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Psicologia em Pesquisa
On-line version ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.11 no.1 Juiz de Fora June 2017
https://doi.org/10.24879/201700110010094
ARTIGO ORIGINAL
10.24879/201700110010094
Freud, Klein, Lacan e a constituição do sujeito
Freud, Klein, Lacan and the constitution of the subject
Daniela Paula do CoutoI
I Universidade Federal de São João Del Rei. Mestre em Psicologia, na linha de pesquisa Conceitos Fundamentais e Clínica Psicanalítica, pela Universidade Federal de São João del-Rei. Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2011).
Endereço para Correspondência
Resumo
Apresentam-se as ideias de Sigmund Freud, Melanie Klein e Jacques Lacan a respeito da constituição subjetiva, destacando-se como eles contribuíram para que a criança fosse considerada um sujeito e não apenas um objeto de intervenção. Por meio da escuta de seus pacientes adultos, Freud teorizou o desenvolvimento da sexualidade infantil a partir da organização libidinal em fases psicossexuais. Mas, a psicanálise de crianças ganhou contornos precisos a partir de Klein, que atendeu crianças pequenas e teorizou aspectos dos estágios iniciais do desenvolvimento do bebê, estabelecendo o campo pré-edipiano. Lacan resgatou da filosofia o termo sujeito, dando-lhe uma nova concepção: o sujeito não é o indivíduo, pelo contrário, é um sujeito marcado pela divisão consciente/inconsciente.
Palavras chave: Freud; Klein, Lacan, constituição do sujeito.
Abstract
The ideas of Sigmund Freud, Melanie Klein and Jacques Lacan about the subjective constitution are presented, highlighting how they contributed to the child being considered a subject and not just an object of intervention. Through listening to his adult patients, Freud theorized the development of infantile sexuality from the libidinal organization in psycho-sexual phases. But psychoanalysis of children gained precise contours from Klein, who nursed small children and theorized aspects of the early stages of baby development, establishing the preoedipal field. Lacan rescued the term subject from philosophy, giving it a new conception: the subject is not the individual, on the contrary, it is a subject marked by the conscious / unconscious division.
keywords: Freud, Klein, Lacan, constitution of the subject.
Sigmund Freud – a sexualidade infantil
A ideia de sujeito em Freud (1905/1996) se relaciona à exigência de satisfação da pulsão sexual, como é discutido, de forma abrangente, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, texto em que o autor delineia o desenvolvimento psicossexual da criança. Ao afirmar que as crianças obtêm prazer com determinadas atividades cotidianas ligadas ao corpo, como a sucção, a defecação e a masturbação, Freud (1905/1996) toma como fundamento da sexualidade infantil a disposição perverso-polimorfa. Assim, as manifestações sexuais da criança são perversas porque não têm relação com a reprodução e são polimorfas porque não estão centralizadas em um objeto sexual, mas assumem formas variadas de satisfação por meio de zonas erógenas, partes da pele ou da mucosa de onde se origina uma excitação sexual e que são tomadas como a principal referência para os outros prazeres do corpo. Portanto, o corpo da criança é tomado por pulsões parciais autoeróticas, que são pulsões sexuais fragmentadas e independentes entre si no que diz respeito à busca pela satisfação. A obtenção de prazer é encontrada no próprio corpo e não em um objeto externo.
A partir da caracterização da vida sexual infantil, Freud (1905/1996) propõe uma organização sexual por meio de quatro fases de desenvolvimento – oral, sádico-anal, fálica e genital – que vão culminar na vida sexual adulta, em que as pulsões, antes parciais, ficarão sob o domínio da zona genital. Todas as fases organizam um conflito interno típico e um modo de defesa, como no caso da fase fálica, em que o conflito do desejo libidinoso pela mãe precipita o complexo de Édipo como sintoma de um desejo incestuoso. Convém desatacar ainda que as fases de desenvolvimento são resultados de um processo que inclui o acionamento de mecanismos de defesa como o recalque e a projeção, que por sua vez implicam fixações e regressões para caracterizar sua estruturação mais dinâmica – já que sinuosa – do que linear e determinista. Cada fase diz respeito a uma etapa do desenvolvimento da libido em que há a preponderância de uma zona erógena e uma modalidade específica de relação com o objeto.
A fase que dá início à organização sexual infantil é a fase oral, que Freud (1905/1996) chega a denominar de “canibalesca”, uma vez que a boca é o destino certo de tudo que está próximo ao bebê. A boca propicia a ele o conhecimento do mundo à sua volta e o seio da mãe é o primeiro objeto da pulsão sexual. Posteriormente, esse objeto será abandonado, pois a mãe não está inteiramente à disposição, o que faz com que o bebê substitua a atividade de sucção do seio materno pela sucção de uma parte do seu próprio corpo. Como a atividade sexual surge misturada à necessidade de nutrição, podemos dizer que o leite é o objeto que satisfaz o corpo biológico e o seio da mãe é o objeto que satisfaz o corpo psíquico, já que enquanto o bebê o suga, há toda uma relação de afetividade que vai inserindo o pequeno corpo na ordem simbólica. As características da fase oral são sintetizadas da seguinte maneira: como há um prazer enorme ligado à mucosa dos lábios e à cavidade bucal, a fonte de onde provêm as excitações é a zona oral, o objeto é o seio materno e o objetivo é a introjeção do objeto.
