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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.spe Goiânia dez. 2018
https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24ne.9
DOSSIER FENOMENOLOGIA E IDADE MÉDIA
Interpretação fenomenológica do poema "noite escura" de João da Cruz
Phenomenological interpretation of the Poema "The Dark Night" of John of the Cross
Interpretación fenomenológica del Poema "Noche Oscura" de Juan de la Cruz
Renato KirchnerI; Jealison Machado LarocaII
IProfessor e Pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Membro do corpo docente permanente da Faculdade de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Doutor e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, coordena o Programa de Mestrado Stricto Senso em Ciências da Religião. E-mail: renatokirchner00@gmail.com
IIGraduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Bolsista de Iniciação Científica na modalidade PIBIC/CNPq. E-mail: jealisonlaroca@hotmail.com
RESUMO
Este artigo tem por escopo expor, analisar e interpretar, a partir do método fenomenológico, a obra Noite escura (Noche oscura), do místico cristão João da Cruz (1542-1591). Busca-se um aprofundamento no texto-base, bem como de comentadores especializados. O horizonte fenomenológico é demarcado pelas anotações heideggerianas sob o título "Os fundamentos filosóficos da mística medieval", datadas de 1918/1919, e publicados no volume 60 da Obra completa pelo título Fenomenologia da vida religiosa. A interpretação aqui realizada permite discernir em que medida o símbolo "noite escura" pode ser comunicado e entendido pelo homem religioso e pelo homem não-religioso, uma vez que Noite escura refere-se a um estado muito particular de experiência mística, o qual conduz à divina união de amor com Deus.
Palavras-chave: Noite escura. Experiência mística. Purificação. João da Cruz.
ABSTRACT
This article aims to expose, analyze and interpret, from the phenomenological method, the work Dark Night (Noche oscura), by the Christian mystic John of the Cross (1542-1591). We look for a deepening in the base text, as well as of specialized commentators. The phenomenological horizon is demarcated by the Heideggerian notes under the title "The Philosophical Foundations of Medieval Mysticism", dated 1918/1919, and published in volume 60 of the Complete Work by the title Phenomenology of religious life. The interpretation here makes it possible to discern to what extent the symbol "dark night" can be communicated and understood by religious man and non-religious man, since Dark Night refers to a very particular state of mystical experience, which leads to the divine union of love with God.
Keywords: Dark night. Mystical experience. Purification. John of the Cross.
RESUMEN
Este artículo tiene por objeto exponer, analizar e interpretar, a partir del método fenomenológico, la obra Noche oscura, del místico cristiano Juan de la Cruz (1542-1591). Se busca una profundización en el texto base, así como de comentaristas especializados. El horizonte fenomenológico es demarcado por las anotaciones heideggerianas bajo el título "Los fundamentos filosóficos de la mística medieval", datados de 1918/1919, y publicados en el volumen 60 de la Obra completa por el título Fenomenología de la vida religiosa. La interpretación aquí realizada permite discernir en qué medida el símbolo "noche oscura" puede ser comunicado y entendido por el hombre religioso y el hombre no religioso, ya que la noche oscura se refiere a un estado muy particular de experiencia mística, a la divina unión de amor con Dios.
Palabras-Clave: Noche Oscura. Experiéncia Mística. Purificación. Juan de la Cruz.
Introdução
Nesta reflexão objetiva-se realizar uma interpretação fenomenológica do poema Noite escura de João da Cruz. Antes de se iniciar o percurso desta interpretação, faz-se necessário definir qual seja o início de tal caminho. O objeto da nossa investigação será a "noite escura", contudo, o método que nos auxiliará em tal tentativa será o da fenomenologia heideggeriana. Assim, o nosso ponto de partida e princípio orientador serão as anotações do filósofo alemão Martin Heidegger datadas dos anos de 1918/1919 sob o título "Os fundamentos filosóficos da mística medieval", publicado no volume 60 da obra completa do filósofo: Fenomenologia da vida religiosa (Phänomelogie des religiösen Lebens)1.
É, pois, pelos fundamentos que o nosso caminho pela noite escura tem seu início. Antes de fazermos a análise do texto de João da Cruz, buscaremos os fundamentos filosóficos e a orientação fenomenológica necessária para o que aqui se pretende fazer. Heidegger elabora um esboço para uma preleção, a qual não vem a ser proferia. Tal esboço servirá aqui como delimitação de um horizonte da presente tentativa de interpretação de Noite escura.
