilidade entre um eu e o outro semelhante, uma sinergia entre diferentes organismos, uma intercorporeidade, instalando um outro em minha paisagem. O outro se insere na junção do mundo e de nós mesmos, ele é um eu generalizado. É assim que minha relação corporal com o mundo pode ser generalizada – e podemos falar de uma intercorporeidade. O ser bruto envolve uma totalidade que abarca a diferença, unidade na diferença, quiasma vidente-visível, sensível-sentiente, eu-outro.
Neste trabalho proponho refletir acerca da experiência clínica em Gestalt-Terapia partindo da discussão de algumas concepções centrais feitas por Merleau-Ponty no âmbito de sua ontologia do Ser Bruto, demarcando alguns aspectos gerais que permitem uma aproximação do filosofar e da psicoterapia e, por fim, a partir de um fragmento de experiência clínica, entretecer os dois campos de discussão da experiência humana no mundo com o outro.
1. Merleau-Ponty: Elementos de sua Ontologia
Desde a primeira obra, a Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty (1942/2006) buscara uma solução para o problema do conhecimento e da verdade que oferecesse uma alternativa ao intelectualismo e ao empirismo. A noção de estrutura oferece um modo de conceber as relações com o mundo como forma ou configuração: um homem situado, matéria, vida e espírito entrelaçados com o mundo físico, sócio-cultural e histórico. É sua primeira versão para uma concepção que considera a verdade fruto de uma operação de entrelaçamento espírito-corpo-mundo.
Tomando a percepção como âmbito do originário, na Fenomenologia da Percepção (1945/1994) o filósofo enfatiza o corpo como campo de presença, autor de uma síntese prática que dota a consciência de um sentido de “eu posso”. Propõe assim um conhecimento tácito dado por uma praktognosia, que não subordina o conhecimento a uma função simbólica ou objetivante, para opor-se à reflexão idealista que transforma o mundo em correlato da consciência. De acordo com Moutinho (2005, p. 11), Merleau-Ponty tem como problema dar legitimidade ao fenomenal face ao pensamento objetivo, mostrar que a experiência irrefletida é o transcendental. Para isso: a) recorre às descrições psicológicas que implicam sempre em contradições no sistema eu-outrem-mundo (psíquico/ fisiológico, solipsismo/comunicação, em si/para si); e, b) ao contrário de buscar resolver tais contradições, Merleau-Ponty busca despertar a experiência do corpo, do mundo e de outrem as tornando irremediáveis e colocando-as no centro da filosofia para mostrar que as contradições não são da ordem das aparências, mas são – elas próprias – o coração da experiência e o verdadeiro transcendental. De fato, tal como compreendemos, a redução de Merleau-Ponty é para o domínio da experiência, uma existência capturada pelas teses. Para refletir sobre o irrefletido da experiência, ele toma a trilha de Kurt Goldstein, busca o eu impuro, onde a tese falha, a patologia. Vai pelo avesso, reflexão radical, afirmando uma postura anti-teórica, tal como afirmou M.J.Muller-Granzotto (comunicação pessoal, novembro de 2005). Na doença, cria-se algo inusitado, que não se submete a teses universais. Fala da doença onde se aprende algo, cria-se algo. É aí que se radicaliza a postura anti-teórica.
De acordo com a compreensão de Moutinho (2005), a reflexão de segundo grau que Merleau-Ponty propõe – e que converte o campo fenomenal em campo transcendental – é desenvolvida a partir de suas reflexões sobre o tempo feitas na terceira parte da Fenomenologia da Percepção (1945/1994), onde o filósofo anuncia o que será desenvolvido e aparecerá de modo definitivo mais à frente, quando então tomará o projeto ontológico: a recusa à concepção de uma identidade através da constituição. O filósofo, nas notas que darão origem ao livro póstumo O visível e o invisível (1964/2000), recusa um tipo de reflexão que “recua sobre as pegadas de uma constituição” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 41). Abandonando a intencionalidade de ato, ele explora a noção de síntese passiva, na qual concebe o tempo não como sucessão, mas como passagem e movimento, uma transição que se dá em bloco, modificação contínua e não continuidade sucessiva, uma síntese de transição que não tem autor. O tempo já é anunciado aqui como movimento centrífugo, dissolução, deiscência, tempo como diferença, ou seja, afirma Moutinho (2005, p. 41):
Cada instante se afirma por diferença com outros, ele não é apenas uma totalidade, mas é uma totalidade que cava a diferença em seu interior e assim ele se abre para uma relação a si (...) condição para qual Merleau-Ponty poderá dizer que o tempo não é para alguém, mas que ele é alguém.
