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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.1 São João del-Rei jun. 2015

 

ARTIGOS

 

A participação de crianças nas políticas públicas: construção, prática e desafios

 

Children's participation in public policies: construction, practice and challenges

 

La participación de niños en las políticas públicas: construcción, práctica y desafios

 

 

Beatriz Corsino PérezI; Marina Dantas JardimII

ICECIP - Centro de Criação de Imagem Popular. Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Endereço: biacorsino@gmail.com
IICECIP - Centro de Criação de Imagem Popular. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Endereço: mdantasjardim@gmail.com

 

 


RESUMO

A participação de crianças na orientação das políticas públicas é um desafio e também uma oportunidade. No Brasil, esse processo ainda precisa ser construído. Com o objetivo de experimentar metodologias participativas de inclusão das crianças nas políticas de planejamento e infraestrutura da cidade, ouvir suas opiniões sobre o lugar onde moram e sobre os equipamentos utilizados, realizamos oficinas com 65 crianças, de ambos os sexos, idades entre quatro e doze anos, moradoras da favela Santa Marta. Elas falaram sobre os problemas que as afetam, como lixo, valas de esgoto, fezes de animais e moradias precárias. Tematizaram a falta de segurança e preservação dos equipamentos de lazer da favela, ponderaram sobre o Plano Inclinado e sobre a Unidade de Polícia Pacificadora. Essa experiência revela que a escuta das crianças pode auxiliar na construção de um projeto de intervenção urbana adequado às suas diferentes formas de uso e expectativas.

Palavras-chave: Infância; Participação; Metodologia; Políticas públicas; Favela.


ABSTRACT

The participation of children in guiding public policies is a challenge and an opportunity. In Brazil, this process still needs to be build. In order to experience participatory methodologies for children inclusion in city's planning and infrastructure policies, listen to their opinions on the place where they live and on the equipment used, we conducted workshops with 65 children of both sexes, aged between 4 and 12 years living in the slum Santa Marta. Through these methodologies, they talked about the problems that affect them, such as garbage, open sewer, animal feces and substandard habitation. They emphasized both problems with safety and preservation of the recreational equipment in the slum. They also discussed the tram lift and the UPP (Pacifying Police Unit). This experience reveals that listening to children can help planning an urban intervention project more appropriate to their different forms of usage and expectations.

Keywords: Childhood; Participation; Methodology; Public policy; Favela.


RESUMEN

La participación de los niños en la orientación de las políticas públicas es un reto y una oportunidad. En Brasil, este proceso aún no se ha construido. Para experimentar metodologías participativas de la inclusión de los niños en la planificación y la infraestructura de la ciudad, escuchar sus puntos de vista sobre el lugar donde viven y sobre el equipo utilizado, se realizaron talleres con 65 niños, de ambos sexos, con edades comprendidas entre 4 y 12 años, que viven en la favela Santa Marta. A través de las metodologías, hablaron sobre los problemas que les afectan, como la basura, zanjas de desagüe, las heces de animales y la infravivienda. Directamente hecho hincapié en la falta de seguridad y la preservación de las instalaciones de ocio de la favela, ponderó el plano inclinado y la Unidad de Policía Pacificadora (UPP). Esta experiencia muestra que escuchar a los niños puede ayudar en la construcción de un proyecto de intervención urbana adecuada a sus diferentes formas de uso y expectativas.

Palabras clave: infancia; participación; metodología; políticas públicas; favela.


 

 

O planejamento urbano moderno tomou como parâmetro o "cidadão médio", que corresponde à imagem ideal do homem adulto trabalhador. Assim, a estrutura e a organização das cidades não atenderam aos modos de vida e às demandas de cidadãos que não se enquadram nesse perfil, como deficientes físicos, idosos, mulheres e crianças. Muitas vezes, foi negligenciada a necessidade das crianças de ocupar, circular, estudar e brincar de forma segura e prazerosa na cidade. Isso porque, dificilmente, os planejadores urbanos realizam pesquisas com as crianças para conhecer suas necessidades e desejos na construção dos espaços que projetam, mesmo aqueles feitos especificamente para elas, como praças e escolas.

Na década de 1990, especialmente na Europa, originaram-se diversas propostas de envolvimento de crianças nas políticas públicas municipais motivadas pela Agenda 21 e pela Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989). Apesar do conteúdo normativo e limitado da Convenção, que legitima a participação das crianças em função da sua idade e maturidade e somente nos assuntos que lhes concernem diretamente, o texto enfatiza a importância de suas opiniões serem ouvidas, implicando uma nova perspectiva sobre a infância (Lundy, 2007). No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) também inclui a participação da criança na vida familiar, comunitária e política, e o direito à opinião e à expressão.

A partir disso, houve um entusiasmo pela ideia de participação infantil, a qual também se sustentou por uma crescente produção teórica que passou a considerar as crianças como agentes morais completos (Valentine, 2011). Essa posição problematiza o conceito de infância, que relaciona as crianças ao espaço privado da casa, à natureza, à dependência e à irracionalidade, em oposição ao adulto, que pertenceria ao espaço público da rua, à cultura, à independência e à racionalidade. Nesse sentido, a voz e a ação de crianças são compreendidas como importantes para a construção da sociedade. Elas desempenham um papel, no momento presente de suas vidas, nas instituições das quais fazem parte e suas ações também são fonte de mudança (Prout& James, 1990; Mayall, 1994). As crianças são agentes ativos capazes de alterar a estruturasocial por meio da forma singular como agem e se apropriam do mundo que as cerca, fazendo diferença nas relações sociais e produzindo cultura (Sarmento, 2005; Corsaro, 2011; Barbosa, 2014). Assim, as referências morais que anteriormente cristalizavam o adulto numa posição hierárquica favorável, como o único possuidor de conhecimento, e as crianças numa posição passiva e silenciada tornaram-semais negociáveis, produzindo mais oportunidades para as crianças.

