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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.14 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2021

https://doi.org/10.4013/ctc.2021.142.08 

ARTIGOS

 

Relação das dependências física, psicológica e comportamental na cessação do tabagismo

 

Relationship between biological, psychological and behavioral addiction in smoking cessation

 

 

Kallinca Merillen SilveiraI; Francielle AssumpçãoI; André Luiz Monezi AndradeII; Denise De MicheliIII; Fernanda Machado LopesI

IUniversidade Federal de Santa Catarina
IIPontifícia Universidade Católica de Campinas
IIIUniversidade Federal de São Paulo

Correspondência

 

 


RESUMO

O Programa de Cessação do Tabagismo (PCT) tem por objetivo a abstinência do cigarro por meio da intervenção com foco na dependência física, psicológica e comportamental. Este estudo investigou a relação entre os tipos de dependência, padrão de consumo, nível de fissura e motivação para a abstinência entre fumantes inscritos em um PCT. Inscreveram-se nos 11 grupos do PCT 179 fumantes (56,7% mulheres). Os participantes apresentaram uma média de 41 anos de idade e fumavam uma média de 19 cigarros por dia. O tempo médio de fumo dos participantes foi de 25 anos. Todos responderam instrumentos específicos para mensurar dependência física, psicológica e comportamental, nível de fissura e motivação para parar de fumar e participaram de uma entrevista individual em que forneceram a medida biológica do nível de monóxido de carbono. Os resultados indicaram correlação positiva entre diversas variáveis, com destaque para os três tipos de dependências entre si e com o número de cigarros fumados por dia, tempo de consumo e fissura; e entre duas medidas de dependência física (autorrelato e biológica). No início do comportamento de fumar, a dependência psicológica é mais intensa, e as demais se tornam mais intensas ao longo do tempo e intensidade do consumo.

Palavras-chave: tabagismo; dependência; tratamento.


ABSTRACT

The Smoking Cessation Program (SCP) aims at abstinence from smoking through intervention focusing on biological, psychological and behavioral addiction. This study investigated the relationship between addiction types, pattern of consumption, level of craving, and motivation for abstinence among smokers enrolled in an SCP. A total of 179 smokers (56.7% women) were enrolled in the 11 groups of the SCP. The participants presented an age mean of 41 years and smoked a mean of 19 cigarettes. The average smoking time of the participants is 25 years. All of them answered specific instruments to measure biological, psychological and behavioral addiction, level of cleft and motivation to quit smoking and participated in an individual interview in which they provided the biological measurement of the level of carbon monoxide. The results showed a positive correlation among several variables, emphasizing the three types of addiction among themselves and the number of cigarettes smoked per day, time of consumption and craving; and between two measures of biological addiction (self-reported and biological). At the beginning of smoking behavior, psychological addiction is more intense, and the others become more intense over time and intensity of consumption.

Keywords: smoking; addiction; treatment.


 

 

Introdução

Atualmente o tabagismo é considerado uma doença pandêmica que afeta todas as faixas etárias, grupos étnicos e sociais, causando oito milhões de mortes por ano em todo o mundo (World Health Organization [WHO], 2019). O uso de tabaco está associado ao desenvolvimento de inúmeras doenças crônicas, tais como doenças respiratórias, cardiovasculares e vários tipos de cânceres (Ministério da Saúde [MS], 2013; Perea, Peres, Boing, & Antunes, 2018). Além disso, pessoas expostas diariamente à fumaça do cigarro, consideradas fumantes passivas, experimentam risco maior de desenvolvimento de câncer (Filho, Mirra, Lópes, & Antunes, 2010) e de Síndromes Respiratórias Agudas Graves, como o novo coronavírus - COVID-19 (Instituto Nacional do Câncer [INCA], 2020). Somente no ano de 2015 o tabagismo gerou custos de quase 40 bilhões de reais para assistência médica, o que equivale a 8,04% de todo o gasto em saúde no Brasil, e os custos indiretos atingiram mais de 17 bilhões de reais, devido à produtividade perdida por morte prematura e incapacidade associadas ao tabagismo (INCA, 2020).

Estes dados alertam que políticas públicas com foco no tratamento do tabagismo precisam ser desenvolvidas e constantemente aprimoradas. Diante disso, desde a década de 80 o MS atua em parceria com o INCA, no combate à pandemia tabágica por meio do Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT). O PNCT objetiva, por meio de ações educativas e legislativas, reduzir o número de fumantes e as consequentes taxas de mortalidade, incentivando comportamentos saudáveis em todas as esferas: social, individual, ambiental e econômica (Meier, Vannuchi, & Secco, 2011; Mendes et al., 2016; Rossaneis & Machado, 2011).

