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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.4 São João del-Rei out./dez. 2018

 

Entrelaçando (im)possibilidades: reflexões sobre a atuação da psicologia social comunitária na atenção primária à saúde

 

Interlacing (im)possibilities: reflections on the performance of community social psychology in primary health care

 

Entrelazado (im)posibilidades: reflexiones sobre la actuación de la psicología social comunitaria en la atención primaria a la salud

 

 

Camila Borges MachadoI; Lara Brum de CalaisII

IPsicóloga. Integrante do Núcleo Abrapso de Juiz de Fora
IIPsicóloga. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Coordenadora do Núcleo Abrapso de Juiz de Fora. Professora dos cursos de Psicologia das faculdades Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF) e Faculdade Machado

 

 


RESUMO

O presente trabalho relata a experiência de estágio em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Juiz de Fora/MG. O objetivo foi analisar a prática da Psicologia Social Comunitária (PSC) e suas (im)possibilidades de ações. No contexto estudado, as estratégias utilizadas foram: sistematização das informações, conversas informais e visitas domiciliares. Tais estratégias, desenvolvidas em conjunto com a equipe e usuários do serviço, se mostraram importantes para o mapeamento do território e no processo de aproximação com os moradores. No que se refere às questões éticas, observou-se a importância em sustentar uma perspectiva crítica da PSC, na tentativa de romper com os padrões hegemônicos da Psicologia. Com isso, observa-se que as estratégias sob a perspectiva crítica podem favorecer ações mais integradas às necessidades da população atendida pela UBS. O estágio apontou questionamentos sobre os modelos de atuação prestados pela Psicologia, abrindo espaço para discutir uma atuação comprometida com a comunidade.

Palavras-chave: Psicologia comunitária. Atenção primária. Formação do psicólogo; Relato de experiência.


ABSTRACT

This paper reports the experience of a traineeship at a Basic Health Unit (UBS) in the city of Juiz de Fora/MG. The objective was to analyze the practice of Community Social Psychology (PSC) and its (im) possibilities of actions. In the context studied, the strategies used were: information systematization, informal conversations and home visits. These strategies, developed in conjunction with the service team and users, proved to be important for the mapping of the territory and in the process of approaching the residents. With regard to ethical issues, it was observed the importance of sustaining a critical perspective of the PSC, in an attempt to break with the hegemonic patterns of Psychology. With this, it can be observed that strategies under the critical perspective can favor actions more integrated to the needs of the population served by UBS. The internship pointed to questions about the models of performance provided by Psychology, opening space to discuss an action committed to the community.

Keywords: Community psychology. Primary attention. Psychologist training. Experience report.


RESUMEN

El presente trabajo relata la experiencia de práctica en una Unidad Básica de Salud (UBS) del municipio de Juiz de Fora/MG. El objetivo fue analizar la práctica de la Psicología Social Comunitaria (PSC) y sus (im) posibilidades de acciones. En el contexto estudiado, las estrategias utilizadas fueron: sistematización de las informaciones, conversaciones informales y visitas domiciliarias. Tales estrategias, desarrolladas en conjunto con el equipo y usuarios del servicio, se mostraron importantes para el mapeamiento del territorio y en el proceso de aproximación con los habitantes. En lo que se refiere a las cuestiones éticas, se observó la importancia de sostener una perspectiva crítica de la PSC, en el intento de romper con los patrones hegemónicos de la Psicología. Con ello, se observa que las estrategias bajo la perspectiva crítica pueden favorecer acciones más integradas a las necesidades de la población atendida por la UBS. La práctica apuntó cuestionamientos sobre los modelos de actuación prestados por la Psicología, abriendo espacio para discutir una actuación comprometida con la comunidad.

Palabras clave: Psicología comunitaria. Atención primaria. Formación del psicólogo. Relato de experiencia.


 

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho é produto de uma experiência de estágio curricular realizado no período de março a novembro de 2015, orientado na perspectiva da Psicologia Social Comunitária (PSC) e realizado em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Juiz de Fora, Minas Gerais (MG). Trata-se, portanto, de um relato de experiência que pauta problematizações sobre as estratégias de intervenção da Psicologia na comunidade atendida pela UBS.

Para tanto, no primeiro momento, considera-se pertinente contextualizar o campo de intervenção em saúde pública e seus determinantes históricos e políticos, bem como o processo de inserção da Psicologia nesse espaço. Assim, pensar a inserção dessa profissão nesse contexto implica em compreender a arena da saúde pública como perpassada por mudanças particularmente relacionadas ao cenário brasileiro, tendo a atenção primária como área fértil para atuação da Psicologia, orientada por meio do cotidiano da população usuária dos serviços de saúde (Dimenstein, 2000; Góis, 2005; 2008). Contudo, tal inserção traz uma discussão subjacente: o arsenal teórico e técnico do modelo de atuação dos psicólogos e psicólogas para tal intento.