Influenciadas por esse novo paradigma sobre a infância, algumas iniciativas internacionais recomendaram a participação infantil na orientação de políticas públicas. OChildFriendlyCities, um programa do UNICEF (2009) de incorporação da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), incentiva que as opiniões das crianças sejam refletidas em políticas, leis e orçamentos municipais. Outro exemplo é a Città dei Bambini (Tonucci, 2006), uma rede de origem italiana que envolve diversas cidades europeias para modificar o espaço urbano, tomando como parâmetro a criança. A rede inglesa Participation Works, por sua vez, busca auxiliar organizações a envolver crianças no aprimoramento dos serviços a elas direcionados. Todos esses programas defendem a incorporação da participação infantil na vida pública local, com a criação de estruturas e sistemas que respondam às ideias e prioridades desse grupo social. Entendemos que essas iniciativas possuem contornos específicos de seus locais de origem. Para pensarmos mecanismos de incorporação da participação infantil na realidade brasileira, é preciso considerar as características e demandas das crianças em seus contextos histórico-culturais.

Este artigo busca analisar metodologias participativas com crianças que podem auxiliar na construção de políticas públicas de planejamento urbano e segurança, de forma a incluir as necessidades específicas e as perspectivas desse grupo social nos rumos da cidade. O texto está dividido em cinco partes: "Participação das crianças na cidade: o contexto do Rio de Janeiro"; "Construindo estratégias metodológicas para escuta e participação das crianças"; "As crianças e seus espaços na favela: afetividades e dificuldades"; "Memórias de violência e a perspectiva das crianças sobre a Unidade de Polícia Pacificadora"; "Considerações finais: os desafios da participação das crianças nas políticas públicas".

 

Participação das crianças na cidade: o contexto do Rio de Janeiro

No Brasil, os programas de planejamento urbano muitas vezes desconsideram os modos de vida local e a opinião dos moradores, especialmente das crianças, na sua formulação e implementação. Quando investimentos são feitos sem o envolvimento comunitário, é comum que os espaços criados não sejam apropriados e nem conservados pelos seus usuários (Pérez, 2014). Essa questão ainda se intensifica quando se trata de periferias e favelas. Assim, tem sido um desafio para o poder público encontrar meios mais eficazes de diálogo com os moradores da cidade, o que significa promover uma escuta que efetivamente incorpore as suas sugestões no planejamento dos locais onde vivem e frequentam.

No município do Rio de Janeiro, a distribuição de equipamentos urbanos que garantem espaços de sociabilidade, lazer e cultura para as crianças é feita de forma desigual. Faltam espaços públicos, tais como pracinhas, parques, brinquedotecas, bibliotecas, museus, teatros, creches, principalmente, nos lugares habitados pela classe popular. Além disso, nas favelas e periferias a precariedade do saneamento básico, a deficiência nos serviços de coleta de lixo e a falta de água limpa encanada torna a vida das crianças mais vulnerável. Esses aspectos são fundamentais, uma vez que os bairros são os primeiros lugares explorados pelas crianças e por meio dos quais elas descobrem a cidade. O passeio pelos espaços públicos do bairro, a socialização com amigos e famílias são atividades essenciais para esse grupo social. As crianças ganham visibilidade na cidade à medida que realizam passeios, se deslocam até a creche e a escola, ocupam as praças com a sua presença.

Entendemos que as crianças, assim como os adultos, produzem e são produzidas pela espacialidade e pelos elementos materiais que compõem a cidade. Elas se reconhecem e falam a partir de um lugar. Se esse espaço sofre mudanças e rupturas, as imagens produzidas sobre si mesmas também poderão sofrer transformações (Pérez, 2014). Por isso, é importante viabilizar a participação desse grupo social, de modo que suas opiniões e necessidades sejam contempladas tanto na orientação das políticas públicas quanto nos projetos de intervenção na infraestrutura, no espaço e nos equipamentos urbanos a elas direcionados. Para Müller (2012), é fundamental tomar a criança como um ator social, engajá-las nos processos de mudança e na construção de um novo modelo de cidade. "Embora não sejam consultadas, as crianças não só têm opiniões fundamentadas, como querem mais de sua cidade" (p. 298).

Neste artigo, partimos de oficinas realizadas com crianças moradoras da favela Santa Marta, localizada na zona sul do Rio de Janeiro, para discutir possibilidades e estratégias metodológicas de inclusão da participação infantil nas ações do poder público. Esse território foi escolhido em parceria com o Instituto Pereira Passos,1 que autorizou e participou do planejamento das ações do projeto.