Ainda no período pré-genital da sexualidade infantil, Freud (1905/1996) localiza a fase sádico-anal. Assim como a mucosa dos lábios e a cavidade bucal, a mucosa do intestino é fonte de excitações intensas, facilmente observadas por meio dos frequentes distúrbios intestinais da primeira infância. Portanto, o objeto que caracteriza a fase sádico-anal são as fezes, utilizadas pela criança como moeda de troca na relação com o seu cuidador. A pulsão de dominação da musculatura do corpo se faz valer a partir do ato de prender/soltar as fezes, que são consideradas pela criança como uma parte de seu próprio corpo, por isso ela tem tanta preocupação com o destino delas. O valor simbólico que as fezes adquirem é tal que a criança as “entrega de presente” para quem dela cuida. E assim estabelece com o outro uma relação dócil – quando aceita produzir as fezes – ou obstinada – quando insiste em “prender” o intestino. Nessa relação de troca com o outro, há perdas e ganhos: ao renunciar ao prazer proporcionado pela retenção das fezes, a criança ganha o respeito social. Portanto, o finalidade da relação com o objeto na fase anal se configura pela dualidade atividade/passividade, já que há uma “[...]recusa obstinada do bebê a esvaziar o intestino ao ser posto no troninho, ou seja, quando isso é desejado pela pessoa que cuida dele, ficando essa função reservada para quando aprouver a ele próprio.” (Freud, 1905/1996, p. 175). Então, na fase anal, já está presente uma divisão de opostos que perdurará pela vida sexual, o par ativo/passivo, que ainda não pode ser denominado de masculino/feminino, porque a evidência de que meninos e meninas defecam do mesmo modo levaria à percepção de uma ausência de diferença sexual entre os dois.
Em seu artigo A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade, Freud (1923/1996) pontuou a existência de uma fase que já poderia ser denominada de genital. No entanto, pelo fato de haver, por parte da criança, o reconhecimento apenas da genitália masculina, tal fase foi denominada de fase fálica. Nela, há uma suposição do menino de que todos, assim como ele, possuem pênis, considerado uma preciosa parte anatômica, um apêndice visível e muito valorizado. Trata-se, portanto, de uma primazia do falo.
A primazia do falo diz respeito a uma representação que se constitui com base na presença/ausência do pênis. É isso, justamente, o que diferencia, na teoria freudiana, a fase fálica da organização genital adulta: a primazia não é dos órgãos genitais, mas do falo. E o falo, nesse caso, não se reduz ao pênis, ele é qualquer objeto investido por nossa libido, tal qual um representante do desejo que proporciona a sensação – sempre enganosa – de completude. Na teoria lacaniana, o falo representará um significante que define como homens e mulheres se posicionam na relação entre os sexos.
Para a criança na fase fálica, assim como acontece na fase sádico-anal, ainda não há a oposição masculino/feminino. O que há é masculinidade e não feminilidade. Isso faz com que a antítese seja: ter um órgão genital masculino/ser castrado. É somente quando a organização sexual se completa, no período da puberdade, que se reconhece uma polaridade sexual entre masculino/feminino. Se na fase fálica, há somente o reconhecimento do órgão genital masculino, como o desenvolvimento sexual se processa para meninos e meninas? Nesse artigo de 1923, Freud consegue descrever apenas o que afeta os meninos. O processo referente às meninas será tratado no artigo de 1925, Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos.
O menino tem uma percepção acerca da diferença entre homens e mulheres, mas ele não consegue relacioná-la à distinção entre os órgãos genitais. Freud (1923/1996) aponta que o menino, quando inicia suas pesquisas sexuais, tem a convicção de que não só os humanos possuem um órgão genital semelhante ao seu, mas também os animais e os objetos inanimados. O pequeno Hans nos dá uma demonstração clara disso: “A locomotiva está fazendo pipi. Mas onde está o pipi dela? [...]. Um cachorro e um cavalo têm pipi; a mesa e a cadeira, não.” (Freud, 1909/1996, p. 18). No decorrer de suas pesquisas, o menino descobre que nem todos os seres vivos possuem pênis. E o que possibilita tal achado, diz Freud (1923/1996), é a visão fortuita dos genitais de uma irmãzinha ou amiguinha. Quando isso acontece, o menino rejeita a ausência do pênis e insiste na existência dele, mas com um argumento plausível, como feito pelo pequeno Hans, quando da observação do banho de sua irmã, então com sete dias: “Mas o pipi dela ainda é bem pequenininho [...]. Quando ela crescer, ele vai ficar bem maior.” (Freud, 1909/1996, p. 20). À medida que continua as pesquisas, o menino acaba concluindo que a menina tinha um pênis, mas que o perdeu. Freud (1923/1996) pontua essa perda como consequência da castração, com a qual o menino terá que se haver também. Em suas conjecturas, o menino acredita que uma punição foi imposta às representantes do sexo feminino consideradas desprezíveis e que tenham se entregado a atividades masturbatórias. Isso não se estenderia à sua mãe, que permaneceria na ideia do menino como possuidora de um pênis por um longo tempo, até que a investigação acerca do nascimento dos bebês possibilita a conclusão de que só as mulheres podem ter filhos. É aí que também a mãe se iguala às outras mulheres sem pênis.
