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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versión On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.4 São João del-Rei oct./dic. 2018
EDITORIAL
Maria de Fatima Aranha de Queiroz e MeloI; Larissa Medeiros Marinho dos SantosII; José Rodrigues de Alvarenga FilhoIII; Isabela Saraiva de QueirozIV
Ifatimaqueiroz.ufsj@gmail.com
IIlarissa@ufsj.edu.br
IIIjoserodrigues@ufsj.edu.br
IVisabelasq@ufsj.edu.br
"Num país como o Brasil, manter a esperança viva é, em si, um ato revolucionário".
(Paulo Freire)
A Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais chega ao fim do ano de 2018 consolidando o compromisso com a pontualidade nas suas publicações e com a periodicidade trimestral. Foram quatro números em que demos visibilidade a trabalhos de autores nacionais e internacionais versando sobre os mais diversos temas. No primeiro número, reafirmamos, como motor das práticas da Psicologia Social, o nosso engajamento com os movimentos sociais que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária diante de políticas de exclusão e negligência para com a população mais vulnerável. No segundo número, destacamos nos artigos publicados as diversas dificuldades com as quais lida o profissional da Psicologia e as estratégias para seu enfrentamento. O terceiro foi um número temático coordenado por parceiros de além-mar, que resultou da chamada para artigos sobre a "Educação e as vidas juvenis em suas dinâmicas e contextos contemporâneos", abordando questões que, apesar de estarem presentes no âmbito escolar, não se limitavam aos muros das escolas e ganhavam outros espaços e significados na vida dos jovens.
Este último número do ano de 2018 foi gestado no calor de um trimestre de grande movimentação política em torno das eleições presidenciais. Os brasileiros tiveram que fazer suas apostas às cegas num programa de governo pouco transparente, em acirrada disputa eleitoral, de feição atípica, cujo resultado nos traz grande apreensão em relação às práticas das Ciências Humanas, em especial para o campo da Psicologia, nestes próximos quatro anos. A começar pelos cursos de formação, deparamo-nos com o agravamento da precarização das universidades públicas, já em curso, e com a tentativa de patrulha ideológica contra o que chamam de "doutrinação marxista", levando a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior a se manifestar com o documento "Orientações aos docentes sobre a liberdade de cátedra, de ensino e de pensamento". O Conselho Federal de Psicologia, entre outras entidades de referência para a Psicologia, como é a Abrapso para a Psicologia Social, têm reagido a retrocessos acenados pela nova política: escola sem partido, psicologia apartidária, criminalização dos movimentos sociais, proposta de cura gay, negligência às conquistas obtidas nas políticas públicas de saúde mental e assistência social em propostas que vêm confrontando psicólogos e psicólogas no exercício das práticas que desenvolvem sob orientação de seu Código de Ética. São constrangimentos que atentam contra a diversidade da vida e de sua expressão, negam direitos e minam dignidades.
Vivemos um período de incertezas em relação ao futuro de nosso trabalho, em várias dimensões: poderemos cumprir nossa missão ético-política como educadores, pesquisadores e autores? Poderemos participar da construção de conhecimento válido porque eticamente fundamentado? Poderemos apostar numa prática dialógica e inclusiva para a educação das futuras gerações?
Na epígrafe deste Editorial, "Num país como o Brasil, manter a esperança viva é, em si, um ato revolucionário", atribuída a Paulo Freire, pensador e educador brasileiro, encontramos algum alento. Diz o autor (1997) que a esperança é necessidade ontológica do ser humano, mas pondera também que seria ingenuidade pensar que somente a esperança bastaria para transformar o mundo: Ela [a esperança] só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos de herança crítica, como o peixe precisa da água despoluída.
Por outro lado, como diz o escritor português José Saramago (2008), apesar de toda potência que pode haver na esperança, é necessário conjugá-la com uma boa dose de impaciência também. É preciso fazer nascer "esperanças-impacientes" a nos deslocarem em direção à invenção desobediente de outros mundos, pois, não nos esqueçamos, como escreve o poeta Pedro Tierra (1994), que "nada causa mais horror à ordem do que homens e mulheres que sonham".
