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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.13 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2020

https://doi.org/10.4013/ctc.2020.132.06 

ARTIGOS

 

A cicatriz invisível: o ser mãe de bebês com fissura labiopalatina

 

The invisible scar: the mother of babies with labiopalatin fissure

 

 

Cynthia de Freitas MeloI; Jaiana Cristina Cândido MoraisI; João Lins de Araújo NetoII; Shéridan de Moura FeitosaIII

IUniversidade de Fortaleza
IIHospital Universitário Walter Cantídio - HUWC-UFC
IIIUniversidade de Fortaleza

Correspondência para

 

 


RESUMO

O diagnóstico de uma malformação como a fissura labiopalatina demanda cuidados com o bebê, mas também convoca atenção para a mãe que idealizava um filho esteticamente e funcionalmente perfeito. Diante dessa demanda, a presente pesquisa objetivou compreender o processo de tornar-se mãe de um bebê com fissura labiopalatina e a reelaboração do sentimento materno do "bebê-sonhado" para o "bebê-nascido". Foi realizada uma pesquisa qualitativa, do tipo exploratória, que contou com a participação de dez mães de bebês com fissura, que responderam um roteiro de entrevista semiestruturado, cujos dados foram compreendidos por meio de análise lexical no Interface de R pour les Analyses Multimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ). Os resultados mostram a reação das mães ao diagnóstico, o processo de aceitação do novo filho, a expectativa pela cirurgia e correção da malformação, as preocupações e dificuldades de adaptação às limitações do bebê e ao processo de tratamento. Conclui-se a importância de oferecer o diagnóstico precoce da malformação às mães desde a gestação e auxiliá-las na sua aceitação e no desenvolvimento de uma boa relação da díade mãe-bebê.

Palavras-chave: fissura palatina; fenda labial; mães.


ABSTRACT

The diagnosis of a malformation such as cleft lip and palate demands care for the baby, but it also calls attention to the mother who idealized an aesthetically and functionally perfect child. In view of this demand, the present research aimed to understand the process of becoming the mother of a baby with cleft lip and palate and the re-elaboration of the maternal feeling of the "baby-dreamed" for the "baby-born". A qualitative exploratory research was carried out, with the participation of ten mothers of cleft babies, who answered a semi-structured interview script, whose data were understood through lexical analysis in the Interface de R pour les Analyses Multimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ). The results show the mothers' reaction to the diagnosis, the process of acceptance of the new child, the expectation for surgery and correction of the malformation, the concerns and difficulties of adapting to the baby's limitations and the treatment process. We conclude the importance of offering mothers an early diagnosis of malformation since pregnancy and assisting them in their acceptance and in developing a good mother-baby relationship.

Keywords: cleft palate. cleft Lip. mothers.


 

 

Introdução

A gestação de um bebê gera expectativas e grandes mudanças para os pais, envolvendo perdas e ganhos, especialmente para a mulher, que ainda é considerada a principal provedora de cuidado. Além disso, a gravidez é o período no qual a mulher passa por diversas alterações tanto fisiológicas como emocionais, podendo sentir também inseguranças, dúvidas e medos. Geralmente, a gestante idealiza um bebê esteticamente e funcionalmente perfeito. Ideal esse que pode ser rompido quando os pais se confrontam com um dos maiores temores de uma gestação: o diagnóstico de uma malformação (Beluci, Dantas, Mondini, & Trettene, 2019; Cunha et al., 2019; Dadalto, Cunha, & Monteiro, 2019; Oliveira, 2017).

Dentre as possíveis "vilãs", a malformação craniofacial refere-se a toda alteração congênita que envolve a região do crânio e da face. Dentre elas, a mais conhecida é a fissura de lábio e/ou palato. A fissura labiopalatina, também conhecida como fenda labiopalatal ou lábio leporino, é uma abertura na região do lábio e/ou uma fenda no palato que resulta da união incompleta dos tecidos da face durante o desenvolvimento pré-natal. A fenda pode situar-se em um dos lados, em ambos os lados ou ao centro; e também pode estar acompanhada de uma abertura na gengiva superior, afetando lábios, nariz, região alveolar e palato (Cunha et al., 2019; Ribeiro & Enumo, 2018).

Essa malformação ocorre em uma a cada 700 mil crianças que nascem no mundo. No Brasil, estima-se que a incidência é de um fissurado para cada 650 nascimentos, representando 25% de todas as anomalias congênitas, e cerca de 5.800 novos casos todos os anos (Ministério da Saúde [MS], 2016).

A etiologia da fissura labiopalatina é bastante ampla e envolve uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Surge no primeiro trimestre de gestação, período no qual ocorre a maioria das alterações importantes do desenvolvimento da face. Algumas semanas depois, ainda durante a gestação, o diagnóstico já pode ser realizado, por volta de 18 semanas de gravidez (entre o 4º e 5º mês de gestação), por meio de ultrassom no pré-natal, quando a fenda pode ser visualizada. Esse é um momento crítico e tenso para os pais, devido à possibilidade de a fissura estar associada a outras anomalias genéticas, pois a fissura labiopalatina pode ocorrer isolada ou pode ser sugestiva de outra malformação associada como: retardo mental, microcefalia, defeitos cardíacos, anomalias craniofaciais, entre outros (Cunha et al., 2019; Vanz & Ribeiro, 2011).