Com a ampliação dos horizontes de ação, encontram-se acalorados debates sobre as mais variadas formas de produção, conhecimento e atuação da Psicologia, uma vez que, ao se inserir em espaços para além da clínica, buscou adaptar seus modelos ligados a uma atuação autônoma e privada (Dimenstein, 2000). Assim, no decorrer da ampliação dos campos, o modelo clínico tradicional passou a ser questionado por não condizer com os objetivos dos serviços públicos, pois privilegiava o enfoque individual em detrimento do contexto social e histórico de constituição da população, majoritariamente marcado por uma realidade social com condições precárias de sobrevivência (Amaral, Gonçalves & Serpa, 2012).

A ampliação dos campos de atuação da Psicologia não partiu de um vazio social, mas de um contexto histórico-político-econômico, principalmente a partir da década de 1980, após o período da ditadura militar e em contexto de reordenamento da seguridade social brasileira (Boing & Crepaldi, 2010). A conjuntura política e social do país, a implementação da estratégia de governo neoliberal, a institucionalização do psicólogo na saúde e nos serviços de assistência alteram o quadro da profissão no país.

No Brasil, a partir da Constituição de 1988, a saúde passa a ser um dever do Estado e um direito de todos. Em 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS), oriundo do Projeto de Reforma Sanitária Brasileira, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, é regulamentado, instituindo-se a Lei nº 8.080/1990 (Paulin & Luzio, 2009). A efetivação de um novo modelo de política pública de saúde visa à promoção, à proteção e à recuperação da saúde, por intermédio dos princípios da universalidade, gratuidade, integralidade e a descentralização. Importante destacar que o SUS é resultando de um processo político da luta de movimentos sociais, mobilizando a sociedade brasileira para propor novos modelos de serviços, ações e práticas de saúde (Ronzani & Rodrigues, 2006).

Em linhas gerais, O SUS está dividido em três níveis de atenção: 1. Nível primário, lócus do relato aqui apresentado, caracterizado pelas ações relacionadas à diminuição do risco de doenças e proteção à saúde; 2. Nível secundário, que visa atender aos agravos à saúde e que demanda ações especializadas ou recursos técnicos mais avançados; 3. Nível terciário, que envolve procedimentos de alta complexidade (Ministério da Saúde, 2007). Assim, pode-se dizer que o SUS representa um avanço democrático, porque está fundamentado nos princípios do modelo assistencial a partir da atenção básica, retirando o foco das ações dos hospitais para o território ou comunidade.

Concomitante à eclosão de tais movimentos de transformação das políticas públicas em saúde, encontram-se movimentos para uma prática posicionada e crítica da Psicologia. Botarelli (2008) adverte que há uma atuação crescente de psicólogos em políticas públicas, promovendo uma abertura de novos espaços de atuação dos profissionais. O número de psicólogos contratados no campo da saúde pública aumentou significativamente no período de 2005 até 2011, como aponta a pesquisa realizada por Macedo e Dimenstein (2011). Contudo, como afirmado por Campos e Guarido (2007), mesmo com um repertório de ações ampliadas, como atividades em grupo, visitas domiciliares e oficinas, a maioria dos profissionais de Psicologia ainda enfatizam os atendimentos nos moldes clínicos e individuais.

Nesse caminho percorrido, Dimenstein (1998) aponta que, por conta do crescente número de psicólogos se formando nas universidades brasileiras, a saúde pública se mostrou como uma possibilidade de aumento dos campos de atuação, sem, contudo, ser acompanhado de um processo formativo adequado. Por outro lado, a ampliação do campo profissional foi um dos motivos para se aquecer o debate sobre a atuação em Psicologia inserida em diferentes contextos (Cintra & Bernardo, 2017).

Além disso, a ressignificação do conceito de saúde, que passou a ser vista como um fenômeno transdisciplinar, propiciou uma compreensão mais ampla ao abordar as dimensões biopsicossociais. Para a Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), "a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença" (OMS, 1978, p. 1). Por outro lado, Segre e Ferraz (1997) afirmam que essa definição pode produzir sentidos irreais, questionando a existência de um sujeito em total bem-estar físico, mental e social ou qual seria esse modelo. No entanto, aproveita-se o avanço originado por tal conceito ampliado, considerando que, embora traga um ideal utópico de completo bem-estar, este agrega uma preocupação com a saúde pautada na perspectiva biopsicossocial sobre a existência dos sujeitos.

A alteração das lentes sobre o conceito de saúde e doença propiciou uma compreensão mais complexa e integradora, uma vez que passou a abordar sentidos de equidade - enfatizando necessidades singulares e as especificidades dos contextos de vulnerabilidade; de integralidade - pautando a articulação e continuidade das práticas de cuidado em seus diferentes níveis; e a descentralização - que pressupõe o trânsito da gestão político-administrativa e oportuniza a autonomia de demandas locais (Paulin & Luzio, 2009).

