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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.14 no.3 Belo Horizonte  2021  Epub Jan 20, 2025

https://doi.org/10.36298/gerais202114e17091 

Artigo

Relações com o trabalho: histórias de servidores de um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico

Work relations: histories of public workers of a custody hospital and psychiatric treatment

Bettieli Barboza da Silveira1 
http://orcid.org/0000-0002-1935-3004

Thaís Cristine Farsen2 
http://orcid.org/0000-0001-9642-1587

Ariane Kuhnen3 
http://orcid.org/0000-0001-9635-9306

1Universidade do Estado de Minas Gerais, Ituiutaba, Brasil. E-mail: bettieli.bs@gmail.com

2Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: thais.farsen@gmail.com

3Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: arianekuhnen@gmail.com


Resumo

Na intenção de fomentar uma base teórica metodológica para futuras investigações que respaldem reflexões sobre a atuação profissional em ambientes de tratamento à saúde mental, foi realizado um estudo biográfico no qual se utilizou o método de histórias de vida com o objetivo de compreender as relações de servidores públicos que atuam em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico com o seu trabalho. Quatro profissionais da instituição foram entrevistados, tendo os resultados compilados para análise de conteúdo em duas categorias temáticas: a) qualidade de vida e bem-estar no trabalho; b) significado e sentido do trabalho. Destacaram-se indicativos positivos quanto às vinculações saudáveis investigadas nas relações das pessoas com o trabalho permeadas por sentimentos de afeição e empatia com a função que desenvolvem. Por outro lado, o maior complicador no percebido foi a dualidade institucional e seu impacto nos processos decisórios cotidianos.

Palavras-chave trabalho; bem-estar; saúde mental; hospital de custódia

Abstract

To foster a theoretical-methodological basis for future investigations to support reflections on professional performance in mental health treatment environments, a biographical study focused on life histories was conducted to understand the relationships that public workers acting in a custody hospital and psychiatric treatment establish with their work. Four professionals from the institution were interviewed and the results were compiled for content analysis in two thematic categories: a) quality of life and well-being at work; b) meaning of work. Positive signs were highlighted regarding the healthy linking investigated in the relationships of people with work permeated by feelings of affection and empathy with the work they develop. On the other hand, the greatest unfavorable factor observed was the institutional duality and its influence on the daily decision making processes.

Keywords work; well-being; mental health; custody hospital

A partir de uma construção histórica e cultural, o trabalho passou a ocupar um importante papel, podendo ser considerado central na vida humana. Tal centralidade é caracterizada pelas funções que a dimensão trabalho pode ocupar, marcando, por exemplo, a forma como os indivíduos organizam suas vidas e se constituem como seres humanos (Antunes, 2009; Harvey, 2000). O trabalho ocupa algumas funções no processo de construção da identidade, permite que o homem se posicione como indivíduo no mundo, tenha condições de subsistência, sinta-se importante, interaja com outras pessoas, tenha suporte social e encontre um sentido para a sua vida (Antunes, 2009; Zanelli, Silva & Soares, 2010). Constitui, ainda, uma fonte de identificação e de aprimoramento das suas potencialidades, sendo fundamental para o desenvolvimento humano (Navarro & Padilha, 2007).

Pelo fato de ser central e permear grande parte de sua existência, o trabalho precisa possibilitar a vivência de sentimentos e de vínculos positivos que auxiliem para a sensação de bem-estar e possibilitem ao trabalhador qualidade de vida (Farsen, Boehs, Ribeiro, Biavati & Silva, 2018). Nesse sentido, entender a égide dessa centralidade é importante para compreender qual o significado que os trabalhadores dão ao seu trabalho (Tolfo, 2015). Assim, o trabalho, independentemente do contexto em que é desenvolvido, tanto em organizações privadas quanto públicas, pode e deve ter sentido e significado, podendo beneficiar o trabalhador nos mais diversos aspectos.

Em termos psicológicos, muitas vezes é por meio da atividade laboral exercida que nos apresentamos aos outros ou dizemos quem somos. Isso demonstra o quanto o trabalho está relacionado com a constituição da nossa identidade (Ciampa, 1986). Conforme Macêdo (2015), a identidade profissional é constituída a partir da dinâmica entre o indivíduo e o contexto no qual atua. Assim, a construção de uma identidade profissional se inicia logo no momento de formação e vai sendo modificada a partir das experiências e inserções nos diferentes contextos. A autora apresenta alguns fatores que podem auxiliar na compreensão da identidade profissional. Para ela, a partir de uma relação dialética e do papel ativo do indivíduo, o processo de construção da identidade profissional passa por dois processos. No primeiro há a homogeneização, ou seja, a pessoa passa a se assemelhar aos outros membros do grupo no qual está se inserindo e, no segundo momento, passa pelo processo de heterogeneização. Neste, a pessoa, a partir de suas características individuais, passa a se diferenciar dos outros membros do grupo (Macêdo, 2015). Além do seu papel ativo, é importante destacar que as expectativas sociais em relação ao grupo profissional, além dos significados sociais e dos sentidos individuais a que este trabalho se remete, também influenciam no processo de construção da sua identidade social e profissional (Tolfo, 2015).