É muito importante que o diagnóstico ocorra durante a gestação e que a mãe saiba que seu bebê é fissurado durante o pré-natal, pois assim haverá tempo para o acompanhamento e a preparação efetiva da mãe e outros familiares, que poderão compreender melhor a malformação facial e se preparar para a chegada de um bebê diferente do que era esperado; e que vai exigir cuidados específicos e procedimentos médicos e cirúrgicos nos primeiros meses de vida e ao longo de seu desenvolvimento. Estudos relatam diversos benefícios do diagnóstico da fissura labiopalatal ainda no pré-natal, e alguns deles envolvem a melhor adesão da família ao longo do tratamento e o estabelecimento de um plano terapêutico e tratamento cirúrgico pelos profissionais de saúde (Cunha et al., 2019).

Torna-se imprescindível que os pais compreendam o quadro clínico do seu filho, pois as fissuras labiopalatinas têm suas variações, podendo ocorrer apenas um entalhe do lábio até tipos de fendas bem amplas e complexas, como as que acometem o lábio e o palato, comprometendo a estética, a dentição, a fala e a audição. A aparência, o crescimento facial e os aspectos psicossociais da criança também podem ser comprometidos, assim como a sua respiração, deglutição, comunicação e suas expressões faciais (Montes, Oliveira, Gavião, & Barbosa, 2019).

Diante dessa variedade de complexidades que podem ocorrer, o tratamento deve ser planejado de acordo com a necessidade do paciente e com o nível de comprometimento causado por sua fissura. Os protocolos e tratamentos são singulares para cada caso e devem envolver a atuação de profissionais de equipes multidisciplinares, que incluem cirurgião plástico, otorrinolaringologista, enfermeiro, ginecologista obstetra, geneticista, pediatra, nutricionista, fonoaudiólogo, psicólogo e odontólogo. Muitos desses profissionais acompanham os pacientes da infância à vida adulta e são indispensáveis para o sucesso na reabilitação funcional e psicossocial destes pacientes (Cunha et al., 2019; Rafacho, Tavano, & Motti, 2015; Rivas, Morales, López, Ruidíaz, & Jiménez, 2017).

O atendimento especializado para tratamento de fissuras labiopalatinas encontra-se ao todo em 28 centros de referência no país. O tratamento configura-se em um processo longo de reabilitação morfológica realizado em etapas, variáveis de acordo com cada caso. No geral, deve ser iniciado com cirurgias plásticas - a queiloplastia (cirurgia de lábio), com três meses de idade; e a palatoplastia (cirurgia do palato), entre seis e nove meses de idade. Aos 5 anos, ocorre o refinamento da cirurgia no nariz (em 35% dos casos). Entre 7 e 9 anos, é realizado o enxerto ósseo (em 100% dos casos). Entre 12 e 18 anos é feita a rinoplastia (cirurgia de refinamento). Pode ainda ocorrer (em 25% dos casos) a cirurgia ortognática (correção óssea facial) (Miachon & Leme, 2014).

Além dessas questões objetivas e clínicas, que geralmente consomem toda a atenção da família e de profissionais de saúde, é preciso lançar o olhar sobre a mãe. Elas experienciam um significativo sofrimento quando recebem a notícia do diagnóstico de fissura labiopalatina. Um bebê malformado produz a descontinuidade relacionada à idealização do nascimento perfeito, ferindo a fantasia e a expectativa idealizada, gerando nessa mãe sensações de desespero, angústia, incertezas, questionamentos em busca de respostas que justifiquem a malformação, sentimento de incapacidade, não aceitação e abalo emocional. Sofrimento geralmente vivido em silêncio, pela vergonha, culpa e remorso que a impedem de assumir esses sentimentos; e pela falta de atenção dos outros, que estão ocupados com o cuidado com a criança (Lima et al., 2015). Neste momento, é necessário acolher essa mãe e gradativamente auxiliá-la a desconstruir a imagem idealizada, para que ela possa receber seu bebê real (Lima et al., 2015; Nardi, Rodrigues, Melchiori, Salgado, & Tavano, 2015; Silva, Girão, & Cunha, 2016; Silva, Rodrigues, & Lauris, 2017; Trettene et al., 2014).

Tendo em vista que o diagnóstico de uma malformação como a fissura labiopalatina produz um sentimento negativo para essa maternidade, que pode gerar conflitos para o relacionamento dessa mãe com seu bebê e nas trocas afetivas tão importantes à saúde emocional de ambos, tal temática torna-se intrigante. Para oferecer informações que subsidiem o planejamento de ações e intervenções eficazes, a comunidade acadêmica tem se interessado pelo tema.

Nessa perspectiva, um estudo realizado com oito mães de crianças com fissura labiopalatina apreendeu que os pais experienciam um choque emocional, especialmente as mães, pois sobre elas recaem as maiores responsabilidades relacionadas tanto à malformação, quanto aos cuidados com a saúde, bem-estar e desenvolvimento satisfatório do bebê. Além disso, nas malformações de fissura labial, onde a imperfeição na face é visível a todos, o processo de aceitação se torna mais difícil e doloroso, pois aquele bebê imaginário perfeito, tão idealizado por essa mãe, deixa de existir com o nascimento, dando lugar a outro (Vanz & Ribeiro, 2011).