O modelo biopsicossocial traz a ideia de que os processos biológicos, psicológicos e sociais são interativos e integrados nos processos de saúde e doença. Suls e Rothman (2004) apontam que, apesar dos avanços existentes do modelo biopsicossocial, a perspectiva biomédica continua dominante, consistindo em uma visão reducionista e mecanicista do sujeito. Por outro lado, com o conceito ampliado de saúde, o nível primário ou de atenção básica pode se constituir em um espaço de transformação do modelo médico individualista para um modelo de saúde coletiva, ocasionando a criação de equipes integradas das quais psicólogos, bem como os demais profissionais considerados da saúde, passaram a ser incorporados (Amaral et al., 2012; Ronzani & Rodrigues, 2006; Spink, 2003).

A consolidação da Psicologia como uma profissão da saúde pública representa em sua potencialidade um modo de transformação para atender a pluralidade de demandas e pensar novas metodologias. Com isso, é importante que a Psicologia assuma uma ampliação de seus conhecimentos e intervenções para uma ação de caráter coletivo e integrado (Paulin & Luzio, 2009).

Nesse sentido, a Psicologia pode contribuir entendendo que a saúde se relaciona com a produção de vida, em um movimento perenemente forjado, sem uma unicidade do conceito, mas sob distintas formas, de acordo com o tempo e espaço (Medeiros, Bernardes & Guareschi, 2005). O SUS enfatiza, portanto, o processo de construção coletiva ao articular campos diversos, não se restringindo ao saber médico. Nesse contexto, emerge a indagação de partida do presente relato: quais são algumas das possibilidades de ações da Psicologia na atenção primária à saúde?

Conforme brevemente apontado, o aporte teórico-metodológico da Psicologia, hegemonicamente, se traduz em ações nos moldes dos consultórios particulares (Parker, 2015). A postura individualista, quando reproduzida na área da saúde, vai na contramão de uma atuação comprometida com a comunidade, além de se contrapor ao conceito ampliado de saúde que norteia o SUS (Ronzani & Rodrigues, 2006). Com isso, pode-se afirmar que um trabalho contextualizado deve se dar a partir do comprometimento com a realidade brasileira e também latino-americana. Em outras palavras, o/a psicólogo/a deve atuar com a comunidade, isto é, aproximando-se da realidade social e cultural dos territórios (Amaral et al., 2012).

A despeito desse cenário, sobretudo no continente latino-americano, há algumas décadas tem ocorrido questionamentos sobre os referenciais teórico-metodológicos que orientam o processo formativo e profissional da Psicologia. Sendo assim, a partir dos anos 1960 e 1970, com intuito de conformar práticas mais contextualizadas, a contribuição da PSC se destacou, possibilitando novas perspectivas para as bases orientadoras do quefazer em Psicologia (Baima, 2015; Freitas, 2011; Guzzo & Lacerda Jr., 2011; Nepomuceno, Ximenes, Cidade, Mendonça & Soares, 2008; Sawaia, 2011).

Em um breve percurso histórico sobre o contato da Psicologia com a comunidade, é possível encontrar teorias importadas de outros contextos socioculturais, aliadas ao histórico de colonização dos países latino-americanos (Freitas, 1998; Sawaia, 2011). Ao simplesmente transportar as teorias sem adaptações para a realidade local, emergiu um conflito que embasou reflexões a respeito da operação tecnicista da Psicologia, com poucas adaptações que não compreendiam efetivamente as singularidades locais. Ainda para a referida autora, é nas décadas de 1960 e 1970 que a Psicologia se encontra na comunidade, sendo que esse contato ainda se fez hierarquizado diante de um recorte entre o pesquisador e o grupo, ou seja, de um lado o profissional com suas ferramentas de "saber", e por outro o grupo, a comunidade com dinâmicas de vida e características próprias.

Como produto de um movimento que teceu críticas ao modelo de atuação tradicional-clínico, na década de 1980, a Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso) marcou uma etapa relevante de posicionamento crítico da Psicologia, sendo formada por profissionais interessados em discutir e aprofundar práticas situadas e pautadas em um referencial ético e político. Assim, configura-se um marco sobre uma nova perspectiva voltada para a realidade social, caracterizando um espaço para o posicionamento crítico diante das perspectivas importadas e descontextualizadas (Abrapso, 2015). Portanto, no desdobramento desse caminho, no intuito de gerar uma ação efetivamente próxima à realidade local, a Psicologia "na" comunidade, ou "da" comunidade, se transforma em "comunitária", legitimando um espaço e demarcando preocupações com o território latino-americano (Freitas, 1998).

A partir dessa orientação, a Psicologia é convocada a se posicionar sobre o contexto cotidiano da população, superando suas limitações de neutralidade. Diante disso, a PSC passa a compreender o indivíduo produzido em sua realidade sócio-histórica, situado em uma estrutura social de classe e em um determinado espaço político e ideológico, como uma resposta crítica ao modelo tradicional da Psicologia (Góis, 2005). A PSC representou a possibilidade de uma práxis comprometida com a transformação social, enfatizando a comunidade como elemento central e reorientando as ações em Psicologia (Montero, 2004). Ao assumir tal posicionamento, evidenciamos a nossa posição ética e política em relação à prática (Martín-Baró, 2015; Montero, 2011).

