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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  n.7 México ago. 2006

 

GRUPOS E INDIVIDUOS EN DESVENTAJA

 

A constução de sentidos no cotidano de universitários com deficiência: As dimensões da rede social e do cuidado mental

 

 

Marlene Aparecida Wischral Simionato; Sonia Silva Marcon

Universidade Estadual de Maringá - Maringá – Paraná Brasil

 

 


RESUMO

O cotidiano familiar de estudantes universitários com deficiência é o eixo norteador deste trabalho. O objetivo é identificar a percepção do aluno deficiente acerca do cotidiano, na construção da autonomia, independência e responsabilidade. Há duas dimensões de análise: o papel e a importância da rede social; o significado e as manifestações do cuidado familial. O referencial teórico é do construcionismo social e da análise de conteúdo. Realizou-se estudo qualitativo, descritivo e analítico, utilizando-se para coleta de dados entrevistas semi-estruturadas e observação. A população da pesquisa consistiu de alunos deficientes da Universidade Estadual de Maringá – Paraná. Discutiu-se as redes pessoais de malha firme e de malha frouxa; o cuidado familial nas suas diversas manifestações; e as três dimensões de tempo que permeiam a produção de sentidos dos estudantes: o tempo longo, das construções históricas; o tempo vivido, das experiências de socialização e o tempo curto ou dialógico, das interações face-a-face.

Palavras-chave: Produção de sentidos, Deficiência, Rede social, Cuidado familial.


RESUMEN

El cotidiano familiar de estudiantes universitarios con deficiencia es el eje orientador de este trabajo. El objetivo es identificar la percepción del alumno con deficiencia cerca del cotidiano, em la construcción de la autonomía, independência y responsabilidad. Hay dos dimensiones de análisis: la función y la importancia de la red social; el significado y las manifestaciones del cuidado de la familia. El sistema de referencia teórico es el construcionismo social y de la análisis del contenido. Fueran hechos estudios cualitativos, descriptivos y analíticos, utilizandóse para colecta de los datos citas semi estructuradas y de la observación. La población de la pesquisa fue consistida de alumnos con deficiencia de la Universidad Estadual de Maringá – Paraná. Ha sido discutido las reds personales de malla firme y de malla floja; el cuidado de la familia en sus diversas manifestaciones y las tres dimensiones de tiempo que median los discursos de los estudiantes: el largo tiempo de las construciones históricas; el tiempo vivido, de las experiencias de socialización en la historia personal y el tiempo corto o dialógico, de las interaciones cara a cara.

Palabras clave: Producción del sentido, Deficiencia, Red social, Cuidado familial.


ABSTRACT

The everyday life of disabled university students is the leading axis in this work. The objective is to identify the disabled student's perception of everyday life for the construction of autonomy, independence and responsibility. There are two dimensions of analysis: the role and importance of the social net; the meaning and manifestations of the familiar care. The theoretic referential is from the social construtivism and from the analysis of contents. There have been made qualitative, descriptive and analytic studies using semi-structured interviews and observation to collect information. The population for the research consisted in disabled students from the Universidade Estadual de Maringá - Paraná. There have been discussed the personal nets of firm mesh and loose mesh; the familiar care in its various demonstrations; the three dimensions of time that permeates the student's speeches: the long time of historic constructions, the lived time of socialization experiences in the personal history and the dialogic or short time of face-to-face interactions.

Keywords: Sense production, Defiency, Social net, Familiar care.


 

 

Introdução

Inúmeras foram as transformações ocorridas na sociedade a partir do século XIX, mas principalmente no século XX, por força das necessidades do sistema de produção e de suas influências nas relações sociais. O século XX foi palco de uma mudança paradigmática sem precedentes no conjunto de pensamentos, percepções e valores acerca da realidade social. Nesse período viu-se o surgimento de novas possibilidades de compreensão da estrutura e do funcionamento da sociedade e presencia-se ainda a construção gradativa de um cenário que permita a elaboração de uma nova visão de homem e de mundo.

