A escola é um ambiente de socialização que contribui para o desenvolvimento global dos estudantes. No entanto, a violência na escola é cada vez mais apontada como uma realidade preocupante e crescente em todo o mundo (Mendes, 2011). A violência pode ser entendida como o uso intencional de força física ou poder, em forma de ameaça ou prática, contra si mesmo ou contra terceiros, que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação (World Health Organization, 1996).
Várias modalidades de violência, portanto, podem estar presentes no contexto educacional, envolvendo todas as pessoas que fazem parte desse ambiente, como professores, estudantes e funcionários. São comuns as agressões entre alunos e funcionários ou professores (e vice-versa), os danos contra o patrimônio escolar e, também, as agressões entre pares, tais como o bullying, tipo de violência na qual um estudante é exposto, repetida e intencionalmente, a ações negativas por parte de um ou mais outros estudantes (Olweus, 1993).
Estudos variados têm apontado uma alta prevalência de bullying. Por exemplo, no estudo clássico descrito por Olweus (1993) com 84 mil estudantes noruegueses de 7-13 anos, 9% dos estudantes declararam que eram alvos de bullying, sendo que 3% eram vitimizados “uma vez por semana” ou mais frequentemente. Na pesquisa de Craig et al. (2009), comparando estimativas de prevalência de bullying e vitimização em 40 países, contando com a participação de mais de 200 mil estudantes, 26% da amostra reportaram envolvimento com bullying; 10,7% afirmaram ser agressores; 12,6% reportaram ser vítimas; 3,6% relataram ser vítimas/agressores.
Albuquerque e Williams (2015a) e Albuquerque e Williams (2018) realizaram uma pesquisa retrospectiva, no Brasil, com 691 estudantes universitários do estado de São Paulo, identificando que os tipos de violência vivenciados mais frequentemente foram violência relacional e verbal. Entre todas as experiências assinaladas pelos participantes, estes selecionaram as piores experiências escolares, divididas nas categorias: violência relacional (indicada por 35,7%); violência verbal (27,4%); violência física (12,9%); disciplina injusta (10,8%); presenciar violência (4,8%); violência de caráter sexual (2,4%); violência contra o patrimônio (2,2%); outras (3,8%), que se referem a violências e conflitos diversos ocorridos na escola. Acerca do tempo de duração da pior experiência escolar, 10,5% relataram ter durado “anos” (variando de dois até oito anos) (Albuquerque & Williams, 2015a).
Outras pesquisas no contexto brasileiro também mostraram índices de violência preocupantes. Por exemplo, Moura, Cruz e Quevedo (2011) realizaram um estudo com 1.075 alunos do ensino fundamental de duas escolas públicas de Pelotas/RS, tendo encontrado uma prevalência de bullying de 17,6%. O tipo de intimidação mais prevalente foi o verbal, seguido do físico, emocional, racial e sexual.
As experiências traumáticas na escola têm efeitos semelhantes aos da exposição da violência em geral. Nesse sentido, é importante investigar o quanto eventos considerados como cotidianos podem afetar, a curto e a longo prazo, o bem-estar físico, social e emocional dos seres humanos (Elklit & Petersen, 2008). O bullying, especificamente, é para a criança um estressor ou um problema cuja resolução pode parecer estar fora de seu controle, devido ao desequilíbrio de poder que faz parte desse fenômeno grupal, dificultando o processo de adaptação saudável à escola (Braga & Lisboa, 2010).
A literatura indica que após a vivência de violência escolar, muitos participantes podem apresentar: depressão (Felix, Furlong & Austin, 2009; Luukkonen, Rasanen, Hakko & Riala, 2010; Moura et al., 2011); desesperança (Ateah & Cohen, 2009); sintomas psicossomáticos (Fekkes, Pijpers, Fridriks, Vogels & Verloove-Vanhorick, 2010; Gini & Pozzoli, 2009; Houbre, Tarquinio, Thuillier & Hergott, 2006); ansiedade (Houbre et al., 2006; Luukkonen et al., 2010; Moura et al., 2011); dificuldades cognitivas (Houbre et al., 2006); agressividade (Houbre et al., 2006); ideação suicida (Schafer et al., 2004); e rememoração do evento traumático (Williams, D’Affonseca, Correia & Albuquerque, 2011).