É necessário ressaltar que existem diversas denominações que tratam de perspectivas críticas desenvolvidas no contexto latino-americano, como Psicologia da Libertação, Psicologia Social Crítica, Psicologia Comunitária e até mesmo Psicologia Social Latino-Americana. Compreendemos que tais propostas têm o questionamento sobre as opressões e desigualdades sociais vividas pelos povos latino-americanos como pontos convergentes. Ademais, elas se configuram como um posicionamento ético-político, por ter a realidade social como orientadora das ações profissionais, reconhecendo o caráter ativo dos atores sociais como produtores da própria história (Cintra & Bernardo, 2017; Nepomuceno, et al., 2008).

Contudo, para Freitas (2015), muitas dificuldades ainda são impostas para assegurar uma formação universitária comprometida com a realidade brasileira e também latino-americana. Isso em razão de se privilegiar o método clínico e uma dimensão tecnicista relacionada a uma pretensa cientificidade, sem, inclusive, condizer com os preceitos do SUS, por exemplo.

Muitos profissionais, recém-formados, chegam à saúde pública sem o devido preparo e com um desconhecimento de outras possibilidades de atuação (Boing & Crepaldi, 2010; Cintra & Bernardo, 2017). Nesse sentido, a partir do exposto, o presente artigo pretende relatar a prática de atuação em Psicologia, pela via de um estágio supervisionado em uma UBS da cidade de Juiz de Fora, MG. Trata-se, portanto, de problematizar a partir desse recorte o papel da Psicologia no campo da saúde pública e refletir sobre as possibilidades em termos de atuação.

 

METODOLOGIA

Este trabalho foi realizado a partir de um termo de compromisso entre a Faculdade Machado Sobrinho e a UBS de um bairro da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, na qual são desenvolvidas ações de prevenção e promoção e atendimentos aos moradores do território de referência. O município está situado na Zona da Mata no interior do estado de Minas Gerais e, segundo os dados do IBGE (2017), tem uma população estimada de 563.769 habitantes.

Por se tratar de um relato de estágio curricular, compreende-se que o percurso metodológico da intervenção se configura por meio das ações realizadas no campo, ou seja, caracteriza-se por um relato posterior à ação, mas pensado a partir de metodologias baseadas na PSC, com objetivos definidos a posteriori e com as seguintes ferramentas de aproximação e análise do campo: sistematização das informações e visitas domiciliares. A seguir são apresentadas as atividades, a fim de organizar o caminho metodológico da prática relatada.

Sistematização das informações: a sistematização das informações resultou dos processos de inserção, contato e familiarização com o território. Tal etapa se caracterizou pelo levantamento dos prontuários e conversas informais com os usuários e profissionais da unidade de atenção, a fim de levantar as principais problemáticas vivenciadas pela comunidade em questão. Destaca-se que a sistematização das informações foi desenvolvida em diálogo com os pressupostos da PSC, funcionando como uma estratégia relevante para caracterizar e levantar informações sobre a realidade cotidiana dos moradores da própria comunidade (Freitas, 1998; Montero, 2004; Sawaia, 2011). Para tal, a etapa de sistematização das informações ocorreu da seguinte forma: observações e conversas informais dentro da UBS no intuito de conhecer a dinâmica de funcionamento, os usuários, funcionários e as rotinas cotidianas; e mapeamento da comunidade local, por meio da coleta de informações dos prontuários e conversas com a equipe e moradores.

Com base na concepção da PSC, as atividades descritas foram realizadas em formato contínuo. O contato inicial com os moradores do bairro e usuários da UBS teve como objetivo viabilizar a aproximação da comunidade utilizando-se conversas informais com a população, equipe multidisciplinar e com levantamento dos prontuários; o que direcionou a identificação das possíveis problemáticas e a coleta de informações sobre as condições de vida e moradia da população do bairro.

Além disso, destaca-se que as conversas se constituíram como ferramentas essenciais no processo de aproximação com o território e foram registradas no diário de campo (Gomes, 2008), o que também possibilitou a construção da prática realizada, que se desdobra neste relato de experiência. Ademais, no processo de sistematizar as informações do território, foram analisadas a história do local, as redes de apoio existentes, os vínculos afetivos e comunitários entre os moradores dos bairros, a relação com a equipe de saúde, os espaços disponíveis no território (escola, mercados, padarias, farmácias, ponto de ônibus, coleta de lixo) e a percepção dos moradores sobre a comunidade. Tal etapa contribuiu na aproximação com moradores/usuários, sucedendo a estratégia das visitas domiciliares.

Visitas Domiciliares: conforme apontando, as atividades descritas no tópico anterior, contribuíram no processo de construção do mapeamento do território, maior aproximação com os moradores e no desenvolvimento de uma nova estratégia: a visita domiciliar. A visita domiciliar para a PSC caracteriza-se como um importante recurso que tem como potencial a identificação de determinadas demandas, possibilitando uma aproximação e uma atuação mais coerente com as necessidades concretas da população (Garcia, 2007).

