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Psicologia para América Latina
versão On-line ISSN 1870-350X
Psicol. Am. Lat. n.7 México ago. 2006
GRUPOS E INDIVIDUOS EN DESVENTAJA
Desenvolvimento interpessoal de crianças com múltiplas deficiências e os grupos
Ana Gabriela Moreira Pudenzi; Beatriz S. Fernandes
Instituto Mackenzie – São Paulo
SPAGESP - Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo
NESME- Núcleo de Estudos em Saúde Mental (Brasil)
RESUMO
Administrar, conviver e comunicar-se dentro do universo da criança com múltiplas deficiências! É uma tarefa possível?
O que acham os professores, auxiliares, psicólogas, as crianças, os pais? O objetivo deste trabalho é apresentar um relato da experiência ocorrida numa escola filantrópica para crianças e adolescentes excepcionais. Pretende-se relatar como foi encontrada a escola e como está no momento, depois de algumas alterações realizadas no funcionamento do dia-a-dia. A partir da observação do trabalho realizado pela terapia ocupacional onde todas as crianças trabalhavam em grupo, organizaram-se grupos de atendimentos, entre eles: com os usuários da escola e com os respectivos pais. As questões levantadas acima serão respondidas após 6 meses de trabalhos grupais realizados nesta instituição. As dúvidas permanecerão ou encontraremos respostas para algumas inquietações?
Palavras-chave: Deficiência, Grupo, Instituição.
ABSTRACT
Children with multiple deficiencies and the groups. Is it possible to manage so many diferences?
Deal, live with, communicate in the inside children’s universe with multiple deficiencies! Is this a possible task to do? What do teachers, psychologists, children and parents think of it? The purpose of this work is to present a description of a particular experience we had in a philanthropic school for children and deficient adolescents. Our intention is to give a report of the school from the beginning and how it looks at this moment, after some alterations done in its daily functioning. Starting from the observation of the work already done by occupational therapy, were all children worked in groups, had been organized groups of attendance, among them: with the users of the school and their respective parents. The questions we brought above will be answered after six months of group’s work achieve in this institution. Doubts will remain or shall we find answers to some of our inquietness.
Keywords: Deficiency, Group, Institution.
RESUMEN
¿Niños com múltiplas deficiências y los grupos. És posible tratar com tantas diferencias?
¿Organizar todo, convivir, comunicarse dentro del universo del niño con múltiplas deficiencias es una tarea posible? Qué piensan los profesores, los psicólogos, los niños y sus padres? El objetivo de este trabajo es presentar un relato de la experiencia ocurrida en una escuela filantrópica para niños y adolescentes con deficiencia. Se trata de exponer la manera en que fue encontrada la escuela y como está actualmente tras algunos cambios en su funcionamiento diario. A partir de la observación del trabajo realizado por la terapia ocupacional, donde todos los niños trabajan en grupo, se organizaron grupos operativos entre ellos: con los usuarios de la escuela y otro con sus respectivos padres. Los temas levantados arriba serán respondidos, transcurridos los seis meses de trabajos grupales realizados en esta institución. Las dudas permanecerán o encontraremos respuestas para algunas inquietudes que ocupan nuestra mente?
Palabras clave: Deficiencia, Grupo, Institución.
Introdução
O que todos pais planejam para seus filhos é sempre muito idealizado. São planos cheios de esperanças, expectativas, ambições que serão ou não concretizadas com a chegada dos novos bebês. O inverso também ocorre, criança que irão nascer embora o desejo inicial não fosse esse. Não foram idealizadas, planejadas, foram concebidas um pouco ao acaso e chegaram a este mundo para transformar a família de origem.
Dentro desses dois mundos encontramos crianças que nasceram com deficiências. Algumas com uma deficiência apenas, outras com múltiplas, desde a esfera intelectual até física. Crianças que conseguem certa independência até mesmo as totalmente dependentes dos outros para sobreviverem.
Como são absorvidas pela família, escola e sociedade? Quais as dificuldades básicas encontradas em seu meio ambiente? Como a família consegue superar as frustrações e dar-lhes condições mínimas de sobrevivência? Essa foi a realidade encontrada no local em que realizamos este trabalho.
Trata-se, neste trabalho, de um processo novo implantado nesta instituição que cuida de portadores de deficiências múltiplas, porém todos apresentam deficiência mental, a qual se torna nosso enfoque. Com seu déficit intelectual, o deficiente mental já é considerado “diferente”, e juntamente com essa definição, vem a segregação por parte da sociedade. Isso torna ainda mais difícil a convivência deste dentro da mesma.