Além dos sintomas comumente descritos, indivíduos vitimizados por pares também podem desenvolver sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) (Albuquerque & Williams, 2015b; Albuquerque, Williams & D’Affonseca, 2013; Crosby, Oehler & Capaccioli, 2010; Idsoe, Dyregrov & Idsoe, 2012; Nielsen, Tangen, Idsoe, Matthiesen & Magerøy, 2015). No contexto brasileiro, o estudo retrospectivo de Albuquerque e Williams (2015a) apontou que 7,8% da amostra participante indicaram ter apresentado sintomas de TEPT após a vivência da sua pior experiência escolar. Além disso, 10,8% apresentaram índices acima da média, o que pode ser preocupante, pois tais indivíduos teriam risco para futuro desenvolvimento de sintomas. A porcentagem de participantes com escores clinicamente significativos em cada sintoma analisado foi: somatização (4,7%), impacto do evento sobre o bem-estar geral (5%), comportamento opositivo (5,1%), reexperienciação do trauma (6,1%), desajustamento geral (6,7%), depressão (7,1%), excitabilidade aumentada (7,6%), desesperança (8,6%), dissociação (8,7%), evitação e entorpecimento (12,1%) e hipervigilância (20%). Constatou-se, ainda, que a percepção individual sobre o evento estressor de violência era mais relevante do que as características de tal experiência (como o tipo de violência). De forma geral, quanto maior o incômodo após a pior experiência relatado pelo participante, maior foi a probabilidade de apresentar sintomas de ansiedade. Por exemplo, indivíduos que se incomodaram muito com a pior experiência tiveram 28,33 vezes mais probabilidade de apresentar tais sintomas do que aqueles que afirmaram não ter se incomodado (Albuquerque & Williams, 2015b).
Apesar dos impactos negativos das piores experiências escolares, pode haver também ganhos, pois os indivíduos reagem diferentemente a eventos estressantes. Enquanto algumas pessoas mostram dificuldades e outras não demonstram quaisquer alterações, muitas reportam um crescimento positivo após as adversidades (Cho & Park, 2013). Nesse sentido, as pesquisas têm sugerido que não apenas as vítimas de bullying podem se recuperar das experiências, mas que adicionalmente algumas delas reportam benefícios de experimentar tais adversidades (Fraccaro, 2014). Esses benefícios referem-se à identificação de resultados positivos das experiências de bullying (Fraccaro, 2014). Além disso, o processo de obtenção de benefícios pode ser associado ao bem-estar e à recuperação bem-sucedida de algumas vítimas (Fraccaro, 2014).
O termo “crescimento pós-trauma” tem sido usado para definir o processo de transformação das visões de vida e mudança de prioridades, desenvolvimento de um novo senso de si mesmo e das próprias capacidades ou proximidade em relação às pessoas e aprofundamento dos relacionamentos interpessoais (Joseph, 2011). Segundo Cho e Park (2013), tal crescimento pode ocorrer em diferentes domínios, sendo um fenômeno comum.
Ratcliff, Lieberman, Miller e Pace (2017) realizaram uma pesquisa com o objetivo de investigar relatos espontâneos de crescimento pós-trauma após a vivência de bullying por 51 adultos e 33 crianças com deficiência visual. Os autores observaram que 35,7% dos participantes revelaram alguma forma de crescimento pós-trauma como resultado de terem sofrido bullying, demonstrando que, em algumas circunstâncias, a prática pode produzir mudanças psicológicas positivas em áreas relativas aos relacionamentos com os outros, crescimento pessoal, mudanças espirituais, novas possibilidades e apreciação da vida. Tombari (2017) realizou uma pesquisa com 139 participantes que se identificaram como lésbicas, gays ou bissexuais que haviam sofrido bullying. Os resultados mostraram que existia uma associação positiva entre a severidade da prática e o crescimento pós-trauma, pois embora o bullying possa ter sido percebido como grave, havia potencial para crescimento pós-trauma. Segundo Tombari (2017), alguns fatores que podem contribuir para tal crescimento foram o suporte social e a revelação da condição de homossexual ou bissexual.