Os principais objetivos das visitas concentraram-se, de forma sumarizada, em: analisar a percepção dos moradores sobre o bairro; coletar informações sobre a dinâmica familiar, condições de vida e moradia; e identificar lógicas sobre a saúde que pudessem ser posteriormente trabalhadas pela Psicologia na instituição. Inicialmente, como sugestão da enfermeira-gerente, o público-alvo eram as pessoas acamadas por algum tipo de doença crônica. Contudo, posteriormente, as histórias de vida das mulheres cuidadoras de seus familiares acamados ganharam centralidade na experiência de estágio, tendo em vista uma identificação de que essas mulheres representavam um público significativo e atuante no bairro.

A visita domiciliar se deu, no primeiro momento, com a participação conjunta com uma das enfermeiras da equipe - profissional de referência para os usuários - em uma campanha de vacinação contra a gripe. A presença da enfermeira, nesse primeiro momento, foi um aspecto facilitador para aproximação com os moradores. Sucessivamente, as visitas se deram apenas com a presença da estagiária, sendo realizadas nas casas próximas à UBS, totalizando seis casas visitadas, com 14 encontros que duravam entre uma e duas horas, dependendo do desenvolvimento da conversa.

Para o agendamento das visitas domiciliares, foi necessário um contato telefônico, quando ocorreu a apresentação da estagiária e do objetivo da visita (percepção dos moradores sobre a comunidade em que vivem e história familiar). Além disso, foi elaborado um roteiro-guia, caracterizado por três eixos norteadores: 1. Dados de identificação (nome, data de nascimento, escolaridade, profissão, sexo); 2. Perfil social (religião, lazer, grupo de convivência e apoio, relacionamento com o bairro); e 3. História familiar (composição e dinâmica familiar). O roteiro foi utilizado de modo flexível, uma vez que serviu como apoio para estimular os diálogos, não se prendendo aos pontos previamente estruturados. Por tratar-se de uma experiência de estágio curricular, pautado na prática supervisionada, não houve preenchimento de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A busca pela inserção na comunidade trouxe algumas inquietações que nortearam, de forma constante, a prática de estágio, por exemplo: quais as particularidades deste bairro? Quem são essas pessoas/moradores/usuários? Qual é o significado deste território para os moradores? Qual é o papel da equipe de saúde para os moradores/usuários? Quais são os sentidos atribuídos à UBS? E qual é a função da Psicologia neste espaço? Sem a pretensão de esgotar ou responder a todos esses questionamentos, que serviram como reflexões que impulsionaram o período da prática, deslocando saberes e provocando um posicionamento reflexivo sobre a atuação.

Cada comunidade é composta por características singulares e coletivas e, assim, o processo de inserção pelo contato e familiarização funcionaram como uma importante estratégia para levantar informações sobre a realidade cotidiana dos moradores da comunidade. Segundo Freitas (1998), é necessária uma relação profunda e comprometida entre os conhecimentos da Psicologia e os conhecimentos da comunidade. Por isso, torna-se relevante conhecer os códigos, os sentidos e significados atribuídos pelos próprios moradores à sua realidade, de modo a possibilitar uma maior compreensão de como as pessoas vivenciam o seu cotidiano (Góis, 2008).

Conforme descrito anteriormente, a primeira etapa de inserção foi o processo de sistematização das informações sobre os moradores atendidos pela UBS. Essa primeira etapa permitiu identificar características do quadro de funcionários da equipe e possíveis dinâmicas de trabalho, bem como as características do público usuário da UBS. Além disso, o mapeamento do território, com informações sistematizadas, permitiu coletar informações sobre os bairros de abrangência da UBS. Os dois bairros de abrangência juntos apresentaram: duas faculdades particulares, uma escola municipal (educação infantil e ensino fundamental), um supermercado, comércio local (padaria, bares, mercadinhos e vendas) e uma praça. Ambos se localizam na região sul da cidade de Juiz de Fora.

Em relação à equipe da Unidade de Atendimento em questão, o quadro de funcionários, durante o período de estágio, correspondia a um total de oito trabalhadores, divididos em: uma enfermeira-gerente, dois médicos generalistas, um pediatra, uma dentista, uma enfermeira e duas técnicas de enfermagem. Além disso, a estrutura oferecida na UBS contava com três consultórios médicos, um odontológico, cozinha, banheiros, farmácia, sala para marcação de consulta, sala de acervo e recepção.

No tocante ao trabalho em equipe, alguns membros apresentaram uma perspectiva mais tradicional do modelo clínico e individual de atenção à saúde, circunscrita ao atendimento emergencial e uma concepção de saúde limitada ao modelo biomédico. Contudo, em contraponto, esse espaço também contava com profissionais que defendiam uma concepção mais ampla de saúde, fomentando discussões e grupos aos usurários da UBS, desencadeando, assim, formas distintas de atuação a partir da perspectiva de cada profissional.