O morro Santa Marta vem sofrendo diversas intervenções urbanas. Em 2008, aPolícia Militar do Estado do Rio de Janeiro instalou ali a primeiraUnidade de Polícia Pacificadora (UPP) da cidade. A UPP é um programa da Secretaria de Segurança Pública que visa retomar territórios ocupados pelo tráfico de drogas, promovendo uma atuação permanente da polícia na favela. Também estava em curso, na época em que realizamos o projeto, o programa da UPP Social, que agia como articulador das demandas dos moradores das comunidades com Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em parceria com as diversas secretarias municipais e a iniciativa privada. A partir da realização de diagnósticos das necessidades dos moradores de um determinado território, agentes da UPP Social buscariam atrair serviços, políticas públicas, recursos e investimentos a fim de melhorar a qualidade de vida local.

As oficinas analisadas neste artigo contaram com o envolvimento dos agentes da UPP Social com o intuito de sensibilizá-los para a escuta e a promoção da participação das crianças. Com essa parceria, buscamos promover, em parceria com o poder público, um olhar mais atento às necessidades e demandas da infância, bem como a produção e a divulgação de informações sobre as crianças em seus territórios.

 

Construindo estratégias metodológicas para a escuta e participação das crianças

Nesta seção, apresentamos as estratégias metodológicas do projeto desenvolvido pelo CECIP - Centro de Criação de Imagem Popular, que visava influenciar as políticas públicas de planejamento urbano. Discutimos de que maneira as oficinas feitas com crianças permitem uma maior compreensão do ponto de vista delas sobre o lugar onde moram.

Participaram do projeto 65 crianças, de ambos os sexos, com idades entre quatro e doze anos, moradoras do morro Santa Marta. Para elas foram propostas atividades diferentes em função da faixa etária. Com 25 crianças de quatro e cinco anos, foram realizadas duas oficinas de cinco encontros; com 23 crianças de seis a oito anos, três oficinas de um encontro; e com dezessete crianças de nove a doze anos, duas oficinas de um encontro. O projeto ocorreu de março a maio de 2012, em parceria com uma instituição local, que atende crianças na Educação Infantil e oferece aulas de contraturno escolar.

A consolidação da parceria com a instituição local foi parte fundamental do processo, uma vez que o trabalho com as crianças requer uma imersão em seu lugar familiar, onde elas se sentem seguras para expor suas ideias. Para a construção dessa relação, foram feitas reuniões com os profissionais da instituição (gestoras, professoras, assistentes), nas quais planejamos conjuntamente a maneira como as oficinas seriam realizadas. Também realizamos reuniões com os responsáveis pelas crianças para apresentarmos o projeto, solicitar a autorização para a participação das crianças e o registro de imagens. Ao final das oficinas, fizemos uma avaliação do trabalho com a equipe institucional e apresentamos uma sistematização dos resultados.

Nas oficinas, foram utilizadas metodologias qualitativas (Deslauriers&Kèrist, 2010) e participativas (Christensen& James, 2008), nas quais valorizamos as diversas formas de expressão infantil, os seus interesses e a implicação das crianças no processo de investigação. As atividades foram coordenadas por duas psicólogas e uma pedagoga e também contaram com a presença de uma professora das turmas. As oficinas foram registradas em vídeo, fotografias e em cadernos de campo, que deram origens a relatórios feitos para cada encontro realizado.

Em todos os encontros buscamos promover um espaço de fala e de troca entre os participantes do grupo e as coordenadoras, considerando que as crianças estão mais bem posicionadas para falar sobre suas experiências. A presença e a ação das coordenadoras durante a oficina marcam o trabalho. Por isso, é preciso criar mecanismos que subvertam a maneira enrijecida como adultos e crianças comumente interagem numa situação de pesquisa, na qual o adulto apenas pergunta e à criança cabe responder (Souza & Castro, 2008; Colonna, 2011). Pesquisar com crianças implica uma reflexão da posição do adulto-pesquisador, uma vez que existe uma diferença estrutural, isto é, de linguagem, de compreensão, de modos de ser e de estar no mundo que não podem ser ignoradas (Castro, 2008). A escolha por uma metodologia participativa fez com que refletíssemos, em diferentes momentos, sobre como as coordenadoras se posicionavam diante desse "outro" com quem não compartilhavam as mesmas condições sociais (Pérez, 2014).

Os significados produzidos nas oficinas surgiram no contexto e na contingência (Elden, 2012) da interação entre as crianças e as coordenadoras.Consideramos também que a investigação participativa com crianças pode ser um mecanismo importante de promoção da cidadania, na medida em que elas se posicionam como atores e coconstrutores de conhecimento sobre o seu mundo social e cultural (Soares, 2006). Ao longo do projeto, elas puderam compreender e criar novos sentidos para o contexto que as cerca.

Devido ao grande número de crianças com idades de 4 e 5 anos que participaram das oficinas, e para que suas falas pudessem ser ouvidas e debatidas com melhor qualidade, optamos por distribuí-las em dois grupos. Realizamos as mesmas atividades em ambos os grupos, as quais tiveram como objetivo conhecer o cotidiano das crianças, os espaços que gostam de brincar, a relação que possuem com o lugar onde moram e a forma como interagem com os espaços da favela. No primeiro encontro, utilizamos a leitura do livro "Crianças como você" (Kindersley&Kindersley, 1995) como disparador de uma conversa sobre os participantes da oficina, o seu cotidiano, a sua organização familiar, o seu local de moradia, entre outros aspectos.