Ao tratar dos significados sociais dados ao trabalho e dos sentidos individuais a que este trabalho se refere, o que está em voga é o valor que a experiência laboral possui para as pessoas. Os dois constructos são bastante diferentes entre si, embora estejam pormenorizadamente relacionados. Os significados do trabalho são construídos coletivamente em determinado contexto histórico, social e econômico, enquanto os sentidos se caracterizam por ser construídos individualmente, a partir de como o indivíduo compreende os significados coletivos (Tolfo, Coutinho, Baasch & Cugnier, 2011). Isso quer dizer que o sentido do trabalho para determinado profissional pode ou não ter relação com o significado que o seu trabalho possui no contexto no qual esse profissional está inserido.

Pesquisadores do grupo Meaning of Work International Research Team (MOW), que tem como escopo de atuação a realização de estudos sobre o significado do trabalho, após a realização de diversas pesquisas, apresentam três dimensões que o compõem. A primeira delas é a centralidade do trabalho, definida pela relação da identificação pessoal com o trabalho, o seu valor e a importância em vista aos outros papéis desempenhados pelo indivíduo; a segunda se refere às normas sociais sobre o trabalho, ou seja, as crenças e expectativas sobre direitos e deveres que devem ser exercidos no trabalho; e a terceira, aos resultados valorizados do trabalho, que consistem nos motivos e nas razões que fazem o indivíduo trabalhar (Ruiz-Quintanilla & Claes, 2000). Tais fatores se caracterizam como bases para a construção de uma relação positiva com o trabalho e podem refletir nas identificações que o trabalhador terá com ele e com o local onde o realiza.

Quando um trabalho possui um sentido positivo para o trabalhador, com um propósito, significa algo maior e a possibilidade de ele se sentir útil e importante para alguém, podendo inclusive facilitar a sua sensação de bem-estar e favorecer a sua qualidade de vida (Ribeiro, Tolfo & Silva, 2018). Além disso, as organizações que promovem qualidade de vida e bem-estar, e consequentemente a vivência de sentimentos positivos como a felicidade, favorecem o comprometimento dos trabalhadores e o seu desempenho (Farsen et al., 2018, Vazquez, 2018). O estudo da qualidade de vida no trabalho tem como foco tudo o que promove o respeito e a valorização da vida individual e coletiva dentro dos ambientes laborais (Sauer & Rodriguez, 2014). Seu entendimento leva em consideração o que é postulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que compreende qualidade de vida como um estado de pleno bem-estar físico, mental e social, que engloba aspectos diversos, como motivação, satisfação, condições de trabalho, estresse, estilos de liderança, entre outros (Tolfo, 2008). Em outras concepções, a qualidade de vida no trabalho é “composta de conteúdos subjetivos (satisfação de necessidades intrínsecas) e objetivos (forma de organização e condições de trabalho)” (Tolfo, Silva & Luna, 2009, p.10). Ou, ainda, como a percepção de bem-estar pessoal no trabalho, que sofre influência de características relativas às necessidades humanas, como as biológicas, psicológicas, sociais e organizacionais (Limongi-França, 2015).

O propósito do bem-estar no trabalho está na compreensão acerca dos fatores psicológicos que constroem e compõem uma vida saudável, sendo um constructo psicológico que inclui o estabelecimento de vínculos afetivos positivos com o trabalho, como a satisfação e o envolvimento, e com a organização, por meio do comprometimento organizacional afetivo (Siqueira & Padovam, 2008). O bem-estar no trabalho também pode ser concebido como o resultado da soma de três fatores: afeto positivo, avaliação subjetiva da qualidade de vida e felicidade (Traldi & Demo, 2012).

Nos últimos anos, e com o advento da Psicologia Positiva aplicada ao contexto das organizações e do trabalho, a felicidade no trabalho tem sido investigada na academia e considerada um estado psicológico superior distinto de outros como alegria, qualidade de vida ou bem-estar, porém a eles relacionados (Malvezzi, 2015). A felicidade no trabalho pode ser considerada um estado psicológico revestido de pensamentos e de sentimentos preponderantemente positivos, de prazer aliado a propósito significativo, construído socialmente (no tempo e no espaço), que se caracteriza por sua estabilidade e perenidade (Ribeiro & Silva, 2018; Dolan, 2015).

As relações que um indivíduo estabelece com seu trabalho podem ir desde um ponto em que ele é considerado central, fundamental para a construção da sua identidade, até a vivência propriamente dita de sentimentos e emoções positivas. Dessa forma, a partir de um estudo biográfico no qual se utilizou o método das histórias de vida, o presente artigo tem como objetivo compreender as relações que servidores públicos que atuam em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) estabelecem com o seu trabalho.

