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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.2 no.2 São Leopoldo Dec. 2009

 

ARTIGOS

 

Estudo introdutório acerca do fetichismo

 

Introductory study about the fetishism

 

 

Maria Clarilene Medeiros Salvador Roberto; Marinalda Ferreira Augusto; Olcemir Bernardo da Rocha; Ivana Suely Paiva Bezerra de Mello

Centro Universitário de João Pessoa. Campus do Universitário, BR 230, km 22, Água Fria, Caixa Postal 318, 58053-000, João Pessoa, PB, Brasil. b_mello@terra.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo faz uma breve trajetória bibliográfica acerca da formação da estrutura perversa e, especificamente, como se configura em fetichismo. O termo, enquanto herança histórica, tem suas origens nos Três ensaios da teoria sexual (Freud, 1969a [1905]) freudiana. Neste texto, a sexualidade infantil tem caráter perverso, polimorfo, e o reflexo desta sexualidade se expressa em uma sexualidade adulta. Esta, por sua vez, deve percorrer o Complexo de Édipo, constituindo a base na qual se cristaliza, por intermédio dos resultados dessa elaboração, a origem da conduta sexual normal e perversa, que fornece todo o conteúdo para a experienciação do choque infantil na descoberta da inexistência fálica materna. Tal fato possibilita à criança, por meio do recalque, a resolução da identificação enquanto elaboração neurótica da castração. É com a recusa da castração que encontramos o núcleo das escolhas fetichistas como forma de defesa: a negação da falta do pênis na mulher-mãe, elegendo substitutos contra a angústia. O fetichismo resulta na manutenção dos vestígios mnêmicos do falo materno, ou da sua ilusão existencial. Por negação da castração, o menino elegerá um substituto como mecanismo de defesa e vitória, não contra qualquer pênis, mas, para o falo materno, que será o fetiche. O não interdito da figura paterna promoverá o desejo de transgredir a lei do pai, para impor a sua própria lei sob a anuência da mãe, que o coloca na posição fálica. Se esta relação assim se configura, pode-se dizer que o Édipo não teve efeito de metáfora paterna e funcionou parcialmente. Todavia, não é possível afirmar que a recusa à castração possa ser entendida como uma característica psicótica, pois o perverso não apresenta alteração da realidade, e certo grau de fetichismo está presente como uma conduta universal humana.

Palavras-chave: complexo de Édipo, castração, negação.


ABSTRACT

This article aims to make a brief bibliographical review concerning the perverse structure's formation, specifically as occurs to the fetishism. This term as a historical heritage has its origins in the Three essays of the Freudian sexual theory (Freud, 1969a [1905]). In this paper the infant sexuality is presented as a polymorphic perverse character and the reflection of this will be expressed in an adult sexuality. This, in turn, that will have to go through the Oedipus Complex, having constituted the base that will be crystallized through the results of this development, the origin of the normal and perverse sexual behavior since it will supply all the content for the child experiencing the shocking discovery of the phallus absence in the mother. This fact enables the child by means of repression, the resolution of the identification as a neurotic elaboration of castration. It is with the refusal of castration that we find the core of the fetishist's choices as defense form, the denial of the lack of a penis in the female parent, electing substitutes for the anxiety. Fetishism results in the maintenance of mnemonic traces of the maternal phallus or of its existential illusion. For the denial of castration, the fetishist will elect as a defense mechanism and victory a substitute, not for any penis, but for maternal phallus, which will be the fetish. Failure to interdict the paternal figure will promote the desire to transgress the father law imposing its own law under the mother's consent, who places it in the phallic position. We conclude that the Oedipus had no effect of paternal metaphor, and it worked partially. However, we cannot affirm that the refusal of the castration can be understood as a psychotic characteristic, because the perverse will not change reality, and also a certain degree of fetishism is present as a universal human behavior.

Key words: Oedipus complex, castration, negation.


 

 

Introdução

O presente artigo tem por objetivo fazer um levantamento bibliográfico sobre algumas questões importantes acerca do tema fetichismo. Não há a pretensão de defender uma perspectiva teórica, mas, em linhas gerais, apresentar a origem do termo e analisar o desenvolvimento do transtorno.

Ferreira (in Ferraz, 2006) afirma que a palavra fetiche vem da palavra feitiço, do português, a qual surgiu no século XV e serviu para descrever figuras sagradas e objetos investidos de alguns poderes espirituais. Em meados do século XVIII, era descrita no campo da etimologia com o significado de crenças religiosas.