Na revolução dos valores sociais e morais que marcam a atualidade e frente às grandes incoerências da racionalidade social e científica em que a vida humana ainda está imersa, surge uma corrente de pensamento que focaliza o viver humano a partir de uma concepção humanista sócio, política e econômica de socialidade e de cotidiano. O termo socialidade nos remete ao cotidiano, pois se trata de uma dimensão de espaço e tempo que se baseia no momento, naquilo que é instantâneo, mas ao mesmo tempo repetitivo, simples e banal. É na idéia de socialidade, constituída a partir da ajuda mútua, da intimidade e da partilha tecidas em rede que se sustentam as possibilidades de compreensão e ressignificação do cotidiano (MAFFESOLI, 1998).

Portanto, é nesta perspectiva de produção de sentidos no cotidiano que contextualizaremos as duas dimensões do presente estudo acerca do adulto com deficiência no ensino superior: o papel e a importância da rede social; e o significado e as manifestações do cuidado familial.

Situando ao longo do tempo a questão das pessoas com deficiência De acordo com Carmo (1991), desde os tempos mais antigos, as pessoas com deficiências já se deparavam com impasses ou problemas sociais. Segundo o autor, havia na Antiguidade dois tipos básicos de tratamento dado aos idosos, doentes e deficientes, que perduraram pela Idade Média e se estenderam até as nascentes do Capitalismo: um, que se caracterizava pela aceitação, tolerância e apoio e outro, que se pautava no menosprezo, no abandono ou na eliminação.

Ao adentrarmos no século XXI, o paradigma que predomina no que se refere às relações com os portadores de necessidades especiais é o da inclusão, a partir da convivência com/entre as diferenças. Fala-se muito em integração social dos portadores de deficiências, observa-se mesmo uma luta pela possibilidade de integração/inclusão da pessoa deficiente, numa tentativa de indiferenciar uma pessoa considerada normal, de outra com deficiência, em que o lema é “ser diferente é normal”.

Diversos autores (Michels, 2000; Mazzota, 1998; Carmo, 1991;) apontam que a literatura que trata da inclusão de alunos com necessidades especiais nos níveis de ensino fundamental e médio é bastante significativa; a inclusão da criança e do adolescente tem sido muito pesquisada e discutida no Brasil.

A realidade é completamente diferente no que se refere à inclusão de adultos deficientes no ensino superior. Em termos de literatura, há muito a ser construído. Michels (2000), Diniz (1997) e Bueno (1997) assinalam que não existem dados, ou é pouco conhecido, o universo de alunos deficientes nas universidades em geral. Conseqüentemente, pouco se sabe sobre as situações e os recursos que favorecem ou dificultam a inclusão do aluno com deficiência no ensino superior; quais as condições que propiciam a inclusão tanto na perspectiva educacional como social; como se sentem os alunos deficientes no âmbito do ensino superior no que diz respeito às relações interpessoais e às condições materiais encontradas frente às especificidades de suas deficiências; como percebem o processo de inclusão-exclusão na vida cotidiana e as suas repercussões na formação educacional.

Tema controverso, a inclusão tem sido considerada positiva por uns, negativa por outros. Positiva, enquanto oposição à exclusão generalizada das pessoas com deficiência. Negativa, na perspectiva da inclusão indiscriminada, enquanto tentativa desprovida de avaliações prévias, que não leva em consideração as condições e necessidades de atendimento, seja do ponto de vista dos recursos humanos ou das adaptações físicas e materiais. Isto significa que mais do que pequenos arranjos nas salas de aula e cursos isolados de capacitação de professores ou quaisquer outras medidas pontuais e episódicas, o paradigma da inclusão requer uma ampla revisão e transformação em nossas práticas sociais, enquanto profissionais e cidadãos. Isto implica, sobretudo a construção de uma cultura que seja efetivamente inclusiva.

 

Refletindo sobre a concepção de rede social

Desde o nascimento até a morte, o ser humano participa de uma trama interpessoal que o molda e que ao mesmo tempo contribui para moldar: a sua rede social. De início, essa trama é constituída pela família, mas em pouco tempo rapidamente se expande e passa a incluir os amigos, colegas de estudo e trabalho, e relações baseadas em atividades sociais, culturais, esportivas, de culto e de cuidados de saúde.

