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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.14 no.spe Juiz de Fora  2020

https://doi.org/10.34019/1982-1247.2020.v14.32262 

Efeitos da pandemia de Covid-19 no Brasil e em Portugal: estresse peritraumático

 

Effects of Covid-19 pandemic in Brazil and Portugal: peritraumatic distress

 

Efectos de la pandemia de Covid-19 en Brasil y Portugal: estrésperitraumático

 

 

Mayra Antonelli-PontiI; Francisco CardosoII; Célio PintoIII; José Aparecido da SilvaIV

IUniversidade de São Paulo - USP. E-mail: antonelli.may@alumni.usp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4931-2788
IIUniversidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. E-mail: fcardoso@utad.pt ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6899-7770
IIIAdministração Regional de Saúde do Norte. E-mail: ciocarvalho83@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6985-8724
IVUniversidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. E-mail: jadsilva@ffclrp.usp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1852-369X

 

 


RESUMO

O mundo está a viver uma situação de pandemia por causa do vírus SARS-CoV-2. Comparamos níveis de estresse peritraumático durante a pandemia Covid-19 (EPC) entre Brasil e Portugal, países latinos com longa história conjunta. Os resultados apontaram níveis elevados de EPC para os brasileiros com 19% (nível grave), e 64% de EPC de leve a grave, contra 5.3% e 38% dos portugueses. Os brasileiros demonstraram maior gravidade em 20 (de 24) itens de EPC. O índice global (IEPC) foi mais elevado nos brasileiros. Essas diferenças são explicadas como consequência das diferentes decisões políticas de saúde seguidas nos dois países.

Palavras-chave: Pandemia; Estudo intercultural; Covid-19; Estresse peritraumático; IEPC.


ABSTRACT

The world is living in a pandemic situation because of the SARS-CoV-2 virus. We compared peritraumatic distress during Covid-19 pandemic (CPD) between Brazil and Portugal, two Latin nations with a long conjointly history. The results pointed to high CPD levels to Brazilians with 19% (severe level), and 64% within CPD (from mild to severe), against 5.3% and 38% of the Portuguese people. Brazilians showed higher severity in 20 (of 24) items of CPD. The global index (CPDI) was higher in Brazilians. These differences are explained by the different political health decisions of the two countries.

Keywords: Pandemic; Intercultural study; Covid-19; Peritraumatic distress; CPDI.


RESUMEN

El mundo está experimentando una pandemia debido al virus SARS-CoV-2. Comparamos los niveles de estrés peritraumático durante la pandemia Covid-19 (EPC) entre Brasil y Portugal, países latinos con una historia conjunta. Los resultados mostraron altos niveles de EPC para los brasileños con 19% (severo) y 64% de leve a severo, frente al 5,3% y 38% de los portugueses. Los brasileños muestran mayor severidad en 20 (de 24) ítems de EPC. El índice global (IEPC) fue más alto en brasileños. Estas diferencias se explican como consecuencia de las distintas decisiones de política sanitaria que se siguieron en los dos países.

Palabras clave: Pandemia; Estudio intercultural; Covid-19; Estrés peritraumático; IEPC.


 

 

O primeiro caso de infecção pelo vírus SARS-COV-2, dando origem à doença Covid-19, foi notificado na China, no final de 2019. No início de 2020, a doença já havia se espalhado para outros países e intensificaram-se mundialmente as notícias sobre a problemática relacionada às formas de contágio e às orientações para prevenção da disseminação do referido vírus. Entre janeiro e fevereiro, alguns países vivenciavam um crescimento exponencial de casos de contaminação e óbitos em decorrência da Covid-19, como foi o caso da China e da Itália. A disseminação global do vírus foi confirmada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia em 11 de março de 2020 e os países iniciaram (ou não), cada qual à sua maneira, as medidas para prevenção e enfrentamento à situação.