Nesse sentido, Pires et al. (2006) e Ferraz (2006) acreditam que o emprego do termo fetiche não é privilégio da psicanálise. Tem origem datada em 1444, quando utilizado no sentido de retornar ou reverter, ganhando cedo o atributo de deplorável, algo desprezível. No século XIX, a sexologia fez o emprego desse vocábulo como desvio sexual. A psiquiatria francesa sacramentou seu uso enquanto sinônimo de anomalia ou aberrações, prevalecendo, a partir do século XX, como termo ilustrativo de certos comportamentos sexuais. Em Freud (1969a [1905]), encontramos a palavra fetichismo, concebida como perversão, pela primeira vez, em seu artigo Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

 

Um conceito a ser definido

Segundo Santos (2001), o conceito de perversão, etimologicamente falando, resulta da fusão de: per + vertério (por às avessas, desviar), designando o hábito de o sujeito perturbar a ordem do estado natural das coisas. De acordo com este significado, o conceito de perversão foi entendido por alguns autores, de abordagem psicanalítica ou não, com uma abrangência que inclui outros desvios que não unicamente os sexuais.

Para problematizar o fetichismo e defini-lo com maior precisão, é necessário remontar à concepção elaborada por Freud (1969a [1905]) sobre perversão. Segundo Rudge (2006), no primeiro momento de construção teórica freudiana, a perversão designava a qualidade da sexualidade infantil, na qual prevalecem as pulsões anárquicas e desorganizadas. A atividade sexual atualmente praticada pelas crianças é caracterizada como perversa-polimorfa. Devido às diversas formas de satisfação, a atividade sexual infantil foi universalizada e tomada como solo em que se constitui a própria sexualidade adulta, através do recalque de certos componentes. Apoiado nesse pressuposto, Freud (1969a [1905]) inicialmente localizou a etiologia da perversão sexual no adulto, com uma fixação em uma pulsão parcial especialmente intensa que, por esse motivo, teria escapado do recalque. Daí o célebre axioma de que "a perversão é o negativo da neurose".

Ferraz (2006) afirma que o tema da perversão, na obra de Freud (1969a [1905]), passou por sucessivas e significativas alterações. Chasseguet-Smirgel (1988), entretanto, distinguiu três momentos essenciais dessa teorização: o primeiro baseia-se no axioma da neurose enquanto negativo da perversão; o segundo relaciona-se com a teoria do Complexo de Édipo (Freud, 1969b [1924]), núcleo das neuroses, mas também das perversões; por fim, o terceiro, formulado principalmente no artigo Fetichismo, (Freud, 1969c [1927]), define a recusa da castração como mecanismo essencial da perversão, a noção de clivagem do ego como um processo de defesa e a construção do fetiche como substituto do pênis materno.

 

O desenvolvimento do Complexo de Édipo

Antes de nos determos mais especificamente acerca do fetichismo, é necessário, para dar uma visão mais clara, revisarmos os postulados de Lacan (1988) a respeito do Complexo de Édipo, conforme ressaltam Pires et al. (2006). O elemento articulador desse complexo é o falo, em sua função imaginária. No desenvolvimento libidinal, uma das teorias infantis é a de que todos os seres têm pênis, a premissa universal do falo, a crença no genital masculino. O falo, enquanto articulador do Édipo, de acordo com a teoria Lacaniana, é vivido em três tempos lógicos.

No primeiro tempo encontra-se a dialética do desejo: a criança vivencia com a mãe seu objeto primordial, a primeira experiência de relação com o outro; ela se identifica com o que supõe ser o objeto de desejo da mãe susceptível de preencher a falta do outro, o falo; para agradar a mãe, precisa ser o falo, relação imaginária que condensa a posse de uma unidade e de uma potência do ser. A própria dimensão da identificação fálica alude à mediação da castração, colocando a criança numa oscilação dialética entre ser ou não ser o falo, anunciando o segundo tempo do Complexo de Édipo.

