Questões atinentes à relação entre família e comportamento delituoso na adolescência já nortearam inúmeras investigações. Hoje, apesar do consenso sobre o fato de o comportamento ser multideterminado, atrelado a variáveis pertencentes a diferentes contextos, muitos pesquisadores continuam a se interessar pela família, pois esta continua sendo considerada uma instância relevante na socialização dos jovens (Castro & Guareschi, 2008; Formiga, 2010; Le Blanc, 2003).
Focalizando variáveis familiares associadas à conduta delituosa na adolescência, um modelo foi elaborado e testado, observando os fatores significativos e a dinâmica existente entre eles, tendo por base dados de estudos longitudinais prospectivos, com amostras representativas de adolescentes, estudantes e infratores julgados nos tribunais da cidade de Montreal (Canadá) (Le Blanc & Bouthillier, 2001; Le Blanc & Janosz, 2002; Le Blanc 2003, 2006, 2010). Esse modelo propõe um sistema de regulação do comportamento, na e pela família, composto por variáveis a modulá-lo, no tempo, alocadas em seis dimensões: (1) Status socioeconômico; (2) Configuração familiar; (3) Conjugalidade; (4) Modelos na família; (5) Vínculos familiares; (6) Constrangimentos familiares.
De forma breve, (1) Status socioeconômico e (2) Configuração familiar referem-se a condições em que vive a família e a características de configuração, que podem representar estresse e impactar as relações e o funcionamento familiar. A (3) Conjugalidade diz respeito à qualidade da vida do casal, e os (4) Modelos na família, às atitudes e aos comportamentos sociais apresentados pelos seus membros adultos, sendo que essas dimensões compõem o contexto das relações e do funcionamento familiar. No centro do sistema estão os mecanismos de regulação do comportamento do adolescente propriamente ditos: (5) Vínculos familiares e (6) Constrangimentos. O primeiro remete ao Apego entre o adolescente e os membros de sua família e ao investimento em atividades compartilhadas. O segundo refere-se aos limites e às possibilidades postos para o adolescente, considerando os valores e as normas familiares, operacionalizadas através das práticas parentais, que podem ser adequadas ou não (abusivas e/ou negligentes).
Nessa teorização, as variáveis independentes são as anteriormente citadas e as dependentes são a “rebelião familiar” e a conduta delituosa. Le Blanc (2006) indica que a rebelião familiar se refere a comportamentos de desobediência crônica, fuga e furtos dentro de casa, ao passo que a conduta delituosa se refere às infrações às leis. Le Blanc e Janosz (2002) sublinham que há variações na forma como as condições, o contexto e os mecanismos se apresentam para cada adolescente, o que concorre para uma regulação familiar da conduta peculiar, para cada adolescente, num dado momento. Pode-se imaginar que o sistema familiar de regulação do comportamento do adolescente pode operar em condições bastante desfavoráveis (baixo status socioeconômico – pobreza; número elevado de filhos, monoparentalidade etc.) e em contexto também muito desfavorável (baixa qualidade da vida conjugal, sendo esta marcada por discórdias-violência, laços conjugais frágeis etc.).
Nesse panorama, os comportamentos divergentes/delituosos são mais prováveis se o Apego do adolescente aos seus pais/responsáveis for frágil e se forem raras ou inexistentes as Atividades Compartilhadas entre pais/responsáveis e filhos. Mediante a fragilidade do Vínculo Familiar, as normas e as práticas disciplinares na família podem ser questionadas pelo adolescente. Se as normas e práticas familiares se mostrarem débeis e/ou inadequadas (negligentes/abusivas), ele apresentará maior resistência para aceitá-las. Ademais, se os pais/responsáveis forem modelos divergentes (isto é, se eles mesmos apresentarem condutas e atitudes marcadamente divergentes), a chance de o adolescente legitimar as regras e os controles sociais de forma geral tende a diminuir (Le Blanc & Janosz, 2002; Le Blanc, 2006).
Frisa-se que o modelo proposto é integrativo e tem caráter sistêmico, pressupondo interação dinâmica, com efeito de feedback, entre as variáveis no âmbito da família e entre essas e as variáveis de outros sistemas de regulação do comportamento, tais como o sistema escolar e comunitário e o relativo ao grupo de pares. A elaboração teórica sobre os diferentes sistemas a regular o comportamento social na adolescência e a interação dinâmica entre eles compõem a Teoria da Regulação Social e Pessoal da conduta, de Marc Le Blanc (2001, 2003, 2006, 2010). Deve-se sublinhar que, na atualidade, essa é considerada por especialistas a teoria desenvolvimental mais complexa e consistente voltada à compreensão do envolvimento de adolescentes com a prática de delitos (Farrington, 2010).
No presente estudo, enfoca-se tão somente a regulação na e pela família, ou seja, o sistema familiar. O objetivo geral é testar o modelo apresentado em uma amostra brasileira, verificando quais variáveis distinguem significativamente um grupo formado por adolescentes judicializados, devido ao cometimento de atos infracionais, de outro formado por adolescentes sem histórico infracional. Esse tipo de pesquisa se faz necessária visto que a instituição familiar é profundamente impactada pelas formas de organização social e cultural, características das diferentes sociedades. Essas afetam as relações e os papéis desempenhados no interior das famílias (Pratta & Santos, 2007). Le Blanc e Janosz (2002) sublinham que, numa mesma sociedade, as organizações social e cultural se alteram, de um momento a outro, e isso certamente concorre para mudanças na relação existente entre família e comportamento delituoso na adolescência, o que torna relevante pesquisar tal relação continuamente e verificar, nos diferentes contextos socioculturais, as variáveis familiares efetivamente associadas ao comportamento infracional.