Globalmente considerado, desde então, viveu-se um contexto de ansiedades e medos, mas cada localidade tem experimentado diferentes condições de informação e de confiança. As melhores condições podem estar sendo capazes de atenuar essas manifestações psicológicas preparando as populações para o enfrentamento à pandemia, que passa por práticas e atitudes individuais e grupais, entre as principais as de distanciamento social e de higienização, tal como preconizara Steven Taylor (2019).

Diante desse contexto, inúmeros estudos investigaram os efeitos da pandemia (Abad et al., 2020; Jahanshahi, Dinani, Madavani, Li, & Zhang, 2020; Mazza et al., 2020; Qiu et al., 2020). Poucos, no entanto, fizeram comparações interculturais, o que se faz útil e necessário, afinal cada população tem vivenciado ambientes pandêmicos distintos. Há países que tiveram sucesso na diminuição de contágio e harmonização na comunicação entre lideranças e população, enquanto outros têm tido dificuldades em controlar o número de casos, e em coordenar os esforços para tal. O foco do presente estudo ilustra bem o referido cenário: enquanto Portugal concatenou esforços e medidas exitosas para evitar a propagação do vírus, o Brasil demonstrou ações e discursos divergentes, o que pode ser uma das causas para o fracasso no controle do contágio, além de gerar incerteza e confusão na população.

O estresse evidenciado durante uma situação traumática, tal qual uma pandemia, é denominado de estresse peritraumático. Diante disso, questiona-se: diferentes contextos pandêmicos acompanhados um por sensação de seguridade e outro de incerteza geram níveis diferentes de estresse peritraumático?

 

A pandemia de Covid-19 e a disseminação de incertezas no Brasil

No Brasil, as duas últimas semanas de março de 2020 foram marcadas pelo início das medidas de isolamento social que implicaram no impedimento de toda atividade que gera aglomeração de pessoas, como aulas presenciais, eventos artísticos, culturais e entretenimento, comércio, entre outros. Os brasileiros têm vivido, desde então, experiências relacionadas à incerteza e à confusão.

Naquela altura, o Brasil contava com um médico no ministério da Saúde, o qual reportava periodicamente, por meio da imprensa, a situação do contágio no país, além de atualizar sobre as melhores medidas sanitárias, de isolamento e distanciamento para a prevenção da Covid-19. Esse ministro tinha alta taxa de aprovação entre os brasileiros, mas, após um mês de discursos e atitudes divergentes aos do Presidente da República, o qual ignorou as medidas recomendadas pelo ministro, foi demitido do seu cargo. Lembremos aqui de que enquanto o ministro solicitava medidas unificadas para prevenção do vírus, o presidente da República insistia em argumentar que a Covid-19 era "só uma gripezinha".

Outro médico assumiu a pasta em 17 de abril de 2020. Novamente, pouco menos de um mês após isso, demitiu-se por razões diversas, entre elas, por discordar do posicionamento do presidente da República sobre as recomendações de afrouxamento do isolamento e sobre o uso do medicamento hidroxicloroquina, o qual não tem eficácia comprovada para uso no tratamento de Covid-19, sem acompanhamento médico (Tang et al., 2020). Nesse ínterim, o Supremo Tribunal Federal decidiu que cada estado e município teriam autonomia para definir suas regras de isolamento social, compondo, assim, o cenário de descoordenação nas ações do país para o enfrentamento à pandemia. O retrato de discursos divergentes exposto até aqui já seria suficiente para justificar o grau de incerteza e confusão ao qual o brasileiro foi exposto. Somam-se a isso, porém, os casos crescentes de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2, os óbitos em decorrência da Covid-19, durante todo o período (Figura 1a e 1b), a crescente taxa de desemprego ou desocupação que passou de 11.2% em janeiro para 13.3% em junho de 2020 (IBGE, 2020), a somar à incerteza sobre vagas em hospitais (Noronha et al., 2020).