Outro ponto evidenciado em nossa prática é a dificuldade, por parte dos pais, em lidar com um filho com necessidades especiais. Durante os nove meses de gestação de um bebê os pais ficam refletindo sobre como vai ser esta criança, cheios de expectativas para seu futuro. Assim, quando ela nasce fora dos padrões desejáveis e normais, a frustração dos pais é enorme, pois eles vêem desmoronadas todas as fantasias construídas em volta do filho. Daí a grande importância de trabalhar com os efeitos psicológicos das deficiências de uma criança sobre seus pais, e também com os conceitos que estes formam sobre elas e suas dificuldades.
Desta forma, foi proposto este trabalho de integração social no grupo de usuários da instituição em questão, já que esta requeria estagiários de psicologia. O trabalho da estagiária consistiu em atendimentos grupais com características de Grupo Operativo, cuja tarefa foi a de facilitar a interação e convivência entre a clientela da escola.
Teve também início um atendimento com os pais dos alunos da escola, que foi realizado por um profissional da área de psicologia, cada um por uma autora deste trabalho. Esta proposta é de suma importância, primeiro por ser considerada enorme a repercussão das deficiências no psiquismo dos pais, e na forma como estes lidam com seus filhos; segundo, porque a forma como estes lidam com seus filhos consistirá um determinante para seu futuro desenvolvimento.
Com esse estudo, pretende-se contribuir para a reflexão sobre a importância da integração dos portadores de deficiência na sociedade e da conscientização dos pais sobre seu papel fundamental na formação e desenvolvimento de seus filhos, além da contribuição em futuros estudos e pesquisas nesta área.
Objetivos
- Observar os progressos e retrocessos das crianças portadoras de deficiências múltiplas submetidas semanalmente a uma intervenção grupal;
- Observar os progressos e retrocessos dos pais de crianças portadores de múltiplas deficiências submetidos quinzenalmente a uma intervenção grupal.
Realização do Trabalho
Este processo foi realizado numa instituição filantrópica, fundada em 1996 (mantida por um grupo de pessoas, doações, bazares, etc.). Nascida sob o ideal de propiciar às crianças e familiares de portadores de múltiplas deficiências algum aprendizado, aumenta de sociabilidade, desenvolvimento de suas potencialidades e noções de cidadania, tentando assim proporcionar uma qualidade de vida melhor.
Atualmente não é totalmente gratuita, mas tem uma contribuição simbólica por parte dos pais. As crianças chegam à escola pela manhã, trazidas por condução fornecida pela instituição, em torno de 8:00 - 9:00 e regressam às 16:30. Tomam café da manhã, almoçam e tomam lanche à tarde. Por vezes necessitam banhar-se na escola.
O número de freqüentadores gira em torno de 10-15. Entradas e saídas de alunos são constantes. Entre 8-9 são os que permanecessem como alunos regulares e constantes.
As responsáveis pela instituição são duas senhoras, irmãs, que se ocupam da parte burocrática e pedagógica. Algumas mães eventualmente ajudam na escola (cozinha, limpeza ou recreação), havendo também um motorista e uma faxineira.
A atividade das crianças constituía-se de terapia ocupacional, canto, desenho (para quem tinha condições). Outros ficavam horas sentados, mudos, agitando-se ou não, porém sempre perto dos demais, e estes interagindo com eles.
O que se percebe é que são tratados com carinho. Nem sempre com a melhor técnica, mas, com certeza, com carinho.
A partir da entrada de estagiários em psicologia, os alunos procuraram a instituição. Mas, sem um profissional atuando na escola, não poderia haver estágio.
Em agosto de 2004 tem início uma estagiária na área de psicologia e uma profissional da área.
A proposta feita à escola, após alguma observação, foi de se ter uma estagiária, pois foi a única que permaneceu, com freqüência de no mínimo 3 tardes (14:00 - 16:30) realizando grupos com as crianças, com o objetivo de melhorar a convivência, diminuir a agressividade uma vez que a experiência grupal pode ajudar neste sentido.
Em contrapartida, a profissional realizará um grupo com pais, com o objetivo de propiciar um espaço onde possa circular a angústia, o medo, a raiva, as dificuldades e as facilidades que cada família enfrenta.
Descrição dos grupos com crianças
Os grupos realizados com as crianças podem ser considerados como operativos, com a tarefa básica de ajudá-los a aprender a conviver um com o outro, e a tentar tolerar as múltiplas diferenças entre eles.
A posição da estagiária, que era considerada um “faz tudo” na escola, mudou. A partir do momento que coordena os grupos não foi mais acompanhá-los de volta para casa com a condução; não ficou mais ajudando a fazer artesanato para bazares, operando como coordenadora dos grupos e atendendo os mais agitados às vezes individualmente. Observa tarefas normais e comportamentos da clientela infanto-juvenil.