É nessa direção que em seus últimos escritos Merleau-Ponty recusa explicitamente o cogito e muda o foco do corpo para a noção de carne, inaugurando uma nova ontologia – a ontologia do ser bruto – que passarei a discutir brevemente a partir de uma articulação que envolve as noções de diferenciação ou deiscência, carne, ser bruto, intercorporeidade e fé perceptiva.
1.1 A Experiência como Diferenciação que faz surgir um Visível
Merleau-Ponty pensa a experiência já não como acoplamento, mas, ao inverso, como fissão que faz nascer um visível do fundo de um tecido invisível que é “possibilidade, latência e carne das coisas” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 130). O visível surge de uma diferenciação, é uma espécie de “cristalização momentânea da visibilidade”, é “menos cor ou coisa que diferença entre as coisas e as cores” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129), ou seja, um visível nasce da diferença entre as coisas ou entre as cores, reunidas em uma constelação aqui-agora. Podemos aqui nos remeter a Paul Cézanne e os impressionistas que instauraram na pintura uma nova ordem que partia justamente de uma proposta que não diferenciava o desenho da cor, a forma do conteúdo e postulava certa “passividade” para que o desenho nascesse espontaneamente do contraste das cores. Para ele, delinear os contornos do desenho era uma “falha que se deve combater a todo custo (...) ao ser consultada a natureza nos dá os meios para atingir esses fins” (Cézanne, citado por Chipp, 1999, p. 19). Dizia com isso que se o pintor estivesse atento “à riqueza de colorações que animam a natureza” (Merleau-Ponty, 1948/1980, p. 118), a forma brotaria espontaneamente da expressão. “Pintando, desenha-se; mais a cor se harmoniza, mais o desenho se precisa” (Cézanne, citado por Merleau-Ponty, 1948/1980, p. 118).
A pintura é referência importante para Merleau-Ponty, que coloca a Visibilidade como um universal, uma possibilidade. É a partir de um movimento de entrecruzamento momentâneo que um quiasma é produzido como uma emergência possível, uma diferenciação que surge como um visível. Um instante efêmero em que há uma cristalização de algo que emerge de uma trama, feita por um tecido invisível, a carne, minha e também do mundo. O invisível seria a “armação do visível que dá ao visível sua presença significante, sua essência ativa” (Dupond, 2010, p. 50). Merleau-Ponty estabelece entre vidente e visível uma relação originária e íntima que se funda numa espessura que se comunica por horizontes. O visível não é uma coisa idêntica a si mesmo que se oferece nua a uma visão total do vidente, mas é sim “uma espécie de estreito entre horizontes exteriores e interiores sempre abertos” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129), toca e faz ressoar à distância outras regiões, criando por diferenciação uma modulação efêmera deste mundo. O vermelho que vejo em algo liga um tecido visível e invisível. É uma “pontuação” no campo das coisas vermelhas e também no das roupas vermelhas; da bandeira da revolução russa e dos vestidos das mulheres ou dos mantos dos bispos. E não será o mesmo vermelho se aparecer numa constelação ou noutra (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129).
1.2 A Carne como Elemento
Merleau-Ponty propõe uma nova compreensão, que coloca o originário na carne. Meio formador do sujeito e do objeto, a carne é equivalente ao que os gregos denominavam elemento (água, terra, fogo). A carne, para ele: (...) não é matéria, não é espírito, não é substância. (...) espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Neste sentido, a carne é um ‘elemento’ do Ser (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 136).
Os elementos são representativos do todo, estão no individual e no universal como um emblema, um estilo de ser. A carne é elemento comum do sujeito e do mundo, corpo e mundo se constituem reciprocamente numa experiência tecida no fundo carnal. Ela é o ponto de partida, origem, antes do que nada é pensável. Como elemento originário, possibilidade e tecido invisível, a carne sustenta o visível que irradia um modo de ser, aparece como cristalização momentânea a partir da experiência no mundo que reúne sujeito e mundo, corpo e coisas, num horizonte comum. Ela liga aquilo que é visível – coisa do mundo e aquele que vê – corpo, sendo estofo de que ambos são feitos, indicando uma relação de parentesco que dá àquele que vê uma familiaridade, por assim dizer, prévia com o visível.
Aqui está em jogo uma nova visão das relações sujeito-mundo que busca escapar das alternativas ser idêntico/ fundido ou ser diferente/exterior, partes extra-partes. “Em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é, ao contrário, o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas”, afirma Merleau-Ponty (1964/2000, p. 132).