Nesse sentido, desde 2005 (Decreto Legislativo 1012/2005) o Brasil é signatário da chamada "Convenção Quadro da Organização Mundial da Saúde para Controle do Tabaco" (CQCT/OMS), que apresenta seis medidas para o controle do tabagismo. Tais medidas são representadas pela sigla MPOWER (em inglês): [M] - Monitoramento, [P] - Proteção de não fumantes, [O] - Oferta de tratamento para deixar de fumar, [W] - Advertência quanto aos perigos do tabaco, [E] - Proibição de propaganda, promoção e patrocínio, e [R] - Aumento de impostos (Kock, Arantes, Santos, & Castelini, 2017). Atualmente, somente Brasil e Turquia aderiram a todas as medidas propostas pela MPOWER (WHO, 2019). Ressalta-se que as medidas supracitadas têm se mostrado eficazes no que diz respeito ao combate do tabagismo (Silva, Martins, Faria, & Cotta, 2014; WHO, 2019); entretanto, considerando que a nicotina é uma das drogas com maior potencial de gerar dependência, existem ainda muitos desafios a serem enfrentados (Cavalcante, 2005), principalmente em relação aos índices de recaída. Em média, um fumante pode recair de cinco a sete vezes antes de atingir a cessação permanente (Russo & Azevedo, 2010); aspecto importante a ser considerado nos programas de tratamento para que se atinja maior eficácia e efetividade.

Considerando a medida de promoção "Oferta de tratamento para deixar de fumar", conforme recomendações do Consenso para Abordagem e Tratamento do Fumante (Marques et al., 2001), a terapêutica pode ser ofertada na rede SUS por profissionais da saúde como médicos, psicólogos, dentistas ou enfermeiros nos chamados Programas de Cessação do Tabagismo (PCT). O tratamento é regido sob três diretrizes advindas do MS/INCA, sendo que a primeira diz respeito à coleta de dados sobre a história tabágica de cada participante, o que inclui aplicar questionários padronizados com o intuito de conhecer os níveis de dependência e motivação para a cessação, por exemplo. A segunda se refere ao encaminhamento desses participantes aos grupos de apoio à cessação realizados em quatro sessões estruturadas à luz da terapia cognitivo-comportamental (TCC), que acontecem semanalmente com conteúdo pré-definido e material didático oferecido (manuais), seguidos de encontros mensais de manutenção. A terceira diretriz diz respeito ao apoio medicamentoso por meio de reposição de nicotina e/ou do uso do antidepressivo cloridrato de bupropiona, quando há necessidade e indicação medicamentosa (Mendes et al., 2016; Santos, Duncan, Sirena, Vigo, & Abreu, 2012).

A nicotina é considerada uma substância psicotrópica, estimulante do Sistema Nervoso Central (SNC), que libera hormônios, neurotransmissores e neuroreguladores. Estes têm ação direta no sistema dopaminérgico meso-corticolímbico, que faz parte do sistema de recompensa do cérebro (Planeta & Cruz, 2005). Assim, o consumo da nicotina proporciona ao usuário um aumento de dopamina no SNC, gerando prazer, elevação do humor, diminuição de apetite, entre outras consequências (Nunes, Vargas, Nunes, & Noto, 2011). Quando a cessação é iniciada, o indivíduo experimenta a síndrome da abstinência, que é caracterizada por sintomas da dependência física da nicotina, como irritabilidade, humor disfórico e fissura (craving) que se configura pelo desejo intenso de fumar e que pode perdurar por vários meses após a cessação (Sattler & Cade, 2013; Zeni & Araújo, 2011).

Entretanto, apesar da dependência física ser a mais evidente, existem outros tipos de dependência que perpassam o processo de cessação, sendo elas a psicológica e a comportamental. A dependência psicológica está ligada ao significado ou função que o cigarro ocupa na vida da pessoa e se relaciona com fatores intrínsecos de personalidade, que podem ser expressos pela busca de experiências novas e estimulantes, minimizando sentimentos negativos (INCA, 2016), bem como por fatores de expressão emocional e condições sociais (França et al., 2015). A dependência psicológica causa uma distorção cognitiva que faz com que o indivíduo acredite que o cigarro é capaz de acalmá-lo ou ampará-lo em momentos de tristeza e luto, por exemplo (INCA, 2016; Ferraz, Busato, Teo, Mattos & Lieschout, 2015). Nesse sentido, se a pessoa fuma por se sentir solitária, o cigarro exerce a função de companhia ou distração para um momento de solidão. Se a pessoa fuma sempre que está nervosa ou irritada, o cigarro parece oferecer sensação de relaxamento. Por isso, é muito importante que exista o processo de autoconhecimento dos hábitos relacionados ao cigarro, para que a cessação tenha mais chance de sucesso.