Uma pergunta que aqui nos interessa fazer é esta: poderia o homem não-religioso compreender a vida religiosa? Enfim, somente o homem religioso poderia possuir os dados autênticos para tal compreensão? A presente dificuldade poderia colocar-se caso a intenção fosse o fomento da vida religiosa em si. Mas não é isso que aqui se busca e, sim, uma compreensão fenomenológica da vida religiosa - e, num passo seguinte, da experiência mística (Heidegger, 2010, p. 317-320).
Heidegger não trata diretamente de João da Cruz na obra citada. No entanto, o fato de o texto heideggeriano não tratar diretamente de João da Cruz não nos parece ser um empecilho para a realização da investigação aqui proposta. Em "Os fundamentos filosóficos da mística medieval" há a citação explícita, embora breve, de Teresa de Ávila. Devido à proximidade da temática mística vivenciada e desenvolvida por João da Cruz e Teresa de Ávila, neste trabalho foi possível preencher a lacuna deixada quanto à figura de João da Cruz. Mais propriamente, como será melhor desenvolvido em lugar oportuno, aproveitou-se da menção de Heidegger a respeito dos Sermões de São Bernardo ao Cântico dos Cânticos. É no contexto da citação de Bernardo que Teresa é citada. Contudo, um olhar mais atento ao texto da Noite escura permitiu constatar que também João da Cruz faz o uso direto de Bernardo, quando fala dos dez degraus da escada mística.
1. A noite escura: um primeiro olhar
Uma vez delimitado o horizonte de investigação, passemos à análise do objeto de estudo deste trabalho, isto é, a obra Noite escura. Lancemos um primeiro olhar sobre a obra de João da Cruz de modo a considerá-la, de início, quanto à sua forma, ou seja, quanto à sua estrutura.
Nesta primeira esfera de análise, pode-se perceber que a obra se estrutura da seguinte maneira: trata-se de um poema seguido de uma longa declaração em prosa. Quanto ao poema, que também é chamado "canções da alma", observamos que este é composto de oito estrofes de cinco versos cada. João da Cruz segue o estilo literário corrente na Espanha da segunda metade do século XVI, a saber, a literatura ascética e mística (Borriello et alii, 2003, p. 588).
Analisemos a estrutura do poema: é escrito na forma de "lira garcilasiana"2, que consiste num modelo de estrofe composto por cinco versos. O primeiro, o terceiro e o quarto versos possuem seis sílabas tônicas cada um; o segundo e o quinto verso possuem dez sílabas tônicas (decassílabo italiano).
Com o verso "Em uma noite escura" começa a primeira estrofe. Deste verso provém o nome da obra: Noite escura. Nas quatro primeiras estrofes, João da Cruz narra o movimento de saída da alma em direção ao Amado, saída esta que se dá em "noite ditosa", na qual a alma se encontra inflamada de amor. É também uma noite "secreta" e "segura" na qual a alma caminha sem ser vista e sem olhar coisa alguma, senão a luz que no coração lhe arde e ilumina (João da Cruz, 2018, p. 21-22).
A quinta estrofe é o ápice do poema: narra-se a chegada da amada e o encontro com o Amado. É a noite "mais amável que a alvorada", na qual dá-se a união do Amado com a amada: "amada já no Amado transformada" (Teixeira, 2018, p. 11).
Nas três últimas estrofes é descrito como se dá a união da amada com seu Amado. Nestas estrofes brotam com toda força o lirismo de João da Cruz. Usa-se a alegoria do amor humano para falar da união do humano com o divino (Teixeira, 2018, p. 15-16). Como veremos mais adiante, a união mesma com o divino, ou a contemplação ela mesma, não pode ser descrita tal como se dá, mas somente por figuras. A grandeza de João da Cruz está no fato de haver encontrado um símbolo denso e sugestivo capaz de exprimir a experiência mística: dizer, com linguagem humana, o indizível (João da Cruz, 2018, p. 150). Tal é a natureza do símbolo.
Quanto às declarações, são de tal profundidade e riqueza, que fazem com que o nome de João da Cruz fulgure entre os maiores da literatura espanhola de todos os tempos. As declarações são explicações, em prosa, dos versos do poema. Dividem-se em dois livros: no primeiro livro é explicada e declarada a canção primeira, à qual o autor dá o sentido de purificação da parte sensitiva do homem, ou como também a denomina, a noite escura dos sentidos (primeira noite). No livro segundo, encontra-se a declaração da primeira e da segunda estrofes. Muda-se, porém, o nível da purificação: fala-se da passiva e obscura purificação realizada na parte espiritual do homem. É a noite escura do espírito (segunda noite).
