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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.2 Juiz de Fora abr./jun. 2021

https://doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.30429 

ARTIGOS

 

O paciente em crise psiquiátrica no imaginário coletivo de profissionais de um serviço comunitário

 

The patient in psychiatric crisis in the collective imaginary of professionals from a community service

 

El paciente en crisis psiquiátrica en el imaginario colectivo de profesionales de un servicio comunitario

 

 

Daiane Márcia de LimaI; Débora Cristina Joaquina RosaII; Silvia Nogueira CordeiroIII; Rodrigo Sanches PeresIV

IUniversidade Federal de Uberlândia - UFU. Email: daianemarcia@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6613-3282
IIUniversidade Federal de Uberlândia - UFU. Email: deborarosa.psicologia@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1468-2471
IIIUniversidade Estadual de Londrina - UEL. Email: silvianc2000@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0834-8610
IVUniversidade Federal de Uberlândia - UFU. Email: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2957-7554

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A crise psiquiátrica constitui um importante desafio ao cuidado psicossocial, mas tem sido tematizada em poucas pesquisas empíricas nacionais. O presente estudo teve como objetivo compreender o imaginário coletivo de um grupo de profissionais de um CAPS acerca do paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica. Trata-se de um estudo qualitativo, do qual participaram 10 profissionais lotados em um CAPS. A coleta de dados foi realizada individualmente mediante o emprego do Procedimento de Desenho-Estória com Tema. O corpus foi constituído pela transcrição das verbalizações dos participantes e, secundariamente, por seus desenhos. A análise de dados visou à formulação de interpretações voltadas à demarcação de campos de sentido. Em linhas gerais, observou-se que, de acordo com o imaginário coletivo dos participantes, o paciente em crise psiquiátrica é alguém que atravessa um estado de perturbação, bem como perturba sua própria família, a vizinhança e os profissionais de saúde.

Palavras-chave: Saúde mental; Centro de Atenção Psicossocial; Imaginário coletivo; Profissionais; Intervenção na crise.


ABSTRACT

The psychiatric crisis is an important challenge to psychosocial care, but it has been thematized in few Brazilian empirical researches. The present study aimed to understand the collective imaginary of professionals from a CAPS unit about patients with mental disorders in psychiatric crisis. This is a qualitative study, in which 10 professionals from a CAPS unit participated. Data collection was performed individually using the Drawing-Story with Theme Procedure. The corpus was constituted by the transcription of the participants' verbalizations and, secondarily, by their drawings. Data analysis looked for the formulation of interpretations to demarcate meaning fields. In general, it was observed that, according to the collective imaginary of the participants, the patient in psychiatric crisis is someone who is in a state of disturbance, as well as disturbing his own family, the neighborhood and health professionals.

Keywords: Mental health; Psychosocial Care Center; Collective imaginary; Professional personnel; Crisis intervention.


RESUMEN

La crisis psiquiátrica constituye un desafío importante para el cuidado psicosocial, pero ha sido tematizada en pocas investigaciones empíricas brasileñas. El presente estudio tuvo como objetivo comprender el imaginario colectivo de un grupo de profesionales de un CAPS sobre pacientes con trastornos mentales en crisis psiquiátrica. Este es un estudio cualitativo, del que participaron 10 profesionales de un CAPS. La recolección de datos se realizó individualmente utilizando el Procedimiento de Dibujo-Cuento con Tema. El corpus fue constituido por la transcripción de las verbalizaciones de los participantes y, secundariamente, por sus dibujos. El análisis de datos buscó la formulación de interpretaciones destinadas a demarcar campos de significado. En general, se observó que, de acuerdo con el imaginario colectivo de los participantes, el paciente en crisis psiquiátrica es alguien que atraviesa un estado de perturbación, además de molestar a su propia familia, al vecindario y a los profesionales de la salud.

Palabras clave: Salud Mental; Centro De Atención Psicosocial; Imaginario Colectivo; Profesionales; Intervención En Crisis.


 

 

No Brasil, a história do campo da saúde mental é marcada pela hegemonia da perspectiva asilar e do modelo biomédico, os quais, por serem centrados no transtorno mental, e não no paciente, incorrem em um cuidado fragmentando e desumanizado (Vecchia & Martins, 2009). A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) tem visado à reversão desse panorama, sendo que foi impulsionada, no final dos anos 1970, por um problema concreto, causado pelo cenário de descaso e violência que se observava em muitos manicômios no país à época, como destacam Amarante e Nunes (2018). Os referidos autores acrescentam que a RPB, gradativamente, passou a contar com a participação de ativistas de direitos humanos e, assim, se converteu em um movimento mais abrangente, voltado tanto à construção de um novo espaço para o "louco" na sociedade quanto à desinstitucionalização da assistência em saúde mental.

Do ponto de vista técnico-assistencial, um importante avanço da RPB foi a difusão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços comunitários, de natureza aberta, que, nos termos da Lei nº 10.216 (2001), devem oferecer acompanhamento clínico a pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, bem como promover a reinserção social dos mesmos. Aos CAPS, portanto, compete desempenhar uma função distinta daquela que caracterizava anteriormente - e, em certo aspecto, ainda caracteriza - os serviços hospitalares, propiciando, por meio do trabalho multidisciplinar, a adequação da assistência em saúde mental ao paradigma do cuidado psicossocial. E é importante sublinhar que, no amplo conjunto de ações a serem desenvolvidas nos CAPS, está incluída a atenção à crise psiquiátrica, como explicita a Portaria nº 854 (Brasil, 2012).