Como mecanismo de defesa, estudos apontam que, durante a gestação, mesmo após a confirmação do diagnóstico da fissura, algumas mães permanecem em negação, esperançosas de seu bebê nascer perfeito. Paralelamente, podem vivenciar o desespero frente a tal situação, sendo comuns reações de raiva, choque, confusão, tristeza, ansiedade e culpa.

Qualquer negação anterior é rompida no nascimento, quando ocorre o encontro com o real, e a esperança de um recém-nascido ideal é substituída pela concretização de sua malformação. Por esse motivo, depois do impacto da notícia do diagnóstico, o parto é o outro momento permeado de ansiedade e frustração para a mãe, pois representa o primeiro encontro com o bebê e a realidade negada (Cunha et al., 2019; Roecker et al., 2012). Como consequência, o puerpério também é um momento crítico para a mulher, e de grande fragilidade emocional, pois, além das mudanças de humor resultantes do declínio de progesterona e estrogênio, elas podem apresentar rejeição ao filho ou inabilidade de amá-los (Roecker et al., 2012).

Para identificar as consequências da malformação sobre a relação mãe-bebê, um estudo realizado com 10 bebês que possuíam fissura labiopalatina e 20 bebês sem a malformação, ambos acompanhados de suas mães, investigou, por meio de rastreamento ocular durante três minutos, a interação entre mãe e filho. Os resultados mostraram que os bebês com fissura labial não apresentavam a taxa de aumento de comportamentos sociais esperados nos primeiros dois meses de vida, em decorrência de suas mães não espelharem expressões sociais de volta aos seus bebês na mesma medida que as mães dos bebês não fissurados. Observou-se também que o olhar da mãe para a boca do bebê com a fissura era reduzido, ocasionando uma diminuição de expressões sociais como abrir a boca. Concluíram que as crenças e preocupações das mães sobre seus filhos com fissura, associados ao sentimento de culpa, afetaram as interações das mães com seus bebês e reduziram o espelhamento, desencadeando um desenvolvimento mais lento da expressividade social dos bebês (Murray, 2018).

Outro aspecto importante de análise incide sobre as dúvidas que os pais possuem sobre o futuro, no que se refere ao tratamento, à alimentação e os cuidados com o bebê após o nascimento. A literatura aponta que a dúvida mais frequente é sobre a alimentação, uma vez que a fissura acomete a cavidade oral e pode contribuir para uma baixa ingestão alimentar, comprometendo assim o desenvolvimento, crescimento e a estatura do bebê. Esse aspecto está relacionado diretamente à amamentação, que também gera muitas dúvidas e receios em mães de bebês fissurados, pois, dependendo do grau e complexidade da fissura no palato, só é permitido que o bebê se alimente por sonda. Isso contribui para que as mães de bebês com fissura experimentem estressores ambientais, como a educação inadequada sobre a manutenção do suprimento de leite com a bomba e a assistência limitada na transição para a amamentação. A partir dessas limitações, pode ser observado novamente o sentimento de culpa nas mães, que buscam repetidamente uma justificativa que lhe traga a causa da malformação da fissura (Corrêa, Feliciano, Pedrosa, & Souza, 2017; Cunha et al, 2019; Demirci, Caplan, Brozansk, & Bogen, 2018).

Para lidar com essas questões, junto a uma atenção integral e multidisciplinar, o acompanhamento psicológico tem um papel fundamental, pois possibilita aos pais, em especial à mãe, após o diagnóstico e prognóstico do bebê, entrarem em contato com a nova realidade, permeada por sentimentos ambivalentes. O psicólogo pode se certificar da compreensão dos pais sobre o diagnóstico médico neste primeiro momento, pois em alguns casos se faz necessário mediar este diálogo e oferecer suporte emocional e apoio sobre questões pessoais que devem ser acolhidas e legitimadas. Após a compreensão dessa nova realidade, a Psicologia vem a auxiliar as mães para que, a partir de seus próprios recursos, criem subsídios para elaboração de respostas efetivas de enfrentamento, para que elas não se rendam ao sofrimento e desesperança, buscando aproximá-las da realidade da malformação fetal (Santos, Böing, Oliveira, & Crepaldi, 2014).

Em meio a um movimento de crítica a discursos de maternidade perfeita e idealizada, e pró "maternidade real", a literatura tem evidenciado um significativo sofrimento de mães diante do diagnóstico de uma malformação de seu bebê, contudo pouco se sabe como essa mãe elabora a notícia do diagnóstico, quais as reações emocionais e psíquicas que ela apresenta e como se dá a construção da relação mãe-bebê durante a gestação e após o primeiro encontro, no nascimento. Diante do exposto, a presente pesquisa objetivou compreender o processo do tornar-se mãe de um bebê com fissura labiopalatina, explorando a repercussão do diagnóstico no sentimento materno e a importância da reelaboração do "bebê-sonhado" para o "bebê-nascido".

 

Método

Foi realizada uma pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa, que busca aprofundar-se sobre esse tema pouco explorado na literatura. Enveredar por tal delineamento de pesquisa torna-se relevante em investigações atravessadas por elementos psicológicos, presentes nas experiências de cada participante (Richardson, 2017).