Quando chega na declaração da terceira canção, João da Cruz interrompe de modo inesperado a obra, sem lhe dar o acabamento que seria de se esperar. Dá apenas uma breve explicação da estrofe em questão, sem fazer a declaração detalhada, como nas estrofes anteriores, de cada verso per si (Teixeira, 2018, p. 14).
1.1. A noite escura dos sentidos
O livro primeiro da Noite escura - como já mencionado - trata da noite do sentido, declarando a primeira canção, na qual a "noite escura" significa a contemplação purificadora realizada na parte sensitiva do homem. Entram na noite escura dos sentidos as almas às quais Deus deseja tirar do estado de principiantes para conduzi-las ao estado dos perfeitos. É uma noite de purificação dos vícios nos quais incorrem os que já se exercitam no caminho espiritual.
As imperfeições em que incorrem os principiantes são apresentadas por meio dos sete vícios capitais: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça. Todos eles tratados num sentido espiritual.
Vejamos cada um dos vícios, conforme tematizados por João da Cruz em Noite escura: A soberba espiritual torna a alma semelhante ao fariseu do Evangelho que se gabava das obras que fazia, enquanto desprezava o publicano. A avareza espiritual consiste no apego às práticas exteriores de devoção. A luxúria espiritual é a causa e origem de todos os demais vícios. No fervor dos exercícios espirituais, sem cooperação alguma da vontade, surgem movimentos e atos baixos na sensualidade. Três são as causas: primeira, do gosto que muitas vezes experimenta a natureza nas coisas espirituais; depois, do demônio, que desperta na natureza tais movimentos sensuais a fim de inquietar e perturbar a alma no momento da oração; bem como do temor que tais movimentos incutem naqueles que lhes são sujeitos. A ira espiritual diz respeito ao mal humor surgido na alma ao lhe acabar o sabor e o gosto nas coisas espirituais; bem como o irritar-se com zelo irrequieto contra os próprios vícios, tornando-os manifestos; assim como o zangar-se consigo mesma, por causa das imperfeições, desejando ser perfeita de um dia para o outro. A gula espiritual consiste no exagero na prática dos exercícios espirituais, não pelo amor de Deus, mas pelo sabor e prazer neles encontrados, fazendo os principiantes ultrapassarem o justo meio, no qual se encontram todas as virtudes, indo além do que sua frágil natureza pode suportar. Quanto à inveja espiritual, essa representa o pesar sentido na alma pelo progresso espiritual percebido nos outros. Já a preguiça espiritual significa o tédio nas coisas espirituais, a fuga dos pios exercícios, por neles não encontrar consolação sensível, gerando o abandono do caminho de perfeição.
"Em uma noite escura": Os principiantes, após percorrerem por algum tempo o caminho da virtude, pelo sabor e gosto encontrados na meditação e oração, sentem-se iluminados pelo sol dos diversos favores divinos. Mais eis que Deus, para que progridam, lhes obscurece toda luz interior, submergindo todo sentido nesta noite, em total aridez, de forma que só encontram amargura e desgosto.
Contudo, nem toda aridez provém da noite escura. Ao contrário, é muito comum sentir aridez. Por isso, há alguns sinais para discernir se esta provém desta purificação sensitiva ou se nasce dos vícios espirituais acima mencionados. São três os sinais principais: 1) Falta de gosto ou consolo, não somente nas coisas divinas, mas também em coisa alguma criada; 2) Lembrança contínua de Deus, com coração aflito por se ver indigno servidor de Deus; 3) Impossibilidade de praticar a meditação.
A maneira como devem proceder os principiantes nesta noite escura é a seguinte: perseverar pacientemente na oração, já que nesta passiva purificação não podem agir por si mesmos. No caminho da noite escura, não há lugar para a imaginação e o raciocínio. É um tempo de paz e ócio da alma.
Quanto mais se vai adiante nesta noite, passa-se a entender os três outros versos da canção primeira. A alma passa a sentir-se com desejo de Deus: "De amor em vivas ânsias inflamada", de sorte que ela mesma não entende de onde lhe brota tanto amor e afeto. É uma ditosa ventura - "Oh! ditosa ventura", diz o verso -, os grandes proveitos recebidos pela alma, ainda que esta não seja capaz ainda de os perceber. Só julga ser grande ventura haver saído do laço e aperto dos sentidos. Eis a grande ventura desta saída: "Saí sem ser notada". Sair da sujeição que tinha a alma à parte sensitiva, de modo que nenhum dos inimigos (mundo, demônio e carne) a pudessem perceber, deixando de buscar a Deus pela via tão limitada dos sentidos.