Ressalta-se também que a efetivação da RPB depende da integração de serviços com finalidades tão diferentes como aquelas que são próprias das Unidades Básicas de Saúde e das Residências Terapêuticas, por exemplo. Justamente por essa razão foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mediante a publicação da Portaria nº 3.088 (Brasil, 2011). Tal documento estabelece que serviços hospitalares devem ser acionados pontualmente, sobretudo nas situações em que se observam indícios de comorbidades. Afinal, o funcionamento da RAPS prioriza ações contínuas, no território, visando à liberdade dos pacientes e ao combate a estigmas e preconceitos, o que reforça a função estratégica dos CAPS, inclusive no tocante à ordenação do cuidado psicossocial e à regulação do fluxo assistencial.

Dessa forma, cabe a todos os profissionais lotados em CAPS - e não apenas àqueles que ocupam cargos tradicionalmente reconhecidos como pertencentes à área da saúde - colaborar com a construção e o gerenciamento de um Projeto Terapêutico Singular (PTS) para cada paciente (Brasil, 2011). E isso deve ser feito sempre com a participação do próprio paciente e de sua família, a fim de especificar e acompanhar as ações desenvolvidas em prol de sua autonomia e cidadania, como observaram Mângia e Barros (2009). Trata-se, segundo os referidos autores, de um instrumento de trabalho de grande relevância para o cuidado psicossocial, em especial porque, ao favorecer o compartilhamento de saberes, ajuda a prevenir práticas normativas. Há ainda que se destacar que a desinstitucionalização da assistência em saúde mental, em consonância com Costa (2007), passa pela valorização da crise psiquiátrica como momento de produção de mudanças, malgrado o sofrimento psíquico que, em maior ou menor grau, lhe é inerente.

A crise psiquiátrica constitui um importante desafio ao cuidado psicossocial, pois geralmente emerge de modo súbito e, consequentemente, implica em demandas que podem suscitar a retomada de práticas fundamentadas na perspectiva asilar, de acordo com Nicácio e Campos (2004). Originalmente, a Medicina empregou a palavra "crise" para aludir a um certo momento do curso de uma doença a partir do qual poderia haver uma evolução para a cura ou para a morte (Lancetti, 2015). Porém, o nascimento da Psiquiatria promoveu uma conexão entre as noções de perigo e crise, em função da qual a noção de "surto" veio a se popularizar. Logo, a instabilidade, a imprevisibilidade, a inadequação e a periculosidade passaram a ser consideradas características centrais do paciente com transtorno mental que vivencia uma crise psiquiátrica, como asseverou Fialho (2015).

Já sob a égide do paradigma do cuidado psicossocial, a crise psiquiátrica pode ser compreendida como um evento delicado, marcado pela agudização dos sintomas do paciente com transtorno mental, o qual, porém, não deve ser resumido a um acontecimento meramente psicopatológico, conforme Martins (2012). Isso porque contém elementos criativos e representa uma forma de comunicação, afigurando-se, no limite, como uma tentativa de cura (Fialho, 2015). De maneira semelhante, Costa (2007) define a crise psiquiátrica como um "momento individual específico, no qual efervescem questões, afetos, gestos e comportamentos variáveis e singulares" (p. 96). E, segundo essa mesma linha de raciocínio, Ferigato, Campos e Ballarin (2007) defendem que a crise psiquiátrica é capaz de gerar transformações positivas ou negativas, na medida em que sinaliza o rompimento de um determinado padrão de funcionamento.

Trata-se, assim, de um fenômeno multifacetado, o qual, para Amarante (1995), exige ações longitudinais e processuais, e não respostas automáticas e burocráticas. Contudo, a crise psiquiátrica tem recebido menos atenção por parte dos pesquisadores brasileiros do que outros temas relativos ao campo da saúde mental, como revela o levantamento bibliográfico realizado para os fins do presente estudo. As pesquisas empíricas assinadas por Araújo, Godoy e Botti (2017), Brito, Bonfada e Guimarães (2015), Willrich, Kantorski, Antonacci, Cortes e Chiavagatti (2014) e Willrich, Kantorski, Chiavagatti, Cortes e Pinheiro (2011) constituem valiosas exceções e, mediante diferentes recortes, lançam luz sobre importantes aspectos de tal objeto de pesquisa, mas não o esgotam, até mesmo em função da complexidade que lhe é própria.

O presente estudo foi concebido a fim de proporcionar novas contribuições ao conhecimento científico atualmente disponível sobre o assunto e levou em consideração o fato de que, como revela uma recente revisão da literatura empreendida por Ramos, Paiva e Guimarães (2019), as pesquisas qualitativas desenvolvidas no contexto da RPB têm, de modo geral, privilegiado a exploração de suas dimensões técnico-assistenciais em detrimento de suas dimensões ideológicas. O conceito de imaginário coletivo em sua acepção psicanalítica pode ser considerado uma ferramenta capaz de viabilizar o acesso às referidas dimensões ideológicas, especialmente no tocante às suas bases afetivo-emocionais. Ocorre que tal conceito designa o cerne simbólico que, em um determinado grupo social, define o posicionamento a propósito de um certo fenômeno, sendo que o faz sobretudo de maneira não-consciente (Rosa, Lima, Peres & Santos, 2019; Tachibana, Ambrosio, Beaune & Aiello-Vaisberg, 2014).