Método
Participantes
Participaram do estudo 68 adolescentes do sexo masculino, com idades entre 13 e 18 anos (M=16): 32, sem histórico oficial de infração à lei (grupo não judicializado – GNJ), e 36 autores de ato infracional, nos termos da lei brasileira (grupo – GJ). Os adolescentes do GNJ foram recrutados em uma escola estadual e os do GJ no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), órgão responsável pela execução de medidas socioeducativas em meio aberto, os dois localizados em uma cidade do Triângulo Mineiro, Minas Gerais. Do total de adolescentes do GJ, 19 (52,8%) estavam cumprindo medida judicial pela primeira vez: 8 com Prestação de Serviço à Comunidade (PSC), 5 com Liberdade Assistida (LA) e 6 com as duas medidas (PSC e LA), simultaneamente. Os outros 17 (47,22%) eram reincidentes: 2 estavam na PSC, 4 na LA e 11 nas duas medidas, simultaneamente. Do total de reincidentes, 13 jovens (36,11%) relataram ter cumprido anteriormente medida socioeducativa de internação, e os outros 4 (11,11%), na LA.
Em relação à escolaridade, a maioria em GJ (77,78%, n=28) estava cursando o ensino fundamental, com 6,9 anos de estudo, em média, ao passo que quase a totalidade de GNJ (96,88%, n=31) estava cursando o ensino médio, com, em média, 9,9 anos de estudo. Houve uma diferença média de 3 anos de estudos entre os grupos.
No tocante às famílias dos participantes, os dados mostraram que praticamente 100% dos adolescentes pertenciam a famílias em que o(s) responsável(is) eram os genitores, ou seja, eram os pais biológicos (um deles ou os dois). Apenas um jovem no GNJ indicou ter sido adotado. Em 50% dos casos, tanto em GJ quanto em GNJ, os pais/genitores haviam se separado. As separações/divórcios teriam transcorrido há, aproximadamente, 5 anos (o mesmo tempo médio nos dois grupos). Portanto, 50% dos adolescentes de GJ e de GNJ referiram viver com os dois pais/genitores, sendo os dois responsáveis legais. O restante viveria em uma família monoparental (chefiada somente pela mãe ou somente pelo pai), com parentes (por exemplo, os avós), ou sob guarda compartilhada (com os dois pais, embora separados). Apesar de 94% dos adolescentes de GJ e de GNJ terem pai vivo (figura paterna), 36% deles em GJ e 25% em GNJ referiram não o considerar como figura significativa.
A maioria dos responsáveis do GJ (n=24, 66,67%) teria estudado até o final do ensino fundamental (ou seja, teriam uma escolaridade de 8 anos), enquanto a maioria do GNJ (65,63%, n=21) teria concluído o ensino médio e/ou ensino superior (ou seja, teriam mais de 8 anos de escolaridade), havendo diferença significativa entre os grupos nesse plano (p=0,009). Focalizando a situação empregatícia, 92% dos responsáveis em GJ e 100% em GNJ possuiriam emprego (ao menos um dos responsáveis), segundo o relato dos adolescentes. Entretanto, os responsáveis do GJ, exerceriam, em geral, atividades requerendo pouca qualificação (seriam, por exemplo, faxineira e pedreiro), ao passo que os responsáveis do GNJ exerceriam atividades requerendo maior qualificação (seriam, por exemplo, enfermeira, advogada e professor).
No que se refere à renda, de acordo com a pontuação estabelecida pelo Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), encontrou-se que 66,67% do GJ pertenciam às classes C e D, e 68,75% do GNJ, às classes A e B. Assim, a maioria de GJ pertenceria a famílias com renda de até 2 salários mínimos, ao passo que em GNJ, famílias com renda superior a 2 salários mínimos, diferenciando-se significativamente nesse plano (p = 0,003).
Instrumentos
Empregou-se um Questionário de Caracterização para obter informações concernentes à idade e à escolaridade do adolescente, bem como sobre um eventual histórico de passagem pelo sistema de Justiça Juvenil. A ele foi incorporado o CCEB, pelo qual se inferiu a classe socioeconômica da família do adolescente, por meio de indicadores materiais e sociais informados pelo próprio adolescente (ABEP, 2010). O outro instrumento empregado foi a versão em português da Escala Família, pertencente ao Measuring Adolescent Social and Personal Adaptation - MASPAQ (Le Blanc, 2003), cuja base é a Teoria da Regulação Social e Pessoal da Conduta. Trata-se de um instrumento utilizado para fins de pesquisa, adaptado semanticamente ao contexto brasileiro, tendo sido traduzido e retrotraduzido e, posteriormente, testado junto a uma amostra de adolescentes (n = 9), com vistas à adequação dos termos empregados. Para esse procedimento contou-se com a autorização do autor, Marc Le Blanc.
A Escala visa à obtenção de informações, junto ao adolescente, referentes à sua experiência familiar, partindo do princípio de que o dado mais importante à compreensão de suas interações na família é a percepção que ele tem disso, ainda que essa fonte envolva distorções da realidade, falhas de memória, interpretações pessoais e fabulações (Le Blanc, 2001). A Escala é composta por 131 questões que requerem, na maior parte das vezes, respostas numa escala do tipo Likert (sempre; várias vezes; de vez em quando; nunca). Essas questões constituem-se em indicadores das variáveis que compõem as diferentes dimensões do sistema de regulação. No plano do (1) Status socioeconômico, as variáveis são: (a) prestígio ocupacional referente ao trabalho dos adultos, relacionado ao grau de escolaridade desses e (b) (in) dependência econômica da família, relacionada ao fato de a família precisar ou não de algum tipo de ajuda assistencial. Na (2) Configuração familiar, as variáveis são: (a) número de irmãos, (b) configuração conjugal (unidos ou separados / bi-parentalidade/ monoparentalidade), (c) se desconstituída a família, tempo que o casal está separado, (d) número de mudanças da residência (tendo em vista a estabilidade dos laços comunitários), (e) fato de a mãe trabalhar fora de casa ou não (e, se sim, os horários). São exemplos de questões no domínio das condições: “Qual é o emprego ou a ocupação de seu pai?”; “Quantos irmãos por parte de mãe e por parte de pai você tem?”.