Enquanto lócus de trabalho e campo de pesquisa, o lugar investigado neste estudo se trata então do citado hospital. Instituição reconhecida pelo acolhimento de pessoas com doença ou deficiência mental que não receberam sentença penal comum pelo crime cometido, por se tratarem de indivíduos inimputáveis (Santos, 2015). Além disso, também se encontram nesse espaço profissionais atuantes na área psicossocial e na segurança que ali ingressaram por meio de concurso público para a Secretaria de Justiça e Cidadania do referido estado em que se localiza a instituição. Importante destacar, ainda, que nesse contexto de trabalho o público-alvo não possui um tempo determinado para sua permanência, pois os internos cumprem medida de segurança, o que pode facilitar ou dificultar a atuação dos profissionais. Nesse sentido, as intervenções propostas e realizadas devem abarcar tanto a cessação da periculosidade, como a possibilidade de retorno ao convívio em sociedade e a inclusão de familiares para o reestabelecimento de vínculos afetivos (Peres & Nery Filho, 2002; Silveira, 2017).

Distribuídos em todo o Brasil, os hospitais de custódia retratam um processo evolutivo na história psiquiátrica nacional. O percurso da saúde mental no país data da metade do século XIX durante o período imperial (Teixeira, 1993), perpassando por 1852 com a criação do Hospício de Pedro II, no Rio de Janeiro (Santos, 1994). Com o processo de higienização das cidades em 1903, a psiquiatria passou a atender seus doentes mentais em hospícios-colônias, alocando-os em um meio rural, com escasso contato com a sociedade de modo geral (Resende, 1997). Apenas na década de 1970, movimentos sociais e a crise no modelo hospitalocêntrico deram início ao processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, em prol da necessidade de desinstitucionalizar o doente mental. Curioso observar que, ao trilhar essa caminhada histórica, descortina-se a lenta transformação sob a qual a saúde mental evolui no país. Vale recordar nesse processo que, apenas em 2001, foi promulgada a Lei 10.2016, reconhecida como Lei Antimanicomial, reverberando desde então iniciativas voltadas ao “redirecionamento da assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária” (Brasil, 2005, p.08).

Dividido entre a custódia jurídica e o tratamento de saúde, o hospital de custódia convive com uma perspectiva dualística. Segundo Dantas e Chaves (2007), comumente, os profissionais da saúde do HCTP o veem como ambiente de cuidado, visualizando os internos como pacientes. Por outro lado, os autores por último referidos destacam que, não raramente, a crença sobre a imprevisibilidade e a perspectiva punitiva ronda o entendimento dos profissionais da segurança sobre a instituição em que trabalham. Desse modo, mais importante do que averiguar se tal realidade se aplica ou não ao hospital e aos profissionais que este estudo buscou compreender é a missão de analisar de que modo a dualidade do lugar entoa e molda comportamentos, media relações de trabalho e projeta simbologias àqueles que vivenciam tal perspectiva. Para tanto, conforme já mencionado, este artigo se caracteriza como um convite a uma ressignificação, que busca, considerando as especificidades do meio, entender como ocorrem e de que modo se estruturam as relações que os profissionais de um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico desenvolvem com o seu trabalho e com a instituição em que atuam.

Método

Parte de uma investigação maior, este estudo se concentrou na abordagem das histórias de vida de profissionais, relacionadas ao trabalho que desenvolvem em um hospital de custódia. Nesse recorte, buscou-se explorar as conexões possíveis entre a representação do trabalho e o lócus em que ele se desenvolve, haja vista as diversas singularidades e dualidades presentes na instituição. No intuito de investigar o ser humano, seus processos e suas relações, a abordagem qualitativa em psicologia se mostra uma escolha metodológica de grande valia, assim como o uso de estratégias biográficas (Araújo, Martins, Fernandes, Mendes & Magalhães, 2016). Em consonância aos seus objetivos, trata-se de uma pesquisa empírica de caráter exploratório e descritivo que dialoga com conceitos e percepções relacionadas ao trabalho, por meio de histórias de vida coletadas com base em entrevistas orais em profundidade.

Quatro profissionais de um HCTP foram entrevistados, tendo sido escolhidos de maneira intencional e não probabilística, sem intenção de generalizar dados, mas aprofundá-los (Creswell, 2010). A seleção dos participantes priorizou aqueles que possuíam acesso a todos os espaços físicos da instituição e à interação com os internos, assim como foram respeitados a disponibilidade e o consentimento dos profissionais em participar do estudo. No que condiz à pesquisa com método biográfico de história de vida, o número reduzido de participantes tende a ocorrer, sendo que a não inclusão de novas entrevistas é ponderada conforme a saturação dos dados e das análises possíveis a partir dessas informações (Thiry-Cherques, 2009).

Quanto ao instrumento utilizado para coleta de dados, tem-se a entrevista semiestruturada enquanto recurso que possibilitou descrever as diferentes perspectivas e histórias de vida de profissionais relacionadas ao trabalho no HCTP, bem como às representações, aos sentimentos e às percepções nele envolvidos. Aliado à entrevista e centrado em permitir acessar singularidades do ser humano (Goldenberg, 2013), o método biográfico exige do pesquisador, sobretudo, respeito, empatia e capacidade de escuta (Meneghel, 2007). Assim, uma vez utilizado como estratégia de investigação, podem-se compreender as representações que as pessoas atribuem às suas vivências, fenômenos e acontecimentos históricos e da vida cotidiana (Closs & Rocha-de-Oliveira, 2015; Laville & Dionne, 1999). Nesse viés, o processo de avaliação dos dados coletados perpassou a análise de conteúdo temática categorial (Bardin, 2010), na qual a autora detalha o discurso em elementos temáticos, com codificações e criação de categorias e temas.