Foco, força e união. Portugueses unidos por um objetivo

Cerca de três meses após o alerta da descoberta de um novo vírus SARS-COV-2, em Portugal, viria a ser identificado o primeiro caso de infeção por este vírus a 2 de março do corrente ano de 2020. Entretanto, durante esse tempo de mediação, as expectativas geradas na população pela sua disseminação, criadas por informações noticiosas, foram sempre acompanhadas pelas entidades oficiais, governamentais gerais e específicas, principalmente pela direção geral de saúde, acerca da sua evolução em outros países. De modo semelhante, iam sendo dadas, progressivamente, informações sobre a capacidade dos sistemas de saúde darem resposta aos piores cenários possíveis. Eram reconhecidas carências, por exemplo, aparelhos de ventilação, acompanhadas de informações de ações que estariam a ser efetivadas para sua minimização. Além disso, a Direção Geral de Saúde (DGS) e o Governo Português emitiram orientações de mitigação e de prevenção da disseminação do vírus na comunidade, apelando para que cada pessoa adotasse atitudes de distanciamento social e de etiqueta respiratória que seriam capitais para o controlo e achatamento da curva de crescimento da infeção. Em 11 de março de 2020, quando a OMS declarou a Covid-19 como pandemia, em Portugal, existiam 59 casos de infeção ativa. As medidas de confinamento e restrição de deslocação culminaram com o fecho das escolas a 12 de março e o cancelamento de ligações e encerramento da fronteira terrestre com Espanha. Quatro dias depois, a 16 de março, foi declarada primeira morte no país. O número de contágios subiu de forma multiplicativa e alastrou-se a outras regiões do país. As medidas de prevenção incidiram sobre a suspensão de visitas a hospitais, lares e estabelecimentos prisionais da região e o encerramento das escolas e os estabelecimentos de lazer e culturais, no distrito do Porto, que depois se estenderam ao resto do país. Estas decisões foram apoiadas em dados de vulnerabilidade e dificuldade de controlo de surtos em idosos e populações vulneráveis (DGS, 2020).

Em 18 de março, quando havia dois óbitos e 637 casos de Covid-19, foi decretado em Portugal o primeiro estado de emergência por 15 dias. O mesmo foi renovado por mais dois períodos, ficando na memória a palavra de ordem do presidente da República "confinar em abril, para ganhar maio". O país instituiu medidas de teletrabalho e telescola, entre outras, como adiamentos no pagamento de impostos, proibição de celebrações religiosas e eventos que implicassem concentração de pessoas, proibição de deslocações para fora do concelho de residência, no período da Páscoa, e o encerramento de todos os aeroportos no mesmo período a voos de passageiros. As penas de prisão por crimes menos graves tiveram um perdão parcial, com libertação antecipada, com o objetivo de evitar propagação do vírus nos estabelecimentos prisionais e assistiu-se à regularização de emigrantes para que pudessem ter acesso ao serviço nacional de saúde.

Em início de maio de 2020, Portugal apresentava melhor situação em número de óbitos/milhão de habitantes (93) do que a Espanha (510) e a Itália (453) e com o número de testes/milhão de habitantes dos mais elevados (Costa & Costa, 2020; DGS, 2020).

As informações chegadas sobre a situação em outros países eram preocupantes, com ênfase para a situação em Itália e Espanha. Chegavam notícias de saturação dos serviços de saúde e aumentos de mortes com números preocupantes. Por outro lado, cientistas e médicos veiculavam muitas incertezas sobre a capacidade de sobrevivência, formas de infeção e sintomas causados por este novo vírus. Nestes contextos, quer no Brasil quer em Portugal, justificava-se, a par do que ia sucedendo em outros países (por exemplo, Irã, China) que se estudassem respostas psicológicas de índole afetivo-emocional e cognitiva. Essas investigações foram se sucedendo, dando conta, de momento, de resultados, ainda que parcelares, sobre os índices de estresse peritraumático em ambas as populações.

Mas por que elegermos esse indicador? Elegemos este indicador porque ele constitui uma boa medida que se pode tornar preditora do número de casos de estresse pós-traumático para o futuro próximo. Como sabemos, desde Hans Selye (1984), a resposta de estresse deve ser entendida como uma resposta de preparação para o enfrentamento de situações adversas; contudo, quando essas situações adversas se prolongam no tempo, sem que as pessoas sujeitas a essas situações tenham meios de controlo para fazer face, vários prejuízos físicos e psicológicos podem advir. Assim, será necessário, antes de mais, termos conhecimentos, ainda que parciais, de modo a se ir tomando precauções sobre políticas e estratégias pessoais, bem como deixar para a ciência dados que, conjuntamente com outras investigações, possam vir a ser úteis no sentido de uma compreensão global.