No que concerne ao Contexto Familiar, citam-se as dimensões (3) Conjugalidade e (4) Modelos na família. Na primeira avaliam-se: (a) o grau de afeição existente entre os cônjuges, (b) a presença/nível de discórdia entre os pais/casal e (c) a existência de atividades compartilhadas entres eles. A dimensão (4) Modelos na família remete às variáveis (a) condutas e (b) atitudes divergentes dos adultos da família. Nesse tocante, avalia-se se algum membro da família (pai, mãe ou irmão mais velho) teve passagem pela polícia (ou foi preso) por ter cometido alguma infração. São exemplos de questões nesses domínios: “Seus pais significativos brigam, discutem na sua frente?”, “Seu pai/sua mãe diria: ‘Não tem problema desrespeitar as leis se a gente não é pego’?”.
No tocante aos mecanismos de regulação, tem-se a (5) Vinculação Familiar, composta pelo Apego dos adolescentes aos seus pais/responsáveis e pelo Investimento familiar. O Apego é aferido: (a) pelo nível/qualidade da comunicação existente entre o adolescente e seus pais/responsáveis, (b) pela percepção, da parte do adolescente, de rejeição ou aceitação pelos pais/responsáveis e (c) pelo nível de identificação afetiva do adolescente com os pais/responsáveis. O Investimento familiar é aferido: (a) pelo tempo despendido pelos pais/responsáveis à família, (b) pelo tempo em atividades compartilhadas entre os pais/responsáveis e o adolescente e (c) pelo tempo do adolescente com os irmãos. São exemplos de questões nessa dimensão: “Você conversa com a tua mãe/com teu pai sobre teus pensamentos e sobre o que você sente?”; “Normalmente, quantas horas por semana você gasta conversando/batendo papo com a tua mãe/com o teu pai?”.
O outro mecanismo de regulação, os (6) Constrangimentos Familiares, abrangem as variáveis: (a) regras estabelecidas na família, (b) legitimidade das regras familiares para o adolescente, (c) supervisão parental, (d) reação dos pais frente ao comportamento antissocial do filho, incluindo delitos e (e) natureza das punições (se abusivas ou não). São exemplos de questões nessa dimensão: “Tua mãe/teu pai estabelece regras em relação à hora que você deve chegar em casa, à noite?”; “Tua mãe/teu pai sabe onde você está quando está fora de casa?”; “Se você pegasse alguma coisa sem pagar, de uma loja, e tua mãe/teu pai tomasse conhecimento, o que ela (ele) faria?”.
Considerando que muitas famílias são desfeitas e, eventualmente, reconstituídas, Le Blanc (2006) introduziu na Escala a noção de “pais – pai e mãe – significativos”. Assim, no início da aplicação do instrumento, informa-se ao adolescente que ele pode responder pensando nas pessoas que “considera como pai e mãe”, que podem não ser, necessariamente, os genitores.
Procedimentos
Os instrumentos foram aplicados individualmente, em salas reservadas. A aplicação assumiu um formato de entrevista estruturada, nos dois grupos, de modo a padronizar a coleta, visando evitar vieses decorrentes de uma menor proficiência em leitura de determinados adolescentes, considerando a existência de variações na amostra, nesse quesito.
Quanto à análise dos dados, a correção do Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) seguiu as normas do instrumento. Com relação às demais variáveis do Questionário de Caracterização, os dados foram categorizados e inseridos em uma planilha de modo que também pudessem ser tratados. As respostas obtidas com a Escala Família foram primeiramente corrigidas com o auxílio do programa informatizado de correção do próprio instrumento – o Maspaq Général 2.0 - Windows (Copyright © Le Blanc, 1997), que oferece os escores brutos de cada participante. Estes também foram inseridos na planilha e, posteriormente, tratados estatisticamente. Realizaram-se, em um primeiro momento, análises descritivas e, em seguida, o teste Qui-quadrado para comparar os grupos GNJ e GJ em relação à proporção de indivíduos distribuídos em cada categoria de variável, sendo que nos casos em que os pressupostos não foram atendidos, empregou-se o teste “Exato de Fisher” para o cálculo das probabilidades. Assumiu-se a hipótese de que as proporções de adolescentes de cada grupo seriam diferentes. Para todas as análises adotou-se, como significativas diferenças, ao nível de 0,05.
Resultados
Os resultados indicaram diferença estatística significativa entre GJ e GNJ em apenas três das seis dimensões do sistema familiar de regulação: Status socioeconômico, Vínculos Familiares e Constrangimentos. No plano das Condições Estruturais, GJ e GNJ se mostraram significativamente diferentes em todas as variáveis atinentes a Status socioeconômico, conforme pode-se observar na Tabela 1.