Participantes

Por critério de saturação (Minayo, 2017), participaram dez mães de bebês com fissura labiopalatina. Teve como critérios de inclusão: ser mãe de bebê (de 0 a 2 anos) com fissura labiopalatina e ser a principal cuidadora do filho. As participantes foram contatadas em um hospital de referência em ensino, pesquisa e assistência terciária à criança e ao adolescente (ver Tabela 1).

Instrumentos

Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado contendo os seguintes eixos temáticos: (1) A reação das mães ao receberem o diagnóstico de fissura labiopalatina de seu bebê; (2) A reelaboração do "bebê-sonhado" para o "bebê-nascido" e (3) As estratégias de enfrentamento utilizadas pelas mães.

Procedimentos

O projeto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa, sob parecer Nº 2.521.200. Posteriormente as mães participantes foram convidadas a participar da pesquisa e informadas sobre seus objetivos, riscos e benefícios da sua participação, sigilo da sua identidade e do seu direito de desistirem em qualquer momento da pesquisa. Em seguida, todas consentiram a sua participação, através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. As entrevistas ocorreram com auxílio de gravador, em local reservado. Cada entrevista teve duração média de 50 minutos. Foram respeitados todos os aspectos éticos propostos para pesquisas com seres humanos, nas resoluções nº 466/12 e 510/16.

Análise dos dados

As entrevistas foram compreendidas por meio do software Interface de R pourlesAnalysesMultidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ) em quatro etapas. Foram realizadas análises lexicográficas clássicas, para verificação de estatística de quantidade de evocações, formas e segmentos de texto (ST) - recortes de frases de cerca de três linhas. Foi processada a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), para o reconhecimento do dendrograma com as classes que surgiram, onde quanto maior o χ2, mais associada está a palavra com a classe, e desconsiderando as palavras com χ2< 3,80 (p < 0,05); e, a partir do conteúdo distribuído em cada classe gerada pelo IRaMuTeQ, foi feita análise de conteúdo. Realizou-se a Análise Fatorial por

Correspondência (AFC), para a verificação das diferenças nos discursos diante dos dados sociodemográficos - estado civil e momento de recebimento do diagnóstico. Por fim, extraiu-se a Nuvem de Palavras, a fim de agrupar as palavras e as organizar graficamente em função da sua relevância, sendo as maiores as que possuem maior frequência, considerando-se apenas a que tinham frequência mínima 10.

 

Resultados

Nuvem de palavras

Primeiramente, obteve-se a nuvem de palavras gerada a partir dos relatos das participantes, para ter um panorama geral dos dados. Verificou-se que as palavras mais evocadas foram: "Nascer" (f = 49), "Saber" (f = 47), "Falar" (f = 40), "Família" (f = 24), "Filho" (f = 26), "Chorar" (f = 25), "Mãe" (f = 30), "Normal" (f = 20), "Cirurgia" (f = 20) e "Sentir" (f = 18) (ver Figura 1).

 

Classificação Hierárquica Descendente

O corpus geral foi constituído por 213 segmentos de texto (ST), com aproveitamento de 164 STs (77,00%). Emergiram 7.302 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo 1.167 palavras distintas e 587 com uma única ocorrência. O conteúdo analisado foi categorizado em cinco classes (ver Figura 2).

A fim de obter melhor visualização das classes, construiu-se um organograma a partir de cada classe com a lista de palavras geradas a partir do teste qui-quadrado. Nele aparecem as evocações que apresentam vocabulário semelhante entre si e vocabulário diferente das outras classes. A seguir serão descritas, operacionalizadas e exemplificadas cada uma dessas classes emergidas na Classificação Hierárquica Descendente (ver Figura 3).

Classe 1 - A descoberta do diagnóstico

Compreende 23,17% (f = 38 ST) do corpus total analisado. Essa classe é composta por palavras como "Lábio" (χ2 = 22,92); "Descobrir" (χ2 = 16,07); "Ultrassom" (χ2 = 13,59); "Morfológica" (χ2 = 13,59); "Leporino" (χ2 = 13,59); "Médico" (χ2 = 6,19) e "Medo" (χ2 = 5,61).

Pôde-se observar que a maioria das mães recebeu o diagnóstico da malformação de fissura labiopalatina de forma impactante, principalmente aquelas que souberam apenas na hora do nascimento do bebê. Muitas relataram que, ao saber da má formação apenas ao ver o bebê, não tiveram tempo de entender e aceitar o novo filho. Como consequências, as primeiras reações foram de muito choro, e até rejeição, seguido de indagações sobre o motivo do problema.

Eu descobri foi no nascimento. Foi um susto, porque foi parto normal e o certo é entregar logo pra mãe e eu estava naquela expectativa de me entregar logo, pra colocar ela por cima de mim, e cheirar ela. Aí ela não me deu. Ela foi logo escondendo a menina [...] quando ela foi trazer, eu chorei tanto, porque eu não esperava. Foi uma tristeza muito grande (Participante 08).

Se eu tivesse descoberto na minha gestação, eu não teria ficado tão assustada como eu fiquei. É tanto que quando o médico veio e tirou ela, ela subiu pra cá, eu vomitei, eu não vi minha filha. Passei ainda dois dias sem ver ela, quando eu fui ver ela, eu chorei, não estava me acostumando ainda (Participante 05).