Dado o exposto, o principal objetivo foi observar níveis de severidade e de prevalência de estresse peritraumático, entre amostras de populações brasileira e portuguesa, quanto ao índice de estresse e nas diferentes variáveis que o compõem.

 

Método

Participantes

No Brasil participaram 1.471 pessoas do gênero feminino, entre os 14 e 77 anos de idade, Mid. = 36.5, DPid. = 12.6, Mdnid. = 35 e 368 pessoas do gênero masculino, entre os 17 e 75 anos de idade, Mid. = 35.4, DPid. = 13.3, Mdnid. = 33.0. Aproximadamente metade dos participantes declara-se solteiro (48.7%), a outra parte se declara casado (41.9%) ou em outros estados civis (9.4%). Relativamente ao nível escolar 1.8% tinham até nove anos de escolaridade, 8.5% até 12 anos, 21.5% frequentavam a Universidade, 68.2% tinham finalizado o ensino superior.

Em Portugal participaram 298 pessoas do gênero feminino, entre os 17 e 63 anos de idade, Mid. = 32.3, DPid. = 11.5, Mdnid. = 28, e 114 pessoas do gênero masculino, entre os 18 e 58 anos de idade, Mid. = 33.3, DPid.= 10.8, Mdnid. = 31, e ainda uma pessoa identificada como transgênero de 25 anos de idade. Destes 54.7% eram solteiros, 38.98% casados/união de facto, 6.5% em outros estados civis. Relativamente ao nível escolar 10.4% tinham até nove anos de escolaridade, 33.4% até 12 anos, 34.6% frequentavam a Universidade, 21.6% tinham finalizado o ensino superior.

Instrumentos

Aplicamos o questionário para avaliação do estresse peritraumático durante a pandemia de Covid-19 (EPC), por ter sido construído com o propósito de recolher informações e fornecer um índice de grau de severidade de estresse peritraumático em plena situação de pandemia, o índice de estresse peritraumático Covid-19 (IEPC; Qiu et al., 2020). Este índice resulta de 24 indicadores obtidos pela frequência com que cada participante afirma estar a vivenciar cada uma das variáveis que o compõem, em relação a sete dias anteriores. Inclui medidas de ansiedade, depressão, medos ou fobias específicas, mudanças cognitivas, como fadiga ou dificuldade de decisão, comportamentos compulsivos, e sintomas físicos, quer relacionados como SNC, como problemas de sono, quer com o sistema de nervoso autónomo, como dores de estômago, alterações de micção e constipação. O índice do índice de estresse (IEPC) varia entre 0 (zero) e 100, com um coeficiente C = 4 (constante). Classifica três níveis de estresse: Normal, entre zero e 27; Ligeiro-Moderado, de 28 a 51; Severo 52. Tem ainda registado elevados graus de confiabilidade em diversos estudos conferindo uma boa medida unidimensional (estudo original, α = .95), mantendo no presente estudo intercultural valores de confiabilidade de cerca .90. Amostra portuguesa, α = .901, M = 1.06, DP = .565; Amostra brasileira, α = .906, M = 1.48, DP = 677.

Coleta de dados

A coleta de dados foi conduzida de 12 de abril a 6 de junho. No Brasil, como parte de um primeiro módulo do projeto de pesquisa intitulado "Reações físicas, psicológicas e cognitivas à Covid-19" e, em Portugal, do projeto "Conhecimento de padrões de resposta psicológica acerca da atual situação Covid-19 e de confinamento". As amostras foram convidadas à participação por meio da divulgação do formulário online (Google forms) nas redes sociais, televisão e e-mails. Por esses meios foi incentivado o efeito de bola de neve. O formulário tinha no seu início um consentimento informado, no qual se explicava os objetivos e se garantia o anonimato. No Brasil, este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o Parecer nº 4.128.627 e, em Portuga,l pela Comissão de Ética (Referência: Doc21-CE-UTAD-2020).