As coisas não são achatadas, elas também são seres em profundidade (como a roupa vermelha que constelada nos remete ao horizonte da revolução) que só são acessíveis a um sujeito que com elas coexista e não as queira sobrevoar1. Coexisto com elas habitando-as com meu corpo, meu olhar, meu tato. Como elas, tenho um avesso, espessura, distância dentro-fora. Comunico-me com elas por um entrecruzamento que só pode se dar por sermos feitos da mesma carne, por essa familiaridade prévia. É isso que permite encontrar uma correspondência entre seu fora (o vermelho constelado daquele modo) e meu dentro (um horizonte que se conecta com o horizonte daquela constelação que se me apresenta). Entre meu dentro (aquele que sente a partir do que é sensível na coisa) e meu fora (aquele que pode ser sentido enquanto sente). Com a noção de carne, o filósofo propõe uma correlação, entrelaçamento corpo e mundo que “comunica às coisas sobre as quais se fecha essa identidade sem superposição, essa diferença sem contradição” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 132).
Merleau-Ponty acentua o corpo como aquele que tem uma dupla pertença ao âmbito do sujeito e do objeto. Está na ordem do sujeito e das coisas. Busca fazer uma ontologia da carne reabilitando o sensível. O que é visto e o que vê estão unidos por essa familiaridade primordial, carnal, seu encontro se dá como um quiasma, um entrecruzamento sensível-sentiente.
Com a noção de deiscência – termo originário da botânica, que indica a abertura de um órgão quando atinge a maturação – Merleau-Ponty nos remete a uma nova compreensão. As contradições estão agora no cerne de suas propostas, não como simples contradições, mas como movimento de diferenciação, como deiscência da carne, que é o originário. Se utilizarmos a metáfora da botânica, um fruto, quando maduro, amolece e se abre, oferecendo-se ao mundo como alimento para outros seres, que se transformam e se abrem, oferecendo-se como alimento para outro ser, para a terra, num ciclo de vida interminável que mantém viva a vida, renovando-se e transformando-se.
Assim, o que brota e emerge como ser e visível não é fruto de uma reflexão, mas de uma experiência de fissão e diferenciação que faz surgir um visível (e um vidente), sustentados por um invisível, horizonte carnal, experiência espácio-temporal. De acordo com Dupond (2010, p. 15), “já não se trata de pensar o ‘um’ sobre o fundo de ‘dois’ (Si/o mundo), mas o ‘dois’ sobre o fundo de ‘um’”.
Merleau-Ponty propõe um ser bruto como um ser de indivisão, totalidade prévia, experiência em estado bruto, não lapidado por um movimento reflexivo. Afirmando uma ontologia do ser bruto, propõe que universalidade e particularidade estão imbricadas numa relação íntima no âmbito da experiência temporal e mundana. De acordo com Chauí (2002, p. 153-154):
O ser bruto não é uma positividade substancial idêntica a si mesma e sim pura diferença interna de que o sensível, a linguagem e o inteligível são dimensões simultâneas e entrecruzadas (...) não é também um negativo, mas aquilo que, por dentro, permite a positividade de um visível, de um dizível, de um pensável, como a nervura secreta que sustenta e conserva unidas as partes de uma folha (...) é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível (...) o Ser Bruto é a distância interna entre um visível e outro que é o seu invisível.
Quando Merleau-Ponty deixa o foco no corpo próprio – o ponto de vista de um corpo-sujeito – para colocar o foco no corpo como carne, reafirma uma espécie de passividade do eu ao ser bruto, esta totalidade complexa composta por: eu, outro, percepção, cultura, historicidade, temporalidade. Instaura um campo primordial, um a priori que correlaciona sujeito-objeto, uma indiferenciação original de onde brota o sentido – uma dimensão carnal. O ser bruto é uma dimensão primordial, anterior a toda atividade reflexiva:
(...) anterior a toda diferenciação em termos de subjetividade. (...) Trata-se de se recolocar na zona do há preliminar, de nosso contato originário com o ser, onde o saber não operou ainda a cisão entre o “subjetivo” e o “objetivo” e no qual se institui uma primeira estratificação de sentido (Bonomi, 2004, p. 40).
Essa indiferenciação como subjetividade pode ser compreendida como dimensão impessoal, geográfica, biológica, sócio-histórica, uma complexidade irrefletida, porém presente, que pode ser sentida de modo tácito e pertencente ao âmbito de uma intercorporeidade. Esse ponto indica a passagem da intersubjetividade para a intercorporeidade realizada por Merleau-Ponty. Vinculando a experiência da visibilidade ao corpo e postulando uma ontologia do sensível, Merleau-Ponty passa a pensar o sentido primordial a partir da experiência em estado bruto, uma dimensão carnal que não é sustentada pela reflexão. A possibilidade de reversibilidade entre visível e vidente dada pelo corpo não é fruto de uma consciência e indica, antes, certa passividade, indiferenciação como subjetividade, generalidade que pode ser partilhada como intercorporeidade.