No segundo encontro, fizemos a atividade "Lugares da comunidade" (CECIP, 2013), com o intuito de investigar, de maneira lúdica e ativa, a relação das crianças com o lugar onde moram e a forma como interagem com seus espaços. Foi proposto às crianças que produzissem cenários com o desenho dos espaços que gostavam de frequentar. Elas desenharam a escola, o campinho de futebol, o bondinho, a igreja, dentre outros. Métodos visuais, como os desenhos, são especialmente efetivos para crianças pequenas, apesar de algumas delas já poderem escrever seus pontos de vista brevemente (Ghaziani, 2010). Com os cenários prontos, as crianças apresentaram o que fizeram, explicando a escolha de cada lugar e contando sobre as brincadeiras que fazem ali. Esses dois encontros foram uma preparação para o encontro seguinte, uma forma de as crianças começarem a se aproximar da temática do projeto e se familiarizarem com a dinâmica de diálogo e interação com as coordenadoras.

Em seguida, realizamos o "Passeio fotográfico" (CECIP, 2013), uma caminhada pelo morro Santa Marta, na qual as crianças portavam máquinas fotográficas para registrar o que lhes interessavam pelo percurso. O Passeio Fotográfico permitiu que as crianças se tornassem parceiras no processo de investigação, dado a criatividade e a margem de negociação possível entre adultos e crianças (Soares, 2006). Com o apoio das professoras, que também eram moradoras da favela, planejamos dois trajetos, dividindo o morro em parte alta e em parte baixa. Cada grupo percorreu um desses trajetos. Com as máquinas fotográficas, as crianças registraram pessoas, paisagens, casas, objetos, animais, e o que mais lhes chamaram a atenção no passeio.

Alguns autores (Christensen& James, 2008) têm abordado o tema da utilização de fotografia com crianças, demonstrando que essa metodologia lhes fornece um meio de ilustrar questões importantes para a vida delas. Müller (2012) aponta que o uso da fotografia oferece a vantagem de as crianças poderem controlar o ritmo e a direção do assunto abordado, explorando tópicos sem a interferência do pesquisador. Por meio do Passeio Fotográfico, pudemos observar as formas como as crianças pequenas interagem com os espaços da favela. Mais do que as atividades de conversa e de desenho em sala, o passeio propiciou uma incursão nos hábitos, caminhos percorridos diariamente, lugares conhecidos e preferidos das crianças. As crianças também puderam abordar os problemas e as dificuldades vividas por elas na favela.

Outro aspecto interessante dessa metodologia é que, a partir dela, pudemos experimentar uma inversão dos papéis socialmente estabelecidos para crianças e adultos. As crianças eram os sujeitos conhecedores, sabiam os caminhos e puderam ensinar e mostrar para nós, os adultos, como era seu modo de vida. Ao realizar essa atividade, fora do espaço escolar, as crianças demonstraram como podem desempenhar um papel ativo nos assuntos que as afetam. Elas se mobilizaram para nos apresentar aspectos relevantes de suas vidas e para registrar em imagens suas perspectivas sobre o lugar onde moravam. Alguns exemplos podem ilustrar essa perspectiva. Num determinado momento do passeio, algumas crianças esclareceram a dúvida de uma coordenadora quando ela perguntou se a laje do Michael Jackson (um ponto turístico e área de lazer da comunidade) ficava abaixo do ponto onde o grupo estava. Uma menina disse, rindo, "não, a laje é lá em cima", e continuou, "eu moro perto da laje, não é para baixo, tem que subir aquela escada ali".

Em outro momento, percebemos que a parte mais alta do morro era menos conhecida pelas professoras, que tiveram dúvidas sobre qual caminho seguir, e perguntaram para duas crianças que estavam brincando nos becos. Elas, então, orientaram o grupo em direção ao seu destino, mostrando-se "sabedoras" do local e oferecendo informações para os adultos. Outra experiência interessante que tivemos ao longo do passeio foi que muitas crianças iam à frente das coordenadoras, mostrando onde ficavam suas casas e a de seus familiares. Movimentavam-se com facilidade pelas escadarias e becos, reconhecendo os lugares e fazendo referências a assuntos particulares: "aqui é a barraca da minha mãe", "essa viga foi meu pai que construiu". As crianças identificavam os espaços da favela tendo como referência suas casas e as de seus conhecidos.

No encontro seguinte ao passeio, reunimos os dois grupos de crianças para apresentar e discutir as fotografias tiradas por elas. Nessa atividade, as crianças puderam relembrar o que foi visto ao longo dos percursos, narraram as suas experiências, dizendo o que pretendiam mostrar em cada foto e construindo novos significados para aquelas imagens conjuntamente.Esse é um desdobramento importante do Passeio Fotográfico, pois as imagens precisam ser interpretadas em diálogo com as crianças, evitando erros interpretativos (Prosser, 1998). Além disso, entendemos que as imagens, bem como suas respectivas interpretações, não representam uma descrição autêntica da realidade (Spyrou, 2011), elas dizem respeito a uma visão localizada e seletiva dos sujeitos que a produziram. A fotografia testemunha a cena passada, ao mesmo tempo em que revela o seu autor, possuindo uma estreita relação com a memória (Kossoy, 2007). Há um universo infinito de imagens possíveis a serem registradas, por isso, a fotografia também revela as escolhas subjetivas de seu autor. Assim, o seu uso adquire relevância no contexto em que se considera a perspectiva das crianças sobre o lugar onde vivem.