Análise de dados

Calculamos o IEPC, resultante da soma de pontuação dos 24 indicadores. Procedemos à análise de frequências por níveis de severidade de estresse, em ambas as populações; posteriormente, calculamos a magnitude do efeito da variável experimental invocada, situação Covid-19, por meio do teste estatístico Cohen d. Optámos por este cálculo por corresponder a um valor padronizado, resultando do quociente entre o valor da diferença das respectivas médias sobre o desvio-padrão conjunto. Por o valor do tamanho das amostras ser desigual, procedemos ao seu ajustamento. Cohen considerou os seguintes valores de balizamento: 0.2 pequeno efeito; 0.5 médio efeito; 0.80 grande efeito (Cohen, 1988; Zakzanis, 2001).

 

Resultados

Na Tabela 1 encontram-se registados os valores de percentagem por nível de estresse peritraumático durante a pandemia de Covid-19. No nível normal, i.e., considerado sem estresse ou com estresse sem importância clínica, vemos que, neste nível, 36.0% da amostra brasileira contrasta com 62.0% da amostra portuguesa. No nível intermédio, o sentido da proporção inverte-se: 44.8% de brasileiros contrastam com 32.7% de portugueses. E, por fim, no nível de estresse severo o contraste é de cerca 19.0%, para a amostra brasileira, contra 5.3% da amostra portuguesa.

Em termos psicométricos, podemos ver, na Tabela 2, que os brasileiros registaram, em média, uma resposta por item mais elevada, correspondendo a uma diferença de cerca de 10,266 pontos/valores, entre os respetivos valores da média. Os restantes valores psicométricos relativos à distribuição, apresentam, similarmente, maiores valores na amostra brasileira, seja no valor da mediana, 2º quartil, seja nos 1º e 3º quartis.

Comparação item a item da magnitude do efeito da variável (latente) de EPC, observada pela comparação do Cohen d

A observação, item a item, da magnitude do efeito da variável EPC, através da comparação do Cohen d, pode ser observada quer na Tabela 3 quer na Figura 2. Optámos por apresentar ambas por, na primeira, podermos confrontar com os valores estatísticos e por, na segunda, termos uma visualização ampla do efeito em questão. Tabela 3. Comparação de magnitude dos efeitos, Cohen's d, entre Brasil - Portugal

A última linha da Tabela 3, relativa ao índice global IEPC/CPDI, regista um valor de -0.65, valor que cai dentro do intervalo de efeito médio; neste caso, corresponde a cerca de 35% de não sobreposição das distribuições em análise (sobreposição total corresponde a efeito zero). Por sua vez, na Figura 2 o efeito é observado pelo afastamento em relação à linha de referência indicativa de efeito nulo. O sinal negativo indica que o primeiro termo tomado para comparação, Portugal, é menor em valor de resposta, relativamente ao segundo termo, Brasil. Dito de outra forma, sempre que a média da pontuação das respostas da população brasileira for maior do que a média da pontuação das respostas da população portuguesa o valor do 'd' de Cohen será negativo. O grande losango representa o valor tomando em consideração todos os valores em equação. Assim, globalmente compreendido, o valor do Cohen d é -.36, p < .001 [-0.515, -0.207] e um ratiodiamond (r.d) de 6.99 [5.47, 9.75] (o r.d. foi calculado sem o índice peritraumático, por este ser um resultado de todos os itens constituintes).