No segundo tempo, dialética do ser (inauguração da simbolização), a criança é introduzida no registro da castração pela intrusão do pai, que priva a mãe do objeto do seu desejo, o objeto fálico. Além disso, essa intrusão paterna é vivida sob o modo da interdição e da frustração. Na medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição paterna, o círculo não se fecha em torno da criança: ela não é pura e simplesmente um objeto do desejo da mãe. A mãe, ao reconhecer a lei do pai, leva a criança a um deslocamento do objeto fálico: o pai é suposto ter ou não ter. O pai é assim elevado à dignidade de pai simbólico. A evolução da criança pode eventualmente fixar-se em torno da interrogação de ser ou não ser o falo. Lacan (1988) situa, assim, na suspensão dessa questão, um ponto de ancoragem favorável às identificações perversas. Uma ambiguidade sustentada nesse nível mobilizará a criança para uma estratégia defensiva de evitar a castração.

No terceiro tempo, a dialética do ter (declínio do Complexo de Édipo), a criança deixa a problemática do ser para aceitar negociar por conta própria a problemática do ter. Nessa etapa, o pai tem o falo, ele pode dar à mãe o que ela deseja. A dialética do ter convoca o jogo das identificações mobilizadas pelo jogo fálico: o menino renuncia ser o falo materno, engaja-se na dialética do ter, identificando-se com o pai, fato que, supostamente, acarreta no declíniodo Complexo de Édipo. O menino subtraise da posição de objeto de desejo da mãe e depara-se com a dialética do ter sob a forma do não ter. Assim, ele encontra a identificação possível no pai. Segundo Lima (2006) e Ferraz (2006), a reposição do falo em seu devido lugar é estruturante para a criança, seja qual for seu sexo. O pai, supostamente possuidor do falo, tem preferência junto à mãe, atestando a passagem do registro do ser ao ter, prova manifesta do funcionamento da metáfora paterna.

Lacan (1995), Lima (2006) e Ferraz (2006) enfatizam que as estruturas em psicanálise são, dessa forma, determinadas pelo sujeito no seu posicionamento frente à castração: Verwerfung, foraclusão1 é quando o sujeito não se dá conta da castração, da diferença dos sexos, não há admissão da lei do pai, e a consequência é uma estrutura psicótica. Verdrangung, recalcamento2, indica que o sujeito, reconhecendo a diferença dos sexos, instaura a falta como intrínseca ao ser humano e aceita a lei do pai. O resultado é a estrutura neurótica. Verleugnung, recusa3 é o mecanismo que sustenta a estrutura perversa, na qual o sujeito sabe mas não quer saber, recusa o reconhecimento da falta do pênis na mulher-mãe, podendo, em alguns casos, eleger um objeto em seu lugar, o fetiche, e substitui, com isso, a falta do pênis. Assim, ao mesmo tempo em que esconde, revela essa falta. O fetiche é garantia contra a angústia, não só pode ser representado por um chicote como também por um bastão de comando, constituindo-se em perversão social, a qual será abordada mais adiante (Roudinesco e Plon, 1998).

 

A estrutura do sujeito frente à castração

Ao fazer uso da recusa como o mecanismo básico de sua estrutura, fecha-se para o perverso a entrada definitiva na castração simbólica, bem como o funcionamento do Nome do Pai4. A recusa incide sobre a castração da mãe e, consequentemente, seu desejo pelo pai. Dessa forma, a diferença dos sexos, mesmo reconhecida, é recusada (Lacan, 1988 [1956]).

O perverso, ao ter seu jogo interditado pela figura do pai, reage com o desafio e a transgressão, evidencia traços característicos da perversão; é a castração representada por essa interdição paterna que é desafiada e, se possível, transgredida pelo perverso. No entanto, é relevante apontar que, para transgredir, é necessário conhecer. Isso permite dizer que, nesse caso, o Édipo ficou sem efeito, e a metáfora paterna funcionou parcialmente (Kernberg, 1995).

No desafio à lei do pai e na tentativa de impor sua própria lei, o olhar da mãe apresenta-se como um cúmplice necessário, um olhar seduzido e sedutor que mantém a criança na posição fálica. A mãe é, portanto, a espectadora da criança no momento histórico e decisivo da descoberta sobre a ausência do pênis na mãe. Seu olhar se deixa seduzir pelos encantos e dons da criança, fingindo ignorar o que se passa ao nível da sexualidade de seu filho (Roudinesco e Plon, 1998).