O principal proveito causado na alma por esta escura purificação é o conhecimento de si e de sua miséria. Estado que leva a alam, depois, a ser mais comedida e respeitosa perante Deus, logrando humildade espiritual, donde lhe brota o amor ao próximo, a todos estimando, ao invés de os julgar. É tempo de submissão e obediência no caminho espiritual.
Outros proveitos trazidos à alma são: deleite de paz; ordinária lembrança de Deus; limpidez e pureza do espírito; exercício de virtudes.
Tal noite consiste em uma saída de si em direção à liberdade do amor de Deus. Saída que se dá estando sossegada a casa da sensualidade, de sorte que a alma se expressa no último verso da canção primeira: "Já minha casa estando sossegada".
É Deus que, em tal sossego, nutre a alma, de modo que ela não coopera ativamente em nada (quanto às suas potências e raciocínios) neste caminho que leva à via do espírito, que consiste na segunda noite.
1.2. A noite escura do espírito
O segundo livro trata da noite escura do espírito. Começa por dizer em que tempo tal purificação tem início. A purificação dos sentidos, por mais forte que tenha sido, não está acabada e perfeita se não ocorre a principal purificação, que é a do espírito. Isto se dá pela íntima conexão que existe entre sentido e espírito. Deus põe a alma, propositalmente, numa terrível noite de contemplação para conduzi-la à divina união de amor.
Duas são as espécies de imperfeições e perigos que são próprios aos adiantados (aproveitados): umas, habituais, outras, atuais. As imperfeições habituais são os apegos e costumes que permanecem, como raízes, no espírito. Bem como a habetudo mentes, a dureza natural que todo homem possui por conta do pecado, a distração e o derramamento do espírito.
As imperfeições atuais ocorrem de modo diferente em cada um, podendo vir por meio de ilusões, visões imaginárias e espirituais. Alguns mesmo caem em vícios piores do que aqueles apontados na noite dos sentidos.
A noite do espírito é necessária para que o sentido se conforme ao espírito, de modo que a comunicação espiritual posa ser pura e forte na medida em que se exige para a união com Deus. O meio próprio e adequado para unir-se com Deus é despojar o sentido e o espírito, caminhando em obscura e pura fé.
"Em uma noite escura". Por que chama a alma à luz divina de "noite escura"? Por dois motivos: 1) Pela elevação da sabedoria de Deus, que excede a capacidade da alma, tornando-se treva para a alma e 2) devido à baixeza e impureza da alma, que faz com que a luz de Deus lhe seja penosa e aflitiva, bem como obscura.
A contemplação infusa, chamada por Dionísio "raio de treva divina" (Catalán, 2008, p. 25-26), possui tantas excelências, extremamente boas, e a alma ainda está cheia de misérias em extremos. Não podem caber os dois contrários num mesmo sujeito. O penar e o sofrimento se dão na alma pela luta destes dois contrários. Embora a mão de Deus seja branda e suave, a alma a sente tão pesada e contrária.
O maior sofrimento da alma é crer-se abandonada por Deus. A alma, no mais profundo desta noite, sente as sombras e gemidos da morte e as dores do inferno. Sente-se sem Deus, castigada e abandonada, indigna dele. O mesmo sente a alma em relação às criaturas e aos amigos.
As almas que padecem tal noite são as que verdadeiramente descem vivas ao inferno, fazendo (sofrendo) em vida a purificação que deveriam fazer (sofrer) depois da morte. De sorte que é de muito maior proveito uma hora deste sofrimento aqui na terra do que muitas depois da morte.
Tudo que se pode expressar acerca desta infusa purificação, quanto às aflições e angústias, é certamente muito abaixo da realidade. Muitos são os exemplos nas Sagradas Escrituras que ajudam a ilustrar esta purificação e noite espiritual.
A alma que passa por tais tormentos imagina não ser esta noite o remédio de que ela necessita. Mas é Deus que a purifica, do modo que melhor lhe convém, de sorte que em nada a alma pode agir. Esta é como prisioneira em obscura masmorra, atada de pés e mãos.
A alma deve permanecer humilde, para que se humilhe, abrande e purifique o espírito, de tal modo que seu espírito possa tornar-se um com o espírito de Deus, segundo o grau de união de amor que a divina misericórdia deseja conceder-lhe. Segundo tal medida, será maior ou menor a noite escura.