A dependência comportamental, por sua vez, ocorre a partir de "pareamentos" ou associações que a pessoa faz entre comportamentos de sua rotina e o cigarro. Como a nicotina gera prazer, ela exerce um efeito de reforço positivo no organismo. Experimentos realizados com ratos indicam que a nicotina é capaz de gerar preferências condicionadas a determinados lugares onde estes foram expostos à substância (Planeta & Cruz, 2005). Em relação a humanos, o ato de fumar é repetido várias vezes por dia e é composto de várias ações comportamentais: pegar o cigarro, levá-lo à boca, acendê-lo, tragá-lo e assim por diante, quase como um ritual (INCA, 2016). Estas ações repetidas tornam frequentes as associações de locais, pessoas e objetos da rotina com o prazer de fumar e servem de gatilho para manter o comportamento de uso e de evitação dos sintomas de abstinência (Rocha, Guerra, & Maciel, 2010). Por exemplo, se uma pessoa fuma sempre que toma café, provavelmente o comportamento de tomar café torna-se um gatilho para que a pessoa acenda um cigarro. Essas associações são muito comuns e tendem a dificultar o processo de cessação, pois se tornam comportamentos automatizados.

Portanto, a cessação do tabagismo é um processo complexo, multifatorial e que envolve não só a esfera física, mas também psicossocial em que o indivíduo está inserido. Dessa forma, é necessário que os programas de cessação oferecidos da rede SUS estejam preparados para tratar os três tipos de dependência (física, psicológica e comportamental), visando o menor índice de recaída. Neste contexto, este estudo descritivo tem como objetivo investigar a relação entre os tipos de dependência, padrão de consumo, nível de fissura e motivação para a abstinência entre fumantes inscritos em um Programa de Cessação do Tabagismo (PCT). Acredita-se que este trabalho poderá oferecer subsídios que contribuam para a atuação multiprofissional no tratamento de fumantes, considerando não só os aspectos físicos da dependência, mas também os psicológicos e comportamentais, em consonância com o conceito de saúde integral.

 

Método

Participantes

Foram convidados a participar desta pesquisa todos os fumantes participantes de 11 grupos do PCT oferecidos gratuitamente entre os anos de 2017 e 2019 pelo Serviço de Atenção Psicológica de uma universidade da região sul do Brasil. Foram incluídos fumantes maiores de 18 anos que consumiam pelo menos um cigarro por dia. Os critérios de exclusão foram: a) fumantes que estavam participando de outro tipo de tratamento psicológico além do PCT; b) fumantes que realizaram o tratamento em modalidade individual; e c) fumantes que não responderam de forma completa os questionários de avaliação pré-grupo.

Instrumentos

Entrevistas motivacionais pré e pós grupo: É um tipo de entrevista objetiva, que pode ser utilizada por todos os profissionais da área da saúde, cujo roteiro proposto pelo MS/INCA avalia o perfil do fumante em relação ao histórico do cigarro e se há indicação para intervenção em grupo (casos de comorbidades graves ou urgências psicológicas foram encaminhadas para atendimento individual e não foram convidadas para a pesquisa). É um recurso que objetiva auxiliar a pessoa em sua tomada de decisão, seguindo um modelo baseado na ambivalência e atitude em relação a mudanças (Oliveira, 2011). Entende-se por ambivalência um conflito entre a vontade de modificar um comportamento e continuar com o comportamento atual. Na entrevista pré grupo, com duração aproximada de 30 minutos, as pessoas foram informadas sobre o funcionamento do PCT, motivadas a participarem do grupo e convidadas a participar da pesquisa. Já na entrevista pós grupo, avaliou-se o processo de participação no PCT e solicitou-se feedback de cada participante em relação às quatro sessões estruturadas.