De acordo com Medeiros, Couto, Fonsêca, Silva e Medeiros (2017), apesar de haver um interesse crescente da Psicologia pela temática do crescimento pós-trauma os estudos brasileiros nessa área são incipientes. No que se refere à temática violência entre pares ou bullying e crescimento pós-trauma, não foram encontrados na revisão da presente pesquisa estudos específicos no contexto brasileiro. Nesse sentido, o objetivo do presente estudo foi caracterizar a percepção de estudantes sobre a ocorrência de impactos positivos de sua pior experiência escolar. Cabe apontar que essa pior experiência foi compreendida segundo os parâmetros dos participantes do estudo, que indicaram a experiência ou o evento mais marcante ou relevante que vivenciaram na época da escola.
Método
Participantes
Esta pesquisa é um recorte de estudo prévio realizado com 691 estudantes universitários (Albuquerque & Williams, 2015a; Albuquerque & Williams, 2018), em que foram analisadas as respectivas piores experiências escolares. No presente estudo serão apresentados dados referentes aos 313 participantes que afirmaram ter obtido benefícios após as suas piores experiências. Tais participantes eram estudantes de uma universidade do interior do estado de São Paulo, sendo que 82 (26,2%) pertenciam à área de ciências humanas; 108 (34,5%), de ciências biológicas; 123 (39,3%), de ciências exatas. Os participantes tinham média de idade de 21 anos (DP= 4,04), sendo 158 (50,5%) do sexo feminino e 155 (49,5%) do sexo masculino.
Em relação à etnia/cor da pele, os participantes se declararam: brancos: 225 (71,9%); negros: 19 (6,1%); pardos: 46 (14,7%); orientais: 20 (6,4%); outros: 2 (0,6%); não responderam: 1 (0,3%). Sobre a renda familiar, 76 (24,3%) declararam que essa era “muito melhor do que a maioria”; 129 (41,2%) “ligeiramente melhor do que a maioria”; 102 (32,7%) “semelhante aos outros lares”; 3 (0,9%) “ligeiramente pior do que a maioria”; 3 (0,9%) “muito pior do que a maioria”.
Instrumento
Foi usado o instrumento norte-americano Student Alienation and Trauma Survey – R (SATS-R), de autoria de Hyman e Snook (2002). A versão utilizada foi traduzida e adaptada (validação de conteúdo) para o Brasil por Albuquerque e Williams (2014), denominada Experiências Escolares Traumáticas em Estudantes (ExpT). As primeiras questões do instrumento referem-se a dados sociodemográficos, como: sexo, etnia, renda e grau de escolaridade dos pais. Em seguida, o instrumento é dividido em duas partes. Na Parte I, há uma lista de 58 eventos traumáticos que podem ocorrer na vida escolar, como violência relacional (que se refere a atos que danifiquem o relacionamento entre pares, como exclusão de atividades, propagação de rumores e mentiras), violência verbal, violência física, violência sexual, disciplina injusta (eventos considerados injustos pelos estudantes), violência contra o patrimônio e presenciar violência.
Há, então, indicação para que o participante selecione entre os 58 eventos aquele que foi sua pior experiência escolar, descrevendo-o. Em seguida, existem sete questões relativas à pior experiência escolar, de forma a identificar o que teria ocasionado o evento, informações sobre o agressor, a idade do participante quando o episódio ocorreu, sua série escolar na época, local e sentimentos decorrentes (incômodo após a experiência). A Parte II do instrumento inclui uma lista de 105 sintomas associados ao estresse decorrentes da pior experiência, sendo que, para cada um desses sintomas, são identificadas a respectiva frequência e a duração do mesmo, usando uma escala do tipo Likert de seis gradações, indo do Nunca ao O tempo todo. Os participantes responderam adicionalmente a uma questão referente à possível obtenção de ganhos após a “pior experiência escolar”, tendo a oportunidade de descrever em seguida essa vivência, o que será o foco principal deste artigo. Com a inclusão dessa pergunta objetivou-se obter dados específicos sobre os impactos positivos da pior experiência escolar na perspectiva do participante.
Procedimento
Após o recebimento de parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (Parecer Nº 277/2010), a aplicação do instrumento foi executada coletivamente em salas de aula da instituição, em horário de aula. Os participantes receberam informações sobre a coleta de dados, que envolvia questões referentes aos episódios negativos de sua vida, e foram alertados de que sua participação poderia gerar algum tipo de desconforto ou estresse ao se lembrar disso. Em seguida, eles preencheram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido.