Neste estado, a alma padece por não conseguir rezar e por não sentir-se ouvida por Deus. Contudo, não é tempo de se falar com Deus, mas sim de sofrer com paciência sua purificação. E, se tal purificação lhe parecer obscura, é porque, conforme diz o Filósofo, "as coisas sobrenaturais são tanto mais escuras ao nosso entendimento quanto mais luminosas e manifestas em si mesmas".
Embora tal noite obscureça o espírito, esta é destinada a esclarecer-lhe e dar-lhe luz. Se o humilha e torna miserável, é para exaltá-lo e levantá-lo. O espírito deve estar simples, puro e desapegado das afeições naturais (atuais e habituais), para comunicar-se livremente, em dilatação espiritual com a divina sabedoria.
Esta luz divina que a purifica é a mesma a que a alma chega, quando da união deífica. E, se produz, nos primeiros tempos, efeitos penosos e estranhos, é por causa da fraqueza e imperfeição da alma, de tudo quanto é contrário à recepção de tal iluminação.
O fundamento da noite escura pode ser dado por meio da comparação do fogo que queima a madeira. A divina iluminação vai dispondo a alma do mesmo modo que o fogo ateado à madeira vai secando, tirando a umidade e expelindo a seiva, a fim de transformá-la em si mesmo, em fogo.
"De amor em vivas ânsias inflamada", no fogo de amor já referido, o espírito sente-se apaixonado por esta inflamação espiritual, que produz paixão de amor. É paixão porque tal amor infuso é mais passivo que ativo. A alma apenas dá seu consentimento.
"Oh! ditosa ventura". A ditosa ventura da alma é justamente o que se segue: "saí sem ser notada, já minha casa estando sossegada". A heroica união com o divino Amado é realizada fora da casa da sensualidade, na solidão, estando adormecidos todos os apetites e paixões.
É uma ditosa ventura ter Deus adormecido na casa da alma todos os moradores, isto é, suas paixões e potências, afeições e apetites, quer da parte sensitiva, quer da parte espiritual. Saindo sem ser notada, ou seja, impedida por todas estas afeições.
A alma, caminhando nas trevas, "na escuridão", vai "segura". Tal escuridão é entendida quanto aos apetites e potências já mencionados. Caminha segura nas trevas porque estão adormecidos suas potências e apetites.
Sai a alma segura "pela secreta escada disfarçada": secreta escada é o nome pelo qual chama a alma esta contemplação obscura; disfarçada é o modo pelo qual caminha a alma. É secreta porque segundo a teologia mística denominada pelos teólogos de "sabedoria secreta", que, para Santo Tomás, é infundida e comunicada (secretamente) na alma pelo amor. Não é só a alma que não o entende, ninguém mais, nem mesmo o demônio.
Esta sabedoria secreta é também escada, porque através dela sobe a alma a escalar, conhecer e possuir os bens e tesouros do céu. É escada, sobretudo, porque os mesmos degraus que servem para subir, servem para descer: as comunicações do amor de Deus, ao mesmo tempo que elevam a alma em direção de Deus, humilham-na em si mesma. Neste caminho, descer é subir e subir é descer. Esta escada mística de amor, tal como descrevem São Bernardo de Claraval e Santo Tomás de Aquino, possui dez degraus por onde a alma sobre, passando de um a outro, até chegar a Deus (João da Cruz, 2018, p. 153-155).
O primeiro degrau de amor faz a alma enfermar salutarmente. O segundo degrau faz com que a alma busque a Deus. O terceiro faz a alma agir e lhe dá calor para não desfalecer. O quarto degrau causa na alma uma disposição para sofrer, sem se fatigar, pelo seu Amado. O quinto faz a alma apetecer e cobiçar a Deus impacientemente. O sexto degrau leva a alma a correr para Deus com ligeireza, muitas vezes conseguindo tocar nele. O sétimo torna a alma ousada com veemência. O oitavo degrau faz a alma agarrar e segurar seu Amado. O nono faz a alma arder suavemente. O décimo degrau faz a alma assimilar-se totalmente a Deus e, depois de passar o nono degrau, sai da carne, em virtude da clara visão de Deus.
"Disfarçado" é o modo pelo qual a alma vai pela secreta escada. Outra coisa não é senão dissimulando-se e encobrindo-se sob um traje diferente do de costume, que manifesta seu novo estado e a faz esconder-se dos já citados adversários. Tal disfarce possui três cores, as quais significam as três virtudes teologais.