É em nome da esperança e dessa herança crítica como motor e necessidade que dedicamos este número da revista a todas as mulheres e crianças, LGBTs, negros, drogados, apenados, pessoas com deficiência, pessoas em situação de rua, idosos, esses seres impedidos de ser1 que, marginalizados e/ou negligenciados, sofrem violência e discriminação e têm merecido nossas pesquisas e nossas práticas para construir com eles uma existência digna.
Abrindo o número, temos um bloco de quatro artigos abordando temáticas que envolvem mulheres: desnaturalizando o trabalho doméstico como uma atribuição exclusiva do mundo feminino, discutindo a maneira como é acolhida a violência contra as mulheres nas políticas e instituições públicas, ou quando suas reações diante do agressor as incitam à prática de lesões, delito pelo qual cumprem pena.
Você, dona de casa: trabalho, saúde e subjetividade no espaço doméstico tem, como autores Rodrigo Padrini Monteiro, José Newton Garcia de Araújo e Maria Ignez Costa Moreira, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Por meio de revisão de literatura e segundo as perspectivas das clínicas do trabalho, o artigo discute o trabalho doméstico para além de sua institucionalização econômica, como uma atribuição da mulher, assumindo um caráter de invisibilidade e desvalorização social, principalmente quando não é remunerado. Como uma construção social e histórica passível de desconstrução, o trabalho doméstico associado ao papel de gênero feminino é analisado em suas dimensões psíquicas, éticas e políticas, por meio do qual o sujeito humano transforma a si e o mundo.
O artigo Violência contra a mulher, polícia civil e políticas públicas foi escrito por Tatiana Machiavelli Carmo Souza, Flávia Resende Moura Santana e Thais Ferreira Martins, da Universidade Federal de Goiás. As autoras buscaram conhecer as concepções de policiais civis sobre a violência contra a mulher, uma das principais formas de violação dos direitos humanos enfrentadas pela mulher. Por meio de estudo qualitativo, verificaram que os participantes têm conhecimentos superficiais sobre os elementos psicológicos, sociais e culturais que possibilitam a manutenção desse tipo de violência e que a precária implantação das políticas públicas de enfrentamento ao problema prejudica o efetivo trabalho da Polícia Civil.
Em Práticas em psicologia no atendimento a situações de violência conjugal em dispositivos do Sistema Único de Assistência Social (Suas), Kamêni Iung Rolim e Denise Falcke, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, partindo de uma abordagem qualitativa e exploratória, buscaram conhecer e caracterizar as práticas desenvolvidas por psicólogos diante da violência conjugal em dispositivos do Suas, na região do Vale do Paranhana, RS. Verificaram que, nas situações de violência conjugal, os atendimentos, ainda regidos por paradigma tradicional de uma Psicologia que busca afirmar-se no âmbito das políticas públicas, eram individualizados e orientados pela concepção de gênero, calcados na dicotomia homem agressor e mulher vítima, tendo como principal intervenção encaminhamento seguido de orientações acerca de como registrar denúncia e solicitação de medida protetiva.
Patricia E. Alvarado Sánchez (Universidad de los Lagos), Leonor M. Cantera (Universidad Autónoma de Barcelona) e Adriano Beira (Universidade Federal de Santa Catarina), em Desigualdades e implicaciones afectivas en mujeres autoras de lesión, analisam a problemática de mulheres que cumprem pena pelo delito de lesões no contexto penal espanhol. A investigação qualitativa, que se valeu de entrevistas em profundidade processadas com análise temática seguindo critérios da Teoria Fundamentada, consistiu num estudo de quatro casos que permitiram apresentar outros olhares em relação à violência entre casais. Foram destacadas a desigualdade em relação ao cônjuge - desde a posição de submissão à exigência de reciprocidade - no contexto prévio ao delito e, após condenadas, a implicação afetiva e a vulnerabilidade diante da ruptura de vínculos significativos em sua vida cotidiana.
Os dois artigos que se seguem fazem referência a diferentes dimensões do mundo infantil, sob olhares também diversos: o primeiro, um estudo de caso sob a perspectiva psicanalítica; o segundo, desenvolvido nas redes digitais sob o olhar foucaultiano.