Tabela 1. Comparação dos grupos no tocante a Status socioeconômico
Status socioeconômico | Grupos | X2 | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|
GJ | GNJ | |||||
% | % | |||||
Status socioeconômico | 11,89 | 0,002* | ||||
0.00 | 4 | 11,11 | 12 | 37,5 | ||
1.00 | 15 | 41,67 | 16 | 50 | ||
2.00 | 17 | 47,22 | 4 | 12,5 | ||
Desvantagem ocupacional | 22,12 | 0,001* | ||||
1.00 (menor) | 3 | 8,33 | 6 | 18,75 | ||
2.00 | 0 | 0 | 2 | 6,25 | ||
3.00 | 1 | 2,78 | 8 | 25 | ||
4.00 | 4 | 11,11 | 4 | 12,5 | ||
5.00 | 0 | 0 | 3 | 9,38 | ||
6.00 | 10 | 27,78 | 4 | 12,5 | ||
7.00 | 14 | 38,89 | 5 | 15,63 | ||
8.00 (maior) | 4 | 11,11 | 0 | 0 | ||
Dependência econômica | 6,97 | 0,031* | ||||
2.00 (pouca) | 11 | 30,56 | 16 | 50 | ||
3.00 | 19 | 52,78 | 16 | 50 | ||
4.00 (muita) | 6 | 16,67 | 0 | 0 |
Nenhuma variável atinente à Configuração familiar, contudo, se mostrou significativa para discriminar GJ e GNJ: (a) número de irmãos (p=1,000), (b) separação dos pais (p=1,000), (c) duração da separação (p=0,813), (d) número de mudanças da residência (p=0,443) e (e) tipo/horários de trabalho da mãe (p=0,819). As variáveis relativas à Conjugalidade também não indicaram diferença significativa entre os grupos: (a) grau de afeição existente entre os cônjuges (p=0,799), (b) presença/nível de discórdia entre os pais/casal (p=0,732) e (c) existência de atividades compartilhadas entres eles (p=0,253).
Igualmente, nenhum item indicou diferença significativa entre GJ e GNJ no plano dos Modelos na família: (a) condutas (p = 0,762) e (b) atitudes divergentes dos adultos da família (p = 0,244). Entretanto, quando se agregou a informação sobre histórico de envolvimento infracional/criminal referente a outros membros da família, considerando, juntamente aos pais/responsáveis, os irmãos mais velhos, os resultados indicaram diferença significativa entre GJ e GNJ (p=0,005). Em GJ, 41,67% dos adolescentes informaram que um membro da família (pai, mãe e/ou irmão mais velho) já havia praticado delito, sendo que 25% afirmaram que o pai já havia sido preso. Em GNJ, 9,39% referiram ter em sua família alguém (pai, mãe e/ou irmão mais velho) com histórico de prática de delito.
No plano da Vinculação Familiar, os grupos se mostraram diferentes somente em “identificação afetiva do adolescente com os pais/responsáveis” (Tabela 2). Não se notou diferença nas outras duas variáveis do Apego – “nível/qualidade da comunicação entre o adolescente e seus pais/responsáveis” (p=0,607) e “percepção, da parte do adolescente, de rejeição” (p=0,553) –, e tampouco nas do Investimento familiar – (a) “tempo despendido pelos pais/responsáveis à família” (p=1,000), (b) “tempo gasto em atividades comuns entre os pais/responsáveis com o adolescente” (p=0,322) e (c) “do adolescente com os irmãos” (p=0,981).
Tabela 2. Comparação dos grupos no componente Identificação Afetiva da variável Apego, na dimensão Vinculação Familiar
Apego | Grupos | X2 | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|
GJ | GNJ | |||||
n | % | n | % | |||
Identificação afetiva | 9,02 | 0,029* | ||||
1.00 (Ruim) | 12 | 33,3 | 4 | 12,5 | ||
2.00 | 9 | 25 | 16 | 50 | ||
3.00 | 5 | 13,9 | 8 | 25 | ||
4.00 (Bom) | 10 | 27,8 | 4 | 12,5 |
No tocante a Constrangimentos Familiares, diferenças significativas foram verificadas em duas variáveis: “a supervisão parental” e “a reação dos pais/responsáveis frente aos comportamentos antissociais” (Tabela 3). Os grupos não se mostram diferentes, contudo, em “regras estabelecidas em família” (p=0,913), “legitimidade das regras familiares para o adolescente” (p=0,734) e “punições” (p=0,329).
Tabela 3. Comparação dos grupos no tocante às variáveis Supervisão Parental e Reação dos Pais/responsáveis avaliadas em Constrangimentos
Variáveis relacionadas a Constrangimentos | Grupos | X2 | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|
GJ | GNJ | |||||
n | % | n | % | |||
Supervisão parental | 16,03 | 0,004* | ||||
2.00 | 2 | 5,56 | 0 | 0 | ||
3.00 | 5 | 13,89 | 0 | 0 | ||
4.00 | 4 | 11,11 | 1 | 3,13 | ||
5.00 | 1 | 2,78 | 1 | 3,13 | ||
6.00 | 13 | 36,11 | 6 | 18,75 | ||
7.00 | 1 | 2,78 | 2 | 6,25 | ||
8.00 | 10 | 27,78 | 22 | 68,75 | ||
Reação dos pais frente aos delitos dos filhos | 13,48 | 0,034* | ||||
10.00 (3-12) | 2 | 5,56 | 7 | 21,88 | ||
11.00 (3-12) | 10 | 27,78 | 9 | 28,13 | ||
12.00 (3-12) | 5 | 13,89 | 9 | 28,13 | ||
6.00 (3-12) | 4 | 11,11 | 0 | 0 | ||
7.00 (3-12) | 2 | 5,56 | 3 | 9,38 | ||
8.00 (3-12) | 7 | 19,44 | 1 | 3,13 | ||
9.00 (3-12) | 6 | 16,67 | 3 | 9,38 |
Discussão
O principal objetivo deste trabalho foi identificar variáveis significativas da regulação do comportamento em adolescentes do sexo masculino, na e pela família, no contexto sociocultural brasileiro – mais especificamente, em uma cidade do Triângulo Mineiro. Evidenciou-se que determinados elementos parecem desempenhar papel relevante. No plano das Condições em que vive a família, os adolescentes judicializados que compuseram a amostra seriam mais frequentemente oriundos de famílias de mais baixo Status socioeconômico. Ou seja, os resultados indicaram, para além da renda familiar, que em GJ as atividades laborais exercidas pelos pais/responsáveis teriam menor prestígio social e esses dependeriam mais de benefícios governamentais. De acordo com o modelo teórico, essas condições criam um pano de fundo menos favorável ao funcionamento da família que, indiretamente, pode afetar a regulação da conduta social dos filhos.