O imaginário coletivo, portanto, tem o potencial de se manifestar das mais distintas formas, inclusive por meio de ações concretas, correlativas de uma ampla gama de sentimentos. Faz-se necessário esclarecer também que o imaginário coletivo origina ambientes humanos que se conformam intersubjetivamente e, assim, chega a se confundir com a própria realidade (Corbett, Ambrosio, Gallo-Belluzzo & Aiello-Vaisberg, 2014; Giust-Desprairies, 2005). Tendo em vista o que precede, Simões, Ferreira-Teixeira e Aiello-Vaisberg (2014) defendem, mais especificamente, que o trabalho de profissionais que lidam diretamente com pessoas tende a ser influenciado tanto por conhecimentos técnicos quanto pelo imaginário coletivo de tal grupo social a respeito de seu público-alvo ou de fenômenos a ele relacionados. Assumindo tal premissa, o presente estudo teve como objetivo compreender o imaginário coletivo de um grupo de profissionais de um CAPS acerca do paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica.

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo, do qual participaram 10 profissionais lotados em um CAPS de um município do interior de Minas Gerais. Tal serviço comunitário em particular foi privilegiado devido à facilidade de acesso por parte dos pesquisadores. Cada participante foi selecionado por, intencionalmente, ocupar um dos cargos existentes na instituição em questão, a saber: a) médico psiquiatra, b) psicólogo, c) farmacêutico, d) assistente social, e) enfermeiro, f) técnico de Enfermagem, g) auxiliar de serviços gerais, h) assistente administrativo, i) enfermeiro responsável técnico e j) coordenador. A maioria dos participantes era do sexo feminino, sendo que a faixa etária dos mesmos variou dos 27 aos 55 anos, e o tempo de experiência em CAPS oscilou de 15 anos a 1 ano e nove meses. Já o tempo no cargo atual variou de 9 anos a 1 ano e 9 meses.

A coleta de dados foi realizada mediante o emprego do Procedimento de Desenho-Estória com Tema (PDE-T), um recurso mediador de natureza lúdica concebido para facilitar a comunicação intersubjetiva, conforme Aiello-Vaisberg e Ambrosio (2013). Mais precisamente, o PDE-T possibilita a captação de determinantes afetivo-emocionais não-conscientes das manifestações humanas e, por essa razão, se consolidou como o instrumento de primeira escolha para a investigação do imaginário coletivo em sua acepção psicanalítica (Santos & Peres, 2020). Deve-se ainda esclarecer que, quando da utilização do PDE-T, o participante é solicitado a executar um desenho com um tema pré-definido pelo pesquisador, a elaborar uma estória sobre o desenho e a criar um título para a estória. Na sequência, o pesquisador procede com algumas perguntas para esclarecer determinados aspectos do desenho ou da estória, ou para estimular novas associações, permitindo, assim, ampla liberdade de expressão ao participante.

Tendo sido obtidas as autorizações institucionais necessárias, foi solicitada à coordenação do CAPS uma lista com o nome e o contato telefônico de todos os profissionais lotados no serviço. Os mesmos foram, então, divididos pelos pesquisadores em subgrupos em função dos cargos ocupados, exceto no que diz respeito aos cargos de enfermeiro responsável técnico e coordenador, que contavam com apenas um contratado para cada. Na sequência, um integrante de cada subgrupo foi selecionado aleatoriamente pelos pesquisadores e, por telefone, foi convidado a participar do presente estudo. Não houve nenhuma recusa. Desse modo, foi agendado o local, o dia e o horário de para a coleta de dados, de acordo com a disponibilidade dos participantes.

No primeiro momento da coleta de dados, os participantes foram solicitados a informar idade, tempo de experiência em CAPS e tempo no cargo atual. Feito isso, utilizou-se o PDE-T com a seguinte consigna: "desenhe um paciente com transtorno mental que esteja vivenciando uma situação de crise psiquiátrica". Os participantes, para tanto, receberam lápis e papel, além de que foram esclarecidos que não seria necessária qualquer habilidade artística para a realização da tarefa. Depois requisitou-se a elaboração, por escrito, de uma estória sobre o desenho e de um título para a estória. Por fim, foram realizadas perguntas acerca do desenho ou da estória conforme considerado necessário em face das características do material, bem como foi oferecida aos participantes a oportunidade de acrescentar comentários, impressões ou informações.

Como observaram Rosa et al. (2019), o PDE-T pode ser empregado coletivamente ou individualmente. Acompanhando as pesquisas de Simões et al. (2014), Tachibana et al. (2014) e Miranda, Serafini e Baracat (2012), no presente estudo, optou-se pela utilização individual, devido à sua maior viabilidade e praticidade. Faz-se necessário também informar que a coleta de dados foi gravada em áudio - a fim de garantir o registro de todas as verbalizações dos participantes, apresentadas antes, durante e após a produção de seus respectivos desenhos e estórias - e levou em consideração os cuidados éticos pertinentes. A propósito, o presente estudo foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa.