Além disso, ao longo das falas, as mães sinalizam sentimento de culpa e indagações sobre ações que poderiam ter desencadeado a fissura, reportando à crença popular de que se uma mulher grávida que carrega no bolso uma chave ou algum objeto cortante, a criança nascerá com uma fenda na boca. As mães geralmente procuraram em si mesmas uma justificativa para o problema, como pode ser observado na fala a seguir: "Quando eu bati a ultrassom de quatro meses, aí eu descobri o sexo e o lábio. O que passou na minha cabeça foi que eu fui culpada daquilo e comecei a chorar" (Participante 09).

Classe 2 - O primeiro encontro entre o bebê e a família

Compreende 15,85% (f = 26 ST) do corpus total analisado. Essa classe é composta por palavras como "Marido" (χ2 = 26,75); "Vida" (χ2 = 21,76); "Tranquilo" (χ2 = 15,91); "Bebê" (χ2 = 13,72); "Causa" (χ2 = 9,34); "Começo" (χ2 = 7,74); "Sofrer" (χ2 = 7,74) e "Imaginar" (χ2 = 6,47). Nesta classe as mães narraram o primeiro encontro entre a família e o bebê e suas reações.

Para algumas mães, o primeiro encontro com seu bebê aconteceu de forma tranquila, pois tiveram conhecimento do diagnóstico durante a gestação, momento no qual puderam obter informações sobre a fissura de lábio e palato, assim como orientação sobre o tratamento e a cirurgia. Dessa forma, tiveram toda a gestação para absorver a informação e se adaptar à nova realidade, amenizando a angústia e as dúvidas, por meio de conforto, apoio e suporte emocional oferecido pela equipe de saúde e pela família, como pode ser observado no exemplo:

Nossa eu chorei, eu fiquei muito feliz! Até a moça que trouxe ele na hora falou assim: mãezinha seu bebê tem uma fenda. - Eu imaginei que ela pensou que eu não soubesse né. Aí meu marido falou assim: não, a gente já sabe! Aí pronto, eu o peguei, vi! Aí levaram! Mas foi emocionante, chorei muito (Participante 09).

Por outro lado, para outras mães, esse primeiro encontro com o bebê foi mais difícil. Visto que, mesmo sabendo do diagnóstico na gestação, a não aceitação da malformação e a falta de apoio de alguns familiares tornou o momento do nascimento ainda mais complicado, exigindo um maior apoio da equipe para essa mãe e esse bebê. Em casos de mães solos ou com pouco suporte familiar, o apoio social, a orientação e o acolhimento oferecidos pela equipe de saúde tornou-se fundamental.

Aí o pai dela não queria nem registrar ela pra ficar né, porque a família quando soube ficou com cisma. Aí eu fiquei me humilhando a ele, para ele poder vir, para poder vir registrar ela, para poder ele aceitar ela realmente com a fissura (Participante 08).

Classe 3 - A expectativa pela cirurgia

Compreende 18,29% (f = 30 ST) do corpus total analisado. Essa classe é composta por palavras como "Hospital" (χ2 = 19,05); "Bom" (χ2 = 18,31); "Fissura" (χ2 = 11,00); "Ruim" (χ2 = 9,75); "Momento" (χ2 = 9,75); "Cirurgia" (χ2 = 9,25); "Dia" (χ2 = 7,77); "Muito" (χ2 = 6,18) e "Porque" (χ2 = 5,76). Verificou-se nesta classe discursos sobre a cirurgia da fenda labial ou do palato. Após o conhecimento do diagnóstico da fissura, seja este durante a gestação ou na hora do nascimento, a primeira expectativa da maioria das mães e da família girou em torno da espera da cirurgia plástica reparadora.

Com a chegada do bebê e após ser apresentada a possibilidade de cirurgia, impera entre as mães o desejo de que logo nos primeiros meses o procedimento aconteça. Isso ocorre porque a deformidade labial, pela sua localização e probabilidade de sequelas estéticas e funcionais, é motivo de angústia e medos no nascimento da criança, como observa-se a seguir:

Já vi, mas nunca tinha ouvido falar em fissura não! Só sei que meu desejo é de ela ficar melhor logo né, de fazer a cirurgia, porque pra mim a gente não pode ficar ansiosa demais né! (Participante 05).

[...] Tudo bem, ai foi passando os dias e isso a família dele [do pai da criança] em cima dele pra poder marcar a cirurgia, para poder ficar direito o lábio, porque a menina ia sofrer bullying quando crescer, mas quem estava com bullying, com preconceito, era ele mesmo e a família dele (Participante 08).

Classe 4 - O processo de aceitação de um filho diferente

Compreende 24,39% (f = 40 ST) do corpus total analisado. Essa classe é composta por palavras como "Olhar" (χ2 = 17,98); "Jeito" (χ2 = 16,00); "Amor" (χ2 = 15,99); "Nascido" (χ2 = 15,99); "Amar" (χ2 = 15,99); "Criança" (χ2 = 14,72); "Sentimento" (χ2 = 8,65); "Filho" (χ2 = 8,38) e "Nascer" (χ2 = 6,99). Os conteúdos que surgem nesta classe discorrem sobre o processo de aceitação do bebê com malformação por fissura labiopalatina.