Monoxímetro: é um instrumento portátil que mede o nível de monóxido de carbono (CO) expelido pelos pulmões através da expiração bucal, utilizado para a medição biológica do nível de CO nos fumantes. Os níveis de CO são medidos em partículas por milhão (ppm) e geralmente atingem cerca de 4ppm no ar ambiente. Seus valores pontuam de 0 a 100, classificados da seguinte forma: pessoas não fumantes (valores entre 0 e 6ppm), fumantes leves (valores entre 7 e 10 ppm), fumantes moderados (valores entre 11 e 20 ppm) e fumantes pesados (valores entre 21 e 100 ppm) (Bedfont, 1993). Este instrumento foi utilizado como medida biológica para aferir o nível de consumo de cigarro.

Fagerström Test for Nicotine Dependence (FTND): é um questionário utilizado para medir o grau de dependência nicotínica (dependência física). O instrumento contém seis itens, podendo somar uma pontuação máxima de dez pontos. Escores totais até quatro pontos indicam baixo nível de dependência, escore igual a cinco pontos indica nível médio e escores iguais ou acima de seis pontos indicam dependência alta de nicotina. Este instrumento foi modificado do original Fagerström Tolerance Questionnaire (FTQ) por Heatherton, Kozlowski, Frecker e Fagerström (1991), validado e adaptado para uso no Brasil por Carmo e Pueyo (2002).

Escala de contemplação Ladder: escala utilizada para identificar a prontidão (motivação) do fumante para parar de fumar, traduzida e adaptada para ser utilizada no Brasil (Biener & Abrams, 1991). É composta por dez degraus de uma escada, sendo o mais baixo equivalente a um ponto e o mais alto a dez pontos. Nestes degraus encontram-se frases afirmativas que descrevem gradativamente estágios de prontidão para parar de fumar: "Não penso em parar", "Penso que será necessário parar algum dia", "Penso em parar, mas ainda não estou pronto", "Estou começando a pensar sobre como mudar meu hábito de fumar" "Estou fazendo alguma coisa para parar de fumar".

Questionário sobre o Comportamento de Fumar (QCF): questionário desenvolvido pelos autores do presente estudo para obter dados demográficos e informações sobre o histórico e os padrões do consumo do cigarro, como o tempo e a frequência do uso e os diferentes contextos que incitam mais vontade de fumar (dependência comportamental).

Escala Razões para Fumar da Universidade de São Paulo: escala desenvolvida por Souza, Crippa, Pasian e Martinez (2009) para avaliação da motivação para fumar, a partir de questões do 68-item Wisconsin Inventory of Smoking Dependence Motives (WISDM-68; Inventário Wisconsin dos Motivos de Dependência ao Fumo, de 68 itens) e da Modified Reasons for Smoking Scale (MRSS; Escala Razões para Fumar Modificada). Contém 21 questões agrupadas em nove fatores: dependência, prazer de fumar, redução da tensão, estimulação, automatismo, manuseio, tabagismo social, controle de peso e associação estreita (dependência psicológica).

Questionnaire of Smoking Urges-Brief (QSU-B): o QSU-B é uma versão breve do Questionnaire of Smoking Urges (QSU), composto por 10 questões afirmativas que avaliam o nível de craving em tabagistas. O instrumento validado para uso no Brasil (Araujo et al., 2007) apresenta as questões em uma escala Likert de 7 pontos que varia de "discordo totalmente" até "concordo totalmente". Analisa-se o somatório total de pontos, sendo que escores de 0 a 13 indicam craving mínimo; de 14 a 26, leve; de 27 a 42, moderado; e de 43 ou mais pontos, craving intenso. Considerando a possibilidade de avaliação do nível de fissura, este instrumento foi utilizado para investigar a dependência psicológica dos participantes em relação ao cigarro.

Procedimentos

Foram ofertados 11 grupos do PCT entre os anos de 2017 e 2019 que seguiram os mesmos procedimentos de divulgação, inscrição, entrevistas, aplicação dos questionários e condução dos grupos. A divulgação era realizada por meio de mídias sociais (páginas da universidade e do serviço de psicologia, facebook, televisão e rádio) para toda a comunidade acadêmica bem como para a sociedade em geral, com vistas a atingir o maior número de interessados possíveis. Após o término do período de inscrições, os participantes eram contatados via telefone por chamada ou mensagem de whatsapp para agendar a entrevista motivacional pré-grupo. Nessa entrevista inicial, as pessoas eram convidadas a participar da pesquisa e aquelas que concordaram assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos com Parecer nº 1.960.251), e os que não aceitaram, participaram normalmente do Programa, mas seus dados não foram utilizados na pesquisa. Ainda na entrevista individual, houve a obtenção de dados do histórico do tabagismo e os participantes responderam aos instrumentos anteriormente citados.