Posteriormente, os participantes recebiam uma cópia do instrumento com numeração para manter o sigilo de sua identidade. Em seguida, a primeira autora dava instruções detalhadas sobre como responder ao instrumento. Após o preenchimento dos questionários, a pesquisadora se colocava à disposição para conversar com os participantes que tivessem necessidade de qualquer orientação e até mesmo de encaminhamento para serviços de atendimento psicológico gratuitos existentes na cidade na qual foi realizada a pesquisa.
Os resultados foram tabulados e analisados por meio da estatística descritiva. Para análise dos relatos dos participantes, foi utilizada a análise temática, que consiste num método para identificar, analisar e relatar padrões (temas) a partir dos dados. A análise temática é usada para análise de dados qualitativos e pode ser aplicada a diferentes afiliações teóricas e epistemológicas da Psicologia (Braun & Clarke, 2006), razão pela qual foi escolhida para o presente estudo.
Resultados
A partir do banco de dados de um estudo retrospectivo, realizado com 691 estudantes universitários, em que foram analisadas suas piores experiências escolares (Albuquerque & Williams, 2015a; Albuquerque & Williams, 2018), observou-se que 313 (45,3%) dos participantes afirmaram que obtiveram benefícios após suas piores experiências e 370 (53,5%) informaram que não obtiveram; 8 (1,2%) estudantes não responderam à questão.
Identificação da pior experiência escolar dos participantes que relataram benefícios (N=313).
Sobre o tipo de pior experiência escolar, 96 (30,7%) apontaram violência relacional (exemplo de item: “Outros alunos deixaram de falar comigo.”); 82 (26,2%) apontaram violência verbal (exemplo de item: “Alguém tirou ‘sarro’ devido a minha etnia ou raça.”); 30 (9,6%) indicaram violência física (exemplo de item: “Permitiram que outros alunos me batessem, empurrassem ou me dessem tapas.”); 26 (8,3%) indicaram disciplina injusta (exemplo de item: “Eu fui punido injustamente.”); 12 (3,8%) indicaram ter presenciado violência (exemplo de item: “Eu vi alguém ser ameaçado com um revólver, faca ou outra arma.”); 6 (1,9%) citaram violência contra o patrimônio (exemplo de item: “Alguém me roubou.”); 5 (1,6%) indicaram violência sexual (exemplo de item: “Fizeram comentários sexuais sobre mim.”); 10 (3,2%) apontaram outras experiências; 46 (14,7%) não especificaram sua pior experiência.
Os participantes apontaram que os responsáveis pelas piores experiências foram: estudante: 229 (73,3%); professor(a): 30 (9,7%); 2 (0,8%): funcionário; 4 (1,4%): direção; 40 (12,8%) indicaram mais de um ator escolar (como estudante e professor); 3 (1%) apontaram outros; 3 (1%) não especificaram a resposta. A idade média de ocorrência da pior experiência foi 12,5 anos. Quanto à duração, 125 participantes (40%) apontaram “dias”; 31 (9,9%) “semanas”; 60 (19,1%) “meses”; 28 (8,8%) indicaram “um ano”; 57 (18,1%) “anos” (variando de 2 a 8 anos); 13 (4,1%) não precisaram a resposta ou não responderam.
No que se refere ao impacto da pior experiência escolar, 192 (61,4%) afirmaram ter se incomodado muito; 99 (31,6%) se incomodaram um pouco; 17 (5,4%) não se incomodaram; 5 (1,6%) não responderam. Dados do estudo anterior (Albuquerque & Williams, 2015a), realizados com a amostra total de participantes (os que obtiveram benefícios com a pior experiência e os que não obtiveram), apontaram uma relação significativa entre sintomas de TEPT e os benefícios percebidos pelos estudantes após a pior experiência, notando-se que os participantes que tiveram mais benefícios após a pior experiência escolar apresentaram menos sintomas de TEPT (X²(2) = 13,808, p<0,001).