Focalizando especificamente o prestígio do trabalho, os responsáveis em GJ exerceriam, em geral, atividades requerendo pouca qualificação (por exemplo, faxineira e pedreiro), ao passo que os responsáveis em GNJ exerceriam atividades requerendo maior qualificação (por exemplo, enfermeira, advogada e professor). Essas diferenças, provavelmente, relacionam-se ao nível de escolaridade deles, lembrando que a maioria em GJ teria, em média, 8 anos de estudos, enquanto em GNJ teria, em média, mais de 8 anos. As diferenças no tipo de trabalho prevalente em um e em outro grupo certamente atrelam-se às diferenças também verificadas na renda familiar. Considerando o conjunto de informações, pode-se pensar que as famílias em GJ experimentariam maior adversidade socioeconômica e que, por essa razão, recorreriam mais à ajuda da assistência social.
Embora seja notório que adolescentes de diferentes estratos sociais se envolvam na prática de delitos, investigações apontam consistentemente que quanto mais baixo o status socioecômico da família, maior o risco (Branco et al., 2008; Caicedo et al., 2010; Priuli & de Moraes, 2007; Zhang et al., 2011). Os estudos de Monroe (2008) e Schwartz & Meyer (2010) indicam uma relação entre baixo status socioeconômico e vulnerabilidade ao estresse, sugerindo que a insegurança econômica pode vulnerabilizar as famílias e precarizar as relações intrafamiliares. Variáveis relativas a status socioeconômico são capazes de produzir diferenciação tanto nos níveis de risco para estressores, quanto no da intensidade do desfecho negativo associado ao estresse, sobre a saúde/bem-estar das famílias e de seus membros. Contudo, embora se admita a importância do status socioeconômico na determinação da saúde/bem-estar, não é possível restringi-lo ao sentido de “carência material/pobreza”, uma vez que mesmo entre indivíduos que possuem indicadores de status favoráveis, com níveis positivos de escolaridade, de salários e de reconhecimento da atividade laboral, há diferenças no tocante à apreciação subjetiva do estresse (Faro & Pereira, 2014).
Interessantemente, no tocante à Configuração Familiar, aspecto relativo às condições que também conformam o funcionamento de uma família, não se verificou qualquer diferença significativa entre os grupos estudados. Segundo o referencial da Teoria da Regulação, uma família composta por um grupo numeroso de filhos apresenta maior vulnerabilidade porque vive em condições que também se constituem em estressores, que podem afetar negativamente seu funcionamento e, consequentemente, o desenvolvimento e a saúde de seus membros. Essa vulnerabilidade docorre de dificuldades no provimento de supervisão, monitoramento e socialização adequados e suficientes, pois geralmente fica a cargo de um único adulto – na maior parte dos casos, uma mulher, que se vê sozinha como responsável pelos filhos, devido, principalmente, à dissolução do casal em razão de conflitos/desavenças e/ou violência intrafamiliar. Essa vulnerabilidade é tanto maior quanto menor o apoio social com o qual puder contar a família, aspecto indiretamente aferido, no modelo adotado, pelo grau de estabilidade da família em um determinado entorno sociocomunitário, em termos de fixação de residência (Le Balnc, 2006; Le Blanc & Bouthillier, 2001).
De acordo com as informações obtidas, as famílias em GJ não seriam especialmente vulneráveis nesse plano, ou, de outro modo, as famílias em GNJ não estariam isentas dessas mesmas condições (ou mais protegidas). No tocante às separações e à monoparentalidade, 50% das famílias estariam sendo chefiadas por um adulto sozinho, tanto no GJ quanto no GNJ, havendo dissolução do casal parental também em igual proporção, há, em média, mais de 5 anos. Essas características correspondem àquelas que, nos últimos anos, dizem respeito a um número significativo de famílias brasileiras, segundo os dados do Censo 2010 (IBGE, 2012). O mesmo se pode afirmar com relação ao número médio de filhos nas famílias, o qual vem diminuindo ao longo dos anos. Em GJ os jovens teriam, em média, três irmãos, enquanto em GNJ, em média, dois irmãos, embora a média de crianças residindo com o adolescente, na mesma casa, para os dois grupos, tenha sido a mesma (n=1), números consonantes à tendência assinalada para a população brasileira (IBGE, 2012).
Esses dados corroboram, de algum modo, os apontamentos feitos por Silveira, Maruschi e Bazon (2012). Comparando adolescentes judicializados e não judicializados no tocante à exposição a diferentes fatores de risco, essas autoras verificaram que os dois pertenciam a famílias com configurações semelhantes, marcadas, igualmente, por eventos adversos. As diferenças entre os grupos estavam mais no plano dos fatores de proteção, sendo os não judicializados mais beneficiados nesse plano. Nessa perspectiva, vale frisar que as famílias em GJ e em GNJ também não se mostram diferentes no tocante ao número de mudanças de residência, sendo o número médio inferior a três vezes, considerado baixo. Essa relativa estabilidade residencial pode ser pensada como um indicador indireto de apoio social (fator de proteção ao funcionamento familiar, ante aos estressores). Contudo, a rigor, o efeito protetivo desse fato depende das características gerais da comunidade de fixação, levando em conta, por exemplo, os níveis de violência que a caracterizam e a quantidade/qualidade dos serviços que disponibiliza aos moradores. Assim, de um lado, se mudar muito de residência pode ser considerado problemático, do ponto de vista da obtenção de apoio social, de outro lado, não ter condição de mudar também é, se o entorno comunitário tiver características negativas.