Os procedimentos para a realização dos grupos seguiram o preconizado pelo MS e INCA e foram conduzidos por uma psicóloga ou estagiária de psicologia sob supervisão, devidamente capacitada em Tratamento Intensivo do Fumante pela Secretaria da Saúde. Cada grupo foi formado por quatro encontros semanais, cada um com sua respectiva temática, com duração de aproximadamente uma hora e meia, sendo distribuídos os materiais do MS/INCA. A sala era confortável e adequada para a realização de grupos, equipada com projetor e quadro branco para enriquecer o ambiente de ensino- aprendizagem do conteúdo programático.

Após o término dos grupos, imediatamente após a última sessão, os participantes respondiam novamente aos instrumentos, inclusive sopravam o monoxímetro. Aqueles que não alcançaram a cessação, informaram o número de cigarros fumados pós-intervenção. Todas as entrevistas pós-grupos foram conduzidas por outros alunos do curso de graduação de psicologia certificados no Tratamento Intensivo ao fumante, que não os condutores dos grupos, com vistas a diminuir o viés de desejabilidade social.

Análise dos Dados

Estatística descritiva foi utilizada para analisar as variáveis sexo, idade, nível de dependência psicológica e comportamental, número de cigarros fumados por dia, monóxido de carbono por ar expirado (CO), nível de dependência de nicotina (FTND), nível de fissura e motivação para mudança em termos de distribuição de frequências, média e desvio padrão. Para avaliar a relação entre os tipos de dependências e as demais variáveis foi utilizado o teste de correlação de Pearson (considerando que os dados tiveram distribuição normal, conforme teste Kolmogorov-Smirnov; p > 0,05); e para investigar a relação das variáveis conforme status do tratamento (abandono; parou de fumar; não parou de fumar), foi utilizada Análise de variância (ANOVA). Em todas as análises foi adotado o nível de significância de 5% e utilizado o pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 22.

 

Resultados

Participaram deste estudo 179 fumantes, com média 41 anos (DP= 4,87) de idade, a maioria mulheres (56,7%), que realizaram a entrevista pré-grupo e foram dispostos em 11 grupos do PCT. Os participantes fumavam, em média, 19 cigarros por dia (DP = 10,32), há 25 anos (DP = 13,78); iniciaram o uso do tabaco em média aos 16 anos de idade (DP = 4,87), sendo o início mais precoce aos oito e o mais tardio aos 54 anos de idade. Dos participantes que já tentaram parar de fumar previamente (quase 93%), a média de número de tentativas foi de três vezes (DP=2,47). Sobre o nível de gravidade das três dependências, quase 90% dos participantes apresentaram dependência psicológica (85,1%) e comportamental (87,5%) de moderada a alta, enquanto que 64,1% apresentaram dependência física nestes níveis. Os dados referentes às frequências das variáveis relacionadas ao comportamento de fumar estão apresentados na Tabela 1.

 

 

Os resultados da análise de correlação estão apresentados na Tabela 2. Destaca-se que as duas medidas de dependência física, CO e FTND, correlacionaram-se entre si (p = 0,008; r = 0,2), mostrando que tanto a medida biológica como a de autorrelato para este tipo de dependência, foram congruentes. Houve correlação positiva entre idade e tempo que fuma (p = 0,0001; r = 0,9), número de cigarros fumados por dia (p = 0,001; r = 0,3), nível de dependência de nicotina (p = 0,001; r = 0,3), motivação para parar de fumar (p = 0,010; r = 0,2) e nível de fissura (p= 0,0001; r = 0,8), indicando que quanto mais velho, maiores os escores nestas variáveis. Ainda, a variável idade correlacionou-se de forma inversa com dependência comportamental (p = 0,011; r = -0,2) e psicológica (p = 0,018; r = - 0,2), indicando que os mais jovens tinham maiores índices desses dois tipos de dependências. O nível de dependência comportamental mostrou correlação positiva com nível de monóxido de carbono (p = 0,04; r = 0,2), número de cigarros fumados por dia (p = 0,002; r = 0,2), nível de dependência de nicotina (p = 0,0001; r = 0,3), dependência psicológica (p = 0,001; r = 0,3) e fissura (p = 0,001; r = 0,2), indicando que quanto maior a dependência comportamental, maiores os escores nessas variáveis. Por outro lado, o nível de dependência comportamental foi mais baixo nos participantes mais velhos (p = 0,011; r = -0,2), naqueles que começaram a fumar mais tarde (p = 0,04; r = -0,1) e naqueles que fumam há mais tempo (p = 0,004; r = -0,2), evidenciados pela correlação negativa fraca.