Os relatos mostraram que a notícia da chegada de um bebê malformado foi impactante para a maioria das mães, tendo em vista que elas geralmente exercem o papel de cuidadora principal dos filhos. Foram reações diversas: aceitação com demonstração de afeto desde os primeiros instantes; aceitação por ter que exercer o papel de mãe, mas sem demonstrações de afeto; e choque seguido de rejeição ou sentimento de culpa.

Meu sentimento de mãe não mudou, continua a mesma coisa. Eu espero que dê tudo certo, que ele fique bem. Todo mundo o vê e pensa que o menino é doente. Eu digo que o menino não é doente. Ele só nasceu com lábios, que chama lábio lascadinho, que ele não é doente. Ele só nasceu com essa malformação, mas ele é normal (Participante 01).

Pra ser sincera, eu vim pegar amor a ela mesmo assim... Eu até me emociono. Não gosto! Eu tenho até vontade de chorar. É porque, assim que ela nasceu, as pessoas ficam com preconceito e a gente não tem aquele amor que toda mãe tem, pelo menos eu sou assim. Não foi aquele amor, a gente ama, mas não é aquele amor: 'Oh que bonitinho'. Não foi assim! Eu fui me adaptar. Achei estranho... Quando eu olhava pra ela, eu achava estranho, e ficava assim: 'meu Deus, Tu mandou minha filha assim desse jeito' (Participante 08).

[...] E aí o doutor falou: 'Não, não chore. Você não tem culpa de nada. Isso é hereditário e tal. Você não tem culpa. Se faz cirurgia e tudo se resolve' [...] Depois que ele falou isso né, que ele falou assim, que tem casos piores de crianças que nascem sem um braço, e isso é uma coisa que vai ser corrigida, que tem jeito, aí eu me senti mais segura (Participante 09).

Classe 5 - As principais preocupações e dificuldades na adaptação com o bebê

Compreende 18,29% (f = 30 ST) do corpus total analisado. Essa classe é composta por palavras como "Peito" (χ2 = 27,82); "Explicar" (χ2 = 26,95); "Alimentar" (χ2 = 22,54); "Preocupação" (χ2 = 18,31); "Estressar" (χ2 = 18,31); "Chuquinha" (χ2 = 13,65); "Sugar" (χ2 = 13,65); "Tentar" (χ2 = 8,82) e "Conseguir" (χ2 = 6,0). Nesta classe foram abordadas as preocupações dos pais em relação às adaptações gerais da criança e dificuldades do tratamento.

Dentre as principais preocupações elencadas, destacaram-se as relacionadas à alimentação. Queriam saber se o bebê iria conseguir mamar no peito, se iria sempre se engasgar, por causa da fenda no "céu da boca". Também surgiram dificuldades em explicar para as pessoas sobre a fissura e para se adaptar ao tratamento, deslocamento e gastos, pois muitas famílias residiam fora da capital e dependiam de transporte do município para ir para as consultas no hospital de referência do acompanhamento, como se observa nas falas a seguir:

Eu fiquei com medo, porque eu já tinha perdido dois bebês e meu sonho era querer dar de mamar, todas aquelas fases de mãe. Eu queria dar de mamar. Eu tinha a preocupação que ele não pegasse a mama e aí minha preocupação era essa e também a questão do povo ficar perguntando e eu não saber explicar e de ver a dificuldade dele em falar, que já vi muitos que não tem a fala direito (Participante 07).

De como ela ia se alimentar né, que eu não sabia como é que eu ia fazer pra alimentar ela. Depois que o médico disse que ela não ia pegar peito, que ela não ia pegar chuquinha e que não ia pegar copo né, como ela ia tomar as fórmulas, que ela ia se alimentar pela sonda, aí com 3 dias ou foi com 4 dias colocaram copo, ela pegou! Com o tempo botaram a chuquinha nela e pegou também [...] (Participante 05).

Maior dificuldade [...] Só o transporte da cidade, que nem sempre é possível, porque às vezes os ônibus de lá vivem quebrados. Aí essa semana agora que eu vim foi meu tio juntado [dinheiro], assim pediu [dinheiro] a um, pediu a outro, juntando pra poder eu vim (Participante 05).

Análise Fatorial de Correspondência

Por intermédio da AFC, foi possível ainda efetuar comparações entre as evocações vigentes, independente das classes às quais pertencem, conforme o que se apresentou nas distintas características sociodemográficas. Observaram-se, a partir das análises relacionadas ao estado civil nas amostras, notáveis dessemelhanças. As mães que vivem com os pais dos bebês evocaram mais fortemente palavras como "Amor", "Família", "Pai", "Menina", "Cirurgia", enquanto as mães que não vivem com o pai do bebê sobressaíram-se com as palavras "Deus", "Tempo", "Medo", "Imaginar", "Falar", "Ele" e "Começo".

Na comparação dos discursos entres os grupos de mães que receberam o diagnóstico na gestação ou no parto, destacaram-se entre as mães que souberam o diagnóstico ainda no pré-natal as expressões como "Mês", "Mãe", "Normal", "Medo", "Nunca", "Pensar" e "Deus". Já entre as mães que receberam o diagnóstico apenas na hora do nascimento, as palavras mais enfáticas foram "Depois", "Sofrer", "Começo", "Jeito", "Sentir", "Porque", "Como" e "Ver".