Após horas de observação do comportamento das crianças/adolescentes uns com os outros e suas possibilidades e impossibilidades de trabalho e convivência, foram selecionados dois grupos.
O primeiro grupo com:
- Lucas (9) muito agitado, sem conseguir quase parar para brincar.
- Simone (19) que consegue juntar algumas peças de lego, bastante pacata.
- Vitor (8) que consegue alguns encaixes tem momentos de agitação e calma.
- Willian (13) que não fala, agitado e quase nada faz.
- Wesley (10) agitado consegue desenhar um pouco, requisita atenção o tempo todo.
O segundo grupo com:
- Viviane (21) adora brincar de mamãe, entenda-se pegar boneca e dar mamadeira, sempre calma, mas quando com raiva, fere-se.
- Dyane (19) sempre querendo ajudar o colega e atuando como mamãe, mandando em seus colegas.
- Renato (6) ora agitado, ora calmo conseguindo apenas poucos encaixes, algum chute.
- Leo (17) que joga bola consegue varrer, fala pouco, quando contrariado agita-se bastante.
- Ronaldo (14) não fala, não faz nada, fica sentado. Consegue deixar que sentem em seu colo quando é procurado e vira o rosto para olhar em redor.
Os grupos são semanais, com duração de uma hora. São realizados na brinquedoteca da escola, toda montada através de doações par crianças regularmente desenvolvidas.
O primeiro trabalho realizado foi o de selecionar os brinquedos para que só permanecessem em uso os mais fortes (quase que inquebráveis) e também que fossem adequados para as capacidades dos usuários, o que quer dizer 10% da brinquedoteca.
Observamos também que a seleção não foi muito adequada, pois em cada grupo encontramos participantes que não toleram ficar fechados na sala, agitando-se e tentando bater nos demais.
A expressão verbal é escassa. Comunicam-se por sinais, por sons guturais ou pequenas palavras, nem sempre bem articuladas. Quase não interagem entre eles, ficando apenas na tarefa solitária ou de provocação.
Fizemos alterações. Os mais agitados, que quase nada falam, saíram dos grupos. Ficaram em atividades normais da escola (futuramente em outro grupo).
Dois meses e meio passados observamos algumas alterações: há convites para compartilhar brinquedos, um tenta auxiliar o outro em alguma necessidade. Observamos auxiliarem na procura de brinquedos perdidos, sem a necessidade de participação da coordenação, uns acalmam os outros, etc.
Descrição do Grupo de Pais
Todos os pais foram convidados para esta atividade, através de carta enviada nas mochilas das crianças pelas coordenadoras, que a princípio ficaram entusiasmadas com a possibilidade de dar esta oportunidade aos pais, o que auxiliaria no relacionamento com a escola também.
No primeiro dia do grupo, a freqüência foi de 90%, caindo para 70% e permanecendo ao longo do semestre em 45% em média.
Este grupo tem como finalidade dar lugar aos pais para poderem falar de suas dificuldade e facilidades frente à realidade de suas famílias. Não é de orientação.
A princípio observou-se que quase todas as mães (pais nunca vieram) achavam-se incumbidas de uma missão “divina”, pois foram quase que unânime os relatos de médicos, que diziam: “mãe, você foi indicada por Deus por sua fortaleza, para criar este filho”.
Nenhuma delas conseguia falar de sua frustração. Algumas expressavam raiva, não se achando merecedoras de tamanho castigo. Perguntas permeavam o grupo como: O que fizeram a Deus? Por que é que os filhos não são normais, e quando conseguirão ser?
Perguntavam à coordenadora porque ela estava ali. Se fora contratada, e chegaram à conclusão que assim como Deus havia enviado crianças com problemas, enviou alguém para ajudar na solução.
Devagar, lentamente, a coordenadora foi conseguindo mostrar a necessidade de uma ouvir à outra, de falarem uma de cada vez, de não formarem subgrupos, pois perderíamos muitas contribuições.
Assim como a água mole bate em pedra dura, até que fura, após três meses de grupos, quando a freqüência diminuira, mas permanecendo constante, já conseguiam ouvir uma a outra; ajudar-se mutuamente indicando locais para atendimentos, para medicação, dividir angústias e diminuir sensivelmente a idealização.
Já conseguiam entrar em trabalho grupal, percebiam raiva, dificuldades com os demais membros, com a instituição, desidealizram um pouco a instituição (esperavam fonoaudiologia, fisioterapia, psicologia, dentistas, médicos patrocinados pela instituição).
Coube à coordenadora também, após o primeiro mês de funcionamento do grupo, fazer alguns esclarecimentos (para dirigirem suas dúvidas às coordenadoras da instituição) após conversa com a diretoria, no sentido de que a proposta da escola era uma e o anseio delas era outro.