Além da análise de correlação, realizou-se análise de variância (ANOVA) agrupando os participantes conforme status do tratamento em "abandonou tratamento" (n = 117; 65%), "parou de fumar" (n = 43; 24%) ou "reduziu consumo/não parou de fumar" (n = 19; 11%). A ANOVA das medidas coletadas antes do PCT mostrou diferença entre os grupos no nível CO (F(20) = 4,96; p = 0,009) e nível de fissura (F(2) = 6,23; p = 0,002). O teste Post Hoc de Bonferroni revelou que o nível de CO foi maior (p = 0,03) entre os que não pararam de fumar (m = 16,69; dp = 8,42) quando comparados aos que pararam de fumar (m = 10,33; dp = 7,58) e também foi maior (p = 0,026) entre aqueles que abandonaram tratamento (m = 14,84; dp = 8,56) quando comparados aos que pararam de fumar. Não houve diferença entre os que abandonaram o tratamento e os que não pararam de fumar.

O nível de fissura foi maior (p = 0,005) entre os que não pararam de fumar (m = 9,89; dp = 2,77) quando comparados aos que pararam de fumar (m = 7,91; dp = 2,11) e também foi maior (p = 0,002) em relação aos que abandonaram tratamento (m = 7,96; dp = 2,25), mas não houve diferença de fissura entre os que abandonaram o tratamento e os que pararam de fumar. As demais variáveis não apresentaram diferenças entre os grupos.

Não foi possível realizar ANOVA das medidas coletadas após o PCT porque havia questionários não respondidos pelos que abandonaram o tratamento (n = 117), impossibilitando análise dos participantes separados em grupos. Considerando somente os que aderiram ao tratamento (n = 62), a taxa de sucesso (abstinência) foi de 69% após o PCT.

 

Discussão

O perfil sociodemográfico e o histórico do tabagismo das pessoas que procuraram o PCT relatado no presente estudo corroboram dados da literatura que indicam que mulheres, acima de quarenta anos, buscam mais auxílio para parar de fumar (Kock et al., 2017; Russo & Azevedo, 2010; Santos et al., 2018). Também entre jovens, estudo realizado a partir de dados do Inquérito de Tabagismo em Escolares (Vigescola), com 3690 adolescentes com idades entre 13 e 15 anos de escolas públicas e privadas da região sul do Brasil, encontrou que, em todas as cidades estudadas, a predominância de sexo nas amostras era feminina (Hallal, Gotlieb, Almeida, & Casado, 2009). Sobre isso, salienta-se que cada vez mais a indústria de cigarros direciona suas campanhas de marketing para o segmento do mercado feminino investindo em publicidades que sugerem que o cigarro satisfaz necessidades psicossociais atreladas a esse público. Algumas marcas produzem campanhas sugestionando que o cigarro seja uma recompensa e que representa a maturidade e liberdade feminina, por exemplo, visando o aumento do consumo (Anderson, Glantz, & Ling, 2005).

Considerando a idade de início do uso e quantidade de cigarros fumados, 79,8% da presente amostra iniciou o consumo com 18 anos ou menos, fumava de 11 a 20 cigarros por dia (53,4%) e realizou pelo menos três tentativas de cessação (75,6%), confirmando achados de pesquisas anteriores. Estudo realizado em um centro de atendimento integral à saúde na região sul do Brasil encontrou que 51% da amostra iniciou o uso de tabaco entre 15 e 18 anos, sendo que 49,8% dos participantes fumavam de 11 a 20 cigarros por dia e 63,8% já tinham tentado parar de fumar até três vezes (Silva & Schneider, 2013). Outra pesquisa realizada em um ambulatório de apoio ao tabagista no nordeste do Brasil encontrou que 92% da amostra iniciou o tabagismo na adolescência (média de 15,4 anos), sendo que mais da metade dos participantes fumava mais de 20 cigarros por dia e já haviam tentado cessar o consumo pelo menos uma vez (Sales, Figueiredo, Oliveira, & Castro, 2006). Com isso, evidencia-se que o tabagismo atinge todas as faixas etárias, incluindo crianças e adolescentes, que já iniciam o consumo com uma carga tabágica alta. É importante refletir sobre as influências midiáticas, imagéticas, bem como aquelas geradas no próprio ambiente familiar que reforçam o comportamento de fumar entre crianças e adolescentes - como por exemplo a exposição constante à fumaça do cigarro em casa ou na própria escola. O tabagismo é, portanto, uma doença pediátrica que pode gerar danos irreversíveis à saúde (Araújo, 2010). Além disso, o processo de parada tende a ser complexo e multifatorial, necessitando de mais de uma tentativa para atingir o sucesso devido às recaídas que ocorrem durante a abstinência.