 

O fetiche como defesa

O fetiche vai servir com proteção contra o horror da castração que permanece viva no perverso devido a não superação desta realidade como resultado de sua percepção da realidade do corpo feminino. Ao mesmo tempo, o fetiche sustenta o sujeito no registro da crença, da ilusão: a crença da realidade do falo materno e a crença da realidade da castração como solução para a diferença anatômica entre os sexos.

O fetiche significa, portanto, o triunfo sobre a ameaça da castração que permanece na vida sexual do fetichista, cumprindo um papel de protetor contra ela. Torna-se condição imprescindível ao gozo e recebe a carga de valorização antes orientada ao genital. Daí o alto grau da idealização de que é objeto (Ferraz, 2006, p. 35).

A teoria Freudiana chama a atenção ainda para o que ocorre na origem do fetiche, em que o representante psíquico da pulsão divide-se em duas partes: uma que é recalcada, e a outra, idealizada. A questão do fetichismo revela algumas peculiaridades do mecanismo do recalque, indicando a necessidade de se examinar o tema mais detalhadamente.

Segundo Freud (1969a [1905], p. 154-155),

O objeto sexual normal é substituído por outro que conserva alguma relação com id mas é inteiramente inadequada para servidor ao objeto sexual normal [...] o que se coloca em lugar do objeto sexual é alguma parte do corpo (tal como o pé ou os cabelos) [...] ou algum objeto inanimado que tenha relação atribuível com a pessoa que ele substitui e, de preferência, com a sexualidade dessa pessoa (por ex.: uma peça de vestuário ou roupa íntima).

O que se argumenta é que possivelmente homem algum deixa de vivenciar o medo produzido pela castração, diante da visão de um órgão genital feminino. Esse susto, carregado de estranheza e trauma, retém no menino uma última impressão vinculada a um determinado objeto: este será o fetiche. A partir daí exercerá, como única fonte de prazer sexual, um forte poder sobre o mesmo. Nesse sentido, pés, pernas, calcinha, pelos púbicos e elementos semelhantes são eleitos, inconscientemente, como um substituto do pênis materno, no qual a criança do sexo masculino um dia acreditou existir.

Conforme Fenichel (1997, p. 319):

A excitação sexual que experimentou ao ver o pé pode descrever-se da seguinte maneira: a ideia de que há seres humanos sem pênis e de que eu talvez seja um deles não me permite que eu me proporcione excitação sexual. Mas estou vendo, agora, um símbolo de pênis numa mulher, e isso me ajuda a eliminar meu medo, de forma que posso deixar excitar-me sexualmente. Com isso, só se excitaria ao apreciar o pé de uma mulher.

O pé representaria o pênis. Anéis e brincos, sapatos ou chinelos estariam no lugar do genital feminino. Cabelos significariam pelos pubianos. Quase todos os fetiches seriam símbolos de genitais femininos ou masculinos. O fetiche pode estar relacionado a elementos pré-genitais (fezes, urina) e, muitas vezes, o cheiro tem grande importância, como no caso do Homem dos Ratos. Existem fetichistas sádicos, que sentem prazer com castrações simbólicas, como corte de tranças. A patologia caracteriza-se apenas quando o anseio pelo fetiche toma o lugar do objetivo normal. Casos de transição ocorrem quando o objeto sexual deve preencher uma condição específica: cabelo de certa cor, cor da roupa, algum defeito físico (Fenichel, 1997).

Segundo Fenichel (1997), certo grau de fetichismo está presente no amor normal. É comum guardar-se algum objeto ou mecha de cabelo que pertenceu à pessoa amada, para não falar do onipresente fetiche mor de nosso tempo, que são as fotos na carteira.

Mantendo a mãe fálica, o menino poupa seu próprio pênis, ao mesmo tempo em que se feminiliza, identificando-se com ela. Um caso clínico apresentado por Freud, em 1927, ilustra bem essa dinâmica. No caso descrito, o fetiche do homem era um suporte atlético, que também podia ser usado como calção de banho; o objeto tinha, por função, dissimular o pênis, eliminando, desse modo, a diferença sexual. Segundo Valas (1990), ainda que Freud não tenha comentado, havia, nesse caso, uma espécie de travestismo, já que a castração era negada na mulher e, ao mesmo tempo, representada no homem.

Freud (1969c [1927]) deixa claro que a recusa não deve ser confundida com uma manobra psicótica, pois o perverso não tem uma percepção alterada da realidade. O saber sobre a vagina permanece mesmo naquele que o recusa, o que faz necessário a realização de "uma ação muito enérgica para manter este saber afastado" (Freud, 1969c [1927], p. 156).