Esses esclarecimentos parecem ter facilitado um pouco o relacionamento institucional e familiar, pois algumas mães pararam de solicitar alfabetização da escola e do filho, pois não conversavam com clareza com a coordenação da escola, anteriormente ao grupo.
- “Meu filho pede mochila e caderno igual ao do irmão. Então ele tem que aprender também”.
- “Porque não dá a mochila e caderno e deixa ele fazer seus desenhos, sem cobrança?”
- “Eu não sei escrever, e acho que meu filho também não vai aprender”.
Discussão teórica
A técnica grupal foi escolhida por ser abrangente, por ser plural, e por contar com múltiplos fenômenos e elementos do psiquismo. É como diz Zimerman (2000, p. 84) “uma melodia que resulta não da soma das notas musicais, mas da combinação e do arranjo entre elas”.
A técnica empregada em nossos grupos é a de Grupo Operativo segundo os ensinamentos de Pichon-Rivière, quando diz que (Apud, FISCMANN, J.B. 1995, p.95) “é um instrumento de trabalho, um método de investigação e cumpre, além disso, uma função terapêutica”. Optamos por esta vertente uma vez que eles são terapêuticos em seus fins, mas temos uma tarefa a trabalhar. Os participantes se encontram sempre, e a nossa posição enquanto “técnicas” também é mesclada; isto é, mantemos contatos extra-setting.
Algumas vezes temos necessidade de fazer encaminhamentos ou dar aconselhamento às mães, em função de algo que observamos, de caráter sério, por exemplo, orientar quanto à necessidade de realizar os acompanhamentos médicos.
Limpeza, hábitos de higiene e respectivas orientações ficam a cargo das coordenadoras pedagógicas. Questões institucionais ainda não surgiram abertamente, mas, no futuro, assim que crescerem enquanto grupo, acreditamos que surgirão.
Também neste sentido optamos pelo Grupo Operativo porque temos que ficar centralizados unicamente na tarefa proposta, com intervenções pontuais. Segundo Zimerman (2000, p.91) “somente nas situações em que fatores inconscientes inter-relacionais venham a ameaçar a integração ou a evolução exitosa do grupo (é) que cabem eventuais intervenções de ordem interpretativa”.
Fernandes (2004, p. 97) esclarece que no grupo, “as resistências fragmentam-se, diluem-se, permitindo certa elaboração e alguma reestruturação grupal, configurando-se como um meio eficaz de aprendizado”.
Algumas Notas de conclusão
Administrar, conviver e comunicar-se dentro do universo das crianças com múltiplas deficiências é uma tarefa possível, sim, na medida em que pudermos respeitar as diferenças, dificuldades, incapacidades e potencialidades de cada um.
Percebemos ao longo desses meses que os grupos evoluíram, não como talvez os idealizamos, mas dentro das capacidades grupais e de cada um.
É possível fazer grupos com esta clientela? Hoje podemos afirmar que sim, embora necessitem de alguma adaptação tanto dos participantes como de nós, coordenadores.
No que depende das mães, estas parecem sensibilizadas, alegando estar aproveitando a oportunidade e querendo saber se o grupo continuará. Temiam, a princípio, a perda do grupo caso não houvesse 80% de freqüência. Á medida que se esclareceram as dúvidas, que o grupo seria para quem quisesse, os frutos começaram a surgir.
No que concerne às crianças, percebemos que já esboçam uma pequena solidariedade, preocupação com o outro, interesse pela atividade alheia. A comunicação verbal é pouca, mas podem utilizar-se de outras formas de expressão, tal como gestos, olhares, um tapinha suave, um humm, humm, hum, etc. Esperam o acontecer dos grupos.
E nós, da área psi, percebemos a cada dia, o quanto este grande e múltiplo mundo é difícil e encantador, e quanta adaptação precisamos para nos dedicar a esta realidade, até mesmo aprender a decifrar códigos, para, com isto, conseguir alguma comunicação.
Referências bibliográficas
- FERNANDES, W. J. "Grupos Operativos", in FERNANDES, B.S., SVARTMAN, B; FERNANDES, W. J. Grupos e Configurações Vinculares. Porto Alegre: Artmed, 2004, p. 97. [ Links ]
- FISCMANN, J. B. "Como Agem os Grupos Operativos", in ZIMERMAN, D. E.; OSÓRIO, L. C. Como Trabalhamos com Grupos. Porto Alegre: Artmed, 1995, p. 95. [ Links ]
- ZIMERMAN, D. E. Fundamentos Básicos dos Grupoterapias. Porto Alegre: Artmed, 2000, p. 84, 91. [ Links ]