O corpus foi constituído pela transcrição das verbalizações dos participantes e, secundariamente, por seus desenhos. Em consonância com a estratégia de análise de dados que, conforme Rosa et al. (2019), destaca-se como a mais amplamente utilizada para a exploração do imaginário coletivo em sua acepção psicanalítica, tal corpus foi submetido a leituras flutuantes, isentas de pré-julgamentos. Dois pesquisadores se encarregaram, independentemente, dessa operação e, na sequência, formularam interpretações conjuntas visando à demarcação de campos de sentido que sustentam o imaginário coletivo dos participantes acerca do paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica, de acordo com o objetivo do presente estudo. Cumpre assinalar que campos de sentido equivalem, basicamente, a posições existenciais ocupadas não-conscientemente (Aiello-Vaisberg & Machado, 2008). Encerrando a análise de dados, as interpretações conjuntas foram debatidas e refinadas em uma reunião do grupo de pesquisa dos pesquisadores, a fim de reforçar a validade externa dos resultados.

 

Resultados

A análise de dados viabilizou a captação de dois campos de sentido, assim intitulados: Perturbado e Perturbador. O primeiro campo de sentido se assenta na presença marcante de uma imagem negativa acerca do paciente em crise psiquiátrica no imaginário coletivo dos participantes. Ocorre que os mesmos, sem exceção, conceberam a crise psiquiátrica como um acontecimento essencialmente psicopatológico. Vejamos caso a caso como isso se deu, sinalizando com aspas as palavras utilizadas pelos próprios participantes. A estória elaborada pelo Participante 1 diz respeito a uma paciente que, devido a conflitos familiares, se encontrava "agitada", "ansiosa", "agressiva" e "delirante". De forma semelhante, o Participante 2 criou uma estória - verídica, como enfatizado por ele - sobre um paciente "agitado", "nervoso", "irritado", que demonstrava "ansiedade ao extremo" e ameaçou matar a própria mãe.

Vivenciando sua primeira crise psiquiátrica, o protagonista da estória do Participante 3 apresentava "ideias confusas" e "sensações estranhas", bem como havia perdido o "controle dos seus sentidos". Tal estória foi "baseada em fatos reais", como explicitado por tal participante. Já o Participante 4 versou em sua estória sobre um paciente delirante que, acreditando ser um "MC famoso", "não conseguia pensar em mais nada: higiene pessoal, alimentação, estudos, etc". O desenho do participante em questão, inclusive, é constituído por diferentes objetos dispostos próximos uns dos outros, sem ordem ou sentido aparente. E o personagem principal da estória criada pelo Participante 5 é uma mulher que se caracterizava por "descontrole emocional" e cujo "fluxo de pensamentos confuso e desorganizado" somente era expresso "de forma violenta".

O Participante 6 criou uma estória sobre uma paciente que demonstrava "confusão mental", "delírios bizarros" e "alucinações", a qual "parou de cuidar da higiene e alimentar-se adequadamente" e se sentia "perseguida". A estória do Participante 7 se distingue parcialmente das demais na medida em que se refere a um paciente que, em função do tratamento medicamentoso, costumava ser "calmo", mas agiu de maneira "violenta" durante uma crise psiquiátrica. O Participante 8 abordou em sua estória uma paciente que, ao dar entrada em um CAPS devido a uma crise psiquiátrica, "quebra algumas coisas e se autoagride puxando seus cabelos", ou seja, demonstrou tanto heteroagressividade quanto autoagressividade. Ademais, a paciente em questão estava "chorosa" e, no desenho, se encontrava rodeada por objetos dispostos desorganizadamente.

Já no desenho do Participante 9 igualmente há uma série de objetos - roupas e frutas, em especial - aparentemente ordenados. Contudo, a paciente representada se mostra "hostil", "arrogante", "confusa", "compulsiva" e "desorganizada com relação à comida e vestuário". Por fim, o Participante 10 criou uma estória sobre mais um paciente "choroso", que falava "muito alto" e sentia "raiva. Nota-se, portanto, que os participantes como um todo conferiram ênfase à negatividade da crise psiquiátrica em suas produções. Por essa razão, o paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica foi representado pelos mesmos, basicamente, como alguém perturbado, ou mais precisamente, como uma pessoa que atravessa um estado de perturbação no qual há apenas agudização dos sintomas e, como consequência, intensificação do sofrimento psíquico por ele experimentado.

Sendo assim, em parte das estórias os pacientes representados se sentem "assustados", "amedrontados", "desconfortáveis" e "inseguros". Em contraste, é interessante salientar que, em algumas estórias, depreende-se culpabilização do paciente com transtorno mental pela ocorrência da crise psiquiátrica. Afinal, o personagem principal da estória do Participante 6 "não faz uso da medicação adequadamente", embora tenha passado anteriormente por "diversas hospitalizações". E a paciente em torno da qual gira a estória de autoria do Participante 9 "resolveu suspender o uso da medicação que a ajudava na estabilização psíquica". Ou seja, a crise psiquiátrica teria como origem resistências quanto ao tratamento medicamentoso. Ademais, o Participante 5, em sua estória, também culpabilizou a paciente, mas de modo distinto. Isso porque a protagonista foi descrita como alguém que, de acordo com a perspectiva dos familiares citados, "não dá conta de lidar com as emoções".