1.3 A Intercorporeidade
Merleau-Ponty opõe-se ao subjetivismo psíquico, classificando seus conceitos de míticos. Combate a introspecção, não acredita em uma visão do interior, mas em “uma vida ao pé de si, uma abertura a si, mas que não desemboca em outro mundo diferente do mundo comum – e que não é necessariamente fechamento aos outros” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 29).
A experiência intercorporal é, assim, para Merleau-Ponty, uma experiência irrefletida, que nos dá o outro não como um espetáculo ao qual aprecio de fora. O filósofo afirma através da ontologia da carne a impossibilidade da constituição subjetiva e a possibilidade da instituição, quando conclama a necessidade de que:
Se pare de definir primordialmente o sentir pela pertença a mesma consciência, compreendendo-o, ao contrário, como retorno sobre si no visível, aderência carnal do sentiente ao sentido e do sentido ao sentiente. Porquanto recobrimento e fissão, identidade e diferença, essa aderência faz brotar um raio de luz natural que ilumina toda a carne, não apenas a minha (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 138).
Aqui ele afirma a dimensionalidade da experiência intercorporal, possibilitada e ao mesmo tempo instituinte de um modo de ser, tornada carne quando, singularidade, particularidade espácio-temporal, minha expressão é tomada pelo outro como sua, dimensão universal.
A experiência intercorporal nos dá o outro como outro eu, outro feito de minha substância, que me mostra, através do seu olhar para o mundo que pensava ser “meu”, que vemos o mesmo mundo; que me mostra, através dos seus olhos marejados de lágrimas que se dirigem a uma cena do mundo, a “minha” dor. A presença do outro acrescenta ao paradoxo interno de minha percepção “este enigma da propagação no outro da minha vida mais secreta” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22).
Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo, nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima, visão geral, em virtude dessa propriedade primordial que pertence à carne de, estando aqui e agora, irradiar por toda a parte e para sempre, de, sendo indivíduo, também ser dimensão e universal (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 138).
A criação é, para ele, o movimento selvagem, não domesticado, livre de uma natureza a priori que permite, pela singularidade, a manifestação de uma universalidade. Trata-se de uma ontologia que descreve como a experiência cria. Experiência que se faz no entrelaçamento eu-outro-mundo, em situação, inexoravelmente imbricados e incorporados.
Uma vez traçados esses referenciais, buscarei agora uma aproximação com a Gestalt-Terapia e sua dimensão de abordagem que busca descrever a experiência e os modos de ser-no-mundo.
2. Situação Clínica e Filosofia
A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo,
e nesse sentido uma história narrada pode
significar o mundo
com tanta “profundidade” quanto um tratado de
filosofia
Maurice Merleau-Ponty (1994, p. 19)
Ao me propor esse diálogo entre Gestalt-Terapia e Merleau-Ponty, busco manter em meu horizonte os limites de tal aproximação. Limites que não se colocam, entretanto, sem ambigüidades, que considero – na mesma ótica do filósofo – boas ambigüidades, aquelas que partem de um campo comum de experiências impessoais. Essas experiências, apontadas a seguir, não são da Gestalt-Terapia ou de Merleau-Ponty, mas de um campo comum de influências, certo espírito de época, demarcado por um horizonte de tempo-espaço, filósofos, teóricos, história, sociedade, política, um fundo, uma mesma carne.
Encontramo-nos nas propostas da Psicologia da Gestalt, e nas críticas a ela; no pensamento de campo, organísmico; nas tentativas de ultrapassar um intelectualismo ou um empirismo de um lado, um reducionismo psíquico ou comportamental de outro; encontramo-nos também na remissão constante à arte e à estética, na busca da expressão como criação, na oposição ao assujeitamento e na ênfase à liberdade como poder instituinte de uma corporeidade compreendida não como sujeito, mas como espontaneidade motora, nem ativa nem passiva, modo médio, nem consciência, tampouco inconsciência.
Toda psicoterapia tem uma proposta de intervenção, um método, construído com base em sua concepção da pessoa, das relações pessoa-mundo, do funcionamento humano em seu entrelaçamento com natureza e cultura e nas tensões presentes nessas relações.
Tomando uma dimensão não objetivista da psicologia, tal como discute Merleau-Ponty na obra Ciências do Homem e Fenomenologia (1951/1973), que coloca o sujeito ou a consciência como objeto, fruto de determinações externas ou sociais, é possível afirmar que há, no cerne do trabalho psicoterápico na perspectiva da Gestalt-Terapia, motivações que nos aproximam de uma atitude filosófica.
Falamos aqui de uma atividade que é trabalho de criação dado a partir de uma situação de crise, sempre uma crise de sentido, trabalho de produção de sentido para a existência no mundo com o outro, e mais que isso, um trabalho que, na perspectiva da Gestalt-Terapia, visa resgatar a capacidade de criar a partir da situação no mundo com o outro, concebendo a corporeidade como espontaneidade criadora, instituinte.