Sluzki (2003), Cartana (1988) e Bott (1976) assinalam que estudos sobre as redes de suporte social desenvolveram-se com maior ênfase no final dos anos 1950, colocando em evidência a importância dos vínculos sociais extra-familiares na vida cotidiana das pessoas e o termo rede substituiu os habituais conceitos de campo e de grupo corporativo até então utilizados, e que já não mais correspondiam adequadamente às características das relações entre os indivíduos. Para os autores citados, a rede social é considerada como uma espécie de terceiro campo do parentesco, da amizade, da classe social; um círculo social constituído por traços de afinidade, formando uma teia que une as pessoas; e isto supõe todo o conjunto de seus vínculos interpessoais: família, amigos, relações de trabalho e de estudo, de inserção comunitária e de práticas sociais.

Sluzki (2003), Kaloustian (1994) e Cartana (1988) consideram o vínculo como uma palavra chave para a compreensão do conceito de rede social, pois corresponde a uma espécie de mapa mínimo e íntimo das relações da pessoa, ao nicho interpessoal mais significativo no plano dos afetos do sujeito, que é composto por quatro quadrantes, a saber: a família, a amizade, as relações de trabalho ou de estudo e as relações comunitárias ou de credo. É no conjunto dos habitantes desse mapa mínimo que se constitui a rede social de uma pessoa e que se encontram os vínculos, nas suas mais variadas nuances e atributos.

Petrini (2003) enfatiza a noção de pertença, associando-a à rede social significativa de cada pessoa através da família. O autor coloca a família como matriz do processo civilizatório, como condição para a humanização e para a socialização das pessoas; como ponto original da construção da rede de pertencimento do indivíduo. Para o autor, a família constitui uma rede de relacionamentos, um território de pertencimento recíproco, um espaço dos mais significativos para a convivência humana, uma rede de solidariedade fundamental para a construção e o desenvolvimento da individualidade.

Observa-se na concepção dos diversos autores pontos comuns que nos permitem concluir que uma rede social pessoal estável, sensível, ativa e confiável protege a pessoa na vida cotidiana, atua como agente de ajuda e encaminhamento, interfere na construção e manutenção da auto-estima, acelera os processos de cura e recuperação, aumenta a sobrevida, enfim, é geradora de saúde tanto nos aspectos físicos e mentais como psicológicos e afetivo-emocionais.

 

O cuidado familial: exercitando um conceito em construção

Ingrid Elsen pode ser considerada a autora que cunhou o termo “cuidado familial” no Brasil. Pioneira no assunto, muito antes de se começar a falar em Programa de Saúde da Família no país, já na década de 1980 discutia, pesquisava e refletia sobre a questão das crenças e práticas da família na saúde e na doença, ao mesmo tempo em que se debruçava sobre a temática da família, interessada nas possíveis relações entre o cuidado e a vida do grupo familiar. De acordo com a autora, o cuidado familial concretiza-se nas ações e interações presentes na vida de cada grupo familiar e se direciona a cada um de seus membros, individualmente ou ao grupo como um todo ou em parte, objetivando seu crescimento, desenvolvimento, saúde e bem-estar, realização pessoal, inserção e contribuição social (ELSEN, 2002).

É importante assinalar que a busca de melhor compreensão das vivências e relações familiares requer que se considere a cultura familiar, definida por Elsen (2002) como um conjunto próprio de símbolos, significados, saberes e práticas, que se configura na dinâmica das relações internas e externas à família e que determina seu modo de funcionamento interno e a maneira como a família desenvolve suas experiências e interações com o mundo externo.

No contexto da cultura familiar, o cuidado familial pode ser reconhecido por vários atributos, dentre os quais a autora salienta cinco: a presença, a promoção da vida e bem-estar, a proteção, a inclusão e a orientação para a vida (Elsen, 2002).De acordo com o pensamento da autora, a presença compreende ações, interações e principalmente interpretações através das quais a família expressa solidariedade a seus membros.