 

Discussão

Os resultados mostram que a chegada de um bebê com malformação congênita produz uma descontinuidade relacionada à ideia do nascimento perfeito, com sonhos desmoronados e sentimentos negativos, não só para os pais, mas para toda a família. O diagnóstico dessa malformação é inevitavelmente traumático, causando uma infinidade de reações emocionais em todos os envolvidos, que necessitam de adaptação, orientação médica sobre o problema e/ou acompanhamento psíquico (Silva et al., 2017).

Tal aspecto se relaciona ao fato de que o nível da fissura influencia diretamente no comportamento de todos os membros da família. Muitos reagem buscando a causa que provocou a malformação. Embora a etiologia da má formação tenha múltiplos determinantes genéticos e ambientais (Cunha et al., 2019; Vanz & Ribeiro, 2011), o sentimento de culpa entre as mães é uma constante nos estudos sobre o tema (Corrêa et al., 2017; Cunha et al, 2019; Demirci et al., 2018; Murray, 2018; Roecker et al., 2012). Emergem também relatos de não aceitação, geralmente associados às falas de preocupação diante do preconceito dos outros, medo da não aceitação social dos filhos ao longo da vida, sentimento de vergonha, e comparação do "normal" com o "anormal" e do perfeito com o imperfeito. As mães expõem, de diferentes maneiras, as marcas de sua cicatriz invisível.

Após o nascimento da criança, tem início o período de adaptações à nova dinâmica, e também se inicia gradativamente um processo de aceitação e apego ao filho real. A mãe e a família buscam pontos positivos neste convívio, apesar das preocupações quanto ao bom desenvolvimento ou aceitação dele perante a própria família e à sociedade.

Os pais começam a ansiar o momento da cirurgia, e que todo o impacto emocional, assim como o funcional na criança, causado pela deformidade labial, seja reparado após o resultado cirúrgico para que a vida siga "normalmente". Nesse contexto, é essencial promover um diagnóstico situacional sobre cada caso de fissura, e um diálogo com os pais acerca dos cuidados pré-operatórios e a idade certa da criança, devido às suas fases de desenvolvimento, uma vez que se faz necessário planejar e programar ações educativas visando minimizar a ansiedade e as dúvidas acerca do momento da cirurgia reconstrutora da fissura labial (queiloplastia) e/ou a cirurgia reconstrutora da fissura palatina (palatoplastia), tendo em vista obter os melhores resultados (Trettene et al., 2014).

Os dados apreendidos também mostraram que o grupo de mães que viviam com o pai de seus bebês possuem como auxílio de enfrentamento a expressão de amor, o vínculo familiar e o apoio paterno. Sobre esse aspecto, é importante ressaltar que a rede de apoio primária na maioria dos casos de fissura labiopalatina de crianças é a família, que dão suporte às mães, que muitas vezes se sentem inferiores a outras mulheres, comprometendo sua autoestima, e colocando em risco o apego com a criança (Oliveira, 2017).

Já as mães solos, que não contavam com os pais de seus filhos e que não tinham apoios da família, manifestaram-se se sentir fortalecidas e amparadas em sua espiritualidade e pela equipe de profissionais. O apoio social oferecido pela equipe de saúde torna-se fundamental para essa mãe e para o fortalecimento do vínculo mãe-bebê. Os profissionais podem promover o estabelecimento de uma relação afetiva e de cuidado entre mãe e bebê, por meio de informações, apoio emocional, acolhimento e inserção da mãe no ambiente hospitalar, principalmente nos primeiros momentos do tratamento, que é permeado de medos e dúvidas (Dadalto et al., 2019)

Outro resultado importante diz respeito ao diagnóstico precoce e sua importância e implicações como eixo inicial de trabalho na relação entre mãe e bebê com malformação. A partir dele, é possível minimizar os prejuízos emocionais e os possíveis entraves dos sentimentos na díade mãe e bebê, pois este diagnóstico antecipado permite que os pais tenham mais tempo para se "preparar" para o "bebê-real", assim como ter acesso a um esclarecimento antecipado sobre as condições reais do bebê e as atitudes perante à malformação de fissura e seu tratamento (Cunha et al., 2019; Oliveira, 2017).

Por outro lado, ficou evidente que as mães que receberam o diagnóstico somente na hora do nascimento apresentam discursos de prejuízos emocionais maiores que as mães que receberam o diagnóstico durante a gestação. Elas mencionaram que o anúncio do diagnóstico somente na hora do parto causou-lhes uma ruptura brusca da imagem do seu bebê sonhado, onde instantaneamente a imagem do bebê real lhe foi apresentada ali, no primeiro encontro (Silva et al., 2016).