E a menina, como se coloca diante da fase fálica? Ao reparar o pênis de um irmão ou de um amigo, ela nota como o tamanho é maior do que o de seu órgão, que passa então a ser, praticamente, imperceptível. Assim se instala a inveja do pênis, de acordo com Freud (1925/1996). Diferente do menino que, inicialmente, quando vê a genitália feminina, rejeita a ausência de um pênis, a menina admite que não tem aquilo que viu, mas que quer tê-lo também. Não é que a menina queira um pênis, mas a sensação de potência que tal órgão promove. Nesse sentido, a inveja do pênis corresponde à inveja do falo. Portanto, na fase fálica, o menino experimenta o sentimento de angústia pela possibilidade de perder o falo e a menina sofre por já tê-lo perdido. A fase fálica é importante porque “[...]assinala o ponto culminante e o declínio do complexo de Édipo pela ameaça da castração.”(Garcia-Roza, 2004, p. 106). Durante a vivência edipiana, a criança experimenta um movimento erótico de seu corpo em direção ao corpo da mãe e do pai, o que se difere da busca sexual da puberdade que se dirige a objetos fora do seio familiar.
Assim, impulsos sexuais são dirigidos à mãe e um sentimento de ódio é dirigido ao pai (Freud, 1900/1996). E essa história, afirma Freud (1905/1996), tem início quando o corpo da criança passa a receber os cuidados dos quais tanto precisa. A ternura com que a mãe ou seu substituto envolve o bebê promove uma erogeneização do seu pequeno corpo, despertando-o para a pulsão sexual e, consequentemente, para a vida. Dessa forma, não importa em que meio familiar ou sociocultural a criança se desenvolve, o complexo de Édipo sempre estará presente, interferindo no processo de constituição do sujeito e, consequentemente, nas estruturas clínicas, principalmente nas neuroses e nos caminhos sem psicopatologias.
A fase fálica, em que o complexo de Édipo se desenvolve, não tem um prosseguimento até atingir a organização genital adulta, pois é interrompida pelo período de latência, provocando uma pausa no desenvolvimento psicossexual da criança. (Freud, 1924/1996).O período de latência não se configura como uma fase psicossexual, visto que não há uma nova organização em torno de uma zona erógena, nem uma nova modalidade de relação objetal. O período de latência é um ponto intermediário entre a sexualidade infantil e a adulta. Freud (1905/1996) aponta que durante a latência, o investimento libidinal se desloca dos objetivos sexuais, sendo canalizado para outras finalidades, como o desenvolvimento intelectual e social.
Finalizando a organização libidinal, tem-se a fase genital e a consolidação da vida sexual adulta. Se antes, a pulsão sexual partia de diversas zonas erógenas, independentes entre si, ou seja, eram pulsões parciais, agora elas se reúnem sob o domínio da zona genital. Conjugadas, as pulsões parciais se dirigem a um objeto sexual externo. (Freud, 1905/1996). A polaridade sexual que se dividia entre ativo/passivo na fase sádico-anal e entre possuir o falo/ser castrado na fase fálica, nesse momento da fase genital, quando o desenvolvimento sexual atinge seu ápice, tem-se a polaridade sexual masculino/feminino (Freud, 1923/1996). A fase genital tem como fonte das excitações sexuais a zona genital, sendo seus objetos o pênis e a vagina e a finalidade da relação com tais objetos seria a reprodução, já que como Freud (1905/1996, p. 196) afirma: “a pulsão sexual coloca-se agora a serviço da função reprodutora [...]”. O propósito máximo da puberdade, como coloca Freud (1917[1916-17]/1996), é a desvinculação dos pais, o que permite a inserção na comunidade social. Para se desvincular dos pais, é preciso dessexualizá-los, ou seja, deixar de tomá-los como objetos sexuais e dirigir os desejos libidinais para um objeto de amor real, no mundo externo.
Ao descrevermos as fases do desenvolvimento libidinal, pudemos observar como Freud vai articulando tais fases à pulsão sexual. A mãe, enquanto dispensa seus cuidados ao corpo biológico de seu filho desperta um corpo psíquico, tal é a força da libido, esse componente essencial da sexualidade humana. Nesse sentido, é o contato entre mãe e filho que oferece os contornos de uma estrutura psíquica. A seguir, veremos como Melanie Klein, na esteira de Freud, pensou a constituição subjetiva.
Melanie Klein – o bebê sádico
Melanie Klein se destacou no campo psicanalítico não só por ter confirmado a teoria freudiana do desenvolvimento libidinal, mas por ter feito suas próprias descobertas no que diz respeito aos estágios iniciais do desenvolvimento da criança. Enquanto Freud teve, na análise de adultos, o sustentáculo para construir suas teorias, Klein se baseou em sua vasta experiência com a clínica de crianças.
Para Klein (1952/1991), o mundo interno do bebê é povoado por fantasias, ansiedades, figuras boas e más, sendo que, desde o nascimento, o bebê está exposto à luta entre as pulsões de vida e de morte, representadas pelos impulsos libidinais e agressivos, respectivamente. De acordo com a teoria metapsicológica kleiniana, portanto, há que se considerar que cada criança nasce com um “dote pulsional”, um quantum de pulsão de vida e de morte, cujo equilíbrio se mantém quando o bebê está livre de tensões internas e/ou externas. Dessa forma, as experiências gratificadoras – como o carinho da mãe – reforçam a pulsão de vida e as experiências frustradoras – como a ausência da mãe – intensificam a pulsão de morte. No primeiro ano de vida, as vivências entre mãe e bebê são marcadas por uma modificação importante no que diz respeito às relações de objeto: a relação com o objeto parcial dá lugar à relação com o objeto total. Com base nisso, Klein (1935/1996) descreveu os primeiros meses de vida do bebê a partir de duas posições: a posição esquizo-paranoide e a posição depressiva.