Com as crianças maiores, realizamos outras atividades. Com o grupo de seis a oito anos, fizemos uma atividade que chamamos de "O que é bom e o que é ruim na sua comunidade?" e, com as crianças de nove a doze anos, a proposta da "Linha do tempo". Essas são ferramentas metodológicas que se apoiam em um material imagético e lúdico, mas apelam à oralidade e à capacidade argumentativa da criança. A primeira teve a intenção de provocar a discussão sobre os problemas e as coisas boas da favela, produzindo uma reflexão sobre o lugar onde moram e as suas propostas de mudança. Para isso, utilizamos como disparador as fotografias da favela Santa Marta tiradas pelas crianças pequenas que participaram das outras oficinas, considerando que a imagem produzida sempre permanece aberta a diversas interpretações (Kossoy, 2007). A partir delas, as crianças puderam expressar suas opiniões com desenhos e palavras escritas nos cartazes, de tal forma a tematizar outros aspectos que não foram trazidos pelas fotos.Assim, os grupos puderam debater sobre as imagens, classificando aquelas que representavam os aspectos positivos e os aspectos negativos da favela. Com essa atividade, pudemos ter acesso às complexas ponderações que as crianças fazem sobre a realidade que as cerca.

Já a atividade de construção da "Linha do tempo" (CECIP, 2013) tinha como objetivo compreender, segundo o ponto de vista das crianças, as mudanças que ocorreram ao longo do tempo na favela Santa Marta. Buscamos saber em que medida essas transformações modificaram o cotidiano delas e trouxeram outras perspectivas para o seu futuro e o da favela. A partir de conversas e desenhos, foram produzidas linhas do tempo compostas por três cartolinas que representavam o passado, o presente e o futuro, na perspectiva das crianças. Entendemos que a reconstituição do passado se dá a partir de elementos que a situação presente nos faz lembrar, sendo uma reconstrução continuamente atualizada. As experiências passadas não são memorizadas, conservadas e recuperadas em toda a sua integridade. A narrativa é uma construção original do indivíduo em constante tensão com o tempo vivido e o tempo organizado pelo sistema (Halbwachs, 1990). Assim, o retorno ao passado carrega elementos do presente e se configura como impossível de dizer "tal como ele foi". Com essa atividade, as crianças também revelaram suas perspectivas sobre o presente, suas brincadeiras, gostos e interesses, assim como suas projeções futuras.

Ao final das oficinas, foi feita uma exposição intitulada "A comunidade Santa Marta pelo olhar das crianças", com as fotografias tiradas no Passeio Fotográfico e a exibição dos vídeos produzidos durante essa atividade. Esse evento aconteceu na instituição local parceira e recebeu cerca de 200 visitantes, entre familiares das crianças, moradores e lideranças da comunidade, representantes da escola municipal próxima à favela, da UPP, da UPP Social e do Instituto Pereira Passos. Muitos deles se surpreenderam com as fotografias e com o vídeo de registro da oficina. Na inauguração, foi proposta a reflexão sobre a participação das crianças e sobre seu olhar para a favela. Essa exposição também ficou montada durante um mês na Praça do Conhecimento do Complexo do Alemão com o objetivo de inspirar novos trabalhos de escuta e participação de crianças.

A seguir apresentamos parte dos resultados2 que as oficinas com as crianças revelaram sobre o seu modo de vida e como percebem os problemas do lugar onde moram. A análise foi dividida em dois eixos temáticos: "as crianças e seus espaços na favela: afetividades e dificuldades" e "memórias de violência e a perspectiva das crianças sobre a Unidade de Polícia Pacificadora".

 

As crianças e seus espaços na favela: afetividades e dificuldades

Nas diversas atividades que propusemos para as crianças, percebemos que elas apontavam como problemas da favela Santa Marta questões referentes à limpeza e à conservação de espaços e equipamentos. No passeio fotográfico, elas registraram imagens de valas abertas, lixos, buracos no chão, obras inacabadas, fezes de animais e reclamaram do fedor de esgoto. Para as crianças, as valas de esgoto abertas são um problema por causa do mau cheiro, por transmitirem doenças, porque "dali sai barata e rato" e, ainda, pelo risco de cair dentro delas. Em relação às fezes de animais espalhadas no chão, uma menina falou: "eu já pisei mais de 200 vezes no cocô". Muitas crianças possuíam animais de estimação em casa e gostavam de brincar com gatos e cachorros. No entanto, quando animais foram encontrados soltos nos becos, durante o passeio, geraram surpresa e medo.

As crianças também se preocupavam com as moradias em situação de risco. Elas puderam fotografar diversas casas de madeiras em precárias condições. Quando outro grupo de crianças analisou a fotografia a seguir, disse que as casas eram ruins, pois "estão caindo aos pedaços e são muito pequenas" e "elas estão podres, são muito perigosas, podem cair a qualquer momento". Algumas crianças ressaltaram outro aspecto presente nessa imagem: o grafite azul desenhado na pedra que servia de apoio para a casa de alvenaria. Elas disseram que a foto era "legal" por conta da "pichação azul" que "enfeitava a casa". Podemos entender esse interesse das crianças pelas pichações como uma forma de valorizar a cultura da favela e a expressão de alguns grupos ou indivíduos que a habitam. Em vez de somente enfatizarem os problemas das moradias, elas preferiram afirmar que as pichações podem embelezar as casas e os becos. Esse caso nos chamou atenção, pois evidencia que a mesma imagem fotografada pelas crianças pode ser compreendida de diferentes maneiras e ganhar novos sentidos, dependendo de quem a olha.