Em relação aos tipos de dependência, os resultados do presente estudo mostraram que as dependências psicológica e comportamental dos participantes tiveram frequência de nível de gravidade mais elevado (moderada e alta) do que a dependência física. Além disso, houve correlação positiva entre as dependências física, comportamental e psicológica com o número de cigarros fumados por dia, tempo de consumo e fissura. Faz sentido que o hábito se estabeleça conforme o consumo de cigarros aumenta, pois toda a rotina do fumante passa a estar associada ao comportamento de fumar, o que aponta a necessidade de se observar a multifatoriedade do tabagismo, não restringindo a uma questão somente física (Meirelles, 2009). Sobre a dependência física, as duas medidas utilizadas (FTND e CO) correlacionaram-se positivamente entre si, assim como com fissura, com número de cigarros fumados por dia e com a dependência comportamental, mas de forma negativa com motivação. A alta dependência da nicotina associada à baixa motivação para a cessação é um dos maiores fatores de insucesso para o tratamento, visto que as consequências da fissura se dão de forma mais acentuada (França et al., 2015).

A dependência comportamental foi maior naqueles que fumavam mais cigarros por dia, apresentavam maior fissura e maior dependência física e psicológica. Isto significa que quanto mais se fuma, mais diversas são as situações, locais ou pessoas pareadas com o prazer do ato de fumar gerado pela nicotina, o que leva a um aumento ou manutenção deste comportamento (Mesquita, 2013). Uma vez que o objetivo do tratamento é a abstinência, se apenas a dependência da nicotina estivesse atuando, a sua reposição, via adesivo transdérmico por exemplo, seria suficiente para a cessação. Entretanto, o fato das dependências não operarem de forma isolada, indica a importância de trabalhar o sujeito de forma integral, não somente com medicações, mas por meio intervenções individuais e em grupo, conforme orienta o INCA/MS.

Por outro lado, tanto a dependência comportamental como a psicológica foram maiores nos mais jovens e naqueles que fumavam há menos tempo, o que pode indicar que enquanto o hábito ainda não está completamente estabelecido e nem a dependência física, o ato de fumar pode ter uma função principalmente social no período da adolescência e adultez jovem. Nesta fase do desenvolvimento, em que a identificação com pares e aceitação social ocupam lugar de destaque, a experimentação de drogas lícitas como álcool e tabaco se tornam frequentes. O álcool foi apontado como um dos maiores gatilhos para o comportamento de fumar no contexto de jovens adultos e um tabagista tem em média mais de metade do seu grupo social fumante, o que também influencia na manutenção do consumo (Abreu, Souza, & Caiaffa, 2011). Além disso, entre as principais dificuldades encontradas ao tentar parar de fumar estão a irritabilidade e ansiedade, que podem ser compreendidas como fatores de interação das três dependências, visto que o cigarro muitas vezes é utilizado para acalmar e relaxar (Ferraz et al., 2015).

A motivação correlacionou positivamente com a variável idade e tempo que fuma, indicando que os mais motivados para a cessação eram os mais velhos e que fumavam há mais tempo. Tal achado corrobora dados de uma pesquisa que afirmou que os mais jovens minimizam a sua dependência (Andrade et al., 2006), provavelmente por não sentirem as consequências do tabagismo a curto prazo ou ainda não estarem acometidos por doenças tabaco-relacionadas. Em conjunto, estes dados sugerem que logo que o indivíduo começa a fumar, a dependência psicológica é mais forte, pois o papel que o cigarro desempenha assume protagonismo e não há motivação para cessar o comportamento. Com o passar do tempo e o aumento do consumo, as dependências comportamental e física vão aumentando, pois comportamentos rotineiros passam a ser associados com o cigarro e com o efeito neurobiológico da nicotina no cérebro.