As características da comunidade onde reside uma família encontram-se, em geral, associadas ao seu status socioeconômico que, conforme se verificou, diferenciou os grupos estudados. As características do bairro de residência não foram, entretanto, diretamente focalizadas no presente estudo, o que impede o maior aprofundamento nessas considerações.
Quanto aos elementos de contexto familiar, preconizados no modelo teórico, Conjugalidade e Modelos na família, reitera-se que nos dois não se verificou diferença significativa entre os grupos. No que se refere à Conjugalidade, os dados indicaram que o ambiente familiar da maioria não seria marcado, na percepção dos adolescentes, pela presença de muitas discórdias/brigas, e que os cônjuges, também na maioria dos casos, demonstrariam afeição/respeito um pelo outro. Para a maioria, contudo, os cônjuges teriam poucas atividades em comum. Esse dado, embora pareça um pouco contraditório aos concernentes ao nível de discórdia e demonstração de afeição, talvez decorra do tipo de questão inerente ao instrumento utilizado. As questões demandam se adultos compartilham certos tipos de atividades que, talvez, não sejam tão habituais nas classes econômicas de pertencimento dos jovens investigados como, por exemplo: “Os dois adultos que vivem com você costumam sair juntos (ir ao cinema, ir à casa de amigos)?”.
De todo modo, os resultados obtidos divergem do esperado, segundo o modelo teórico adotado e apontamentos da literatura, uma vez que as referências reiteradamente indicam que desajustes de comportamentos nos filhos associam-se significativamente a níveis mais altos de discórdias no casal (Le Blanc, 2006, 2010; Kennedy, Edmonds, Dann, & Burnett, 2010). É possível que tal divergência se deva tão somente ao número reduzido das situações em que essa associação pode ser testada dentro da amostra em estudo. Considerando que em GJ e GNJ a taxa de dissolução das relações conjugais foi de 50%, estando essa associada à monoparentalidade, há mais de 5 anos, deve-se considerar que a avaliação da Conjugalidade incidiu sobre dados oferecidos por um número pequeno de participantes.
Outra possibilidade de interpretação é a de que os indicadores de Conjugalidade empregados efetivamente não distingam as famílias de adolescentes judicializados e não judicializados no contexto sociocultural brasileiro. Na literatura, há apontamentos sobre o fato de a atuação da variável conflitos/desavenças no ambiente familiar como fator de risco para a conduta delituosa implicar em problemas numa intensidade e numa frequência significativamente elevadas. Kim e Kim (2008), por exemplo, argumentam que tais conflitos conjugais, para diferenciar grupos, devem associar-se à violência conjugal e pontuam, ainda, que essa não é uma característica de todas as famílias de adolescentes que se envolvem com a prática infracional.
Com relação aos Modelos na família, os grupos também não apresentaram diferença. Tanto em GJ, como em GNJ, a maioria indicou que os responsáveis não teriam comportamentos divergentes – cometimento de crimes e uso abusivo de álcool e/ou de outras drogas – tampouco atitudes divergentes (mostrando-se favoráveis a comportamentos antissociais). Assim, para a maioria em GJ e em GNJ, os adultos/responsáveis poderiam funcionar prioritariamente como modelos pró-sociais, contradizendo a expectativa segundo o referencial utilizado (Le Blanc 2003, 2006). Para a teoria de ter pais/responsáveis que apresentem comportamento e/ou atitudes divergentes aumenta o risco de conduta antissocial/infracional nos filhos adolescentes, porque esse dado amplia a deslegitimação das regras e normas convencionais pelo adolescente, além de que, concorre para processos proximais de aprendizagem do comportamento divergente (Le Blanc 2003, 2006). Contudo, Le Blanc e colaboradores, tendo por base as muitas pesquisas na área, argumentam que os adolescentes infratores, mesmo aqueles que apresentam maior envolvimento infracional, são oriundos de ambientes familiares muito diversos, sendo que alguns têm pais/responsáveis com histórico de infrações, mas a maioria não (Le Blanc & Janosz, 2002).
Todavia, na literatura, há praticamente um consenso sobre o fato de que ter um parente com histórico criminal já aumenta significativamente o risco à prática de ato infracional na juventude (Nijhof, de Kemp, & Engels, 2009; Crutchfield, Skinner, Haggerty, McGlynn & Catalano, 2009; Ward et al., 2010; Zhang et al., 2011). Dentro disso, quando se consideraram outros membros da família, além dos pais/responsáveis, focalizando, no caso, a existência de irmãos mais velhos criminalizados, GJ e GNJ se distinguiram significativamente. Em GJ, 15 dos 36 investigados teriam convivência com membros da família com histórico de cometimento de crimes/delitos, sendo 6 desses os irmãos mais velhos. Comparando os grupos nesse aspecto, os adolescentes em conflito com a lei teriam 6,9 vezes mais chances de ter um parente próximo com histórico de envolvimento com esse histórico.