É nesse sentido que entendemos que uma psicoterapia de base fenomenológica, como a Gestalt-Terapia, está encarnada ela mesma no âmbito de uma atividade crítica que acompanha o nascimento de um filosofar, tal como proposto por Souza (2008). Para ele o nascimento da filosofia se dá a partir do núcleo de uma crise, quando há um movimento de crítica, que define como “a mobilização e efetivação das forças criadoras e transformadoras que habitam o núcleo da crise (...) seu momento radicalmente construtivo” (p. 70).
Entendemos que ao transitar no campo da produção de sentidos, podemos considerar a Gestalt-Terapia uma proposta que, no âmbito de uma singularidade, lida com um tipo de atividade que transcende o campo da realidade tomada como objetividade, das predições e determinações causais, rumo ao campo do transcendental – aqui entendido do ponto de vista merleau-pontyano como o mundano, o ser bruto, a dimensão originária e que “está aquém do ser e do nada, já que como ser poroso, ele é a originária indivisão deles” (Dupond, 2010, p. 68/69).
Lidamos na psicoterapia com questões existenciais que, muitas vezes travestidas de uma objetividade, contadas por meio de um discurso objetivante, naturalizante, convidam para as análises explicativas e para as determinações causais. Indicam, de modo mais ou menos explícito, o desejo por parte do cliente de um trabalho apenas analítico que explique as causas do sofrimento, tampone a angústia e gere alívio.
Quando esse caminho é tomado pelo terapeuta, se não está “suficientemente atento” ao que a experiência objetiva relatada descreve, tal como recomenda Merleau-Ponty (1951/1973, p. 50), nos afasta do âmbito da produção de sentidos e nos protege – terapeutas, pessoas concretas e envolvidas naquela situação – da experiência do risco, conforme discutimos em trabalho anterior sobre a psicoterapia e a experiência estética (Alvim, 2007a). Essa experiência do risco é aquela típica do filósofo, aquele que não acredita poder sobrevoar seu objeto, que não tem por adquirida a correlação do saber e do ser, aquele que quando “questiona é, ele próprio, posto em causa pela questão” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37).
Ao contrário disso, o sentido ético da psicoterapia no meu entender está em provocar um desajustamento criador (Alvim, 2007b). Um desvio para o vazio, para o que ainda não é. E para isso é necessário sustentar a experiência do não-sentido e a angústia aí envolvida. Entendemos que está em jogo no sofrimento, a relação entre o ser e o nada. Longe de serem considerados aqui pólos de uma relação dicotômica, o que é está sustentado de modo tênue por um tecido invisível, algo que ainda não é, mas que nos sustenta, conectado por horizontes temporais com uma possibilidade futura de ser ainda não visível, im-pré-visível.
A terapia deve ter como meta proporcionar um tipo de reflexão que nos conecte com essa dimensão originária presente na experiência pré-reflexiva, que nos ponha em contato com a experiência reversível do ser e do nada, do sentido e do não-sentido, da visibilidade sustentada por uma invisibilidade presente de modo não-explícito, visando uma presença tal que propicie criação, instituição de sentidos, movimento, reconfiguração. A terapia visa uma presença como corpo situado no mundo com o outro. E é somente pela experiência com o outro que poderemos alcançar esse tipo de reflexão.
A Gestalt-Terapia propõe como método concentrar-se na estrutura concreta da situação, método que a partir do diálogo com o outro, remete ao âmbito do originário, do fazer-se sentido. A relação aqui-agora com o outro é privilegiada. É o outro eu que me dá a possibilidade da diferença, do descentramento. Falamos da terapia como ampliação de horizontes. E eles já estão aqui como um aí prévio, invisíveis, latentes, sustentando o visível. É partindo desse fundo, que gostaria agora de compartilhar cenas fictícias de uma experiência clínica.
3. O Encontro com Lara
Lara chega ao consultório. Rosto sofrido, olhos cansados, maquiagem forte. Andar pouco equilibrado, corpo endurecido pela roupa apertada, sapato muito alto, talvez demais. Olho para ela e me abro, busco um fio que nos conecte, que ligue a chave do encontro. Diz que está ali porque não tem mais para onde ir. Fez terapia por vários anos, sabe tudo sobre si. E conta o enredo do filme que rodou em muitas versões ao longo de sua vida. Repete que seu problema é a repetição de uma estória de rejeição. Chora, desesperada. Rebela-se por novamente ter que fazer terapia.
– Tudo o que fiz, não valeu de nada? Interroga. E repete a sinopse da última versão.