Debrucemo-nos, de seguida, na comparação item a item, pois cada um refere-se a variáveis de interesse. Entre todos os itens destaca-se o isolamento familiar, por apresentar uma diferença de grande magnitude (efeito), d = -2.07. Seguidamente, poderemos destacar as variáveis por clusteres. Assim, o primeiro comportará dimensões cognitivo-emocionais: Ansiedade (d =-0.4%), Desamparo-Depressão (d = -0.36), Desamparo-Zanga (d = -0.59); o segundo cluster com as dimensões de maior pendor cognitivo: Lentificação (d = -0.47); Problema de concentração (d = -0.54); Dificuldade de tomada de decisão (d = -0.56); o terceiro cluster englobando as dimensões de índole física: Fadiga-exaustão (d = -0.45); Problemas somáticos, tonturas (d = -0.44); Problemas de estômago (d = -0.41); Problemas de sono-pesadelos (d = -0.33); Regulação excretória (d = -0.23); o quarto cluster de índole atitudinal: Descrença (d = -0.24); Impulsividade na busca informação (d = -0.42); Partilha de informação negativa (d = -0.31); Evitamento de informação (d = -0.17); Quinto cluster de dimensão relacional: Empatia (d = -0.37); Irritação/Conflito familiar (d = -.038); Desconforto Social (d = -0.13); e Isolamento Familiar (d = -2.07), já inicialmente destacado dado a elevada magnitude da diferença. Por fim, note-se que população portuguesa pontuou mais na busca de informação sem critério (d = 0.23) e que na percepção de insegurança/segurança, medo de contaminação e pessimismo, as populações não registaram diferenças estatisticamente significativas.

Em síntese, das 24 variáveis, 20 registaram diferenças estatisticamente significativas com maior pontuação da população brasileira. Em três variáveis não foram registadas diferenças significativas e em apenas uma variável a população portuguesa pontuou mais, respeitando esta a busca de informação sem critério de escolha ao passo que a população brasileira viria a revelar uma maior busca de informação negativa.

 

Discussão

Pretendemos com a presente investigação, intercultural, observar níveis e prevalência de estresse peritraumático durante a pandemia de Covid-19 e comparar, nas populações brasileira e portuguesa, o IEPC assim como as diferentes variáveis que o compõem. Relativamente ao primeiro aspeto, verificámos valores que nos levantam algumas preocupações, não pela existência de estresse, resposta intrínseca ao ser humano perante situações adversas, mas pela sua qualidade e incidência. Estes valores, principalmente ao nível severo, são muito alarmantes para a população brasileira atendendo a que o Brasil tem uma população de cerca de 212.842.597 pessoas, e Portugal tem como população cerca de 10.196.709 pessoas. Atente-se, por conseguinte, que se operarmos por fatores de 10 facilmente estimamos números inquietantes; veja-se: os dados apontaram para a existência de cerca de 19 pessoas com EPC em 100, a nível severo; ora, este valor corresponderá a 190 em 1.000; a 1.900 em 10.000; 19.000 em 100.000... e cerca de 40.000.000 tomando a população total. Por seu turno, em Portugal teremos: 5 em 100; 50 em 1.000; 500 em 10.000; 5.000 em 100.000; i.e., cerca de 500.000, tomada a população total. Números que devem levantar séria preocupação para os serviços de saúde e da organização do trabalho; em ambos os países, apesar da magnitude da diferença, pois estamos perante um universo bastante diferente em número.

A preocupação referida encontra ressonância em Hubner et al. (2020), no que ao Brasil diz respeito. Por exemplo, analisando uma amostra de estudantes, este autor refere que 52.90% manifestavam ligeiro a moderado estresse e que 35.02% severo estresse. O que perfazia um total de cerca de 87.92%. Valores ainda superiores aos que nesta investigação se registaram.