Já o segundo campo de sentido captado se organiza a partir da constatação de que, no imaginário coletivo da maioria dos participantes, o paciente com transtorno mental que vivencia uma crise psiquiátrica é representado como alguém que causa perturbação, tanto à sua própria família e à vizinhança quanto aos profissionais de saúde. Igualmente aqui serão explicitados, caso a caso, os achados que conferem respaldo à tal constatação. Na estória elaborada pelo Participante 1, a família da paciente "estava muito estressada com ela, porque ela estava sem dormir à noite, agitada, agredindo verbalmente as pessoas". E, no decorrer da trama, a psicóloga e a assistente social que a acolheram em um CAPS também ficaram "cansadas", porque a mesma "falava muito", mas elas já estariam "habituadas" a isso, o que teria "tranquilizado" a paciente.

O personagem principal da estória do Participante 2, por sua vez, fez com que os profissionais do CAPS em que foi atendido ficassem "preocupados", visto que os agrediu verbalmente. O Participante 4 contemplou em sua estória um paciente cujos familiares "não tinham paciência com ele" e, assim, compreendiam que o hospital psiquiátrico seria o serviço de saúde mais adequado quando da ocorrência de uma crise psiquiátrica, ao menos para proporcionar-lhes "uma sensação de alívio". Isso porque, no primeiro momento da estória, o paciente teria sido recebido em um CAPS, onde "não melhorou, mesmo tendo ficado no intensivo". Todavia, muitos profissionais do hospital psiquiátrico pensavam que o paciente estava "fazendo manha", ainda conforme a estória, bem como os profissionais do CAPS se sentiam "incomodados" com ele.

A paciente representada na estória de autoria do Participante 5 é levada a um CAPS pelos vizinhos, por "pena", porque "fica na vizinhança", "sem ter um trabalho", e sua própria família não lhe proporciona qualquer "suporte". Já o Participante 6 criou uma estória protagonizada por uma paciente que "já dá trabalho há um tempo" e, por isso, ao vivenciar uma crise psiquiátrica, é levada a um Pronto-Socorro por sua filha, que se encontrava "cansada". E o médico que a atendeu de início ficou "um pouco com medo", porque não era "especialista" em saúde mental. O mesmo sentimento foi despertado pelo paciente representado na estória do Participante 7 em alguns profissionais do CAPS que, segundo a trama, o acolheram, especificamente em regime de hospitalidade, pois a família "não ajudava".

Na estória elaborada pelo Participante 8, os familiares da paciente representada se encontravam "meio adoecidos com situação" e não estavam "conseguindo controlar a situação em casa", razão pela qual a conduziram a um CAPS. Os profissionais do CAPS a encaminharam para um serviço hospitalar, pois a paciente "não aceitou as orientações verbais" e "não aceitou a medicação", mas, ainda assim, foi medicada. Tal conduta, entretanto, despertou "frustração" na equipe de saúde como um todo e fez com que a paciente se sentisse "agredida" e "desrespeitada", em parte por não ter sido acompanhada por seus familiares até o serviço hospitalar. O Participante 9 criou uma estória em que a desorganização da paciente desorganizava também seu filho. Como consequência, embora "cuidadoso", o mesmo a leva a um CAPS e solicita à "equipe multiprofissional" o seguinte: "deixa ela aqui uns dias para ela melhorar". É interessante ressaltar que, ainda nesta estória, o sentimento experimentado pela "equipe multiprofissional" frente à paciente é a "antipatia".

Por fim, a estória do Participante 10 diz respeito a um paciente cuja família é "negligente com relação ao que ele está sentindo" e, ao que tudo indica, ele se dirige sozinho a um CAPS. Lá, os profissionais o acolhem e ele fica mais "tranquilo", com a sensação de ter encontrado "um porto seguro". Porém, não é isso que a expressão facial do paciente no desenho sugere. E, diferenciando-se das demais, nesta estória os profissionais do CAPS "se sentiram bem diante da situação", "com o dever cumprido". Conclui-se, assim, que apenas o Participante 3 não fez menção a qualquer forma de perturbação criada pelo paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica, embora o estado de perturbação do próprio tenha sido evidenciado, inclusive graficamente. Nas demais estórias, os protagonistas são representados como alguém demandante em excesso e que, justamente por essa razão, exaure a própria família.

Conforme o imaginário coletivo dos participantes, portanto, os CAPS seriam acionados, principalmente, devido à inadequação da família no tocante ao acolhimento da crise psiquiátrica, pois tal situação exigiria a mobilização de certos "recursos" que a família nunca possuiu ou perdeu ao longo do tempo. Ou seja, os CAPS constituiriam uma espécie de "válvula de escape", tanto para os familiares quanto para o próprio paciente com transtorno mental, já que suas necessidades não seriam atendidas minimamente em casa. Todavia, ainda na perspectiva dos participantes, os profissionais dos CAPS eventualmente também se sentiriam exauridos. Nessas situações, a melhor opção - para os mesmos, mas não necessariamente para o paciente - seria o encaminhamento para um serviço hospitalar. O Participante 4, inclusive, afirmou acreditar que, com relativa frequência, a equipe de saúde recorreria a tal expediente pensando da seguinte forma: "Ah, nós vamos ficar livres do problema".