Sinto-me estranha. Como se devesse algo a ela pelas terapias que “não funcionaram”. Mas espero e sigo escutando-a. Fala da mãe, do ex-marido, da traição de ambos, da injustiça, de suas qualidades, solidariedade, queixa-se dos sofrimentos, conta detalhes das situações que sofreu. Ao final de nosso primeiro encontro proponho abandonar um pouco o enredo dessa história para concentrarmo-nos nos diferentes roteiros e versões. Em pequenos detalhes de algumas cenas. Em imagens secundárias, pequenas percepções. Com essa proposta faço a Lara o primeiro convite para um olhar mais demorado, com presença, que a desvie de uma estória já constituída e automatizada.
Lara me olha ligeiramente surpresa. Algo incrédula. Parece duvidar de seu próprio caminho, automatizado em uma fala que não para, mas isso dura poucos segundos. Logo volta ao movimento anterior, volta a queixar-se e a dizer do seu desespero. Como um motor, ela gira. E assim nos despedimos naquele primeiro encontro. Sem conexão.
Outras sessões se sucedem. Semelhantes. Começo a sentir um incômodo. Ela gira o motor e sofre muito. Sofre pelo que se passou, mas sofre ainda mais de solidão. Sofre porque sabe demais. Sabe que tudo aquilo lhe faz mal, mas não consegue deixar de desejar tudo aquilo. Porque todos que a amam lhe dizem como ela é boba, como tem tudo para “virar a página”, “fazer a fila andar”. Falam de como tem uma vida boa e como é incapaz de superar relações tão maléficas e daninhas. Sofre pelos acontecimentos. Mas sofre também porque “sente” demais, é “frágil e sensível demais”, afirma. E porque se sente incapaz de mudar, se sente “incompetente, burra”.
Ao fim das sessões sinto-me estranha, sem perceber sinais de uma conexão que se anuncie. Ao mesmo tempo, noto que ela está engajada. Vem a todas as sessões, pontualmente. O motor gira sem cessar.
Aqui e ali busco encontrá-la. Seu olhar me atravessa. Convites para olhar outras cenas não são aceitos. Tampouco para se demorar sobre elas. As perspectivas são sempre as mesmas. Como em um filme hollywoodiano, as cenas que Lara mostra se sucedem rapidamente, sem qualquer espaço para a criação, para o sonho, o devaneio. Tudo está pronto e acabado. Acabado.
Um dia ela fala mais uma vez das pessoas que a criticam por sofrer. Naquele dia, diferente de outros, ela diz isso olhando para mim. Sinto novamente a sensação de dever algo a ela. E compartilho isso. Lara desacelera, reduz a marcha e para pela primeira vez. Olha-me mais uma vez nos olhos, quase demoradamente, e depois de alguns segundos, murmura:
– É. Mas você não faz parte dessa estória.
Já ia dando a partida novamente no motor, quando a interrompo:
– Faço parte, sim. Estou aqui-agora com você tentando mudar essa estória. E tenho a sensação de que você não quer reescrevê-la. Mas se eu pudesse fazer algo nesse roteiro, permitiria que você sofresse bastante.
Digo isso emocionada e me sentindo muito conectada com Lara, que, diante do meu gesto e de minha emoção que transborda, me olha estupefata:
– O que?!?
– Deixaria você sofrer bastante, Lara. Acho seu sofrimento tão legítimo!
– Mas e tudo o que as outras pessoas me dizem? Que sou boba, que tenho uma vida ótima, que não tenho motivos para sofrer?
Olho profundamente nos olhos de Lara. Vejo ali uma grande solidão, um grande sofrimento que não pode ser sentido, tornar-se sentido, porque não há outro para comungá-lo.
E digo:
– Olhando nos seus olhos, posso sentir seu sofrimento aqui no meu peito.
Lara desliga o motor e desce do carro. Estaciona, toma o elevador e entra em meu consultório pela primeira vez. Finalmente podemos ter nosso primeiro encontro.
A Gestalt-Terapia é uma terapia do contato. A neurose é concebida de modo amplo como fixação na forma, perda das possibilidades expressivas, expressão aqui entendida de modo merleaupontyano como criação. Laura Perls desejou que a Gestalt-terapia se chamasse Gestaltung-terapia, ou seja, terapia da formação de formas. O que se visa, nessa perspectiva é um trabalho psicoterápico que permita o restabelecimento do fluxo de awareness, definido como “conhecimento imediato e implícito do campo” (Robine, 2006). A noção de awareness envolve um tipo de sentir que é abertura, passividade, entrega ao campo e ao outro como representantes de uma dimensão intercorporal que é generalidade e que me põe, me afirma, me inclui, com meus paradoxos, na categoria do ser carnal.