Independente do diagnóstico, o anúncio de uma malformação causa diferentes reações, a depender do que foi idealizado para o filho, podendo levar os cuidadores a abandonar as projeções futuras relacionados a si mesmos e à prole (Silva et al., 2016). Por isso, a forma de comunicar o diagnóstico aos pais é um fator de suma importância, pois mobiliza sentimentos na família que devem ser trabalhados pela equipe de saúde. Buscar ter uma linguagem adequada e empática, tendo consciência dos processos emocionais que estes familiares enfrentarão, poderá minimizar o impacto da notícia. Entretanto, muitos profissionais de saúde se limitam a transmitir as informações com uma linguagem técnica e sem identificação emocional, limitando-se a informar em linhas gerais sobre a patologia, gerando dúvidas e, no caso da fissura labiopalatina, buscam expressar uma resolução informando que há cirurgia para corrigir a malformação (Vanz & Ribeiro, 2011).

Diante disso, pode-se perceber que o tornar-se mãe de um bebê com fissura labiopalatina é uma experiência difícil, pois exige uma reorganização da identidade materna, gera crises emocionais, questionamentos e sentimento de culpa por achar que podem ter contribuído para a malformação do bebê por estar gestando-o, assim como podem expressar dificuldades iniciais na interação da díade mãe e bebê.

 

Considerações finais

A presente pesquisa objetivou compreender o processo do tornar-se mãe de um bebê com fissura labiopalatina, explorando a repercussão do diagnóstico no sentimento materno e a importância da reelaboração do "bebê-sonhado" para o "bebê-nascido". Os resultados mostram que a notícia de fissura do bebê é uma experiência de crise e desequilíbrio emocional para os pais, em especial para a mãe, devido à perda da imagem do bebê sonhado durante a gestação. As reações, o processo de enfrentamento e a elaboração do "bebê real" podem ser afetadas pelo momento do diagnóstico e pela existência de uma rede de apoio.

Para cada mãe, o significado da maternidade é único, e cada uma delas vai reagir à chegada do bebê com má formação a partir de suas histórias, vivência familiar e pessoal. A partir dos relatos, foi possível discernir que o diagnóstico precoce é protetivo para as mães e bebês. Se a fissura é diagnosticada ainda na gestação, é possível preparar a mãe para entender e aceitar o filho que está por vir, minimizando os prejuízos emocionais na relação da díade mãe e bebê.

Nesse contexto, há uma significativa função familiar e da equipe de saúde. Muitas participantes enunciaram que, no momento do desespero, foi importante o apoio, a escuta e um discurso confiante de profissionais de saúde que conhecem a patologia e seu processo de tratamento, auxiliando-as na compreensão sobre as causas da má formação e omissão de culpa, na aceitação do filho e preparação para o tratamento. O apoio familiar, principalmente do pai do bebê, também é essencial para o equilíbrio emocional e o processo de aceitação da malformação da fissura, pois as participantes que não viviam com o pai de seu filho, e não tiveram apoio em nenhuma instância, apresentaram um discurso de maiores dificuldades de enfrentamento da situação e maior emoção ao relembrar dos momentos e falar sobre o assunto, demonstrando bastante fragilidade emocional e psicológica.

Os dados da pesquisa mostram que o processo de aceitação da malformação de fissura labiopalatina em uma mãe está envolto de inúmeros fatores, mas a condição de se desfazer da imagem que se cria durante a gestação do "bebê sonhado" e ver seu "bebê real", é a primícia do processo. Como relataram algumas participantes, um bebê sadio e bonito é o que toda mãe deseja, e o choque da notícia da fissura, tão visível para todos, produz rejeição, vergonha, medo, e em algumas participantes gerou ambivalência no sentimento de amor pelo filho. Essa ruptura com o que foi sonhado ocasiona sofrimento e cicatrizes invisíveis, que precisam ser acolhidas e cuidadas.

Como toda pesquisa científica, embora os resultados obtidos sejam consistentes teoricamente e representem uma contribuição significativa para a compreensão da experiência e cicatrizes de mães de crianças com fissura labiopalatina, observam-se limitações. Uma delas refere-se ao fato de ter sido realizada de forma pontual, não sendo possível efetuá-la em longo prazo, de forma longitudinal. Outra limitação diz respeito à amostra e suas características, pois a coleta de dados foi realizada apenas com mães, fazendo-se importante explorar essa realidade a partir dos discursos de outros atores sociais envolvidos no processo, como os pais. Por considerar as transformações e alterações dos pensamentos inerentes aos sujeitos, em razão de fatores individuais e ambientais, reforça-se a necessidade de outros estudos abordando esse tema, com desenhos metodológicos longitudinais e abordando os pais, para que sejam apontados outros dados, como meio de explorar outros fatores vigentes nesse contexto.

Desse modo, conclui-se ser primordial ampliar os conhecimentos acerca desse tema, considerando um cenário que apresenta inúmeras demandas psicológicas. Faz-se necessário ainda oferecer espaços de escuta psicológica para as mães de crianças com malformação por fissura labiopalatina, para compreender a sua dimensão vivencial e suas fragilidades, proporcionando-lhes redução nos traumas provenientes do diagnóstico. Quando toda atenção e cuidado primário destinam-se aos bebês com fissura palatina, é preciso lançar o olhar também para as mães, que ficam em segundo plano. É preciso acolher suas angústias silenciadas, que constituem uma cicatriz diferente da de seus bebês, uma cicatriz invisível, marcada pela experiência do Ser-Mãe de um bebê fissurado.

 

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Submetido em: 07.04.2020
Aceito em: 01.09.2020

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