A fé é representada por uma túnica de excelsa brancura, que ofusca a visão de todo entendimento, resistindo sobretudo ao demônio. Logo acima veste a alma a almilha verde, que representa a esperança, com a qual liberta-se do segundo inimigo, o mundo. Sobre o branco e o verde a alma traz a terceira veste que é a toga vermelha da caridade, que lhe faz crescer o amor do Amado, podendo resistir com maior fortaleza ao outro adversário, a carne. Estas três virtudes separam de tudo quanto aparta a alma de Deus e têm por ofício uni-la com Deus. Como só é possível a alma chegar à perfeita união de amor com Deus vestida com o traje destas três virtudes, ela considera ser grande ventura poder tê-lo vestido.
Por isso, declara: "ditosa ventura!" ter passado das coisas baixas para as altas, alcançando tão desejada liberdade de espírito, "às escuras, velada", ou seja, escondidamente, porque, quanto mais espiritual, interior e remoto dos sentidos é a comunicação, tanto menos o demônio consegue entendê-la.
"Já minha casa estando sossegada", diz a alma, para terminar a segunda canção, significando o seguinte: estando a parte superior da alma - bem como a inferior - já sossegada de seus apetites e potências, parte para a divina união de amor com Deus.
2. O símbolo "noite"
A densidade do símbolo "noite" é tamanha que é até difícil exprimi-lo. Uma chave para a interpretação e compreensão pode, ou melhor, deve ser ancorada no tema da união com Deus. De fato, João da Cruz nunca fala da "noite escura" desassociada da união divina: é sempre "noite" que conduz à "união" (Di Santa Maria Madalena, 1961, p. 155).
A noite é uma purificação que conduz à união. Mas por que, então, chama a alma de "noite" tal purificação? Se Deus é luz e nele não há trevas, como pode conduzir a alma a tal estado? Chama-se noite porque é um obscurecer dos sentidos, quando da primeira purificação, e um obscurecer das falsas imagens de Deus, quando da segunda purificação. É pela via dos sentidos que o homem tem acesso ao mundo. Os sentidos são as "janelas da alma". A noite é um obscurecer dos sentidos. Um passar do superficial para o profundo, isto é, colocar as potências na escuridão.
A noite dos sentidos possui dois aspectos: moral e ontológico. O aspecto moral diz respeito à distância que a alma sente de Deus. A alma tem consciência de que está distante de Deus e, por isso, padece todos os tormentos descritos. Contudo, tais sofrimentos não são causados pela ausência de Deus. Deus está presente (verdadeiramente presente), e é justamente o peso dessa presença que causa tanto penar. A noite escura, porém, não é um silêncio de Deus. Deus não se cala na noite dos sentidos, mas acontece que sua voz é tão ensurdecedora que o homem não tem consciência de que Deus está lhe falando (Stinissen, 2011, p. 17).
Do aspecto ontológico é possível dizer que é causado pela fundamental diferença entre Deus e a criatura. Deus é infinitamente diferente, superior ao homem, porém, deseja divinizar o homem. Tal divinização só é possível mediante um esvaziamento da alma. Por isso, padece a alma tão grandes sofrimentos: para que, estando vazia de si, possa ser preenchida pelo amor de Deus. Deus que é amor, quer ser amado por aquilo que ele é. Quer transformar a alma em amor. O desejo de Deus é "fazer-nos 'deuses' por participação", diz João da Cruz nos Ditos de Luz e de Amor, "Ele que é Deus por natureza, como fogo que transforma tudo em fogo" (Stinissen, 2011, p. 20).
3. A secreta escada
Uma vez delimitado o horizonte de investigação e exposto o objeto de nosso trabalho, passemos à interpretação propriamente dita. Como se pode observar, a densidade da obra Noite escura, de João da Cruz, abre muitas possibilidades de estudos e interpretações. Aprouve por bem reduzir o horizonte de nossa consideração à segunda estrofe do poema:
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada (João da Cruz, 2018, p. 21).
É nesta estrofe que concentraremos nossa atenção a partir de agora. Porém, convém delimitar mais um pouco ainda nossa consideração, uma vez que, para cada palavra desta estrofe, o autor atribui um significado específico. Por isso, lançaremos um olhar especial sobre duas palavras: "secreta" e "escada". Consideremos primeiramente em que consiste ser a noite escura "secreta escada".
João da Cruz lança mão da figura da escada: a noite escura é também escada. O tema da escada, contudo, não é originário de João da Cruz, já aparecendo no livro do Gênesis (Gn 28,10-19) e na Regra de São Bento, no capítulo sétimo, sobre a humildade3.