Caracterização dos benefícios
Os benefícios após a pior experiência escolar descritos pelos participantes foram agrupados em três temas principais: aprimoramento das competências (113 – 36,1%), ressignificação de experiências (78 – 24,9%) e benefícios sociais (66 – 21,2%). Além disso, 53 (16,9%) apontaram outros benefícios e três (0,9%) não descreveram os benefícios.
Aprimoramento das competências
Sobre o aprimoramento das competências, os relatos foram subdivididos em subtemas: mudança de comportamento e ampliação do repertório de habilidades (31 – 9,6%); autoconfiança e valorização da própria opinião (30 – 9,6%); assertividade (16 – 5,1%); autocontrole (12 – 3,8%); respeito pelos outros e aceitação da diferença (10 – 3,2%); autoaceitação (9 – 2,9%); e empatia (5 – 1,6%).
No que se refere à mudança de comportamento e à ampliação do repertório de habilidades, foram descritos relatos como:
“Aprendi a lidar com situações delicadas (a maioria dessas), gerou algo bom.” (Participante – P - 229, do sexo feminino - F)
“Aprendi a ser mais responsável.” (P 140, F)
“Estar mais atenta aos perigos.” (P 541, F)
Por exemplo, a participante 476 descreveu sua pior experiência escolar: “A maioria dos alunos faziam comentários desagradáveis a mim sobre a minha opção sexual e sobre as roupas que eu usava na época”. E a mesma participante apontou que obteve os seguintes benefícios:
“De ruim, eu perdi parte da minha infância e adolescência ao não pedir ajuda. De bom, foi começar a ver o passado de outro modo e tentar mudar o meu jeito de agir diante das situações.” (P 476).
Sobre o subtema autoconfiança e valorização da própria opinião, foram citados aspectos como:
“Gerou independência, induziu autoconfiança.” (Participante 241, sexo masculino - M)
“Aprender a não me importar com o que dizem sobre mim. Eu posso não ser boa em algumas coisas, mas posso surpreender em outras, não deixando comentários de outras pessoas me magoarem.” (P 498, F)
Nesse sentido, a participante 684 descreveu como pior experiência:
“Me senti incomodada, pois me zoavam por causa da minha aparência e por não ter ficado com muitos meninos (...). Por incrível que parece me deu mais confiança. Percebi que os alunos que faziam isso comigo faziam com todos então o real problema era com eles.”
A assertividade, definida por Del Prette e Del Prette (2005) como a expressão apropriada de sentimentos, desejos e opiniões, implicando tanto na superação da passividade quanto no autocontrole da agressividade, pode ser destacada nas seguintes descrições:
“Devido à situação a que fui exposto aprendi a lidar com situações hostis, além de impor limites a liberdade que dou as outras pessoas. Além de fazê-las respeitar essa liberdade.” (P 401, M)
“Aprendi a ser mais acertiva (sic) e estratégias para não me sentir mal estando sozinha ou sendo alvo de chacota.” (P 492, F)
“Aprendi a me posicionar e a não deixar que palavras me afetem tanto. Hoje, por exemplo, se me acusam injustamente eu me defendo, falo meu ponto de vista, etc.” (P 5, M)
Nesse sentido, a participante 525 descreveu a pior experiência no contexto escolar:
“Fui punida injustamente na frente de toda a classe. A professora gritou comigo e me deixou atrás de um armário que ficava na frente da sala. Falava para mim (com seis anos) que animais (como aranhas) iam para atrás do armário ‘me pegar’ .”