Jaqueline Feltrin Inada e Alfredo Naffah Neto, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no artigo Trauma infantil e crime sexual: uma análise de caso a partir de Freud, Stoller e da linhagem psicanalítica Ferenczi-Winnicott, investigam a relação entre trauma infantil e crime sexual, valendo-se de um caso extraído da análise de um processo penal, constatando a complementaridade das diferentes interpretações psicanalíticas utilizadas.
No artigo Movimentos de um movimento social nas redes digitais: lutas quanto à publicidade infantil, as autoras Mirian Raquel Mion e Inês Hennigen, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, utilizando-se das concepções de Michel Foucault e do método cartográfico, discutem os discursos produzidos pelo grupo "Movimento Infância Livre de Consumismo" nas redes digitais, verificando que a condição de mães das integrantes do movimento as alça a uma posição privilegiada de saber-poder em relação ao adequado à infância, com a consequente não inclusão de outras vozes no debate e o uso paradoxal das estratégias de comunicação.
Na sequência, dois artigos com diferentes bases conceituais foram aproximados por aludirem às relações estabelecidas entre as experiências de vida e os ambientes em que se desenvolvem.
Os autores Lázaro Batista, Marina Luiza P. Magalhães e Aline Cristina Baú, da Universidade Federal de Roraima, no artigo Feiras, limiares e fronteiras: entre regulamentações biopolíticas e astúcias cotidianas, orientados pela filosofia da diferença e pelo pós-estruturalismo, enunciam a atualidade dos dispositivos biopolíticos de regulamentação da vida, dos corpos e da rotina de feirantes e frequentadores da Feira do Produtor Rural de Boa Vista (RR), ao mesmo tempo em que apontam práticas de resistência e astúcias cotidianamente colocadas em funcionamento na feira.
No artigo Retratos de um hospital de custódia: os espaços verdes e sua relação com a restauração psicofisiológica do estresse, as autoras Bettieli Barboza da Silveira, Ariane Kuhnen e Maíra Longhinotti Felippe, da Universidade Federal de Santa Catarina, destacam o potencial benéfico dos ambientes e paisagens naturais à saúde e à redução psicofisiológica do estresse, com base nos pressupostos dos estudos pessoa-ambiente e da técnica de fotografia do ambiente.
No bloco dos quatro artigos que se seguem, destaca-se o trabalho da Psicologia na interface com outros campos em que se fez presente as políticas públicas, seja na Assistência Social, seja na Saúde.
Em Famílias em situação de rua: perspectivas de trabalhadores e usuários do Suas sobre proteção social e guarda familiar, Samira Lima da Costa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Chao Tsai Ping e Marina Galacini Massari, da Universidade Federal de São Paulo, apresentam os resultados de pesquisa realizada no litoral de São Paulo, buscando identificar perspectivas sobre a guarda familiar de pessoas em situação de rua.
No relato de experiência O trabalho como residente de psicologia em equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), Maria Irislane de Souza Melo e Wedna Cristina Marinho Galindo, da Universidade Federal de Pernambuco, interrogam a atuação e o processo de trabalho da Psicologia no Nasf, ao mesmo tempo em que buscam evidenciar possibilidades de efetivação do cuidado na atenção básica.
Camila Borges Machado (núcleo da Abrapso de Juiz de Fora) e Lara Brum de Calais (Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e Faculdade Machado), no artigo Entrelaçando (im)possibilidades: reflexões sobre a atuação da Psicologia Social Comunitária na atenção primária à saúde, a partir do relato de experiência de um estágio em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), analisam a prática da Psicologia Social Comunitária.
No artigo Autopercepção dos profissionais do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal/Brasil a partir de um processo de formação sobre drogas e Direitos humanos, Tayane Medeiros de Oliveira, Maria de Nazareth Rodrigues Malcher de Oliveira Silva, Daniela Ketlyn Porto de Souza, Flávia Virgínia de Lima Souza e Andrea Donatti Gallassi, da Universidade de Brasília, descrevem, por meio de um estudo transversal, a autopercepção dos profissionais do Sistema Socioeducativo sobre capacitações, condições de trabalho, rede de apoio e satisfação pessoal e profissional no acompanhamento de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa que usam drogas.