A escola francesa, por intermédio das conferências Lacanianas, acredita na inexistência do fetichismo na mulher sob forma da construção de um objeto fetiche. Todavia, admite que a mulher possa tornar-se seu próprio fetiche, devido ao seu relacionamento com o filho. Mas, na condição de mãe, ela transforma-se tal como ídolo onipotente, sendo, assim, seu próprio fetiche.

Segundo Kehl (2008), o fetichista comporta-se ambivalente frente à castração do corpo feminino. Ele sabe, mas não quer saber, uma vez que o próprio objeto do fetiche é, ao mesmo tempo, amado e odiado, uma vez que ele confirma e nega a castração do sujeito.

Todavia, a problemática do fetiche recebeu várias críticas, dentre elas está a de Winnicot (2000 [1951]), que critica o uso do termo objetofetiche, por aquilo que ele mesmo denominou de objeto transicional. Dois argumentos são utilizados. O primeiro diz que o fenômeno tem um caráter saudável e universal. O segundo argumento refere-se à distinção entre delírio e ilusão. O fato de um objeto ser o substituto do falo materno não constitui um fetiche, já que o objeto transicional pode eventualmente vir a sê-lo. No fetichismo há o delírio do falo materno, enquanto a ilusão de um falo materno é universal e não patológica. Winnicot propõe um deslocamento da palavra objeto para a palavra ilusão.

Há, pois, um conceito de saúde e de doença sendo gerados, e a ilusão, com seu valor positivo, está agora do lado da saúde. Esta saúde se manifesta nos fenômenos de área intermediária, seja na sua instauração, quando do início do desenvolvimento, seja no brincar, sonhar, ou no mundo da cultura. Como enfatiza Winnicot (2000 [1951], p. 92):

Se um adulto reivindica de nós a aceitação objetiva de seus fenômenos subjetivos nós discernimos ou diagnosticamos loucura. Se, por outro lado, o adulto pode usufruir da área pessoal intermediária sem fazer reivindicações, então nós podemos reconhecer nossas próprias e correspondentes áreas intermediárias, e ficamos contentes de encontrar uma sobreposição, uma experiência comum entre membros de um grupo através da arte, da religião ou da filosofia.

De acordo com Winnicot (2000 [1951]), um verdadeiro objeto transicional é mais importante do que a mãe, ao contrário de um pseudo-objeto confortador. Se a ligação com a mãe, enquanto pessoa, é muito forte e precoce, isto pode impedir que outros objetos ganhem importância, e, com o desmame, o bebê não tem "para o que se voltar". Os traços que distinguem o fetichismo da conduta sensual correta são: a fixação, a dependência em relação ao objeto de origem (aquele a que vem substituir), e a exclusividade do objeto como condição para a satisfação. Do ponto de vista descritivo, o chamado objeto transicional tem um caráter fetichista. Todavia, para Winnicot (2000 [1951]), ele é compreendido como um aspecto fundamental na experiência da ilusão. A ilusão de que um objeto pode ser obra criativa de quem o usa e, ao mesmo tempo, algo oferecido por alguém suficientemente bom não equivale em absoluto à necessidade defensiva de negação de algum aspecto da realidade. É na psicopatologia dos objetos transicionais que observamos como, na origem da perversão, a função do objeto modifica-se, de meio de comunicação para instrumento de negação da separação. Assim, aquilo que, para Freud (1969c [1927]), é patológico no fetichismo, é justamente a propriedade que permite o desabrochar da vida emocional humana; é apenas fetichizando a própria mãe que podemos descobrir e criar o mundo.

De um modo geral, diz-se que o fetichismo é a tendência erótica para coisas inanimadas que, direta ou indiretamente, estão em contato como o corpo humano, ou para determinada parte da pessoa amada. O fetichista tem o fetiche como o elemento necessário e suficiente para sua excitação sexual. Pode-se ainda dizer que ele é incapaz de amar outra pessoa como uma pessoa real. Consegue amar apenas uma parte dela, ou um objeto que ela use (mãos, pés, nádegas, mamas, sua calcinha, seu sutiã, suas meias etc.), como apontam Kernberg (1995) e Rudge (2006).