Klein (1935/1996) localiza a posição esquizo-paranoide entre o nascimento e o terceiro ou quarto mês de vida do bebê, período em que os processos de cisão do seio em seio bom (gratificador) e seio mau (frustrador) estão em seu ponto máximo, assim como os impulsos destrutivos. Assim, os impulsos amorosos projetados pelo bebê dão origem ao seio bom e os impulsos destrutivos dão origem ao seio mau. Há o objeto amado e o objeto odiado, que o bebê imagina serem separados. Como o ego se identifica com os objetos bons internalizados, a ansiedade persecutória está intimamente ligada à sua preservação, já que há o perigo de que os impulsos destrutivos do bebê ataquem os objetos bons e, consequentemente, o ego, provocando sua desintegração. A cisão do seio entre bom e mau se relaciona ao equilíbrio entre impulsos libidinais e agressivos. Se há frustrações, seja de fontes internas ou externas, os impulsos agressivos se tornam predominantes e o equilíbrio se rompe, dando origem à voracidade, essencialmente oral. O aumento da voracidade, por sua vez, reforça a frustração e os impulsos agressivos. (Klein, 1952/1991). A posição esquizo-paranoide, portanto, é caracterizada pela ansiedade gerada pelo medo que o bebê sente de ser destruído.
À medida que o ego alcança uma melhor organização, uma mudança essencial ocorre entre o quarto e o quinto mês de vida do bebê: a posição depressiva se instala e o bebê passa a introjetar o objeto como um todo, sendo que os objetos antes parciais – objeto amado e odiado – começam a se integrar e vão gradativamente formar um objeto total. Klein (1935/1996) acredita que o bebê consegue estabelecer uma relação de objeto total quando a mãe é percebida como inteira, um objeto completo, real e amado. Nesse momento, diminuem as fantasias sádicas e a ansiedade persecutória. Além de introjetar o objeto como um todo, o bebê sintetiza as emoções relacionadas a ele. Agora, amor e ódio são dirigidos a um mesmo objeto e o bebê sente culpa pelos ataques agressivos que foram dirigidos aos objetos amados – internos e externos –, o que o leva a tentar reparar seus danos. Assim instalada a posição depressiva, a ansiedade, antes dirigida ao ego, volta-se para o objeto (Klein, 1948/1991) e o desenvolvimento gradual do ego proporciona um aumento na capacidade do bebê em demonstrar seus sentimentos e comunicar-se com as pessoas. (Klein, 1952/1991).
As hipóteses acerca da posição esquizo-paranoide e da posição depressiva permitiram a Klein alcançar uma compreensão maior do período inicial do desenvolvimento do bebê. Enquanto Freud (1905/1996) admitia que a vida sexual da criança só era passível de ser observada em torno dos três ou quatro anos de idade, Klein teorizou o desenvolvimento libidinal em estágios psicossexuais desde o primeiro ano de vida, sendo a relação arcaica com a mãe o principal elemento de constituição do psiquismo. A organização da libido, do ponto de vista kleiniano, é dividida entre uma etapa pré-genital, com os estágios sádico-oral, sádico-uretral e sádico-anal, em que o sadismo predomina, e em uma etapa genital, quando a libido se sobrepõe ao sadismo.
No estágio sádico-oral descrito por Klein (1932/1997b), o bebê, inicialmente, apresenta um grande prazer em sugar o seio da mãe, mas, quando surge a impossibilidade de satisfação, o resultado é uma frustração interna e externa, já que o bebê almeja uma satisfação ilimitada. Mordendo, ele realiza o desejo sádico de destruir o objeto que gerou frustração. No bebê, as necessidades físicas provocam um aumento do estado de tensão que faz com que a libido não satisfeita se transforme em ansiedade. À ansiedade se acrescenta a fúria, expressa pela fantasia de sugar o seio da mãe até esvaziá-lo. O seio frustrador é sempre o primeiro alvo dos ataques das fantasias sádicas e depois elas se estendem ao interior do corpo da mãe que, na fantasia do bebê, contém o pênis do pai, além de excrementos e os possíveis irmãos. Klein (1930/1996) explica que o bebê fantasia que, devido ao coito entre os pais, o pênis do pai foi incorporado pela mãe. As fantasias sádicas apontam para a imagem de um bebê destruidor, com o qual Klein (1932/1997c) teve contato a partir da análise de seus pequenos pacientes.
As fantasias cruéis também são expressas por meio da urina, como acontece no estágio sádico-uretral. O sadismo uretral se manifesta por meio de fantasias de inundação e destruição em que a urina da criança, em grandes quantidades, atuaria como um veneno que encharcaria, afogaria e queimaria o seio da mãe.
No estágio sádico-anal, há um simbolismo por trás do ato de evacuar as fezes. Para o bebê, funciona como se ele estivesse expulsando o objeto incorporado, ato seguido por sentimentos hostis e cruéis e desejos de destruição. (Klein, 1933/1996). No sadismo anal, “[...]métodos mais secretos de ataque predominam, tais como o uso de armas venenosas e explosivas”. (Klein, 1932/1997c, p. 165). A urina e as fezes representam venenos, por isso, a criança teme ser atacada pelos objetos introjetados e projeta esse medo em objetos externos, gerando uma ansiedade que se direciona a muitas fontes de perigo externas, fazendo com que seus perseguidores se multipliquem.