Logo, encaminhar não seria "uma questão de cuidado", ainda conforme tal participante. Consolidando este entendimento, é interessante notar que palavras bastante semelhantes foram utilizadas pelos participantes para definir os sentimentos dos familiares e dos profissionais lotados em CAPS em face de um paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica, o que denota certo espelhamento. Tem-se a impressão, assim, de que, para os participantes, os profissionais estariam autorizados, como a família, a não "suportar" a crise psiquiátrica. Paradoxalmente, deveriam proporcionar ao paciente uma "escuta isenta de críticas e julgamentos", "fazer algum tipo de vínculo", "acolher" e auxiliá-lo a "tomar as rédeas da própria vida", para os Participantes 1, 2, 3 e 5, respectivamente. Ou então "estabilizar" o paciente e "normalizar a crise", para os Participantes 4 e 7.

 

Discussão

O primeiro campo de sentido indica que o imaginário coletivo dos participantes do presente estudo acerca da crise psiquiátrica é atravessado por uma imagem negativa, decorrente da qualificação de tal fenômeno como um evento exclusivamente psicopatológico, fato esse que pode ser considerado contrastante em face dos princípios da RPB. Ocorre que, conforme Martins (2012), quando a crise psiquiátrica é concebida de tal forma tende a haver uma redução da tolerância social em relação ao paciente com transtorno mental. Contudo, a autora verificou que, entre profissionais de um CAPS do interior de Minas Gerais, comumente a presença de comportamentos "anormais" é tomada como o critério básico para a demarcação de uma crise psiquiátrica.

A caracterização de pacientes psicóticos assistidos em um CAPS a partir de seus comportamentos "anormais" igualmente foi notada por Araújo et al. (2017). Os autores observaram que "conflitos não-resolvidos" e "mudanças comportamentais", como agitação e agressividade, afiguravam-se como algumas das "situações emocionais" típicas das crises psiquiátricas descritas em prontuários. Também consultando prontuários e realizando entrevistas com profissionais de saúde, Ferrari (2010) reportou resultados similares, pois apurou que, muitas vezes, se estabelece uma equivalência entre a crise psiquiátrica e as alterações do comportamento que, sendo supostamente perceptíveis ao primeiro contato com o paciente, tornariam a escuta uma modalidade de cuidado dispensável.

É oportuno recapitular que, no presente estudo, alguns participantes sinalizaram crer que o tratamento medicamentoso seria capaz de prevenir crises psiquiátricas. Em uma pesquisa que não tematiza especificamente a crise psiquiátrica, Severo e Dimenstein (2009) chegaram a resultados análogos. Isso porque as autoras notaram que muitos pacientes com transtorno mental consideram os psicotrópicos recursos absolutamente essenciais para o reestabelecimento da própria "normalidade". Para as autoras, tal entendimento reflete um dos diversos ditames do saber médico no campo da saúde mental. E essa linha de raciocínio auxilia a elucidar, ao menos em parte, as razões pelas quais as estórias elaboradas por alguns participantes do presente estudo denotam uma culpabilização do próprio paciente pela crise psiquiátrica por ele vivenciada.

Em contrapartida, parece razoável propor que, quando resiste ao tratamento medicamentoso, o paciente problematiza a supremacia do saber médico, a qual, mesmo após a RPB, se mantém viva por meio de práticas pautadas na lógica manicomial que visam, basicamente, o silenciamento dos pacientes. E, a rigor, enquadrar o paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica como alguém perturbado, a exemplo do que fizeram os participantes do presente estudo, incorre, ainda que indiretamente, em perpetuar a lógica manicomial, pois justifica o emprego da medicação na atenção à crise psiquiátrica com a única finalidade de encerrar a experiência de suposta perturbação que a caracterizaria. E uma argumentação semelhante poderia ser aplicada à valorização, entre alguns participantes do presente estudo, dos serviços hospitalares como o "lugar" da crise psiquiátrica, achado este que será discutido com mais detalhes adiante.

Cabe aqui salientar que, talvez por terem qualificado o paciente em crise psiquiátrica como perturbado, os participantes do presente estudo não apresentaram, em suas estórias, nenhuma alusão ao PTS. É possível considerar o achado em questão um indício adicional da presença do paradigma psiquiátrico tradicional no imaginário coletivo dos participantes, já que, conforme mencionado anteriormente, o PTS deve organizar as iniciativas a serem colocadas em prática com o objetivo de favorecer a reinserção social do paciente e o resgate de sua cidadania. Para além disso, o PTS deve ser elaborado em parceria entre profissionais dos CAPS, o paciente e seus familiares, a fim de evitar eventuais posturas autoritárias e excludentes (Mângia & Barros, 2009). E o referido indício não foi reportado em pesquisas prévias, possivelmente por se mostrar apenas de modo sutil, em negativo, para utilizar uma metáfora fotográfica.

Já o fato de o segundo campo de sentido sinalizar que, para os participantes, a crise psiquiátrica causa perturbação, a princípio, à família do paciente, é consistente com os resultados de duas pesquisas prévias. Ocorre que Jardim e Dimenstein (2007) destacaram que geralmente são os familiares que conduzem a um serviço de saúde o paciente com transtorno mental que vivencia tal experiência, sendo que o fazem quando notam prejuízos em suas rotinas e com o propósito de "resolver o problema". Já Ferrari (2010) apontou que a identificação, por parte da família, de supostos riscos - para o próprio paciente ou para outras pessoas - seria o principal motivo do acionamento de um serviço hospitalar durante uma crise psiquiátrica, de acordo com profissionais de saúde que nele trabalham.