Em relação ao público usuário do serviço de saúde, foi possível notar uma grande presença do gênero feminino, formado por gestantes, pacientes crônicas, idosas, responsáveis e cuidadoras de filhos e/ou familiares acamados. Nesse processo inicial de familiarização, foram desenvolvidas conversas informais para levantar mais informações sobre a comunidade, no que foi possível identificar: a presença majoritária das mulheres como pessoa de referência e cuidadoras de seus domicílios; uma parcela significativa de grávidas menores de idade; uma predominância de usuários acima de 50 anos; número significativo de pessoas que moram no bairro há mais de 50 anos e que acompanharam o intenso processo de urbanização da região; vínculo afetivo de apoio significativo para um determinado grupo, denominado "grupo da melhor idade", que realizava atividades para além da instituição (encontros na casa dos vizinhos, passeios em espaços públicos da cidade, dentre outras atividades).

Diante da observação participante, foi possível construir um plano de ação que teve como objetivo analisar a história de vida dos moradores e suas relações com o bairro, a dinâmica familiar e condições de vida e moradia, por meio das visitas domiciliares, alcançando assim uma compreensão mais aprofundada sobre a situação de saúde da população, envolvendo, principalmente, elementos culturais presentes nas relações. A visita domiciliar, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2012), é uma estratégia para o acompanhamento psicossocial, uma forma de atenção que possibilita auxiliar na compreensão da dinâmica familiar.

Alguns autores têm problematizado as implicações das visitas domiciliares como estratégias metodológicas na atuação de psicólogos (Afonso, 2004; Azeredo, Cotta, Shott, Maia & Marques, 2007; Melo, Júnior, Neiva & Toffaneli, 2011). Contudo, compreende-se que o papel do psicólogo nas visitas domiciliares pode ser uma das ferramentas que colaboram com o movimento de reflexão e mudança da realidade local (Pietroluongo & Resende, 2007).

Com efeito, a proposta da visita domiciliar foi elaborada na supervisão em PSC e apresentada para a equipe da UBS, que utilizava a estratégia da visita apenas em campanhas específicas de saúde para pacientes acamados. Ao apresentar a proposta, os seguintes objetivos foram detalhados: 1. Analisar as relações dos moradores com o bairro; 2. Compreender a dinâmica de saúde da comunidade; 3. Conhecer o arranjo familiar; e 4. Verificar as condições de vida e moradia. Inicialmente, como sugestão da enfermeira-gerente, o público-alvo eram as pessoas acamadas por algum tipo de doença crônica.

A consolidação das visitas restritas para os moradores considerados debilitados psíquica e/ou fisicamente demonstrou o imperativo das práticas da Psicologia clínica tradicional como a forma legítima ou até mesmo aceitável de atuação, restrito a atendimentos domiciliares direcionados pela equipe de saúde. Duas casas de pacientes acamados foram visitadas e em ambas as mulheres ocupavam o lugar de referência familiar, sendo elas as provedoras de renda, cuidado e alimentação familiar, corroborando com os dados levantados na primeira etapa do processo de sistematização das informações.

As histórias de vida das mulheres do território pulsaram de forma singular e coletiva, produzindo um delineamento sobre a história delas. Nesse desenrolar, o público-alvo das visitas se transformou, ou seja, a realidade das mulheres ganhou olhar e voz específicos. Em outras palavras, as visitas deixaram de ser para pacientes acamados e passaram a ser para as mulheres da comunidade. Como destaca Silveira (2014), a intervenção psicossocial não é um fazer linear, pois ela vai se desdobrando a partir das necessidades, acontecimentos e oportunidades.

A alteração dos acamados para as mulheres refletiu no amadurecimento do objetivo da intervenção sob a prática da PSC. A partir de então, a lista referente à organização para as visitas domiciliares passou a ser construída em conjunto com as mulheres visitadas, na qual cada mulher indicava uma outra para visita. Foram quatro casas visitadas com três encontros cada (tendo em vista a intenção de maior aproximação da realidade das moradoras), totalizando 12 encontros com as mulheres da comunidade. Durante as visitas domiciliares, foi possível perceber a dinâmica das relações e os arranjos familiares refletindo sobre a realidade local. Importante destacar que o objeto central da PSC no âmbito da saúde pública não está somente vinculado à relação saúde e doença, prevenção e tratamento, mas sim ao fortalecimento da dimensão de sujeito de direitos, com foco em cidadania, autonomia e emancipação. Assim, o psicólogo atua com a comunidade e não somente com o indivíduo (Góis, 2008).

A sistematização das informações da comunidade atendida pela UBS em questão, somado aos processos de familiarização com o território e visitas domiciliares, registrados no diário de campo, deu vida ao presente relato. A fim de ilustrar a prática, relataremos aqui, sucintamente, um fragmento do diário de campo que identificamos como bastante representativo e que desencadeou reflexões sobre o processo formativo e o lugar da Psicologia no imaginário coletivo.