Os procedimentos que antecederam a coleta de dados foram estabelecidos em conformidade aos resguardos éticos necessários e inerentes às pesquisas com seres humanos por meio da aprovação da pesquisa via Comitê de Ética (CAAE n.º 522380155.0000.0121). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi apresentado e firmado junto aos participantes do estudo, momento no qual se aclararam os aspectos relativos ao andamento da entrevista, visando esclarecer os objetivos e as demais informações pertinentes. Nesse sentido, respeitando o sigilo da não identificação dos participantes, cada um deles foi representado por uma letra e um número, sendo P1, P2, P3 e P3, respectivamente. Na sequência, ao apresentar os resultados, a Tabela 1 – “Caracterização dos participantes” explora as especificidades dos entrevistados quanto à formação, tempo de trabalho na instituição e outros pontos relevantes.

Tabela 1 Caracterização dos participantes. 

Id. Sexo Setor de trabalho Formação Tempo de trabalho
P1 M Segurança Sistemas de Informação, Esp. em Pública Seg. 9
P2 M Segurança Recursos Humanos, Esp. em Segurança Pública 8
P3 F Serviço Social Ass. Social, Esp. em Ergonomia 29
P3 M Segurança Ciências Contábeis, Esp. em Segurança Pública 25

Nota. Tabela elaborada pelas autoras.

Em relação ao conteúdo obtido nas entrevistas, duas categorias foram criadas posteriormente à coleta de dados, tendo em vista o material resultante e os aportes teóricos e epistemológicos que embasam as discussões propostas neste estudo. Desse modo, na intenção de responder aos objetivos traçados, as seguintes subdivisões foram estruturadas: a) qualidade de vida e bem-estar no trabalho; b) significado e sentido do trabalho.

Resultados

Os dados de caracterização dos participantes foram obtidos durante a coleta de dados, no momento dedicado à entrevista. Dizem respeito ao sexo e à idade dos participantes, ao tempo e ao setor de trabalho na instituição pesquisada, assim como à formação profissional. A síntese dessas informações está apresentada na Tabela 1.

Embora os participantes do estudo possuam distintas formações, os três trabalhadores da segurança realizaram a mesma especialização, em Segurança Pública, curso fornecido e recomendado pela própria Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado à qual estão vinculados. Apesar disso, as distintas formações de base (graduação) denotam a variedade nos perfis profissionais inicialmente trilhados nas carreiras de cada um. A exceção, por sua vez, acontece pela participante P3, que está engajada na sua própria área de formação. No entanto, isso não significa, necessariamente, que o atual lócus de atuação fez e faz parte do plano de carreira de cada participante. Ainda que houvesse uma faculdade específica para desempenhar funções no sistema prisional, Batista (2016) destaca o sofrimento dos profissionais que carregam o peso de responder por um trabalho, comumente, associado a um ato punitivo, haja vista a representação que carregam de que atuam como mecanismos de controle e proteção da ordem social. No entanto, mesmo nesse contexto é possível que os profissionais construam identidades positivas e estabeleçam relações favoráveis com seu trabalho.

Na medida em que os conteúdos emergiram nas entrevistas e que as categorias anteriormente mencionadas foram criadas, pensou-se na melhor distribuição dos resultados obtidos em consonância com a análise e a discussão inerente ao conteúdo. Para tanto, os resultados e a discussão serão, também, divididos em conformidade categorial.

Categoria 1: qualidade de vida e bem-estar no trabalho

A primeira categoria corresponde aos conteúdos relacionados à percepção de que o trabalho possibilita ou não qualidade de vida e bem-estar. A fala a seguir destacada apresenta a percepção do trabalho realizado no HCTP, quando do início da sua atividade laboral no local:

“Quando eu comecei a trabalhar aqui eu chorei todos os dias, eu não me conformava com o sofrimento do ser humano” (P3).

O discurso de P3 não traz consigo apenas uma percepção subjetiva acerca de um início de trabalho, contempla, ainda, a empatia e o sentimento de impotência frente a uma realidade estabelecida. É importante entender que a transição dos hospitais de custódia, a concepção de isolamento dos pacientes e o modo como os profissionais lidam com os internos representam mudanças entoadas pelo respeito à dignidade humana, sobretudo, referendada pela Reforma Psiquiátrica (Viana & Souza, 2013). Apesar disso, é igualmente importante recordar que a internação prolongada reforça o estigma social de segregação e de exclusão social historicamente atribuído ao lugar e a seus habitantes (Silveira, 2017).