Para declarar que esta noite é escada, João da Cruz lança mão dos dez degraus da escada mística do amor divino de São Bernardo de Claraval e de Santo Tomás de Aquino, conforme já havíamos referido anteriormente. Os dez degraus são explicados dentro da perspectiva da noite: secreta sabedoria, isto é, secreta escada. Pode-se ver nestes dez degraus como que um resumo de todo o itinerário da Noite escura.
E por que isso nos é tão interessante? Nas anotações heideggerianas "Os fundamentos filosóficos da mística medieval" há uma menção aos comentários de São Bernardo ao Cântico dos Cânticos, pois, ao mencionar Bernardo, Heidegger cita Santa Teresa. É por via desta proximidade temática que foi possível fazer a aproximação de Heidegger e João da Cruz, como já havia sido mencionado inicialmente e que será melhor desenvolvido a partir de agora (Heidegger, 2010, p. 319-320).
3.1. Os dez degraus da escada mística do amor divino
João da Cruz cita várias razões para que a noite escura seja chamada de escada. Destacamos o fato de que ao mesmo tempo a secreta contemplação eleva a alma até Deus, humilha a alma em si mesma. Assim se entende o que significa: "Neste caminho, subir é descer e descer é subir" (João da Cruz, 2018, p. 153-155).
O autor está ciente de que só pode tratar com precisão do lado natural desta contemplação, porque o lado espiritual não é passível de compreensão sensível. Os degraus de amor, como na verdade são, não podem ser conhecidos pela via natural. Afinal, fala-se da secreta escada, sabedoria de Deus, e na simplicidade de tal contemplação, a alma apenas sente, por isso não consegue manifestar aquilo que experimenta.
O mesmo dado pode ser encontrado em Santa Teresa de Jesus: "Pois aquilo que quero apresentar é bastante difícil e obscuro, onde não há experiência disso". Para Heidegger, o olhar místico de Teresa "vê fenomenologicamente" sem ver eideticamente e conforme uma eidética especificamente religiosa (Teresa de Jesus, in: Heidegger, 2010, p. 319-320). Ou seja, é possível ter, de certa maneira, consciência do fenômeno do Divino que vem ao encontro da alma, porém, exprimi-lo quanto à sua ideia e à sua essência não seria ver o fenômeno a partir da mística. Não cremos ser possível trazer a compreensão originária da experiência mística para uma esfera de compreensão absoluta. Já não seria mística, mas qualquer outra coisa!
Devido a tal impasse, de que trata, então, tal gradação em relação ao amor divino? Heidegger apresenta "nexos imanentes essenciais da gradação" e os faz por meio de São Bernardo: "Não quero chegar repentinamente ao cume; quero subir lentamente" (São Bernardo, in: Heidegger, 2010, p. 318). Segundo a compreensão heideggeriana, aquilo que é superior ao homem não deve ser rebaixado a si mesmo, pelo contrário, é a vivência religiosa que deve crescer constantemente a partir do sujeito.
A vivência religiosa originária presente na Noite escura é expressa de um modo diferente. É Deus que vem ao encontro da alma. E, nesta secreta escada, vai iluminando e ilustrando a alma, de grau em grau, por meio de uma enamorada inflamação de amor. Pois somente pelo amor é que a alma pode unir-se a Deus. É um conhecimento amoroso e infuso de Deus. À medida que a alma vai subindo de grau em grau, vai crescendo no amor e na ilustração das realidades que a esperam (João da Cruz, 2018, p. 155).
Considerações finais
Afinal, que considerações é possível fazer pelo que foi exposto, retomando o questionamento colocado na introdução, a saber, se somente o homem não-religioso poderia compreender a experiência mística. Entendemos que uma resposta a esta pergunta está no nível de compreensão a que se pode chegar pela experiência mística propriamente dita. Ou seja, o homem não-religioso não é capaz de compreender a experiência mística em si, porque a experiência mística, ela mesma, não é nem mesmo compreendida pelo próprio sujeito que a vive, pois ela ocorre num âmbito da pessoa onde cessa todo e qualquer discurso meramente racional.
Se existe a possibilidade de se narrar algo da experiência mística, segundo João da Cruz, isso só pode ser realizado de maneira bastante genérica: e é isso que ele faz em toda obra Noite escura. Então, qual o fenômeno que pode ser percebido? Tal fenômeno não pode ser descrito racionalmente: e é por esta razão que João da Cruz lança mão do símbolo da noite, a saber, uma tentativa de expressar ou comunicar o incomunicável. Que a pessoa sinta a experiência mística, isso não se pode negar, mas não estamos tão certos se tal experiência pode ser racionalizada.