Nessa primeira etapa da organização libidinal em que o sadismo predomina, surgem também fantasias genitais arcaicas que se configuram como os estágios iniciais do conflito edipiano em meninos e meninas. Apesar de nos estágios pré-genitais predominarem os impulsos orais, uretrais e anais, os desejos genitais pelo genitor do sexo oposto e a hostilidade com relação ao genitor do mesmo sexo também estão presentes. Nos estágios da organização da libido descritos por Klein (1932/1997c), nota-se que as relações de objeto estabelecidas pela criança têm relação não só com as fantasias sádicas dirigidas ao interior do corpo da mãe, mas também com as fantasias reparadoras em que a libido permite a introjeção de objetos amorosos e gratificadores.
Quando os perigos pulsionais são deslocados para o mundo externo, a criança passa a ter um controle maior sobre a ansiedade por eles gerada. Esse controle depende, em parte, dos objetos reais, como a mãe. A presença da mãe é indispensável para que a criança combata o medo de uma mãe má, pronta a atacá-la. Em suas fantasias sádicas, a criança ataca a mãe e, consequentemente, teme que a tenha matado, o que amplia seu medo de ficar sozinha. É nesse sentido que a presença da mãe é necessária a fim de que a criança se sinta confortável com relação aos perigos internos (Klein, 1932/1997a).
A realidade que a criança experimenta, no início de sua vida, é uma realidade fantástica, que só cede lugar à verdadeira realidade quando o ego se desenvolve, processo esse que depende da competência da criança em suportar a força das primeiras vivências de ansiedade, elaborando-as. (Klein, 1930/1996). Em meio a essa realidade fantasística, afirma Klein (1952/1991), surgem os primeiros desejos genitais voltados para os pais e se estabelecem os estágios iniciais do complexo de Édipo, por volta do sexto mês de vida. Assim como Freud, Klein deu grande atenção ao conflito gerado pelo complexo de Édipo em sua articulação com o desenvolvimento da criança. No entanto, ao descobrir os estágios iniciais do conflito edipiano e relacioná-los à posição depressiva, ela formulou uma nova forma de se pensar o Édipo.
Para Klein (1945/1996), o complexo de Édipo surge no primeiro ano de vida, com o início da posição depressiva. São os sentimentos depressivos, expressos pelo medo da criança de perder os objetos amados, por causa de seu ódio e agressividade dirigidos a eles, que dá forma às relações de objeto e ao complexo de Édipo. Como isso acontece? As primeiras tendências edípicas a se manifestarem o fazem no período em que o sadismo está no auge. São os impulsos de ódio e a ansiedade gerada por eles que inauguram o conflito edipiano e a formação do superego. Se para Freud (1924/1996), o superego começa a se formar na fase fálica, para Klein (1932/1997c), o superego, assim como o conflito edipiano, se forma sob o domínio dos impulsos pré-genitais. Mas, quando os impulsos agressivos recuam diante do avanço dos impulsos genitais, a criança consegue estabelecer uma relação positiva com os objetos, o que diminui a influência das imagos aterrorizantes, pois essas se originavam das tendências agressivas.
Klein (1933/1996) percebeu que em análise, a criança, cujas pulsões agressivas estão em seu ponto máximo, dá vazão ao seu sadismo rasgando, cortando, quebrando, molhando, queimando, enfim, atacando objetos que, em sua fantasia, representam pais e irmãos. Quando as brincadeiras destrutivas dão lugar a brincadeiras construtivas como pintar ao invés de sujar toda a sala com as tintas, é sinal de que a ansiedade da criança diminuiu. Isso traz consequências positivas para a relação dela com os pais e irmãos, possibilitando uma relação de objeto mais madura e o desenvolvimento do sentimento social. Com o advento do período de latência, o complexo de Édipo declina e importantes mudanças podem ser observadas: “[...]a relação com os pais é mais segura; os pais introjetados aproximam-se mais da imagem dos pais reais; seus padrões, advertências e proibições são aceitos e internalizados e, portanto, a repressão dos desejos edípicos é mais efetiva.” (Klein, 1952/1991, p. 112).
Ao teorizar as origens da organização libidinal no primeiro ano de vida do bebê, Klein contribuiu muito para o avanço da teoria psicanalítica. A imagem de um bebê sádico cuja relação com os objetos parciais envolve ataques agressivos impressiona tanto quanto a teoria da sexualidade infantil freudiana. Klein descobriu, analisando seus pequenos pacientes, que o mundo interior deles é repleto de fantasias e habitado por figuras boas e aterrorizantes, que lhes causam ansiedades passíveis de tratamento. Klein deu um grande passo no campo da psicanálise de crianças ao defender que o método psicanalítico poderia ser aplicado a elas. Escutando as crianças em análise e permitindo que elas expressassem seu sofrimento – mesmo que isso implicasse uma sala de atendimento toda molhada, suja e bagunçada – Klein se opôs a corrigir a criança, aos moldes de um discurso pedagógico. Podemos dizer que Klein teve a oportunidade de lidar, concretamente, com a constituição subjetiva, já que atendeu inúmeras crianças ao longo de, aproximadamente, quatro décadas de trabalho. A partir disso, ela enxergou já no bebê um sujeito que é capaz de estabelecer, à sua maneira, uma interação com o mundo. No tópico a seguir, trataremos do modo como Lacan, abarcando os trabalhos de Freud e Klein, teorizou a constituição subjetiva.