Ao discutir as relações com o mundo, Merleau-Ponty nos fala de uma “presença perceptiva no mundo” como “a experiência de habitar o mundo por meio de nosso corpo” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37). Afirma a anterioridade dessa experiência em relação à reflexão, “nossa experiência que está aquém da afirmação e da negação, aquém do juízo – opiniões críticas, operações ulteriores -, é mais velha que qualquer opinião” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37).
Critica assim a filosofia reflexionante, aquela que busca compreender o nosso vínculo natal com o mundo desfazendo-o para refazê-lo. Aquela que acredita encontrar a clareza pela análise, nos elementos mais simples, nas condições mais fundamentais, em premissas de onde ele resulta como consequência, uma reflexão que “recua sobre as pegadas de uma constituição” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 41).
Lara era expert em analisar reflexivamente. Conhecia com clareza todos os elementos, condições fundamentais, premissas, causas e conseqüências. Através dos anos de terapia, havia recuado todas as pegadas da constituição de seu sentimento de rejeição, que conotava como “infantil”. Orientada pelas premissas da Gestalt-Terapia, eu buscava uma conexão, um fio que nos ligasse. No fundo de minha experiência, estavam as lições de Merleau-Ponty (1964/2000):
O segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente, que esteja contido em meu contato com ele. De tudo o que vivo, enquanto o vivo, tenho diante de mim o sentido, sem o que não viveria e não posso procurar nenhuma luz concernente ao mundo a não ser interrogando, explicando minha frequentação do mundo, compreendendo-a de dentro (p. 41).
Estou aderido ao mundo através de meu corpo, que me dá a verdade a partir da minha experiência de habitá-lo. É nesse a priori da minha relação de aderência ao mundo e à situação que está a base e a fundação da verdade. É no sentido que se produz no encontro com o mundo, ou seja, no campo e na situação, que está o fundamento da verdade. As tentativas de explicação através do pensamento reflexivo me fazem perder o mundo e o sentido.
Mas como transpor a barreira da explicação e da verdade das teses? Lara buscava explicações, e nelas buscava o sentido que não encontrava. Os “anos de terapia” a encheram de significados e de verdades que havia tomado como si. Teses e enunciados que falhavam. E era justamente nesta falha que estava a brecha para o corpo, para um movimento de habitação e de partida para o trabalho de signific-ação existencial.
Recorro novamente a Merleau-Ponty e me apoio na fé perceptiva. Aquilo que existe antes de qualquer juízo, tomada de posição, uma fé animal, corporal. A fé perceptiva me dá uma certeza inelutável e ao mesmo tempo inexplicável e obscura. É “uma adesão que se sabe além das provas, não necessária, tecida de incredulidade, a cada instante ameaçada pela não-fé” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 21).
Ameaçada de um lado pela fragilidade da percepção, esta que nos dá um domínio da totalidade, porém circundado por uma visão lateral, por uma selva composta por uma “vegetação de fantasmas”, a percepção é dotada de movimento e instabilidade. Tais ameaças se apresentam a todo instante, quando examino o mundo com meu pensamento e recuo, saindo dessa habitação e me entrincheirando em algum fantasma-arbusto, seja ele imaginação, tese ou enunciado. “O mundo é o que percebo, mas sua proximidade absoluta, desde que examinada e expressa, transforma-se também, inexplicavelmente, em distância irremediável” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 20).
Lara estava perdida em uma floresta de fantasmas. Só e distante de todos, do mundo, sobretudo da sua experiência. Para ajudá-la a encontrar o caminho, eu precisava de um fio. Mas diferente de Ariadne, eu não tinha um fio pronto para oferecer a Lara. Precisávamos tecêlo juntas. Ela estava sozinha e perdida. As explicações dela e dos outros os distanciavam irremediavelmente. Busca o remédio na terapia e ao mesmo tempo não sabe se aproximar.
O sentido e o significado da experiência são criados nessa relação (eu e outro) que me envolve e ao terapeuta. As lições da Gestalt-Terapia nos ensinam como método concentrar-se na situação, “trabalhar a unidade e a desunidade dessa estrutura da experiência aqui e agora” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 46). Buscar a integração necessidade-figura-fundo a partir do campo, uma gestalt vigorosa, uma experiência integradora a partir da awareness, criando sentidos/significados para a experiência aqui-agora.
Lara não me vê. Não me escuta. Não sabe se aproximar. Está só em seu labirinto. Para resgatar sua fé perceptiva precisa ampliar sua presença. Encontrar-se aqui-agora comigo nesta situação. Mas sente-se tão só. Inferiorizada diante do outro que sabe o que é melhor para ela e a critica por não agir de acordo com as teses. Assim, gira como um motor, potência rotativa de uma força centrípeta que a mantém no centro, de pé, um si-mesmo. Ensimesmada, não deixa espaço para outrem, para ultrapassar a personagem, a personalidade. Precisamos criar uma força contrária, uma força centrífuga que a lance para fora de si.