A promoção da vida e bem-estar objetiva impulsionar, potencializar e qualificar a vida de cada um no grupo familiar e se realiza na criação de um ambiente físico e psicológico favorável às trocas afetivas e simbólicas e ao crescimento individual e grupal. O cuidado familial como promoção da vida, embora dirigido ao grupo, assume contornos de especificidade no atendimento às necessidades e características individuais.

A proteção se manifesta antes mesmo do nascimento dos sujeitos, mas se efetiva em medidas que visam garantir a segurança física, emocional e social de cada um e do grupo familiar como um todo.

A inclusão visa a inserção familiar e social de seus membros. O sentimento de pertença é essencial não só à criança em desenvolvimento mas a qualquer dos membros da família. A convivência é considerada como uma das formas efetivas de desenvolvimento e cultivo da inclusão, não só na família como na sociedade e pode ser traduzida pelo respeito à individualidade, aceitação das diferenças, reconhecimento dos direitos de cada um, estímulo ao diálogo, entre outros aspectos.

A orientação para a vida pode ser traduzida como um guia “internalizado” por cada um dos membros da família, na medida em que aponta para o que é considerado correto, aceitável, esperado, desejado para o indivíduo ou grupo familiar.

 

Discurso, práticas discursivas e temporalidade: a dialética das relações.

De acordo com Spink (2000) o discurso nos remete às regularidades lingüísticas, ao uso institucionalizado da linguagem e dos sistemas de sinais lingüísticos. Por serem institucionalizados, os discursos tendem à permanecerem no tempo, embora o contexto histórico possa mudá-los radicalmente, como, por exemplo, mudaram ao longo dos anos os discursos sobre a educação especial, as deficiências e a vida em família, só para citar alguns. Já a noção de práticas discursivas nos remete aos momentos de ressignificação, às maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas relações sociais cotidianas.A linguagem é uma prática social pois quando falamos, estamos invariavelmente realizando ações.

Conforme Spink (2000) as práticas discursivas têm como elementos constitutivos: os enunciados, essencialmente dinâmicos e orientados por vozes; os conceitos, que representam o que é formal, o habitual, institucionalizado; e os repertórios, representados pelo conteúdo dialógico da linguagem em ação. Os enunciados e as vozes estão sempre presentes na dialogia da conversação, o que não impede que as vozes possam estar temporal e espacialmente distantes dos enunciados.

Quando, por exemplo, um entrevistado menciona uma pessoa – a professora, o pai, a mãe, um amigo – dizendo “pois é, eu me lembro de minha infância quando ela(e)...”, nesse momento, num esforço de produzir sentido, traz para a dialogia da conversação a voz daquela pessoa. E essas vozes, de quem quer que sejam, permeiam sua prática discursiva e nela se presentificam, com maior ou menor ênfase, dependendo do tema em questão, do local, enfim, de todo um contexto em que são produzidas. Ou seja, a constituição e a própria compreensão dos sentidos se dá sempre no confronto entre inúmeras vozes; vozes que se cruzam, que se encontram no tempo e na história pessoal e social.

De acordo com Spink (2000) a produção de sentidos se processa na interface das três temporalidades: o tempo longo, constituído pelos discursos das diferentes épocas, o espaço de conhecimentos que antecedem a vivência da pessoa mas se presentificam nela por meio das instituições, modelos, normas e convenções; o tempo vivido, que ressignifica os conteúdos históricos no cenário das experiências da pessoa no curso de sua história pessoal, enfim o tempo da memória que se traduz em afetos; e o tempo curto, ou dialógico que ocorre nas interações face-a-face.

 

Sobre o caminho metodológico e o campo da pesquisa

O referencial teórico e metodológico adotado para o desenvolvimento do presente trabalho foi o do Construcionismo Social (Spink, 2000) e da Teoria Histórico-Cultural (Leontiev, 1978; Vygotski, 1996) que dão suporte à concepção de que todo indivíduo se constitui como ser humano através das relações que estabelece com os outros, de que é somente no interior dos diferentes contextos desse convívio social que cada indivíduo se humaniza.