 

 

Outro assunto frequente nas oficinas foi o uso do bondinho, o plano inclinado, inaugurado em 2008, que dá acesso à parte alta do morro. Meninas e meninos ressaltaram o seu uso como um passeio, pois era divertido ver a rua e a favela do alto. Durante o passeio fotográfico, um menino ficou animado quando soube que pegaríamos o bondinho: "eu só andei de bonde duas vezes, que legal!" Para uma menina, a parte "mais legal do passeio foi ter andado de bondinho". Algumas crianças nos contaram que usavam o plano inclinado diariamente para ir à escola, demonstrando grande familiaridade e considerando-o como um meio de transporte. Para elas, a criação do bondinho foi algo bom para a favela, uma vez que facilitava o deslocamento e o acesso à parte alta do morro: "o bondinho é muito bom porque ajuda as crianças, as mulheres grávidas e os velhos a subirem para o Pico [parte alta] sem se cansarem".

No entanto, as crianças também fizeram algumas reclamações a respeito do seu funcionamento. Afirmaram que havia sempre uma longa fila de pessoas para utilizá-lo e que era preciso esperar muito tempo para chegar às estações. Reclamaram que quebrava com frequência, dificultando a mobilidade dentro da favela. Outros aspectos negativos apontados foram o calor e o excesso de passageiros. As crianças quiseram registrar o "apertamento" e o calor que o grupo sentia, tirando muitas fotos de dentro do vagão. Percebemos, assim, que as crianças têm uma relação afetiva com o bondinho, compreendendo-o para além da sua função como meio de transporte. Entretanto, considerá-lo como uma construção positiva para o morro não as impede de apontar também críticas e problemas em relação ao seu funcionamento.

Durante o passeio, tivemos a oportunidade de visitar o "Campinho" e a "Arena", espaços bastante fotografados pelas crianças. Apesar de serem locais de lazer de referência na favela, chamou-nos a atenção que muitas crianças pequenas disseram não poder frequentá-los porque ficam nas partes altas do morro. Surgiram falas que qualificavam esses espaços como pertencendo "aos grandes", ou seja, aos adultos e às crianças mais velhas. Notamos que as crianças maiores possuem maior liberdade de circulação pela favela do que as crianças pequenas, podendo aproveitar mais as áreas de lazer. No entanto, alguns meninos e meninas mais velhos nos explicaram que também não são autorizados por seus responsáveis a frequentar o Campinho e a Arena "porque é perigoso, lá só tem bandido". Apesar da entrada da Unidade de Polícia Pacificadora, esses espaços ainda têm sua imagem atrelada ao tráfico de drogas, afastando alguns moradores desses locais e de seus arredores. As crianças disseram se sentir constrangidas por não poderem usá-los.

As crianças também usam as pracinhas para encontros lúdicos e sociais. Duas foram citadas: uma praça localizada no Pico (parte alta do morro) e a outra na Rua São Clemente, próxima à ladeira para a favela. As crianças descreveram essa última como um espaço "cheio de areia", árvores e "um balanço". Elas se queixaram da estação de aluguel de bicicletas que foi instalada numa área da praça onde antes costumavam jogar queimado e futebol. Uma menina disse: "agora não dá mais para brincar". As crianças não podiam usar essas bicicletas porque eram grandes e para utilizá-las era preciso pagar pelo serviço com cartão de crédito. Já sobre a praça localizada no Pico, as crianças falaram que "lá tá tudo quebrado", então, "é chato brincar lá".

 

 

Na fotografia anterior, as crianças registraram a escada que dá acesso à Praça do Pico com uma parte do seu gradeado quebrada. Adultos que conhecem o local se surpreenderam com a imagem, pois nunca tinham percebido esse problema. O vão abaixo do corrimão não os afetava diretamente. Já na perspectiva das crianças, a falta dessa proteção tornava a escada extremamente perigosa, uma vez que elas usavam as barras de ferro para se apoiar e auxiliar no seu deslocamento. A praça, situada próxima ao Campinho, também não era frequentada por algumas crianças, pois seus responsáveis não gostavam que elas circulassem pela parte alta do morro.

Desse modo, restaram poucas opções de locais adequados, seguros e interessantes para as brincadeiras, a prática de esporte e os encontros das crianças na favela. A partir dessas falas, podemos pensar nos motivos que as afastam de espaços coletivos e porque não se sentem autorizadas a ocupá-los. Essa queixa pode ser compreendida por meio das histórias de violências que continuam presentes, deixando marcas nas lembranças que evocam a materialidade dos espaços da favela. Além disso, podemos refletir sobre o próprio lugar que as crianças pequenas ocupam na hierarquia local, uma vez que parecem ser o grupo social com menos força, diante dos adultos, para garantir a presença de equipamentos públicos destinados a elas.