Dos quatro últimos artigos deste número, dois apontam para a construção de autonomia e empoderamento por intermédio de arranjo formativo em economia solidária e gincana inclusiva, e os outros dois trazem a marca dos estudos quantitativos com a utilização de inventários e escalas
Em Um arranjo formativo em economia solidária para alunos do fundamental, as autoras Adriane Drummond de Almeida Ciodaro, professora vinculada à Prefeitura de Belo Horizonte, e Ediméia Maria Ribeiro de Mello, vinculada ao Centro Universitário UNA, avaliam as contribuições do programa de educação integral do MEC para a construção da autonomia dos estudantes moradores de comunidades pobres. Fazem uma revisão sobre a proposta de educação integral e sobre o papel da escola para a construção da autonomia, passando por temas como empoderamento comunitário e economia solidária. As autoras apresentam e discutem um "arranjo formativo para a educação integral" que visa ao empreendedorismo solidário e ao desenvolvimento da autonomia, tomando por base tanto a literatura quanto o relato da experiência vivenciada.
Marineia Crosara de Resende e Karen Borges Barbos, ambas da Universidade Federal de Uberlândia, no artigo Gincana inclusiva: protagonismo, empoderamento e visibilidade das pessoas com deficiência, trazem o relato da experiência de uma gincana cujo objetivo foi proporcionar "visibilidade às pessoas com deficiência". O trabalho passa por uma discussão sobre os direitos e as questões relacionadas à inclusão e à exclusão. Na gincana, que contou com 72 participantes com e sem deficiência, foram realizadas atividades tais como corrida de cadeira de rodas, corrida de caiaque e jogos variados. Por meio desse relato, as autoras promoveram uma discussão sobre representatividade, visibilidade, protagonismo e sobre a necessidade de desconstrução de estereótipos.
No relato de pesquisa Esquemas de gênero do autoconceito e perfil idiocêntrico-alocêntrico em atletas de futebol, os autores Thiago Emannuel Medeiros, Fernando Luiz Cardoso e Walan Robert da Silva - da Universidade do Estado de Santa Catarina - e Elisa Pinheiro Ferrari e Gislane Ferreira Melo - da Universidade Católica de Brasília - apresentam um estudo que visa analisar as "diferenças entre as posições ocupadas em campo por jogadores de futebol com relação à classificação dos esquemas de gênero do autoconceito e do perfil Idiocêntrico-Alocêntrico, e os fatores que compõem ambos os construtos". O estudo foi realizado em dois clubes de futebol profissional do estado de Santa Catarina, com 152 atletas do sexo masculino em formação, entre 14 e 20 anos, das categorias de base (sub-15, 17 e 20). Além de um questionário sociodemográfico e de informações sobre a posição do atleta no time, foram utilizados o Inventário Masculino dos Esquemas de Gênero do Autoconceito - Imega (Giavoni; Tamayo, 2003) e o Inventário de Perfil I-A de Atletas (Melo, 2008).
No trabalho Propriedades psicométricas da escala de anomia social de Srole em trabalhadores brasileiros, Luis Felipe de Oliveira Fleury, Nilton Soares Formiga, Marcos Aguiar de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizaram um estudo que se inicia com o próprio conceito de anomia e suas consequências. O foco da pesquisa foi "investigar as propriedades psicométricas da Escala de Anomia Social de Srole em trabalhadores brasileiros". Os dados foram coletados utilizando a escala com 635 trabalhadores entre 18 e 73 anos e analisados estatisticamente para a compreensão do instrumento e sua capacidade explicativa.
Agradecemos a todos os envolvidos na confecção de mais este número da Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, pois este se trata de um trabalho que não se faz senão em comunhão: autores, pareceristas, editores associados, técnicos do Setor de Editoração da UFSJ, nossa secretária, leitores em potencial, pessoal da Caboverde Design, todos foram parceiros imprescindíveis sem os quais não teríamos conseguido as conquistas deste ano. Nossa gratidão a todos.
Referências
Freire, P. (1997). Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S.A. [ Links ]
Saramago, J. (2008). Esperanças e utopias. Outros cadernos do Saramago. Recuperado em 5 dezembro, 2018, de https://caderno.josesaramago.org/3855.html
Tierra, P. (1994). Os filhos da paixão. Recuperado em 5 dezembro, 2018, de https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Pedro-Tierra-Os-Filhos-da-Paixao/12/16176
1 Expressão utilizada por Freire (1997, p. 105).