O lugar sobre o qual se discute e se dialoga neste estudo é compreendido por Tuan (1983) como um processo no qual o sujeito relaciona sua subjetividade, atribui significados e se identifica com o ambiente. Corroborando essa perspectiva, Lima e Bomfim (2009) reforçam, ainda, a relevância de se sentir pertencente ao lugar, de “pessoalizá-lo” de alguma forma na intenção de se apropriar, de ocupar e de identificar o território. Nesse sentido, vale associar e destacar a fala de P1 sobre os sentimentos associados ao lugar:

“Já tive tantos... já gostei muito de vir trabalhar aqui, para mim era uma terapia. Depois passei por um momento de estresse, de depressão e não conseguia colocar os pés aqui dentro”.

Comumente mencionado pelos participantes, o “estar bem” no trabalho não está, necessariamente, condicionado à ausência de intempéries. De acordo com Fleig-Palmer, Luthans e Mandernach (2009), as situações estressoras e adversas se apresentam cotidianamente e exigem habilidades cognitivas dos trabalhadores. Nesse, assim como em tantos outros momentos, a resiliência é requisitada a fim de favorecer a adaptação, o bem-estar e a presteza no cumprimento das atividades laborais (Meneghel, Salanova & Martínez, 2013). Para P4:

“[...] tem que estar emocionalmente bem para estar aqui, para suportar as pressões cotidianas”.

Associar bem-estar e qualidade de vida no trabalho com satisfação em atuar naquela função e cargo não é um vínculo óbvio. P4, inclusive, destaca que:

“É difícil [...] aí tu tem que trabalhar com o material que tu tem (aponta para a sua cabeça), tu tenta fazer o melhor de ti. A gente nem sempre gosta de tudo que faz, mas o jeito é tentar fazer bem feito”.

Para Antunes (2011, p. 435), “o trabalho converteu-se, portanto, em meio e não mais na primeira necessidade para a realização humana”, o que sugere a necessidade de repensar os significados e os sentidos do trabalho, características a serem vistas na seção seguinte, mas que se conectam ao abordar a relevância de se examinarem as condições biopsicossociais sob as quais o trabalhador exerce suas atividades.

Encontrar meios de se manter saudável e praticar hábitos saudáveis no cotidiano pessoal e profissional converge ao que Farsen, Bogoni Costa e Silva (2017) apontaram no que tange à resiliência no trabalho, encarando-a como um processo adaptativo positivo frente às intervenientes diárias, com a função de manter a saúde e promover o bem-estar da pessoa. Em consonância, P1 destaca que, quando chega ao trabalho, trata de organizar um momento para cuidar de si, primando por resguardar momentos para leitura, a qual caracteriza como medida terapêutica auxiliar na sua permanência na instituição. Em caminho similar, há quem ressalte a importância de “se desligar” do trabalho quando se termina o plantão. Segundo P3, é de grande valia possuir respaldo afetivo e interacional fora do hospital de custódia, para que as possibilidades de distração ajudem a superar os estressores laborais.

Um dos contextos laborais que, talvez, mais exija psicologicamente dos profissionais, é aquele que envolve sistemas prisionais, tais como o hospital de custódia e o tratamento psiquiátrico (Santos et al., 2010). Ao considerar, por exemplo, que um agente penitenciário pode transitar de uma penitenciária de segurança máxima para um hospital de custódia, espera-se que haja, minimamente, um período adaptativo ao novo ambiente, ao novo público e ao lócus de atuação. P2 enaltece que não há qualquer intervenção prévia; enquanto trabalhador que fez o trajeto exemplificado, ele sugere que a pessoa possa fazer um estágio antes de se transferir definitivamente para o lugar, avaliando, assim, sua aptidão para atuar no novo local. No entanto, nota-se, ainda no discurso de P2, certa contradição ao analisar o todo quando descreve o que entende pelo perfil para um agente do HCTP:

“Um perfil um pouco mais tolerante. Não deveria, né, deveria ter a mesma rigidez que no sistema penitenciário, mas é assim”.

Sobre a importância do perfil e do engajamento profissional, P4 salienta que vários profissionais são selecionados durante a formação para agentes (ocorre após nomeação no concurso público) para atuar no hospital de custódia, mas que apenas um ou dois efetivamente permanecem. Entre as razões para que esse fato ocorra, P4 sugere que:

“A pessoa tem que ser mais acessível. É diferente de unidade prisional onde tu tem que ser mais cascudo, lá é ‘cala boca’, ‘pra dentro’ [...] porque ‘eu normal’ eu penso de uma forma, ‘eu anormal’ eu penso outra coisa”.

No desenvolvimento de suas atribuições, os profissionais da instituição devem custodiar os internos e promover meios de (re) inseri-los socialmente por meio do tratamento psiquiátrico ao qual estão submetidos. Nesse caminho, percalços são principalmente percebidos ao observar as diferentes visões acerca do trabalho de cada profissional, já que se mesclam intenções voltadas, prioritariamente, ao tratamento ou à reclusão (Silveira, 2017).

A pressão vivenciada no trabalho no sistema prisional pode acarretar profundas crises, devido aos constantes momentos de tensão, de pressão e de ambivalência nos sentimentos e percepções (Lopes, 2002; Santos et al., 2010). Ao longo de quase 30 anos na instituição, P3 salienta transformações significativas no manejo e lida diária entre profissionais e deles para com os internos, tais como:

“[...] eu que sou da época do eletrochoque, e naquela época o paciente apanhava, era agredido. Para ser bem sincera e justa, é a primeira gestão que se o agente bater no paciente ele vai sofrer punição”.