Trata-se de um estudo qualitativo, com caráter descritivo e analítico, realizado entre 2004 e 2005 junto a estudantes universitários com necessidades especiais, ingressantes na Universidade Estadual de Maringá – UEM a partir de 1998, ano que marca o início de medidas institucionais voltadas ao atendimento de candidatos com deficiência quando da realização dos concursos vestibulares pela UEM. As informações foram coletadas por meio de entrevistas individuais semi-estruturadas com questões abertas e de observação na interação. Para ir além da compreensão imediata e espontânea dos relatos das entrevistas, seguimos as recomendações de Spink (2000), Minayo (1993) e Bardin (1979), no que se refere à análise do conteúdo pesquisado.

De 1998 a 2005, a UEM teve matriculados regularmente em seus cursos de graduação dezoito estudantes com deficiência. A população estudada é predominantemente jovem e 70% do sexo masculino. Três dos estudantes são deficientes físicos, sendo dois deles cadeirantes; dois são cegos; três são deficientes visuais parciais e um apresenta deficiência na coordenação motora fina. Quatro fazem cursos nas áreas de Ciências Humanas e Sociais; quatro em Ciências Agrárias e Biológicas e um em Ciências Exatas e Tecnológicas.

O presente estudo obedeceu os princípios éticos da pesquisa que envolve seres humanos, regulamentados pelas Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de Saúde e foi devidamente analisado e aprovado pelo Comitê de Ética da UEM em 12/12/2003, através do parecer nº 177/2003. Os nomes utilizados na seqüência não correspondem aos nomes verdadeiros dos participantes da pesquisa, mas são inspirados em pessoas reais.

 

Analisando as entrelinhas da linguagem em uso dos estudantes

Vários são os momentos das entrevistas em que as falas expressam não só a existência de uma rede social pessoal densa e intensa, mas também não propriamente a ausência da rede social significativa já que ninguém vive isoladamente, mas a existência de uma rede social restrita, empobrecida, que se reflete numa vida cotidiana mais solitária.

A idéia da rede social significativa densa em tamanho e qualidade, e intensa no que se refere ao grau de intimidade entre os membros que a compõem pode ser observada nos seguintes depoimentos:

“A gente sai muito. Tenho um grupinho bom de amigos, que eu considero como irmãos. Sempre me ajudaram, desde o acidente... Iam estudar comigo lá em casa, levar material, fazer os trabalhos... Esses ficaram, são meus amigos até hoje...” (Nelson)

“E tem o D., que agora mora comigo, já faz parte da família”. (Nelson)

Os depoimentos ilustram uma das funções da rede que é a companhia social, descrita por Sluzki (2003) como a função que está mais voltada à realização de atividades conjuntas, mas principalmente pelo prazer de estar juntos, pela alegria de compartilhar a rotina do cotidiano. Nota-se que os amigos aparecem nitidamente como componentes da rede social significativa, como complemento à família, como suporte e apoio emocional nas situações de crise e como parceiros para diversas atividades cotidianas. São pessoas fundamentais para manutenção da saúde mental dos membros da rede.

Sluzki (2003) refere que o tamanho da rede enquanto característica estrutural do conjunto tem implicações sobre a qualidade e a manutenção das relações no seu interior. Parece-nos que a rede social de Nelson está entre as de tamanho médio e que são descritas pelo autor como as mais efetivas, de caráter mais duradouro e que favorecem a maximização da afetividade do grupo ao permitir o cotejamento de impressões, ou seja, a percepção mais sensível dos sentimentos e das ações do outro. Depreendemos de sua fala (“Esses ficaram, são meus amigos até hoje...”) que, com o passar do tempo, sua rede social pessoal se reduziu, nas palavras de Sluzki “por desgaste, um elegante eufemismo para o enfraquecimento ou morte dos seus habitantes” (p.45).