Na comparação dos grupos conforme status do tratamento, os níveis de CO e de fissura foram maiores entre aqueles que não pararam de fumar e que abandonaram o tratamento em comparação aos que pararam de fumar, o que é possível explicar pelo alto nível de dependência da nicotina. Quanto mais tempo a pessoa fuma, maior é a tolerância e, consequentemente, mais cigarros precisam ser fumados, o que diminui as chances do sucesso terapêutico (Rossaneis e Machado, 2011). No presente estudo, a taxa de sucesso (abstinência) foi de 69%, congruente com resultados de outras pesquisas que também obtiveram índices elevados, como 75% no PCT aplicado em UBS (Kock et al., 2017) e 67% no PCT oferecido pelo Sistema Único de Saúde em 60 municípios do estado de Minas Gerais (Santos et al., 2012). Outros estudos, porém, apresentaram índices mais baixos de abstinência como 37% e 38%, respectivamente (Figueiró et al., 2013; Pawlina, Rondina, Espinoza, & Botelho 2014).

Considerando o abandono do tratamento (índice de 65% no presente estudo), ressalta-se que altas taxas são comuns na literatura. Estudo realizado com participantes (n=120) provenientes de oito PCT de uma unidade municipal de saúde de Curitiba (PR) encontrou que, o maior índice de abandono dos grupos chegou a uma taxa de 62,5% e a menor 27,3%. Neste mesmo estudo, as taxas de sucesso terapêutico variaram entre 12,5% até 72,7% (Wittkowski & Dias, 2017). Lopes, Peuker e Bizarro (2013) realizaram um programa de cessação do tabagismo em uma empresa de transporte rodoviário municipal e obtiveram 47% de abandono do tratamento (entre inscrição e sessão 1) e 44% de taxa de sucesso. Ainda sobre taxas de sucesso e abandono do tratamento, uma pesquisa realizada com prontuários de PCT no município de Cascavel encontrou que os maiores índices de sucesso (36,4%) foram entre os que apresentaram menor nível de dependência de nicotina, enquanto que as maiores taxas de abandono (67,85%) se concentraram entre aqueles com maior nível de dependência (Munchen, Radaelli, Franco, & Zanatta, 2013). Esses dados corroboram a hipótese de que quanto maior a dependência nicotínica, menores os índices de abstinência, provavelmente pela maior carga tabágica que pode causar maior dependência física, comportamental e psicológica.

Os motivos da baixa adesão nos grupos de cessação do tabagismo são multifatoriais, principalmente devido à complexidade da temática. A desinformação acerca dos programas, associação do uso do tabaco com outras drogas de abuso, dependência medicamentosa, comorbidades psicopatológicas e vulnerabilidade social são alguns dos possíveis principais motivos de baixa adesão nos grupos (Rodrigues & Velozo, 2017). Estudo descritivo desenvolvido com tabagistas em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Maringá (PR) questionou os participantes sobre as maiores dificuldades de adesão aos grupos e encontrou que 73,43% tinha dificuldade se locomover até o local; 26,56% referiu a falta de informação a respeito dos grupos e 17,18% informou incompatibilidade com a rotina ou falta de tempo. Como explicação alternativa, Heck, Diel, Matter e Fortes (2020) sugerem que a baixa adesão se relaciona intimamente com os lapsos e recaídas que ocorrem durante o processo de cessação. As recaídas podem gerar sentimento de baixa autoeficácia, gerar sentimento de culpa e aumentar as chances de abandono do programa. Dessa forma, torna-se imprescindível a atuação dos profissionais de saúde de maneira empática e coerente com a visão integral de saúde.

 

Considerações finais

No presente estudo, confirmando outros da literatura, grande parte da amostra iniciou o consumo aos 18 anos ou menos, o que indica que a prevenção do uso de tabaco deve começar no início da adolescência, de modo a tentar diminuir as taxas de consumo em idades precoces. Também foi observada correlação positiva entre dependência física, psicológica e comportamental, indicando que a dependência de tabaco é um fenômeno que atinge integralmente a vida do indivíduo. Dessa forma, é importante que o PCT seja aplicado de forma fiel ao preconizado pelo MS e INCA, com foco no tratamento médico e psicológico de forma integral.

 

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Correspondência para:
Fernanda Machado Lopes
R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n - Trindade
Florianópolis - SC, 88040-900
E-mail: femlopes23@gmail.com

Submetido em: 24.01.2021
Aceito em: 14.07.2021

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