Jacques Lacan – o advento do sujeito
O termo “sujeito” já era muito utilizado na tradição filosófica francesa, mas Lacan (1954-55/2010)o transformou em um ponto central de seu ensino, introduzindo-o na psicanálise com uma acepção particular: o sujeito não é o indivíduo, no sentido de uma unidade, mas um sujeito dividido entre consciente e inconsciente. Dessa forma, haveria um sujeito do enunciado, identificado como sujeito do significado, aquele que está consciente do que diz; e o sujeito da enunciação, identificado como sujeito do significante, aquele que está para além do que se diz. (Lacan, 1964/2008). O discurso, portanto, não é mera comunicação, pois nas brechas daquilo que foi enunciado está a enunciação, a presença do sujeito do inconsciente, aquele que se manifesta por um lapso, um esquecimento, um sonho, um chiste, um sintoma, enfim, uma formação do inconsciente. O sujeito do inconsciente não se relaciona ao tempo cronológico, mas a um tempo lógico, um tempo próprio. Uma temporalidade outra, pois é possível fazer decorrer uma noção de tempo do modo de funcionamento do inconsciente, haja vista a noção do a posteriori. No entanto, isso implica uma temporalidade não cronológica (referente à consciência), mas lógica (referente à relação do sujeito do inconsciente com o Outro). Dessa forma, Lacan não fala em desenvolvimento da criança como Freud, nem mesmo do bebê, como Klein, mas na emergência do sujeito do inconsciente.
Antes do advento do sujeito do inconsciente, há a emergência de um eu corporal, que se constitui de forma imaginária, mas sobre uma matriz simbólica, como exposto por Lacan (1949/1998) no artigo O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. É importante assinalar que esse “eu” presente no título se refere ao pronome francês je e designa o sujeito do inconsciente. Já o “eu” corporal de que falamos acima se refere ao pronome francês moi. Assim, enquanto o sujeito do inconsciente se constitui no simbólico, pela mediação da linguagem, o eu (moi) se constitui no imaginário, pela mediação da imagem especular (i(a)). Essa imagem especular oferece uma síntese e se sobrepõe àquela imagem do corpo fragmentado pelas pulsões parciais.
Para explicar o que seria o estádio do espelho, Lacan (1949/1998) nos leva a imaginar uma cena em que um bebê se encontra diante de um espelho, sustentado pela mãe, já que ele ainda não consegue andar nem se manter numa postura ereta. Ao olhar para a imagem refletida, o bebê se reconhece nela e sua expressão se enche de júbilo. Se pudesse falar, diria: “Este sou eu!”. O júbilo corresponde à satisfação narcísica de ter representado um corpo não mais fragmentado, mas unificado. A imagem refletida no espelho, portanto, corresponderia à imagem da mãe – no sentido da pessoa que exerce a função materna – o que implica dizer que não há a necessidade de um espelho de fato para que o eu do bebê possa se constituir. O que é necessário é que um outro possa fornecer a ele a possibilidade de adentrar o universo da linguagem. Essa entrada no simbólico se efetiva por meio dos cuidados que são dispensados ao bebê pela mãe à medida que ela interpreta as sensações e o choro dele, inscrevendo marcas em seu psiquismo. O sujeito assume uma imagem que será o esboço do seu eu (moi). A identificação com a imagem implica em uma alienação na imagem do outro, “[...]a primeira de uma série de alienações: ao procurar a si mesmo, o que o indivíduo encontra é a imagem do outro.” (Garcia-Roza, 2004, p. 215).
Sendo assim, o processo de constituição do sujeito, do ponto de vista lacaniano, é efeito de duas operações fundamentais: a alienação e a separação.
Na alienação, Lacan (1964/2008) distingue dois campos: o campo do Outro e o campo do ser vivente. O campo do Outro se refere ao campo do simbólico, da linguagem, essa que já marca o ser vivente antes mesmo de seu nascimento. Mas, mesmo surgindo imerso em um mundo de linguagem, o ser vivente ainda não adentrou o campo do simbólico, o que só acontece se ele consentir em se assujeitar ao Outro. Dito de outra forma, o campo do Outro é o campo do sentido e o campo do sujeito é o campo do ser. Para que o sujeito possa advir, faz-se necessária uma escolha entre o ser e o sentido. Se escolhe o ser, ou seja, se não se aliena no campo do Outro, o sujeito perde o sentido e não se constitui como sujeito dividido; se escolhe o sentido, ou seja, se se aliena no campo do Outro, perde o ser, mas se constitui como sujeito dividido, pois o sujeito só advém no campo do Outro e não de si mesmo. Assujeitando-se ao desejo do Outro, a criança se torna um sujeito da linguagem e pode, quando se instaurar a separação, constituir-se como sujeito desejante.