No dia 22 de maio de 2015 (sexta-feira), estive pela primeira vez na casa da moradora 1, de 53 anos, professora aposentada e ex-comerciante. Anteriormente, fiz um contato telefônico, no qual me apresentei e disse que gostaria de conhecê-la. Cheguei à casa dela às 14 horas, como havíamos combinado, com uma prancheta, folha com o roteiro-guia de conversa e caneta em mão. Ela mora em uma das ruas próximas da UBS. A moradora veio atender ao meu chamado em sua porta, cumprimentei-a e, dessa vez, me apresentei pessoalmente. Ela me convidou para entrar e me levou até o quarto dela, onde fechou a porta. No quarto havia uma cama, um guarda-roupas, computador, televisão e uma cadeira. As primeiras frases da anfitriã dentro do quarto foram: "Onde posso me sentar? Você prefere que eu deite na cama? Aqui não tem divã". Respondi que ela poderia sentar-se onde quisesse, afinal aquela era sua casa e, principalmente, seu quarto. Ela sorriu e sentou-se na cadeira. Eu me sentei na cama à sua frente. Em seguida, ela começou a relatar fatos da sua vida pregressa. A intenção dessa primeira visita era reconhecer sua casa, sua história no bairro e sua composição familiar, no entanto, acredito não ter conseguido esclarecer de forma compreensível o motivo que me levava ali. A moradora demonstrou necessidade em falar sobre suas questões pessoais na presença da "figura da psicóloga". Em alguns momentos, ela dizia olhando para a prancheta: "vejo que você tem algumas perguntas para mim", mas ao mesmo tempo engatava em outra questão pessoal. Quando eu conseguia fazer alguma pergunta com relação à sua experiência na comunidade, ela também prolongava para outras questões. A visita durou aproximadamente duas horas. A Anfitriã me perguntou se eu voltaria na próxima semana, pontuei que caso fosse acontecer um próximo encontro ligaria para confirmar. Aproveitei o momento e reforcei o intuito da visita domiciliar: conhecer informações sobre a comunidade. Ao se despedir, a moradora agradeceu, disse que estava se sentindo bem. Quando me deixou no portão, chamou uma vizinha que estava do outro lado na rua e disse: "Essa aqui é minha psicóloga, vai vim aqui cuidar da minha cabeça".

A experiência do recorte em questão foi a primeira das visitas, sendo uma das casas sugeridas pela equipe de saúde. Esse primeiro contato apresentou o desafio de refletir sobre qual intervenção possível da PSC na comunidade e como aplicá-la. A inserção nesse local trouxe dificuldades, também obstaculizadas por alguns profissionais da equipe de saúde da UBS, talvez pela pouca difusão de conhecimentos acerca da PSC e/ou pelo próprio processo formativo que, em muitos momentos, reforça o viés clínico e não desmitifica que esse modelo seja a única forma de atuar.

Assim, para que a proposta da ação em visita domiciliar sob a perspectiva da PSC fosse mantida, foi necessário formular reflexões mais amplas sobre o forte viés clínico e o lugar da Psicologia no cenário social. Em supervisão, optou-se por continuar com a proposta das visitas, priorizando a participação das mulheres no processo de construção da lista. Além disso, foi necessário reforçar com a equipe da UBS e com as mulheres visitadas sobre as outras possibilidades do que fazer em Psicologia (Martín-Baró, 2015).

Retomando os aspectos históricos de construção da PSC, esta surge de um processo que tem como horizonte elementos constituídos na crítica e na busca em criar alternativas para a Psicologia tradicional. Caracteriza-se, portanto, como uma das tentativas de se construir uma superação à Psicologia elitista, que pouco servia em responder às demandas da maioria da população brasileira, demandas que estão diretamente ligadas às condições básicas de sobrevivência numa realidade social de carência dessas condições (Freitas, 2011; Montero, 2011; Yamamoto, 1987).

Durante o período de estágio, percebeu-se que a forma de intervenção faz toda a diferença. Em outras palavras, a consciência de que o profissional é somente mais um que colabora com o movimento, de certo modo libertador, resulta na consciência de que as ações só poderão se sustentar pelo engajamento da própria comunidade. A prática se traduziu em um terreno controverso: por um lado o quadro formativo em Psicologia, dissociado com a prática social e de orientação hegemônica clínica e poucos debates acerca dos problemas sociais do país; por outro o horizonte a partir dos debates desenvolvidos nas disciplinas de Psicologia Social e Comunitária, contribuindo para (re)pensar práticas metodológicas mais coerentes com as demandas sociais.

A partir da experiência relatada, que inclui um recorte local e territorial sobre a atenção primária, pôde-se perceber que existem inúmeras dificuldades no campo da saúde pública, principalmente quando se aborda a atuação dos psicólogos nesses espaços. Com a visão de que o fazer dos psicólogos estaria restrito ao âmbito clínico e pautado no modelo biomédico, muitos - entre profissionais, usuários e até mesmo estudantes - parecem compreender que essa é a principal, senão a única, forma de atuação (Cintra & Bernardo, 2017). Ao mesmo tempo, é importante destacar que alguns movimentos da Psicologia buscam maneiras mais condizentes de atuar, valendo-se de práticas que se embasam em ações para a comunidade.