Neste tipo de estudos, apesar da análise psicométrica, em termos da comparação dos valores da média, poder não ser a melhor forma de analisar dados (porque um pequeno grupo de respondentes pode alcançar valores maiores do que um grande grupo; por a média ser susceptível a valores extremos; e ainda por a categorização em níveis delimitar intervalos de grandeza específicos), comparativamente ao uso de valores de prevalência e de incidência, por graus de severidade, não deixámos de procurar valores que pudessem constituir, de algum modo, referências, tomando o valor do IEPC. Comparativamente com a amostra portuguesa, houve uma diferença de cerca 10 unidades (Tabela 3), em desfavor da amostra brasileira. Atentemos a resultados obtidos no Irã e na China: a média registada na população do Irã (M = 34.54, DP = 14.92) é muito semelhante, embora inferior ao estudo de Hubner et al. (2020). Por seu turno, o estudo chinês (M = 23.65, DP = 14.92) apresenta um valor da média muito inferior ao Brasil, mas semelhante ao estudo português que, como vimos, a média era de 25.32. Esses dados apresentam uma curiosidade muito interessante, a nosso ver. Como pudemos assistir, por notícias difundidas, que a intervenção chinesa foi desenvolvida debaixo de muita autoridade, mas muito organizada, ao passo que, em Portugal, sem essa autoridade, foi usada uma informação consistente e verificada união no acolhimento das instruções que eram dadas pelas autoridades sanitárias. De qualquer modo, encontrar-se-á a semelhança de procura de unidade na ação do enfrentamento da situação pandémica (neste particular, omitimos o Irã por desconhecermos que práticas sociopolíticas adotaram de combate à pandemia de Covid-19).

Relativamente ao segundo aspecto que nos propusemos analisar, o da comparação das diferenças em nível de estresse, os resultados apontam igualmente para uma superior preocupação na população brasileira. O facto de termos encontrado superioridade quer no IECP, quer em 20 das variáveis que o compõem, não poderá ser, na nossa perspectiva, explicada por diferenças culturais ou por características de personalidade. Entre estas haverá a destacar o cluster que aponta para desordens de ordem física, como perturbações de sono, tontura, dores de estômago e ainda para desânimo, sentimento de desamparo, descrença, lentificação e dificuldades de decisão, variáveis que podem ser melhor explicadas perante um contexto vivencial.

Certos de que o comportamento é função da personalidade e da situação, como referiria Kurt Lewin (1890-1947), não podemos deixar de pensar que, nesta especificidade, o maior peso estará no lado da situação que funcionará como uma variável experimental invocada (e.g., Léon, 1980); por outro lado, não podemos também negligenciar o alerta deixado por outro psicólogo social sobre a tendência para, nas nossas análises, negligenciarmos a situação em favor de atributos disposicionais, cometendo assim o que o referido autor denomina por "erro fundamental dos psicólogos" (Leyns, 2018). Pelo contrário, faz-nos mais sentido procurar essas diferenças nos contextos societais criados a cerca da pandemia. Como anteriormente expusemos, parece-nos evidente que os contextos discursivos, políticos e atitudinais foram (e estarão sendo ainda) bastante diferentes. De um lado, a procura de uma resposta global, com um desígnio comum, a de debelar o surto. Do outro lado, plurívocas e inconsistentes realidades discursivas. De um lado, em situações mais críticas, assistimos ao apoio inequívoco à ministra da saúde a à diretora dos serviços de saúde (consultáveis nos órgãos de comunicação Social), ao passo que, de outro lado, assistimos a trocas ou demissões de ministros de saúde em fases críticas, sem que a maioria da população entendesse a razão de tal atitude. Ademais, em Portugal, foram constantes os apelos à população para que confiassem nas autoridades de saúde pública, com políticos chamando a si a responsabilidade das ações na certeza de que se o combate fosse malsucedido assumiriam as responsabilidades por possíveis erros cometidos. No Brasil, políticos recomendando, a descontento de médicos idôneos, o uso de um medicamento sem comprovação científica para tratamento de Covid-19. Nada mais errado do que a vã ou falsa informação, como a apelida Luís Delgado, autoridade em imunologia: "É quase criminoso, em termos científicos, largar informação sem evidência dos dados" (ver Larguesa, 2020; entrevista ao Jornal Negócios).