Deixando as variáveis estruturais e de contexto, para tratar daquelas que, segundo o modelo teórico, remetem aos mecanismos que efetivamente regulam o comportamento do adolescente na e pela família, destacam-se os resultados quanto à Vinculação Familiar. Nesse plano, aferiu-se Apego e Investimento. Concernindo ao Apego do adolescente à sua família, pode-se afirmar que, de modo geral, uma proporção maior em GJ teria relações familiares mais frágeis que a sua contraparte; eles manteriam um relacionamento com os responsáveis caracterizado por maior distanciamento, devido a uma menor proximidade emocional e identificação afetiva com eles. A título de ilustração, questões do questionário empregado, que investiga esse componente do Vínculo é: “Sua mãe parece perceber o que você pensa, o que você sente (o que deixa você triste, contente, bravo...) ?”; “Você gostaria de ter as qualidades e os defeitos do teu pai?”/“Você gostaria de ter as qualidades e os defeitos da tua mãe?”. Os adolescentes judicializados, em sua maioria, indicaram não querer ser como seus genitores/cuidadores.
Wilson, Willams, Garner, Duxbury e Steiner (2001) afirmam que a influência familiar continua na adolescência, provendo proteção ao seu desenvolvimento, funcionando como um crivo à influência dos pares de idade, com relação a comportamentos antissociais. Daí deduz-se que, em meio aos adolescentes com problemas de comportamento, a diminuição da influência da família os torna mais vulneráveis às influências dos pares. Considerando que os responsáveis, nos dois grupos, seriam majoritariamente modelos pró-sociais, a não identificação afetiva com esses, mais do que revelar certa fragilidade de apego, sugere uma fraca adesão aos seus valores e às suas práticas.
Nesse âmbito, resta, contudo, o questionamento sobre as razões para que a identificação nesse grupo seja menor que no grupo de comparação. É importante notar que não se encontraram diferenças significativas entre os grupos no tocante à comunicação, tampouco na percepção quanto a ser rejeitado pelos pais/responsáveis, ambas variáveis também relativas ao Apego. De acordo com o modelo teórico adotado, o apego na família se constrói e se fortalece com base na comunicação entre os membros da família, que permite uma percepção ajustada das expectativas recíprocas, inclusive a percepção que abarca a aceitação (a não rejeição), e que resulta, assim, em uma maior identificação afetiva entre seus membros. Nos dois grupos, foi encontrada uma grande dispersão dos dados da amostra nos diferentes níveis referentes à qualidade da comunicação, tornando o resultado, nesse ponto, inconclusivo.
Concernente à percepção de ser rejeitado, a maioria dos adolescentes em GJ e em GNJ indicou não se perceber assim em suas famílias, resultado que contradiz a expectativa. Na metanálise de Hoeve et al. (2009) conclui-se que os aspectos familiares mais fortemente ligados a problemas de comportamento e à delinquência juvenil seriam a rejeição, a hostilidade e, ainda, a negligência por parte dos pais/responsáveis. Todavia, os autores ressaltam que esses aspectos explicam uma variância pequena nas diferentes amostras investigadas. Em uma perspectiva mais refinada, estudos envolvendo diferentes perfis de adolescentes infratores indicam que o fator rejeição/hostilidade é mais propriamente um risco específico, atrelado a um engajamento infracional caracterizado por envolvimento em delitos violentos, ao passo que certa frieza, ou melhor, certa indiferença dos pais/cuidadores com relação aos filhos adolescentes é um fator de risco mais geral, relacionado à delinquência juvenil em todas as suas demais manifestações (Komatsu & Bazon, 2015). Assim, é possível que os resultados aqui apresentados se devam às características particulares dos adolescentes judicializados recrutados ou às limitações do instrumental utilizado para mensurar o construto da rejeição.
Assim, diante desse conjunto de dados, é difícil explicar as razões pelas quais na amostra estudada os adolescentes judicializados sentem-se menos identificados aos seus pais/cuidadores. Além dos apontamentos já feitos, é possível que os problemas/dificuldades na base dessa menor identificação afetiva remetam a problemáticas relacionais experimentadas em fases do desenvolvimento da família e do jovem anteriores à focalizada no estudo.
Ainda com relação à Vinculação Familiar, nenhuma das variáveis investigadas no componente Investimento Familiar diferenciou significativamente os grupos. Essas buscam aferir o tempo gasto em família, em atividades compartilhadas, o que funcionaria como fonte de apego (favorecendo a comunicação e a identificação afetiva), fortalecendo o Vínculo Familiar. Houve dispersão dos dados nos diferentes níveis referentes à quantidade de investimento, tanto em GJ, como em GNJ. Verificaram-se proporções semelhantes de adolescentes nos diferentes níveis de investimento aferidos, tornando o resultado, nesse ponto, também inconclusivo. De acordo com Felson e Clarke (1998), a rotina das famílias mudou muito desde a década de 1960, em virtude de transformações culturais, sociais e econômicas, sendo que essa mudança se fez sentir, principalmente, no tempo gasto em atividades conjuntas, pelos membros da família. Houve uma diminuição significativa do tempo compartilhado em família e, com relação aos filhos adolescentes, o efeito deu-se não só no apego, tendo por base a comunicação e a identificação afetiva, mas, sobretudo, na capacidade de os adultos supervisionarem suas atividades com os colegas.
Nesse quadro generalizado de diminuição do tempo gasto em atividades em comum, em família, é provável que a maior ou a menor habilidade para supervisionar os filhos adolescentes seja função dos estilos parentais. Na literatura, há quem aponte também que os níveis de proximidade e de comunicação que se estabelecem entre pais/responsáveis e os filhos seja função dos estilos parentais, e não o contrário. É no contexto das interações educativas, propiciadas pelo estilo parental dos adultos, que, muitas vezes, ocorre a aproximação ou o distanciamento entre os responsáveis e os filhos, na adolescência (Salvo, Silvares, & Toni, 2005; Shomaker & Furman, 2009). Nessa linha, os resultados obtidos com relação à dimensão Constrangimentos merecem destaque porque trazem alguns esclarecimentos. Os dados indicaram que os adolescentes do GJ viveriam condições significativamente diferentes quanto aos níveis de supervisão e quanto às reações dos adultos/responsáveis frente aos seus comportamentos antissociais/delitivos, sendo que a maioria referiu ser menos supervisionada e perceber menor reatividade dos responsáveis, do que a maioria em GNJ.