No imaginário coletivo de alguns participantes, a internação do paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica parece representar uma "solução": em primeiro lugar para sua família, conforme as estórias de autoria dos Participante 2 e 6, por exemplo, e/ou, em segundo lugar, para a equipe de saúde de serviços comunitários, em consonância com as estórias elaboradas pelos Participantes 4 e 8. Apesar de abordarem uma conjuntura distinta, Bonfada, Guimarães, Miranda e Brito (2013) reportaram achados semelhantes, pois verificaram que, para muitos profissionais de saúde do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), a internação representaria uma demanda social e familiar diante de uma crise psiquiátrica. Logo, os autores salientaram que preconceitos referentes aos transtornos mentais devem ser desconstruídos para que a assistência em saúde mental atenda, prioritariamente, às necessidades dos pacientes.

Como mencionado, os serviços hospitalares, para alguns participantes do presente estudo, se afigurariam como o principal "lugar" da crise psiquiátrica, pois teriam como função básica implementar o tratamento medicamentoso. Este achado pode ser considerado mais um indício de que a perspectiva asilar ainda exerça influência sobre as crenças dos mesmos, sendo que diversos documentos legais, há anos, têm estabelecido que a assistência em saúde mental no âmbito da saúde pública no país deve ser pautada pelo paradigma do cuidado psicossocial (Vecchia & Martins, 2009). Portanto, vale retomar aqui o alerta de Nicácio e Campos (2004), de acordo com o qual o manejo da crise psiquiátrica, dependendo da forma como - e onde - é operacionalizado, pode levar ao resgate das práticas típicas do paradigma psiquiátrico tradicional.

Cabe relembrar que, para Basaglia (2005), ao dar entrada em um serviço hospitalar, o paciente com transtorno mental geralmente tem a sua individualidade suprimida, pois se vê obrigado a se submeter passivamente às regras da instituição. Seus horários de alimentação, higiene e sono, por exemplo, passarão a ser pré-estabelecidos sem sua participação nesse processo, e suas roupas serão substituídas pelo traje hospitalar, que não possui possibilita identificação pessoal. Mas o autor destacou que serviços comunitários também podem promover segregação quando a tradição cultural não admite a construção de um novo lugar social para o "louco". Justamente por isso a adequação da assistência em saúde mental ao paradigma do cuidado psicossocial não se reduz à reforma dos serviços de saúde.

Pesquisas consagradas à exploração do imaginário coletivo, embora não contemplem especificamente a temática da crise psiquiátrica, indicam que condutas preconceituosas, excludentes e estereotipadas são relativamente comuns em face do sofrimento psíquico em um sentido mais amplo. Afinal, Corbett et al. (2014) verificaram que muitos estudantes de Psicologia tendem a se ancorar em definições rígidas acerca dos papéis de gênero no tocante à abordagem de dificuldades sexuais e suas repercussões emocionais. Já Granato, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2011) identificaram que, para um grupo de enfermeiras, a experiência da maternidade jamais poderia ser vivenciada com sentimentos ambíguos, sendo que tal entendimento, para as autoras, inviabilizaria uma atitude empática frente a um caso de gravidez indesejada, por exemplo.

Retomando a legislação concernente à RPB, faz-se necessário mencionar que a Lei nº 10.216 (Brasil, 2001) admite a internação como uma prática aceitável, desde que não ocorra em instituições com características asilares e seja utilizada somente após o esgotamento de todos os recursos extra-hospitalares, com o intuito de beneficiar a saúde mental do paciente e sem perder de vista que a principal finalidade do tratamento é sua reinserção social. Esse conjunto de diretrizes, porém, não parece ser decisivo para a configuração do imaginário coletivo de diversos participantes do presente estudo, o que constitui um achado de grande relevância. O Participante 4 é emblemático neste aspecto, a julgar pelo fato de que, em sua estória, a hospitalização reflete uma desresponsabilização da equipe de saúde em relação ao paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica.

Cardoso e Galera (2011) defenderam que, sendo de curta duração e indicada com o devido critério, a internação psiquiátrica não inviabiliza a operacionalização dos serviços comunitários e da família como os principais provedores da assistência em saúde mental. Contudo, sinalizando um importante enraizamento do modelo hospitalocêntrico, alguns dos profissionais de um CAPS que participaram da pesquisa de Willrich et al. (2011) defenderam que a internação do paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica se justifica como medida de proteção frente ao medo decorrente da suposta periculosidade do mesmo. E o medo parece ser a causa da "preocupação" que sentiram os profissionais do CAPS na estória elaborada pelo Participante 2 diante da agressão verbal do paciente que a protagonizou.

É interessante mencionar que, nessa estória, o paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica é conduzido involuntariamente pelo Corpo de Bombeiros a um serviço hospitalar. E o mesmo se aplica à estória de autoria do Participante 8. Esses achados, em essência, vão ao encontro do que observaram Ferigato et al. (2007), pois, para as referidas autoras, muitas vezes a crise psiquiátrica desencadeia condutas coercitivas por parte dos profissionais de saúde. Além disso, Brito et al. (2015) e Willrich et al. (2014) verificaram que diversos profissionais de saúde compreendem ser necessário acionar a Polícia Militar nos casos em que o paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica se mostra agressivo.