 

Memórias de violência e a perspectiva das crianças sobre a Unidade de Polícia Pacificadora

Durante as oficinas, as crianças mais velhas expressaram suas opiniões sobre o programa da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), fornecendo relatos de suas experiências particulares e das histórias que compõem a memória dos moradores sobre a favela. Na atividade que realizamos com crianças de seis a oito anos, os comentários sobre a polícia foram provocados pelas fotografias, tiradas no passeio com as crianças menores, e discutidas nos grupos. Em uma delas, aparecia o prédio sede da UPP e, em outra, um carro de polícia.

Entre os argumentos considerados pelas crianças, a polícia era boa porque protegia a comunidade, "bate e mata bandido, mas não faz mal às crianças", "prende quem faz maldade e os ladrões que fazem besteira". Na opinião delas, a sede da UPP também era boa porque era uma escola que oferecia as aulas de música e karatê. Notamos que muitas crianças e seus irmãos frequentavam essas atividades. Já a imagem do carro da polícia estava associada à parte baixa do morro onde os policiais faziam a ronda e os carros ficavam estacionados. Ao olharem essa fotografia, muitas crianças disseram que a polícia era ruim, porque "mata e bate em morador". Um menino disse revoltado que a polícia matou seu pai. No cartaz, elaborado pelas crianças, a foto da sede da UPP foi colada na lista das coisas positivas da favela, e a imagem do carro de polícia, na lista das coisas negativas.

As crianças maiores, de nove a doze anos, abordaram a temática da segurança pública de forma bastante intensa. A atividade que propusemos para esse grupo foi a "Linha do tempo", na qual eles poderiam falar sobre o passado, o presente e o futuro da comunidade. Perguntamos se elas se lembravam de quando eram pequenas, o que gostavam de fazer e como era a favela naquele momento. Depois de falarem sobre algumas brincadeiras que gostavam à época, as crianças narraram muitas histórias de violência. Um menino relatou que era morador do morro desde pequeno, e "naquela época as coisas era [sic] diferente. O morro era cheio de barraco de madeira, as casa era tudo [sic] suja, era cheio de bandido". Outro complementou contando que "os bandidos jogavam os cara [sic] dentro do bueiro. Os cara [sic] estava morto, fedendo muito". Diante desses comentários, outro menino ponderou: "os bandidos também não eram tão maus assim. No dia das crianças eles davam brinquedos, jogavam dinheiro para o alto, davam presente. Eles não eram tão maus, davam bicicleta. Eles não batiam em morador. Não fazia maldade com morador".

As crianças também nos contaram histórias sobre a relação entre traficantes e policiais antes da instalação da UPP, no morro Santa Marta: "Eu era pequenininho e tinha tiro antes da UPP. Eu estava voltando para casa depois do batizado do meu primo e começou o tiroteio. Todo mundo teve que sair correndo!". Outro menino falou: "eu tinha oito anos e daqui a pouco chegou o helicóptero e começou o maior tiroteio. Bandido sendo carregado no pano". Uma menina complementou: "eu estava descendo a escada e caí quando a polícia chegou atirando". Outra menina relatou: "Tinha muito corpo e arma de bandidos jogados no mato. Muitos bandidos. Eu sem querer achei uma arma no buraco. Eu mostrei para o meu pai e ele jogou a arma atrás do muro". Dessa forma, as crianças mostraram ter lembranças em relação ao período em que não havia UPP no morro e a relação com a polícia era mais conflitiva. Elas fizeram desenhos, e os localizaram na linha do tempo como pertencendo ao passado, de um "policial matando bandido", um "morador matando policial", uma "mulher comprando drogas", um traficante ostentando colares e pulseiras de ouro.

 

 

Algumas crianças quiseram nos contar como foi a instalação da UPP no morro Santa Marta. Uma menina disse com revolta: "Os policiais não ajudam! A comandante, que era da UPP daqui, dava chutão de bota na cara das pessoas. Você acha isso certo?" Um menino respondeu: "mas ela batia só em bandido". Houve uma discussão no grupo se a polícia estaria ou não autorizada a agir de maneira violenta com bandidos, traficantes e usuários de drogas. Algumas delas pareciam apoiar as ações da polícia de agredir e punir severamente aqueles que desrespeitaram a lei. Essas falas podem estar relacionadas ao fato de que, durante muitos anos, os moradores ficaram submetidos a todo tipo de arbitrariedade e violência exercido por esses grupos. Nesse sentido, a polícia surge como a figura que trará a ordem e vingará os atos cometidos no passado. No entanto, apareceu também outra perspectiva entre as crianças, que criticava a maneira autoritária pela qual a polícia tratava os moradores da favela, invadindo suas casas, mexendo nas suas coisas sem autorização. Sobre isso, uma menina comentou que, na época da entrada da UPP, "os policiais entraram nas casas e roubaram tudo".

Vale ressaltar que não pedimos para as crianças falarem sobre violência e nem perguntamos para elas como era o morro Santa Marta antes da instalação da UPP. O tema da violência emergiu no grupo ao abordarem suas experiências de vida no passado e no presente. Entendemos que essas histórias, sejam elas narrativas construídas a partir dos relatos de familiares e vizinhos ou lembranças de situações vividas por elas mesmas, marcaram a infância desse grupo.