Com relação à existência de regras na família, os dados nos dois grupos se dispersaram, embora se note alguma concentração que indica uma percepção sobre o fato de não haver regras muito claras na família. Quanto à legitimidade dessas regras, a maior parte dos adolescentes dos dois grupos indicou serem essas legítimas e, nessa mesma linha, a maior parte relatou não ser punida por meio da aplicação de métodos inadequados (abusivos).
No modelo teórico adotado, os Constrangimentos Familaires referem-se aos meios utilizados pelos responsáveis, referentes à socialização, para o controle do comportamento e o desenvolvimento de valores e atitudes. Para a regulação do comportamento num sentido convencional, os meios adotados devem ser adequados (não abusivos), mas, antes de tudo, precisam existir (Le Blanc, 2003, 2006, 2010). Diante dos resultados obtidos, a impressão é a de que os responsáveis no GJ fariam menos esforços concernentes aos constrangimentos necessários, com vistas à socialização dos filhos. Eles parecem colocar-se numa postura alheia ou de pouca implicação, considerando a fraca supervisão e a baixa reatividade aos comportamentos antissociais dos filhos. Essa postura caracteriza, segundo alguns autores, negligência parental, aspecto que reiteradamente diferencia adolescentes que infracionam dos que não infracionam (Pacheco & Hutz, 2009; Carvalho & Gomide, 2005; Hoeve et al., 2009; Han et al., 2010; Zhang, 2011).
De um ponto de vista longitudinal, Hoeve et al. (2009) propõem que quanto mais difícil o comportamento de uma criança, mais os pais/responsáveis tendem a utilizar de práticas disciplinares punitivas e inconsistentes. Com o tempo essas práticas vão sendo deixadas de lado, denotando-se menos envolvimento dos pais/responsáveis no processo de socialização de seus filhos, o que aumenta sobremaneira as chances de condutas delituosas na adolescência. É possível que esse tenha sido o percurso das práticas parentais concernindo os adolescentes do GJ, e que isso explique também o distanciamento emocional representado na baixa identificação afetiva dos jovens desse grupo com os seus pais/responsáveis. Essa interpretação se alinha aos apontamentos de Martin, Martinez e Rosa (2009), com base em um estudo qualitativo. Esses autores perceberam que as famílias de jovens infratores pareciam exercer fraca influência na vida do adolescente, por não se empenharem em participar de suas vidas, sendo que muitos dos responsáveis alegavam dificuldades no exercício do papel parental.
Considerações Finais
O presente estudo identificou particularidades importantes nas dinâmicas e característcias familiares de adolescentes judicializados e não judicializados. A despeito de certas similaridades, os adolescentes judicializados estudados, em suas famílias, experimentariam condições significativamente mais negativas em algumas dimensões. No plano estrutural, baixo Status socioeconômico; no plano contextual, exposição a Modelos divergentes/criminalizados; no tocante aos mecanismos de regulação, uma Vinculação mais frágil, devido a uma identificação afetiva do adolescente aos seus pais/responsáveis mais fraca, e Constrangimentos menos efetivos, em razão de uma supervisão parental insuficiente/inadequada e de uma espécie de passividade dos responsáveis frente aos comportamentos antissociais dos adolescentes. Segundo o modelo da Regulação na e pela Família, o sistema composto por essas variáveis, e a dinâmica entre elas, estaria contribuindo para a manifestação ou para a manutenção do comportamento delituoso nos adolescentes investigados (Le Blanc & Janosz, 2002; Le Blanc, 2006).
À luz desse mesmo referencial teórico, novas questões se colocam. Quais seriam os resultados se fossem considerados níveis diferentes de envolvimento com a prática de delitos em meio aos adolescentes? Quais fatores e processos atuam para que o sistema de regulação do comportamento dos adolescentes em conflito com a lei na e pela família se desenvolva nessa direção? Essas questões merecem mais estudos, denotando a importância e a atualidade do tema, ainda que a relação “família e delinquência juvenil” tenha sido amplamente abordada.
As investigações terão de superar alguns dos limites do presente estudo, sumariamente apontados aqui. Deverão primar por ampliar significativamente as amostras e incrementar a diversificação das mesmas, sobretudo no sentido de trabalhar com adolescentes que praticam atos infracionais, considerando os diferentes níveis de envolvimento com a prática de delitos. Terão, igualmente, que se esmerar para controlar as variáveis de caracterização sociodemográfica, incluindo questões raciais e classistas, para refinar a compreensão dos mecanismos proximais efetivamente associados aos diferentes níveis de envolvimento infracional. Ademais, sabe-se que o modelo teórico adotado foi elaborado com base em evidências empíricas da realidade canadense, o que nos permite questionar se há outros fatores específicos da realidade brasileira que não estão sendo contemplados. Conforme apontado por Gallo (2008), apesar de as execuções das medidas socioeducativas de Brasil e Canadá serem semelhantes, há diferenças substanciais entre os dois países nos índices de violência, fato constatado também na diversidade da prática delitiva (Gallo & Williams, 2009). Será também relevante que as investigações lancem mão de instrumentos de coleta diversificados, que ofereçam informações que possam ser trianguladas, ultrapassando em qualidade aquelas de autorrelato. Por fim, pesquisas com abordagem qualitativa, bem como com delineamento longitudinal e prospectivas, serão incontornáveis para o avanço do conhecimento na área.