Na separação, não há mais o embate do sujeito alienado com o Outro da linguagem, mas com o Outro do desejo. (Fink, 1998). O sujeito é causado pelo desejo do Outro, se aliena nele e assume a posição de objeto do desejo do Outro. Assim, se para adentrar a linguagem o sujeito precisa se alienar ao campo do Outro, para adentrar o desejo ele precisa sair desse lugar de objeto. O Outro da separação não coincide com o Outro da alienação, porque esse Outro que encarna o desejo não é completo, é faltoso. Como isso pode ser explicado? A mãe, por mais que tenha uma grande dedicação ao seu bebê, ela não está completamente disponível para satisfazê-lo. Qualquer atividade da mãe realizada longe do bebê demarca que ela tem outros interesses, outros desejos e que o bebê não é o único objeto do seu desejo. A mãe, portanto, é faltosa.
Fink (1998) esclarece que o Outro da operação de separação é barrado (?), ou seja, dividido entre consciente e inconsciente, porque nem sempre sabe o que deseja, pois o desejo nunca cessa. Ao se deparar com essa falta no Outro, o sujeito, inicialmente, tenta tamponá-la, assumindo o lugar de objeto de desejo do Outro. Mas a mãe continua a dar provas de que ela não está completa e que seu desejo não é uma continuação do desejo da criança. O fracasso do bebê em ser o objeto do desejo dela incita-o a deixar esse lugar e fazer a escolha pelo desejo. Para que a separação se concretize e haja o advento do sujeito é preciso que “[...]o Outro materno [demonstre] que é um sujeito desejante (e, dessa forma, também faltante e alienado), que também se sujeitou à ação da divisão da linguagem [...].” (Fink, 1998, p. 76). Sujeito que não se encontra mais na posição de objeto do desejo do Outro, mas sujeito desejante, incompleto e que, por isso mesmo, se dirige ao Outro para tamponar sua falta.
Quando aludimos que a mãe deseja algo além do bebê, identificamos a sua condição faltosa. É por seguir desejando, por olhar para outras direções, que a mãe introduz um terceiro significante na sua relação com o bebê. Apesar de Lacan ter nomeado esse significante de Nome-do-Pai, ele não se reduz ao pai de fato (o genitor), mas a qualquer elemento que se coloque entre o bebê e sua mãe: o emprego, outro filho, uma atividade de lazer ou esportiva, afazeres domésticos, enfim. Sendo assim, a função paterna, por vezes encarnada na figura de um pai, vai impedir a fusão da criança com a mãe, cujo desejo é avassalador. Por isso, Lacan (1958/1999) afirma que o Nome-do-Pai está no cerne da questão edipiana. É nisto que se constitui a metáfora paterna: o Nome-do-Pai enquanto um significante que substitui outro significante: o Desejo-da-Mãe. Isso significa que a criança não será mais o falo da mãe, o que indica que a mãe segue desejante e não plena, pois o desejo é sinônimo de falta, de castração. Nesse ponto, é como se a criança se questionasse sobre seu lugar no desejo do Outro, o que o Outro quer dela. A resposta a essa questão aponta para a estruturação psíquica do sujeito. Portanto, o Nome-do-Pai se apresenta como o significante que define as estruturas clínicas, neurose, psicose e perversão, cada uma delas sendo o modo pelo qual o sujeito lida com a castração, respondendo à questão sobre o desejo do Outro.
Freud (1931/1996), no artigo Sexualidade feminina, fez o primeiro esboço do campo pré-edipiano, ao denominar de pré-edipiana a fase em que há uma relação dual entre mãe e criança. No entanto, foi Klein que desenvolveu o campo pré-edipiano. O próprio Lacan (1958/1999) reconheceu a contribuição que Klein trouxe à teorização do complexo de Édipo e destacou o trabalho dela referente à análise de crianças – algo inovador na época.
Ao analisar as ideias kleinianas a respeito do Édipo, Lacan (1958/1999) destaca a importância do papel desempenhado pelo interior do corpo da mãe nas relações objetais infantis: “[...] a sra. Melanie Klein nos atesta que, entre os maus objetos presentes no corpo da mãe – dentre eles, todos os rivais, o corpo dos irmãos e irmãs, passados, presentes e futuros –, há, muito precisamente, o pai [...]”. (Lacan, 1958/1999, p. 170). É nesse ponto que Lacan se detém: o surgimento de um terceiro significante que realiza uma função paterna. A partir do delineamento do campo pré-edipiano realizado por Klein, Lacan propõe os três tempos do Édipo.
No primeiro tempo do Édipo, descreve Lacan (1958/1999), a criança tenta preencher a falta da mãe, o vazio deixado pela castração dela. Assim, ao se colocar como o objeto do desejo materno, a criança satisfaz a fantasia edípica da mãe, como apontou Freud (1924/1996): por meio de uma equação simbólica, a menina passa do desejo de ter um falo ao desejo de ter um bebê. A criança então se identifica com o objeto do desejo da mãe, o falo, aquilo que a complementa e que lhe devolve uma ilusão de completude. “Para agradar à mãe, [...]é necessário e suficiente ser o falo.” (Lacan, 1958/1999, p. 198). Disso, tem-se o caráter dual e especular da relação mãe-bebê, relação essa que é imaginária, como vimos quando tratamos do estádio do espelho, logo acima. Tal relação envolve a criança e a mãe, em articulação com o falo, enquanto um símbolo de completude, que preenche o vazio deixado pela castração. Mas essa sensação de completude não perdura. A mãe passa a se ausentar mais e a criança, indignada, pensaria: “Há nela o desejo de Outra coisa que não o satisfazer meu próprio desejo, que começa a palpitar para a vida.” (Lacan, 1958/1999, p. 188). A mãe demonstra que seu desejo vai além do filho. “Observemos esse desejo do Outro, que é o desejo da mãe e que comporta um para-além. Só que para atingir esse para-além é necessária uma mediação, e essa mediação é dada, precisamente, pela posição do pai na ordem simbólica.” (Lacan, 1958/1999, p. 190). Assim, advém o segundo tempo do Édipo.