 

Considerações finais: os desafios da participação de crianças nas políticas públicas

O passeio fotográfico, a discussão das imagens produzidas pelas crianças e a criação da linha do tempo possibilitaram a construção de um olhar crítico para os problemas da favela e a expressão do ponto de vista de meninos e meninas que, muitas vezes, têm dificuldade de se fazer ouvir numa cidade planejada pelos e para os adultos. Concordamos com Ghaziani (2010) quando afirma que as crianças se envolvem profundamente com o mundo material que as cerca e que elas possuem uma grande conexão e conhecimento implícito sobre os ambientes que frequentam cotidianamente.

Em suas falas, notamos que faltam espaços de qualidade para crianças brincarem com seus pares e o seu deslocamento pelo morro, às vezes, é prejudicado pelo mau funcionamento do bondinho e pela presença de lixo, valas, buracos, fezes de animais, entre outros obstáculos. Além disso, elas problematizam o papel da polícia na favela, ora considerado positivo pela segurança e pelas aulas que proporcionam para as crianças, ora visto como uma ameaça por causa da violência contra os moradores. Mesmo com a presença da UPP, algumas partes da favela ainda são consideradas inseguras e muitos responsáveis evitam que as crianças circulem desacompanhadas pelo morro.

Quando apresentamos o resultado dessa investigação para os moradores, lideranças comunitárias do morro Santa Marta e para representantes do Poder Público, como os gestores da UPP, UPP Social e do Instituto Pereira Passos, muitos se surpreenderam com as perspectivas das crianças. Alguns destacaram questões que também incomodam os adultos, como o lixo, a falta de saneamento básico, de manutenção dos equipamentos públicos e a atuação da polícia presentes nas falas das crianças. Outros se surpreenderam com o olhar específico delas para o espaço, como o lugar de brincar da praça que foi perdido por causa da instalação da central de aluguel de bicicletas e a falta da proteção da escada revelada pela fotografia.

A partir da metodologia apresentada neste artigo e de seus resultados, poderiam ser pensadas estratégias de apropriação das crianças dos espaços públicos da cidade. A simples criação de quadras e praças, por exemplo, não garante o seu uso pelos moradores e, especialmente, pelas crianças pequenas. Elaborar um projeto a partir do olhar da criança implica valorizar as opiniões e as demandas apresentadas por meninos e meninas de diferentes idades, assim como as suas diversas formas de uso, desejos e interesses pelos espaços públicos. Apostamos na ideia de que mais presença das crianças na cidade proporciona o estreitamento da convivência comunitária e familiar e, consequentemente, novas formas de relacionamento entre as pessoas.

Considerar que crianças são agentes e podem participar da construção de políticas públicas ainda não é algo facilmente recebido pelo poder público e incorporado nas suas práticas. A concepção de infância apenas como uma fase de aprendizado e preparação para a vida adulta acaba por excluí-las das formas instituídas de participação política. Questionamos a ideia de imaturidade infantil, que impediria as crianças de participarem ativamente da sociedade, pois consideramos que elas aprendem a dar a sua opinião no momento em que podem falar com outras crianças e com os adultos. A maturidade, portanto, não é resultado apenas de um amadurecimento biológico, mas se dá pelas experiências de participação e ação. Ao escutarmos as opiniões desse grupo social, percebemos o quanto as crianças têm a contribuir para a compreensão dos problemas, necessidades e desafios de morar na favela hoje, uma vez que elas revelam, a partir de seu discurso e olhar singular, a complexidade da convivência naquele espaço.

A proposta de parceria com agentes da UPP Social, ao longo do projeto, serviu para sensibilizar o Poder Público para as questões que afetam a vida das crianças. Os gestores da UPP Social ainda têm dificuldades de incluir a participação infantil em reuniões e fóruns, como os que realizam com os adultos, ou de promover espaços específicos para elas darem suas opiniões. Certamente, a participação das crianças não deve ocorrer no mesmo formato que se dá a dos adultos, uma vez que os espaços instituídos e legitimados de participação não atendem ao modo de se expressar e de se relacionar das crianças. Para isso, seria preciso uma reestruturação desses espaços, de tal forma a torná-los mais sensíveis à temporalidade específica da criança e ao seu modo próprio de formular questões e respondê-las.

Para que as opiniões das crianças sejam incorporadas nas políticas públicas e no planejamento urbano, é preciso experimentar novas metodologias participativas capazes de criar espaços de diálogo intergeracional. Nesse caso, os adultos aprenderiam a se relacionar e a se comunicar de outras formas, ultrapassando os limites do discurso racional e argumentativo. A construção de espaços políticos com a participação das crianças contribui para a consolidação da democracia e para a construção do sentimento de cidadania na infância. Além disso, esses novos mecanismos participativos poderiam servir, tanto para os adultos quanto para as crianças, como uma experiência de aprendizado a partir da diferença inerente à vida coletiva.

 

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Recebido em: 10/08/2014
Reformulado em: 31/01/2015
Aprovado em: 07/04/2015

 

 

1 O Instituto Pereira Passos é o órgão da Prefeitura do Rio de Janeiro responsável por produzir informações e análises que orientam o planejamento urbano e o desenvolvimento de projetos estratégicos
2 Relatórios detalhados sobre as perspectivas das crianças sobre a favela Santa Marta foram encaminhados para diferentes agentes do poder público que atuavam naquele território na época da pesquisa.

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