O entrelaçamento das vivências e existências reconhecidas no contexto estudado pôde unir as singularidades da vida das mulheres usuárias do serviço de saúde com as coletividades das mulheres do bairro. Singularidades e coletividades essas que, quando compreendidas por meio de uma análise humanizada do atendimento à saúde, possibilita uma atenção à vida das pessoas de forma efetivamente integral. A partir dessa análise, emerge como proposição a necessidade de se pensar uma prática da Psicologia na atenção primária que se preocupe fundamentalmente com a historicidade dos processos de saúde. Dessa forma, as transformações se desdobrarão na própria óptica sobre o cuidado, que deve ser visto para além de seu aparato técnico, considerando sua dimensão ontológica de compreensão sobre o humano.

Assim, conclui-se que uma formação comprometida com as políticas públicas e debates sociais sobre a realidade brasileira, como também latino-americana, são instrumentos necessários para o processo formativo. Uma formação preocupada com a questão social - principalmente diante dos ferozes retrocessos vivenciados não só na área da saúde, mas também na assistência e educação - ,podendo gerar, assim, uma atuação mais sólida, crítica e emancipadora.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de estágio aqui apresentada aponta contribuições para a problematização do exercício profissional da Psicologia no contexto da saúde pública. Vale ressaltar que não se pretendeu engessar a prática no contexto da UBS, mas lançar reflexões e apontar alguns desafios.

Mediante isso, a prática se fez permeada de indagações e potencialidades. Os relatos permitiram refletir de que modo as estratégias de atuação em comunidade, na perspectiva da PSC, podem contribuir para ações mais condizentes com as necessidades da população. Além disso, permitiu (re)pensar a prática profissional, de modo a evitar enraizar verdades absolutas, o que exime o profissional de uma prática cega (Silveira, 2014).

Compreende-se a UBS como um espaço perpassado pelo processo histórico e político que marcaram as políticas públicas de saúde no Brasil (Ronzani & Rodrigues, 2006)., o que exige clareza dos limites e possibilidades da intervenção em Psicologia. No contexto de saúde pública, os psicólogos podem atuar na realidade comunitária, articulados ao contexto social, político e econômico, visando à transformação social da comunidade, não se limitando a uma prática individualizante (Amaral et al., 2012; Cintra & Bernardo, 2017).

A visita domiciliar, tendo em vista ser essa uma prática que rompe com os padrões tracionais psicológicos, mostrou-se um desafio, por tratar de uma ação pouco conhecida pelos moradores e demais profissionais da equipe. Tal fato aponta a necessidade de questionar o modelo formativo e a lógica de mercado tecnicista nos cursos de Psicologia, podendo acarretar no desenvolvimento de práticas descontextualizadas e fragmentadas (Baima, 2012; Seixas, 2014).

A instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de Psicologia no Brasil consolidou uma discussão crítica ao modelo médico-clínico do qual se centrava a formação em Psicologia com base no currículo mínimo (Tizzei, 2014). Tal discussão já vinha se desenhando desde o início dos anos 1990. Contudo, somente em 2004 esse debate consolidou novas diretrizes curriculares - passando atualmente por novas reformulações. De acordo com as DCNs, a formação em Psicologia deveria se basear em alguns princípios e compromissos com o objetivo de produzir uma atuação em diferentes contextos e em múltiplos referenciais capazes de dar conta da complexidade das relações entre o indivíduo e sociedade.

Contudo, segundo Seixas (2014), a forma de orientação das DCNs baseia-se em princípios gerais de caráter demasiado amplo e ambíguo, embora represente um avanço ao considerar a ampliação da atuação para além dos espaços hegemônicos. Mas o autor pontua que, ainda que a atual legislação tenha avançado em determinadas questões, os avanços podem ser limitados por princípios inespecíficos, permitindo a reprodução desses avanços e antigos formatos acadêmicos.

Nesse sentido, é extremamente importante que o conteúdo programático disciplinar contemple tópicos de discussão sobre a realidade social, concepções de mundo e o papel social da Psicologia. Acreditamos que a potencialidade de uma prática se encontra em ações comprometidas com a transformação social, alcançadas por intermédio de um arcabouço teórico-metodológico calcado em um horizonte de mudança.

Ao mesmo tempo, não temos a pretensão em dizer que uma mudança na formação em Psicologia, por si só, garantiria um caráter diferente do hegemônico. Não coube a este relato conduzir uma reflexão nesse aspecto, mas vale destacar as possibilidades de a Psicologia, ciência e profissão, promover ações de caráter verdadeiramente comprometido com a transformação social (Baima, 2012; Sawaia, 2011; Yamamoto, 2007).

 

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Recebido em: 1º/12/2016
Aprovado em: 16/8/2018

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