A experiência mística é sempre, da parte do sujeito que a vive, algo propriamente singular. Tal singularidade torna, de certa maneira, impossível que a mesma seja partilhada de tal modo que, quem por ela não passe, possa encontrar os dados autênticos para um ver originário, no sentido heideggeriano4.
Portanto, a experiência mística, ela mesma, isto é, a contemplação em si, não pode ser descrita tal como ocorre. Tudo o que é possível dizer da experiência mística é aquilo que pode ser expresso pelo símbolo, por exemplo, o símbolo noite, no caso de João da Cruz. Estar diante da noite escura é estar diante daquele mistério que se realiza no mais recôndito da alma humana.
Referências
Borriello, L., Caruana, E., Del Genio, M.R. & Suffi, N. (2001). Dicionário de mística. São Paulo: Paulus; Loyola. [ Links ]
Catalán, J. O. (2008). A experiência mística e suas expressões. São Paulo: Loyola. [ Links ]
Di Santa Maria Maddalena, G. (1961). A união com Deus: segundo São João da Cruz. Lisboa: Aster. [ Links ]
Heidegger, M. (2010). Fenomenologia da vida religiosa. Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Heidegger, M. (1995). Phänomenologie des religiösen Lebens. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann. [ Links ]
João da Cruz, São (2018). Noite escura. 6. ed. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Stinissen, W. (2011). A noite escura segundo João da Cruz. 5. ed. São Paulo: Loyola. [ Links ]
Teixeira, F. (2018). Apresentação. In: São João da Cruz. Noite escura. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Van der Leeuw, G. (1964). Fenomenologia de la religión. México: Fondo de Cultura Económica. [ Links ]
Recebido em 02.05.2018
Aceito em 02.08.2018
1 No Brasil, o volume 60 foi publicado pela editora Vozes: Martin Heidegger, Fenomenologia da vida religiosa, Bragança Paulista, Edusf; Petrópolis, Vozes, 2010. Em nossos estudos tivemos presente também a edição alemã do mesmo volume: Martin Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995, embora não víssemos necessidade de também referi-la nas citações utilizadas.
2 A lira garcilasiana é modelo de estrofe criado, sob influência do Renascimento, por Garcilaso de la Vega (Toledo, 1500-1531). Compõe-se de cinco versos em que o primeiro, o terceiro e o quarto têm seis sílabas cada um. O segundo e o quinto são decassílabos italianos. Rimas (soantes ou toantes): A/B/A/BB. Foi usado muitas vezes por João da Cruz em seus poemas, sendo que cada estrofe mereceu do autor um comentário místico-teológico (Fonte: https://rogerioluz.wordpress.com/2013/06/03/a-lira-garcilasiana/).
3 Segundo o fenomenólogo holandês Gerardus van der Leeuw (1890-1950), no clássico livro Fenomenologia da religião (§ 75. Mística): "Não há nada mais característico da mística que a descrição do caminho que o homem deve percorrer para alcançar sua meta. Este caminho está dividido em degraus, em estágios. A denominação destes degraus é sempre diferente, mas no fundo é sempre o mesmo. Podem ser sete os graus que devem ser ascendidos, como no sufismo: arrependimento, abstinência, renúncia, pobreza, paciência, confiança em deus, satisfação; podem ser quatro, como para os jhanas do budismo, etc. - mas sempre o fadigoso caminho que conduz à plenitude simples da vida ao sublime vazio do não ser, do morrer em Deus" (Van der Leeuw, 1964, p. 475).
4 Durante a abordagem da nossa temática, privamo-nos em utilizar demasiadamente outros comentadores da obra heideggeriana sobre o tema da mística. Contudo, parece-nos apropriado recomendar ao menos algumas publicações: Bento Silva Santos, Fenomenologia e Idade Média, Curitiba, CRV, 2013; Christian Dubois, Heidegger: introdução a uma leitura, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004; Philippe Capelle-Dumont, Filosofía y teología en el pensamiento de Martin Heidegger, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2012; John D. Caputo, The Mystical Element in Heidegger's Thought, Nova Iorque, Fordham University Press, 1986; John van Buren e Theodore Kisiel (eds.), Reading Heidegger from the Start: Essays in His Earliest Thought, Albany, State University of New York, 1994.