Nesse viés, o que se observou na fala da participante foi um misto de revolta pelos comportamentos passados e pela história pregressa que permeia seu ambiente de trabalho com certo desconforto pela realidade que ainda assola esse lócus. Dantas e Chaves (2007) destacam, nesse sentido, que a problemática exclusão direcionada aos doentes mentais infratores perpetuada ao longo dos anos é vista como um panorama que tranquiliza a sociedade, o que reforça a lógica higienista antecedente.

No que diz respeito às dualidades vivenciadas, o hospital acolhe, ainda, demandas de presos do regime prisional comum que passam por tratamento psiquiátrico temporário, quando necessário. Esses pacientes, comumente, adentram a instituição com episódios de surtos e crises e são alojados num espaço chamado “Ala de tratamento”, restrita e separada do convívio com os demais internos. Sobre esse lugar, P1 afirma que ele gera:

“Muita ansiedade, muita angústia, muito estresse [...] tem dias que eu chego nessa ala e eu me arrepio todo. Acho que é a ala que todo mundo menos gosta de trabalhar”.

Pondera-se que o bem-estar dos trabalhadores impacta na produtividade da organização como um todo, desse modo, investir em aspectos positivos do ambiente do trabalho é uma alternativa fundamental a ser implementada (Gomide Júnior; Silvestrin & Oliveira, 2015). Vazquez (2018) complementa que evidências empíricas mostram-se cada vez mais robustas em demonstrar afirmativamente que a vida de significado e de preenchimento (ou vida plena, como alguns preferem denominar) está intimamente ligada a valores, emoções e atitudes positivas em relação ao que produzimos com o nosso trabalho.

Alicerçada à dificuldade frente ao manejo profissional e à dicotomia enfrentada no cotidiano, contrastam-se percepções duais. Enquanto o trabalhador visualiza a necessidade de dar suporte e auxiliar no tratamento dos internos, ele enxerga, também, ânsia pela penalização e punição frente ao crime cometido e à imprevisibilidade no agir (Dantas & Chaves, 2007; Silveira, 2017). Em alusão a tais perspectivas, destaca-se a fala de P2:

“A estadia deles (internos) está boa ali. O que melhoraria? [...] deveria ser cama de concreto. Ali são leitos hospitalares móveis, camas com colchões. Devia ser concreto direto no chão para que eles não pudessem tirar a cama do lugar”.

Para Lemos e Oliveira (2016), trata-se de um reflexo do conceito de vingança social, baseada na segurança e na defesa contra aqueles que romperam com o pacto social, o que se incorpora às ações frente ao descrédito pelas normas e sanções disciplinares aplicadas.

Na intenção de melhorar o ambiente e as condições de trabalho e de cuidado e de ressignificar as relações pessoa-ambiente, é necessário ocorrer empatia (Mielke, Kantorski, Jardim, Olschowsky & Machado, 2009). P1 afirma que a partir da nova gestão do HCTP foi implementada uma rotina diferenciada, com mentalidades condizentes ao que ele entendeser um tratamento mais humanizador. As atitudes dos profissionais frente aos internos e à sua atuação ocorrem conforme o funcionário percebe e define esse paciente sob seus cuidados (Santos, Souza & Santos, 2006). Ao recordar seu percurso, P3 avalia:

“Entrei triste, me apaixonei, sou apaixonada pelo que eu faço, faço com amor e vou fazer com amor até o último dia que eu trabalhar aqui”.

A fala de P3 apresenta informações acerca de um sentido positivo a que o seu trabalho remete e nos remete à próxima categoria a ser apresentada. Afinal, os sentidos individuais dados ao trabalho influenciam no processo de construção da sua identidade social e profissional, fatores que refletem em uma relação positiva com o trabalho desenvolvido (Tolfo, 2015).

As falas dos participantes que permitiram a construção da presente categoria relembram o quanto as características e os sentimentos pessoais se configuram como uma variável de conflito com a realidade da instituição e seus propósitos. Isso, no entanto, não impede a construção de um significado positivo para o trabalho desenvolvido, além de se constituir como uma fonte de bem-estar. Nesse aspecto, destacam-se os vínculos estabelecidos com o trabalho realizado, a sensação de que é um trabalho importante e que muda a realidade social e o papel dos relacionamentos interpessoais. Esse é o propósito do bem-estar, ou seja, a compreensão acerca dos fatores psicológicos que constroem e compõem uma vida saudável, que leva em consideração os vínculos afetivos positivos com o trabalho, como a satisfação e o envolvimento, e com a organização, por meio do comprometimento organizacional afetivo (Siqueira & Padovam, 2008).