Ao discutir o tema da relação com o outro, Merleau-Ponty pergunta-se o que aconteceria se, além de minha visão sobre mim e sobre o mundo, me fossem dadas também as visões de outrem sobre si, o mundo e sobre mim. Refere-se à visão como “sentido”, como experiência corporal. Assim, encontramos o outro não no espaço objetivo, da reflexão, mas no meio obscuro no qual a percepção irrefletida se move à vontade. Encontramos o outro assim como encontramos nosso corpo, no campo, na expressão. E é esse o espaço da psicoterapia.
Como me encontrar com Lara? Como conectar-me com ela, me perguntava através do incômodo que sentia. Outra lição merleau-pontyana: o diálogo genuíno é intercorporeidade. O meu vínculo com a situação e com aquele mundo que o cliente sente como seu mundo, aponta algo daquele (seu) campo, demonstra, reflete o seu vínculo e sua aderência a ele – que como que por um passe de mágica, ele passa a notar.
O filósofo nos ensina que é quando “surge o insólito na partição do diálogo (...) quando uma resposta do outro (aqui, o terapeuta) responde bem demais ao que eu pensava sem tê-lo dito inteiramente” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22), ou quando um gesto sinaliza algo que sinto, “irrompe a evidência de que também acolá, minuto por minuto, a vida é vivida” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22).
Isso é uma demonstração de aderência ao mundo, uma revelação de que aquilo que sinto e não explico é vida passível de ser vivida, é digno de uma subjetividade, de um mundo próprio.
Em algum lugar atrás desses olhos [que me olham], atrás desses gestos, ou melhor, diante deles, ou ainda em torno deles, vindo de não sei que fundo falso do espaço, outro mundo privado transparece através do tecido do meu, e por um momento é nele que vivo [nesse outro mundo privado], sou apenas aquele que responde à interpelação que me foi feita (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22) [observações minhas entre colchetes].
Saio do meu centro, visível, me descentro, porque me vejo no outro – e isso não é projeção – sou arrastado com ele para o âmbito de outrem. Afirma: “a experiência que faço de minha conquista do mundo é que me torna capaz de reconhecer uma outra experiência e de perceber um outro eu mesmo, bastando que, no interior de meu mundo, se esboce um gesto (expressivo) semelhante ao meu” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p. 171).
A intervenção realmente terapêutica acrescenta esse enigma da propagação no outro da minha vida mais secreta. Merleau-Ponty afirma:
Então é mesmo verdade que os ‘mundos privados’ se comunicam entre si, que cada um deles se dá a seu titular como variante de um mundo comum. A comunicação transforma-nos em testemunhas de um mundo único, como a sinergia de nossos olhos os detém numa única coisa. Dá-nos, por uma operação de reversibilidade, a experiência intercorporal (Merleau- Ponty, 1964/2000, p. 23).
A intercorporeidade aponta para uma possibilidade de comunicação que prescinde da reflexão, que nos lança além da subjetividade, da “consciência de”, ao âmbito de uma corporeidade, aderência carnal que faz visível, que faz brotar um raio de luz que ilumina toda a carne, por toda parte. Lara chega ao consultório quando nos conectamos ambas com a tristeza. Aí ela conquista o mundo e pode legitimar o que sente. Primeiro passo e indício de um sentido que se anuncia a partir da deiscência da carne, de uma generalidade de ser que se singulariza e a permite ver-se triste. É no âmbito da experiência intercorporal, compreendo, que fecunda o terapêutico como criação e ação de produção de sentidos. “A mordida do mundo tal como a sinto em meu corpo fere tudo o que está exposto como eu” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p. 171). O outro se insere, conclui o autor, na junção do mundo e de nós mesmos, ele é um eu generalizado. É assim que minha relação corporal com o mundo pode ser generalizada – e podemos falar de uma intercorporeidade como a possibilidade de um sentir com. Ponto de partida para nosso caminho. Vamos, Lara. Sigamos.
Referências
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Souza, R. T. de (2008). Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Endereço para correspondência
Monica Botelho Alvim
Av. Pasteur, 250 (Campus da Praia Vermelha, Urca)
Rua Ramiro Barcelos, 2600 - Sala 123
CEP 22290-240
Rio de Janeiro (RJ)
E-mail: mbalvim@gmail.com
Recebido em: 14/07/11
Primeira decisão editorial em: 20/10/11
Aceito em: 22/11/11
* Doutora em Psicologia, Professora Adjunta na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Departamento de Psicologia Clínica).
1 Coexistir é abrir-se ao horizonte comum, e, ao contrário, sobrevoar seria vê-las acabadas, sem horizontes, fechadas em si e de mim separadas. À minha subjetividade, submetidas.