Já a existência de uma rede de malha mais frouxa, de laços enfraquecidos pode ser observada no que segue:

“Eles sempre me chamam, mas eu não vou. Tenho que me esforçar, eu sei, sair prá conhecer pessoas. Eles me convidam mas eu... eu não tenho essa afinidade... Eu tornei difícil a minha inclusão social, mas eu posso mudar essa situação.Eu fui me isolando e isso não foi bom pra mim”. (Gustavo)

De acordo com Sluzki (2003), o depoimento de Gustavo ilustra bem o modelo de rede mínima, menos efetiva em situações de sobrecarga ou tensão de longa duração como é o caso de Gustavo, que passou e ainda passa por todo um processo de adaptação física e psicológica na vida cotidiana. Ao mesmo tempo em que se recolheu ao cotidiano, privando-se inclusive de desfrutar mais plenamente de várias das funções da rede tais como a companhia e apoio social, apoio emocional, ajuda material e de serviços, acesso a novos contatos, parece-nos que Gustavo tem consciência de que pode reverter a situação transformando os laços frouxos de sua rede social em uma malha firme e mais resistente às adversidades decorrentes de sua condição, que lhe impulsione a realizar com mais energia e vigor os enfrentamentos da vida cotidiana. Ele constata que o isolamento gradativo não repercutiu positivamente na sua vida. Sente que a restrição do círculo de amizades enfraqueceu os laços de sua rede tornando-a, se não literalmente mais frágil, certamente mais vulnerável às dificuldades do cotidiano.

Quanto ao cuidado familial observa-se que ele é supervalorizado por todos os participantes deste estudo e que, tal como compreendido por Elsen (2002), o cuidado familial é sempre fortalecido pela rede social de suporte na qual se incluem os parentes e vizinhos mas principalmente os amigos. Não só no depoimento que segue, o cuidado se presentificou através da mãe, ou seja, a presença assinalada pela autora como um dos atributos do cuidado familial foi marcada por intervenções da mãe.

“Eu tive de aprender a ser independente e a minha mãe me incentivou muito... Desde pequeno ela sempre me botou prá brincar com os outros meninos. Eu apanhei muito, mas bati muito também...” (João)

Em pesquisa realizada com famílias com filhos portadores de necessidades especiais, Cavalcante (2003) chegou à conclusão semelhante acerca das mães, indicando que elas apresentaram um estoque incomensurável de força interior, de determinação e de vontade de superação a favor do desabrochar do máximo das potencialidades dos filhos, mobilizando de um tudo: dentro e fora de si, da família e da comunidade. Boff (2004) também destaca a mãe como figura exemplar de cuidado, na medida em que ela consegue impregnar em sua biografia um modo-de-ser que, transbordando cuidado, modela as suas situações existenciais. O autor assevera que é através das mães, continentes por excelência, que cada um aprende a ser mãe de si mesmo, porquanto aprende a aceitar-se e a perdoar as próprias fraquezas. Com o exemplo da mãe, o autor quer dizer que nós não ‘temos’ cuidado, nós ‘somos’ cuidado.

Vale lembrar que os atributos do cuidado familial não se apresentaram de maneira pura nos depoimentos dos estudantes, mas mesclados entre si intercalando a presença, a proteção, a promoção da vida, a inclusão. Da mesma maneira há uma mescla entre a independência e a autonomia, conforme ilustra o trecho que segue:

“Ando de ônibus sozinho, me locomovo na sala da aula, almoço no R.U. (Restaurante Universitário). É lógico que sempre alguém me dá uma mãozinha, mas se comparar há um ano atrás, nossa, eu me considero uma pessoa independente, houve muito progresso! Minha mãe me incentivou sempre, apesar de ficar sempre preocupada comigo, eu sei que ela fica... ” (Elton)

Independência e autonomia estão interligadas pela idéia de capacidade. Embora aparentemente não exista diferença entre uma e outra, pode-se assinalar que a autonomia refere-se à capacidade de o indivíduo realizar algo concretamente, com o sentido de ser capaz. A independência, por sua vez, está voltada ao sentimento do indivíduo em relação a sua capacidade; tem, portanto, o caráter do sentir-se capaz. Assim, entre a autonomia e a independência há uma diferença que é tênue mas significativa. Sobre a questão da responsabilidade, Nelson responde prontamente e a sua fala traduz o sentido de compromisso com algo ou alguém ou com a vida de um modo geral encontrado também na fala de outros estudantes:

“Por exemplo, eu jamais faltaria a este nosso encontro. Eu procuraria te avisar, combinar outro dia... mas nunca te deixar assim e não vir...” (Nelson)

A dimensão temporal aparece no contexto das entrevistas com todos os estudantes. Emerge nas linguagens em uso que ilustram o entrelaçamento das temporalidades e presentificam vozes na construção de sentido em seus cotidianos. Especialmente o depoimento que segue ilustra o que queremos evidenciar:

“Meu pai sempre falava isso, que amigo às vezes é mais que parente, e eu acho isso uma verdade... A gente vai se aproximando de quem a gente coincide em pensamento, assim, mais no dia-a-dia, de quem a gente se identifica, confia e que não é só da família”. (Nelson)

Aqui, Nelson traz para a dialogia da conversação a voz do pai. Essa voz se presentifica enquanto suporte que confere coerência e consistência ao sentido que é produzido. Essa mesma voz traz à luz a escala do tempo vivido, das experiências de socialização, o tempo da memória que se traduz em afetos,que permeia e dá sustentação ao cotidiano, através das sucessivas ressignificações que o sujeito faz da historicidade dos fatos na sua vida. Isto significa que o ser humano está imerso na duração temporal, completamente enredado pelo tempo; é um ser histórico que tem passado, presente e futuro e que constrói a sua identidade no percurso dessas dimensões temporais.

Também o tempo curto este presente nas entrevistas como fruto da dialogia, como tempo das interações face-a-face, da comunicação direta, sem que muitas das vezes não tenhamos nos dado conta da sua presença. Somente agora, com um certo distanciamento do olhar é que conseguimos recuperar essa interação tão próxima e perceber em quantos momentos a nossa própria experiência de tempo vivido interferiu no curso do tempo curto, no destino da conversação e no rumo da entrevista, ora sustentando um silêncio mais prolongado, ora dando conforto e acolhimento a um marejar de olhos ou a um choro inesperado, ora aguçando a escuta para repetições que insistiam em aparecer ou para pequenos lapsos que se repetiam, mas também, quando não nos sentindo capazes de sustentar determinado silêncio, deixamo-lo escapar, perdendo o que talvez fosse uma grande oportunidade de enfrentamento.

 

Considerações finais

Neste artigo, focalizamos a rede social pessoal como um dos elementos responsáveis pela manutenção do equilíbrio e da dinâmica familiar, ao mesmo tempo suporte e extensão da família. Mostramos que as pessoas que compõem a rede social de apoio e as funções que exercem em seu interior, mudam de acordo com o contexto sócio-cultural, o tempo histórico e o estágio de desenvolvimento do indivíduo e da própria família como um todo.

Nas vozes dos estudantes pesquisados, a família apareceu como sujeito privilegiado, rica fonte de energia, sabedoria, acolhimento e amor. As mães assumiram um papel de destaque como as protagonistas e principais responsáveis pelos encaminhamentos e soluções que fizeram do grupo familiar um conjunto inclusivo, uma família que valoriza a vida e estimula o desenvolvimento e a inclusão de todos os seus membros, principalmente dos que têm alguma necessidade especial. As mães constituíram o principal combustível que continuamente alimenta e põe em movimento o espaço de convivência e compartilhamento que é a família.

Tanto a rede social como a família se inscrevem na constelação do cuidado, pois que o cuidado somente surge quando a vida de alguém tem importância para um outro que passa, então, a dedicar-se a seu semelhante, participando de seu destino, de suas buscas, inquietações, sofrimentos e alegrias, enfim, da sua existência concreta. Pudemos sentir nas interações face-a-face do tempo curto, na dialogia das entrevistas, que colocar cuidado em tudo que projeta e faz é a característica singular do ser humano.

Rede social e cuidado familial, conceitos relativamente novos em nosso repertório profissional mas que, por ocasião deste trabalho, extrapolaram os limites da literatura, atingindo de maneira contundente nosso sentido de vida, oferecendo a oportunidade não só de abrirmos os olhos para o entorno das nossas vivências, mas principalmente, de fechá-los um pouco para podermos sentir o que se passa ao nosso lado, e mesmo, dentro de nós.

 

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