Categoria 2: Significado e sentido no trabalho

Na medida em que o significado atribuído pela pessoa ao trabalho se norteia pelo afeto e prazer envolvido, a relação sujeito-significado-trabalho percorre níveis de agradabilidade e bem-estar. No entanto, ao transcender tal perspectiva e o prazer laboral não for mais percebido, o sofrimento e o comprometimento da saúde mental se tornam esperados, haja vista o desgaste da relação (Tolfo & Piccinini, 2007). Torna-se particularmente importante entender, ainda, o fluxo e o trânsito dos sentimentos atribuídos ao trabalho, como ilustra P3:

“Na verdade, quando eu passei no concurso eu nem pedi para vir para cá. Mas daí acabei vindo por questões burocráticas. Aí eu vim para o hospital, e eu sempre digo para os pacientes que eu escolhi trabalhar com eles”.

Embora P4 não mencione um plano de carreira direcionado ao cargo que ocupa atualmente, ele acredita que seu trabalho representa uma oportunidade que alia estabilidade com respaldo financeiro. P4 diz:

“Não é o que eu escolhi pra mim. Mas eu me adaptei, a gente se adapta às coisas. ‘Pô’, hoje pra ti arrumar um emprego pra ganhar x, mesmo com escolaridade, com graduação, com pós-graduação, tu não consegue ganhar muito. É difícil”.

Apesar disso, o mesmo participante destaca a importância de se implicar para a atividade que exerce, alinhando a ideia de execução bem feita ao bem-estar subjetivo e da equipe de trabalho. De acordo com Lima, Tavares, Brito e Capelle (2013, p. 45), “o enlace entre significado e sentido é reconhecido quando vincula o pensamento com a ação”.

O trabalhador é afetado de acordo com as circunstâncias nas quais está e em consonância com os recursos intrínsecos que implica nas suas atividades, podendo produzir desgastes para além das condições que possui, domina ou aplica (Lima, 2015). No que diz respeito à adequação dos profissionais ao lócus de trabalho, P3 (conforme mencionado acima) e P4 destacam que não há um processo de escolha propriamente dito, o que pode se configurar como fator balizador da qualidade de vida, apropriação de sentido e de significado no trabalho. P4 explicou que migrou da formação para o hospital, sem qualquer treinamento específico, apenas o generalista para funções de segurança em unidade prisional. O participante acredita que foi destacado para o HCTP devido a sua mentalidade e jeito mais ponderado e menos agressivo frente às situações vivenciadas na academia de formação. O desafio no cotidiano laboral pode ser encarado de distintas formas, no entanto, ressalta-se a importância de se investir na afetividade no trabalho, na intenção de que esta possa ser mobilizadora de recursos que auxiliem a pessoa a atender às exigências e demandas nas quais se encontram (Lima, 2015; Moura & Castro e Silva, 2015).

No intuito de explorar o prazer e o sofrimento no trabalho, Tschiedel e Monteiro (2013) fizeram um adendo ao estresse e ao risco tipicamente percebidos no desempenho de funções no sistema prisional. Ainda que este fato já tenha sido significativamente explorado cientificamente (Fernandes et al., 2002; Kurowski & Moreno-Jimenez, 2002; Vasconcelos, 2000), as inclinações afetivas aplicadas no trabalho tendem a torná-lo mais fluido e prazeroso. P2 exprime em sua fala uma referência ao grupo e à coesão percebida, enfatizando que sua equipe de trabalho tende a permanecer junta por 20 ou 30 anos, sendo necessário manter harmonia, amizade e diálogo entre todos. Nesse sentido, P4 salienta outros fatores importantes que visualiza, destacando os múltiplos papéis que nota em seu fazer profissional:

“Às vezes, eles querem um pai, uma mãe, um médico. Às vezes a gente faz esse papel, tu é pai, tu é mãe, tu é amigo, tu é colega […] Se tu é trabalhador, é trabalhador em qualquer lugar”.

Embora se reconheça a distância ponderada da afetividade na relação profissional (Lacerda & Martins, 2013), Spinoza (2009) reforça a importância do afeto enquanto elemento com potencial de ação, mediado pela noção de encontro que agrega, ainda, sentimentos e emoções.

Ao entender que o trabalho circula em território ambivalente, Tschiedel e Monteiro (2013) afirmam que ele pode ser tanto fonte de alienação psíquica como gerador de saúde e instrumento de emancipação. Nesse sentido, P1 pondera que, embora tivesse passado por um período de tensão e medo de ter uma crise, também relata a superação de tais temores auxiliada por terapia. Alertado sobre a importância do cuidado da saúde, P1 tenta proporcionar atenção similar aos internos do hospital de custódia:

“[...] eles precisam se conscientizar e cuidar da saúde. Existe vida após o hospital de custódia! Eles podem casar, podem construir uma família, arrumar um emprego. Isso que a gente tenta passar para eles”.

De fato, o trabalho requer uma implicação com a eficácia técnica no desempenho das atividades cotidianas, porém é importante salientar, também, a implicação que pode promover ao ser humano no que condiz às relações de prazer, satisfação pessoal e relação social em espaços de convivência (Dejours, 1999; Tschiedel & Monteiro, 2013).