Nesse sentido, Rudge (2006) ressalta que o fetichismo é apresentado como uma vicissitude da escolha de objeto. Há um operador nessa escolha, uma das saídas ou formas de lidar com a angústia da castração. O menino recusa a percepção de que a mulher não tem o falo, porque essa percepção precipita sua angústia de castração. O efeito da recusa é surpreendente: o menino tanto mantém a crença no falo da mulher, quanto desiste dela. O fetiche surge como o memorial erguido ao horror à castração, que torna a mulher tolerável como um objeto sexual, substituindo o que lhe falta.

A perversão continua sendo um desafio no terreno de sua conceituação, seu diagnóstico e sua práxis. Ao pesquisar a evolução de seu conceito, desde Freud até os nossos dias, são encontradas várias formas de abordá-lo: autonomia das pulsões parciais diante do primado genital, regressão com sua consequente fixação, falha identificatória na situação edipiana, transgressão decorrente do desafio da lei, divisão do ego e recusa na aceitação da diferença sexual. Observa-se que nenhum desses conceitos é específico da perversão, mas podem ser encontrados na histeria, neurose obsessiva e psicose (Kernberg, 1995).

 

Considerações finais

É na psicanálise freudiana que encontramos os construtos explicativos primordiais da origem do Fetichismo, tendo como pano de fundo as bases teóricas das Pulsões Anárquicas, a elaboração do Complexo de Édipo, a Castração e a Recusa, tomadas como fatores edificadores da sexualidade humana neurótica ou perversa. A busca exaustiva de material científico que trata da perversão fetichista para dar suporte à construção deste artigo, permite afirmar que o material encontrado, de maneira direta ou indireta, volta-se para a teoria freudiana, ainda que, por vezes, pareça estar em confronto com a mesma. O teor de suas postulações assume conteúdo complementativo, enriquecendo e aclarando a visão que hoje temos sobre as perversões.

Nessa ótica, é pontuada com certa fixidez a sexualidade do menino, este como o principal sujeito afetado, com maior intensidade, pelas consequências de uma elaboração inadequada da castração, ou seja, pela recusa da mesma. Por esta razão, é permitido dizer que o fetichismo apresenta uma predisposição muito mais comum em homens do que em mulheres. Segundo Freud (1969c [1927], p. 97), "provavelmente a nenhum indivíduo do sexo masculino é poupado o susto da castração à vista de um órgão genital feminino [...], é como se a última impressão antes de estranha e traumática fosse retido como fetiche". Este, afinal, pode ser assumido como uma defesa também contra a própria homossexualidade, pois torna a mulher, em linhas gerais, desejável para o fetichista, evidentemente, mediante a presença do fetiche.

Embora haja uma tendência de pensarmos que o fetichismo ou a manutenção de um fetiche seja uma particularidade específica da sexualidade perversa, a Psicologia tece considerações a respeito e argumenta que todas as pessoas apresentam alguns fetiches. Cada uma se sente atraída por determinado estilo de vestimenta, acessório ou por indivíduos dotados de certos atributos ou características físicas. Entretanto, pondera sobre a normalidade, enfatizando que o que não é normal é a obtenção de prazer sexual, inapelavelmente, somente com o seu fetiche.

Tais considerações teóricas permitem dizer que há sempre certo grau de fetichismo no amor normal, pois os fetiches cercam os homens por todos os lados, como nas pequenas coisas que passam despercebidas: algum objeto da pessoa amada protegido e guardado como a própria vida, fotos e adereços. Em razão disso, é importante saber equacionar e canalizar a energia sexual, de maneira tal que o prazer possa ser compartilhado com o outro, pois, sem o outro, o amor foge ao aceitável.

 

Referências

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Submetido em: 22/06/2009
Aceito em: 04/09/2009

 

 

1 Conceito concebido por Lacan (1995) para descrever um mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído, não é integrado no inconsciente como no recalque, e retorna sob a forma alucinatória no real do sujeito.
2 Designa o processo que visa manter no inconsciente todas as ideias e representações ligadas às pulsões e cujas realizações produtoras de prazer afetariam o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo, transformando-se em fonte de desprazer.
3 Termo criado por Freud, em 1924, para caracterizar um mecanismo de defesa, pelo qual o sujeito se recusa a reconhecer a realidade de uma percepção negativa, e, mais particularmente, ausência do pênis na mulher.
4 Termo criado por Lacan, em 1953, e conceituado em 1956, para designar o significante da função paterna.

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