No segundo tempo do Édipo, a relação mãe-bebê é rompida, pois “[...]o pai entra em jogo, isso é certo, como portador da lei, como proibidor do objeto que é a mãe.” (Lacan, 1958/1999, p. 193). Se no primeiro tempo, a lei era materna e a criança era o falo da mãe, agora a lei é paterna e o pai interdita a mãe. É isso que funda o complexo de Édipo: o pai proíbe a mãe. Agora, no imaginário da criança, o pai passa a ser representado como o falo. Quando ele passar de um “pai imaginário” para um “pai simbólico”, ou seja, daquele que é o falo para aquele que tem o falo, será instaurado o terceiro tempo. (Garcia-Roza, 2004).
No terceiro tempo do Édipo, a função paterna é simbólica. Para Lacan (1958/1999), o caráter decisivo do Édipo tem relação com a palavra do pai e não com o pai de fato, mesmo que ele apareça sustentando a castração. É a mãe que viabiliza a palavra do pai e o seu lugar na relação com o filho. Como ela faz isso? Admitindo que, enquanto mulher, seu desejo é ser objeto do desejo do pai, porque ele é o detentor do falo, aquilo que a complementa. É nesse ponto que o pai se faz presente não mais no vaivém da mãe, mas em seu próprio discurso. E a criança compreende que não basta ser o falo, é preciso ter o falo. Se o que a mãe quer é o falo e o pai é quem detém o falo, a criança agora vai em direção ao pai. “O terceiro tempo é este: o pai pode dar à mãe o que ela deseja, e pode dar porque o possui.” (Lacan, 1958/1999, p. 201). Aqui, há a incidência do pai de fato, como aquele que é preferido pela mãe e com o qual a criança poderá se identificar. Ao renunciar a ser o falo da mãe, a criança se identifica com aquele que tem o falo, o pai. A identificação com esse objeto preferível à mãe é o resultado da dissolução do complexo de Édipo. Quando a criança é separada da mãe pelo interdito paterno, ela passa a ser uma entidade distinta ao invés de simplesmente encarnar o objeto do desejo da mãe. É assim que ela se insere na ordem da cultura como um sujeito.
Considerações finais
Se Freud dá o passo inicial para incluir a criança como alguém que é capaz de falar sobre seu sofrimento, Klein formaliza a clínica com crianças e as escuta desde tenra idade. Foi ela que descobriu que as crianças podem estabelecer relações de transferência, tornando possível a análise. Assim, abriu caminho para que os analistas pudessem aplicar a proposta desenvolvida por Lacan: pensar a criança não como objeto de discurso do Outro, mas como sujeito capaz de produzir um discurso singular.
Por meio da escuta de seus pacientes adultos, Freud teorizou o desenvolvimento da sexualidade infantil e “desenhou” um sujeito essencialmente marcado pela pulsão sexual. Por meio da publicação do caso do pequeno Hans, Freud deu o primeiro passo em direção à instituição da psicanálise de crianças, ao considerar que a criança tem o que falar a respeito de seu sofrimento.
No entanto, a psicanálise de crianças ganhou contornos precisos a partir de Klein. Ela atendeu crianças bem pequenas, o que lhe proporcionou teorizar aspectos dos estágios iniciais do desenvolvimento do bebê, bem como estabelecer o campo pré-edipiano. Se Freud não acreditava ser possível a transferência entre a criança e o analista (por isso, o analista do pequeno Hans foi seu próprio pai), Klein provou que ele não levou o resultado de sua produção teórica sobre as crianças às últimas consequências. Além disso, Klein criou um método específico para tratar os pequenos pacientes, o método do brincar. Portanto, observamos como ela foi importante para que a criança desocupasse, cada vez mais, o lugar de objeto de um discurso alheio.
Na esteira de Freud e Klein, Lacan trouxe uma nova forma de elaborar a constituição subjetiva. Foi ele quem resgatou da filosofia o termo sujeito, dando-lhe uma nova concepção: o sujeito não é o indivíduo, pelo contrário, é um sujeito marcado pela divisão consciente/inconsciente. Lacan não se ateve à criança ou ao bebê no sentido de uma noção cronológica, ao contrário, cunhou uma noção lógica acerca do advento do sujeito, tomando por base duas operações fundamentais, a alienação e a separação.
Não temos a intenção de propor que a teoria lacaniana suplantaria as teorias freudiana e kleiniana. Longe disso, afirmamos que cada um desses três pilares, à sua maneira, trouxe avanços significativos para que a criança fosse respeitada em seu discurso. Ao apresentar o modo como Freud, Klein e Lacan teorizaram a constituição subjetiva, destacamos no pensamento deles a forma como a psicanálise pensa o sujeito-criança, ou seja, não um sujeito moldado a partir de ações normatizadoras, mas um sujeito que se constitui ao se defrontar com o desejo do Outro, ao qual responderá de maneira imprevisível e incontrolável.
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Recebido em 14/02/2017
Aceito em 20/03/2017
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Daniela Paula do Couto
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