A menção às características dúbias do trabalho traz consigo a recordação frente à característica de dupla sobreposição do espaço, típica de hospitais de custódia. Outrossim, tal perspectiva infere, por conseguinte, na postura e na ação dos profissionais que lá atuam, haja vista as diferentes funções e os objetivos que alternadamente se apresentam no labor diário (Santana & Alves, 2015). Nesse viés, é possível observar a fala de P1, ao reafirmar seu entendimento frente à função que executa, direcionada ao bem-estar dos internos:

“[...] o cara (agente) quando vem trabalhar aqui precisa abstrair que o interno pode ter cometido o crime mais bárbaro que tem, ele é doente mental e isso é difícil. Uma pessoa com mente fechada e concepção de cadeia mesmo, logo ‘dança’”.

Por outro lado, há quem reforce antigos estereótipos que, ao longo do tempo, reduziram a existência das pessoas com doenças mentais em cumprimento de medida de segurança. Para tanto, P2 exemplifica esse perfil ao dizer que:

“O paciente psiquiátrico é igual mendigo da rua, a diferença é que esses não cometeram crimes. A gente trabalha com a mesma cautela que a gente teria para o preso comum, sempre com o risco eminente”.

Na intenção de clarear aspectos inerentes ao sentido e ao significado do trabalho para os profissionais do hospital de custódia entrevistados, tem-se o esforço concomitante de atrelar percepções e respaldos teórico-científicos acerca de conceitos afins, como bem-estar e afetividade. Nesse trajeto, explorações acerca da inclinação e do direcionamento do trabalhador com seu lócus de atuação foram ponderadas, enfatizando, sobremaneira, aspectos intrínsecos à adequação ao fazer e à realização profissional. Por último, a fim de enaltecer algumas perspectivas abordadas, Tolfo e Piccinini (2007, p. 40) afirmam que “uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho”. Ou seja, atrelar sentido e significado ao trabalho que se realiza pode consistir em um ponto fundamental para a construção de uma vida plena. Além disso, apesar das intempéries presentes nos cotidianos de trabalho dos profissionais pesquisados, a partir do enfrentamento ativo das dificuldades e do próprio sentido e significado que esse trabalho possui percebe-se ser possível com ele identificar-se e constituir uma identidade profissional que lhe possibilite a vivência de sentimentos favoráveis.

Considerações Finais

Ao ponderar as discussões tecidas ao longo do texto, é notório se deparar com inquietações acerca do trabalho em instituições com ambientes considerados adversos à saúde, o que levanta o questionamento para futuros estudos a fim de explorar a centralidade do trabalho e os aspectos que a engendram quando esse trabalho é realizado em lócus como o HCTP. Além disso, deixa-se a recomendação de que pesquisas posteriores se dediquem a verificar a possibilidade de identificação, de satisfação e de sentido percebido por trabalhadores de contextos como o da custódia hospitalar. Os resultados obtidos neste estudo demonstram que há indicativos positivos de que tais variáveis estejam presentes, ainda que intempéries assolem o cotidiano laboral em alguns momentos. Observaram-se grande implicação e afetividade envolvida no discurso dos participantes nos momentos das narrativas, seguidas de verificações para confirmar se, de fato, estavam transmitindo à pesquisadora seus sentimentos de afeição e empatia com o trabalho que desenvolvem.

Embora alguns relatos obtidos dialoguem em sentido oposto ao sentido e ao significado de trabalho numa perspectiva saudável, em suma pôde-se notar relevante implicação com as funções exercidas, com os internos e com a instituição. Os momentos relacionados à percepção de bem-estar e ao sentimento de felicidade foram percebidos nas confraternizações vistas no ambiente dos dormitórios e da cozinha dos profissionais, comumente recheada de algum alimento compartilhado entre todos.

Sustentar cientificamente este estudo não foi tarefa fácil, justificada, principalmente, pela escassez de referencial teórico sobre o trabalho realizado em espaços de saúde mental e, inclusive, em saúde mental no trabalho. Com amparo em uma epistemologia que considera o bem-estar e a felicidade elementos fundamentais à qualidade de vida no trabalho, optou-se por aclarar contrapontos teóricos para enriquecer e diferenciar visões a respeito dos temas abordados. No exercício de subsidiar o conteúdo teoricamente, verificaram-se lacunas científicas que requerem maior exploração, sobretudo ao considerar a crescente investigação e expansão de temas como capital psicológico, resiliência, pensamento divergente e outros.

Esforços foram implicados na intenção de alinhar interfaces entre a área de psicologia organizacional e do trabalho e a saúde mental, enaltecendo as possíveis articulações e conexões em torno das relações humanas e seus desdobramentos. Embora valiosas interlocuções tenham enriquecido as discussões, algumas limitações foram constatadas, como: escassez de base teórica e empírica que dialogue com as áreas supracitadas, pouca atualização científica do universo laboral em saúde mental prisional e impossibilidade de maior abrangência de outras instituições similares e seus respectivos profissionais. Por fim, no anseio de que os achados desta investigação possam subsidiar e encorajar outras investigações similares, espera-se que os resultados obtidos sejam percebidos como respaldos a uma ressignificação do tratamento em saúde mental, atentando, especialmente, aos modelos de atenção extra-hospitalar, tal qual se preconiza na Reforma Psiquiátrica.

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Recebido: 06 de Novembro de 2018; Aceito: 24 de Maio de 2019

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