Por outro lado, nas estórias elaboradas pelos Participante 1 e 7, o regime de hospitalidade no CAPS é apontado como uma opção para a estabilização do quadro clínico do paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica. Tal achado também é relevante e pode ser considerado positivo em face das diretrizes da RPB, pois a hospitalidade, conforme Campos (2015), destaca-se como uma conduta proveitosa para o manejo da crise psiquiátrica, já que é capaz de proporcionar atenção contínua e integral aos pacientes que demandam cuidado intensivo e se beneficiariam de um afastamento temporário do convívio familiar. Ressalta-se, ainda, que a permanência em hospitalidade deve ser realizada mediante a concordância do paciente e/ou de seus entes, sempre com o intuito de evitar a internação.

É preciso salientar que as estórias da maioria dos participantes têm um CAPS como cenário, ao menos inicial, e, com isso, pode-se inferir que esse tipo de serviço representa, no imaginário coletivo dos mesmos, um dos espaços em que pode ser dar a atenção à crise psiquiátrica. Em certo aspecto, este achado também pode ser considerado positivo, especificamente porque a Portaria nº 854 (Brasil, 2012) define o manejo da crise psiquiátrica como um dos procedimentos pertinentes aos serviços comunitários. Apesar disso, em parte das estórias, como já mencionado, os profissionais dos CAPS não conseguem atender adequadamente o paciente e, sobretudo em função da perturbação que seria por ele causada, optam pelo encaminhamento como forma de se "livrar do problema", reproduzindo a ação empreendida anteriormente pela família.

Tal movimento não foi descrito em pesquisas prévias. A exploração do imaginário coletivo dos participantes do presente estudo, contudo, permitiu fazê-lo, bem como esclarece alguns de seus possíveis determinantes, em especial ao sinalizar que profissionais que trabalham em CAPS, mais do que acolher o paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica, eventualmente procuram apenas minimizar a perturbação por ele causada. Com isso, abre-se caminho para práticas excludentes, que, à custa do silenciamento do paciente, promoveriam como principal "benefício" o restabelecimento da "normalidade" da rotina, na família e na instituição. Logo, cabe aqui relembrar que, conforme Amarante (2007), o cuidado psicossocial demanda espaços terapêuticos em que as experiências dos pacientes possam ser acolhidas, e não meramente recusadas.

Em suma, os resultados aqui veiculados colocam em relevo que, até mesmo em serviços comunitários, há riscos quanto a uma redução biológica da crise psiquiátrica que, sendo efetivada, levaria tal fenômeno a ser enfrentado a partir da utilização de práticas restritas à classe médica, organizadas especialmente em torno dos psicofármacos e empreendidas preferencialmente em serviços hospitalares. Sendo assim, identificam-se no imaginário coletivo da maioria dos participantes certos elementos que não se alinham aos princípios da RPB e que podem desencadear ações voltadas ao silenciamento do paciente que vivencia tal experiência. Para além disso, o presente estudo avança em relação à literatura na medida em que, a partir do emprego do conceito de imaginário coletivo em sua acepção psicanalítica, lança luz sobre alguns dos fatores afetivo-emocionais não-conscientes em que esses resquícios da lógica manicomial podem encontrar apoio.

 

Considerações finais

Parece possível afirmar que o presente estudo atingiu o objetivo proposto, na medida em que fornece subsídios para a compreensão do imaginário coletivo de um grupo de profissionais de um CAPS acerca do paciente com transtorno mental em crise psiquiátrica. Afinal, o primeiro campo de sentido captado se organizou em torno da crença de que a crise psiquiátrica se afigura como um acontecimento psicopatológico por excelência, apreendido apenas a partir de sua vertente comportamental-sintomática. Logo, o paciente com transtorno mental que vivencia tal experiência foi definido pelos participantes, basicamente, como uma pessoa que atravessa um estado de perturbação. O segundo campo de sentido, por seu turno, ilustrou que, na perspectiva dos participantes, o paciente com transtorno mental, sobretudo, mas não apenas durante uma crise psiquiátrica, incomoda e exaure tanto a família quanto os profissionais que trabalham em serviços comunitários. Por essa razão, justificar-se-ia seu encaminhamento para serviços hospitalares.

Em contrapartida, o presente estudo possui limitações, principalmente porque todos os participantes se encontravam lotados em um mesmo CAPS. A eventual inclusão de participantes vinculados a outros serviços de saúde poderia, em tese, ter gerado resultados mais matizados. Porém, isso não foi possível, em função de restrições decorrentes de mudanças administrativas no setor da saúde do município. De qualquer forma, os resultados são passíveis de generalizações naturalísticas, próprias de pesquisas qualitativas. Ademais, as estratégias de coleta e análise de dados adotadas do presente estudo se mostraram profícuas e podem ser aproveitadas em novas pesquisas empíricas voltadas à exploração de dimensões ideológicas da assistência em saúde mental. Seria oportuno se pesquisadores interessados especificamente em elucidar outras nuances da atenção à crise psiquiátrica também incluíssem familiares dos pacientes entre os participantes. Afinal, os mesmos desempenham um papel de grande relevância no tocante à identificação e ao acolhimento de tal fenômeno.

 

Financiamento

Este trabalho é fruto de pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

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Endereço para correspondência:
Rodrigo Sanches Peres
rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

Recebido em: 02/05/2020
Aceito em: 26/05/2020

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