As confessadas e assumidas carências, inicialmente referidas, foram aproveitadas para a mobilização geral, durante o período crítico e ainda hoje: Cerca de 90% da população portuguesa usa máscara quando sai à rua e mais de 85% dizem confiar nos profissionais de saúde (GFKMetrics, APAH e Ordem dos Médicos, Movimento "Saúde em Dia" https://apah.pt). Desta forma, havia e há a transmissão de que tudo estaria e estará a ser feito para o domínio da situação, acompanhado por informações dadas à população sobre o que dela dependeria: Controlo comportamental para corte das cadeias de transmissão. De fato, como nos chama atenção Steven Taylor (2019), na ausência de farmacologia, não haverá outras medidas senão as comportamentais, a recordar: distanciamento social, higienização pessoal e dos locais, informação correta e unívoca dada à população; demonstração de empenho no combate. Medidas que, ao serem assumidas pelas populações, lhes transmitirá uma percepção de segurança. A elas mesmas, não somente percepção, mas poder efetivo de controlo na regulação e corte das cadeias transmissão. Esta univocidade de informação acabaria por ser amplamente reconhecida, como é ainda nos dias de hoje, por agentes económicos politicamente adversos a intervenções estatais, conferindo "nota positiva" (Luís Reis, CEO Sonae Financial Services, entrevistado por Paulo Duarte, 2020), contrariamente ao egocentrismo de alguns, pois este constitui uma ameaça para todos, como afirmaria Koichi Hamada (2020).

Ora, os fatores acima referidos, de coesão, informação unívoca e assunção de responsabilidade, são também, como múltiplos estudos da psicologia social e clínica o demonstraram, essenciais para uma boa autorregulação de estresse. Pelo contrário, a sua carência proporcionará a emergência de ansiedade, depressão e estresse. Por conseguinte, aí deverá estar o nó-górdio das diferenças de gravidade de EPC manifestado por brasileiros e portugueses, neste tão específico contexto de "experiência da natureza" e nesses residirá a chave para o presente e futuro combate a um vírus que teima em persistir.

Podem ser levantadas algumas objeções ao presente estudo. No entanto, pensamos que essas não diminuirão a sua oportunidade e virtudes. Assim, ao se objetar pela invocação de diferenças culturais ou de variáveis de personalidade, respondemos que não podemos deixar de notar que a percentagem de diferença nas medidas é assinalável (20:1), para além de incluir as de ordem básica, i.e., de ordem física. Também se poderá objetar pela diferença de contemporaneidade da coleta de dados; todavia, o contexto de pandemia gerou as respostas psicológicas mais constitutivas do humano, por apelarem às de sobrevivência do indivíduo e da espécie humana, como sucede em todas as situações de iminente perigo, e como alerta à psicologia evolucionária. As diferenças, no entanto, encontraram melhor compreensão ao nível do contexto. A este título, invoque-se o que está sucedendo nos EUA e seu contexto de incertezas do "salve-se quem puder", suas semelhanças nas consequências com o Brasil e suas diferenças e consequências em Portugal. Comparações que reforçam a convicção da posição teórica desenvolvida.

 

Considerações finais

O presente estudo permite concluir pela importância da ação política no debelar da crise pandémica. A comunicação entre as autoridades e entre essas e a população merecem a melhor exigência para a ultrapassagem da crise pandémica. Debelar o medo e a incerteza, através de uma comunicação clara, estável e confiável, parece conduzir a adesão às únicas medidas precoces de controlo da pandemia, como as comportamentais. Se, pelo contrário, das autoridades surgir uma resposta ambígua a comunidade tenderá a desorientar-se ou desvalorizar o impacto nefasto da pandemia. Exige-se, por isso, das populações respeito por si mesmo e pelo seu próximo e dos regimes políticos, sentido de responsabilidade no cumprimento dos deveres que voluntariamente solicitaram e lhe foi, subsequentemente, concedida. Finalmente, sublinhe-se que os resultados encontrados apelam a que, desde já, se implementem intervenções dos serviços de saúde para minimizarem maiores prejuízos futuros em termos de saúde física e psicológica. Por fim, estamos convictos de que os dados e as reflexões deixadas poderão constituir pontos de ligação para a investigação futura de um problema atual, que se está ainda vivendo, para além de poderem constituir assunto de aprendizagem perante futuros surtos sejam epidémicos ou pandémicos.

 

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Recebido em: 21/09/2020
Aceito em: 22/09/2020

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