Ela apontou que após a experiência:
“Comecei a querer me impor, me defender.” (P 525)
Foram descritos ganhos referentes a autocontrole, compreendido como a capacidade de controlar a expressão de emoção, particularmente as negativas (Fox & Calkins, 2003). Tal aspecto pode ser percebido pelos relatos seguintes:
“Aprendi a me controlar e não me incomodar demais com as coisas.” (P 330, M)
“Me tornou menos explosivo e briguento. Após essa briga poucas vezes me envolvi em confusões.” (P 123, M)
Alguns relatos apontam o subtema respeito pelos outros e aceitação da diferença, tais como:
“Respeitar mais as origens e as escolhas das pessoas.” (P 208, M)
“Aprendi a lidar com o diferente. Acredito que a experiência escolar me fez aprender a lidar com costumes diferentes, pessoas diferentes e modo de pensar diferente.” (P 237, F)
Nesse sentido, a participante 25 descreveu sua pior experiência:
“Eu era chamada de gorda, e cantavam músicas e falavam coisas sobre o fato de eu ser obesa”, indicando como benefício:
“Não julgar as pessoas pela aparência.” (P 25)
Algumas descrições indicaram autoaceitação, como:
“Me aceitar do jeito que sou.” (P203, F)
“Após um tempo passei a confiar e gostar mais de mim mesma.” (P 613, F)
A participante 114 descreveu a pior experiência escolar:
“No final do terceiro colegial eu havia terminado com meu namorado de mais de um ano e me envolvi com uma menina (...). Como ocorre ainda hoje, um casal lésbico gera polêmica, comentários desagradáveis, olhadas indiscretas, etc. Os comentários faziam eu me sentir mal comigo mesma, com vergonha de ser quem eu era.” Indicando ainda como benefício:
“Aprendi a conviver comigo com o passar do tempo. Comentários sexuais ainda ocorrem, assim como pessoas que não aceitam, mas com apoio dos amigos mais próximos, eu consegui aceitar o fato de que algumas pessoas eram diferentes.” (P 114)
Foi, também, descrita empatia, que pode ser compreendida como a habilidade de englobar os sentimentos e a perspectiva de outra pessoa, bem como de transmitir tal entendimento de forma que a outra pessoa se sinta compreendida (Falcone, 1999), sendo a capacidade de compartilhar as emoções e os pensamentos das outras pessoas (Sampaio, Moura, Guimarães, Santana & Camino, 2013). Os relatos seguintes indicam empatia:
“Eu não ‘zoava’ os outros do jeito que me ‘zoavam’.” (P 34, M)
“Parei de fazer bullying.” (P 546, M)
“Aprendi a respeitar muito os outros, nunca sair zombando de ninguém. Me colocar no lugar do outro. Não quero que ninguém se sinta como me sentia (envergonhado, se sentindo 'o alvo'). Portanto, sempre respeitei muito os outros e procurei ser educado também.” (P 262, M)
Ressignificação de experiências
No que se refere à temática ressignificação de experiências, os subtemas apresentados foram: amadurecimento (43 – 13,7%); superação e resiliência (20 – 6,4%); novo olhar sobre os eventos (15 - 4,8%). O amadurecimento pode ser observado pelos relatos seguintes:
“Proporcionou amadurecimento intelectual e moral.” (P 173, M)
“Cresci. Os fatos me ajudaram a enfrentar a vida.” (P 97, M)
“Me preparou para enfrentar outras situações constrangedoras/humilhantes que viriam depois. Ajudou no meu amadurecimento.” (P 247, M)
“Maturidade e vontade de melhorar sempre.” (P 80, F)
A resiliência para Rutter (2006) se refere à resistência a experiências de risco no ambiente ou à superação de estresse e adversidade. Para Masten, Best & Garmezy (1990) tal constructo seria o processo, capacidade ou resultado da adaptação bem-sucedida, a despeito de circunstâncias desafiadoras ou ameaçadoras. Houve relatos que sugerem superação e resiliência, tais como:
“Me ensinou a ‘sobreviver’ sob condições adversas, difíceis. As experiências na escola acabaram por se tornar verdadeiras lições de vida para mim. Hoje sei me virar frente as mais diferentes situações.” (P442, M)
“Me deixou emocionalmente mais forte. Se sobrevivi àquilo, poderia sobreviver a muitas coisas.” (P 529, M)
Nesse sentido, a participante 355 descreveu sua pior experiência:
“O professor de química do Ensino Médio, quando questionado quanto ao curso superior que eu faria, disse que eu teria vários filhos, e que não cursaria o nível superior (Não foi uma brincadeira, ele falou sério, e às minhas amigas, ele disse o curso que elas fariam dentre as alternativas propostas por elas).”
Ela indicou ter tido como benefício:
“Foi um motivo a mais para o Ensino Superior.” (P 355)
Por fim, foi descrito um novo olhar sobre os eventos, como indicam os participantes:
“Aprendi a não levar as coisas tão a sério.” (P 41, F)
“Saber o que ignorar.” (P 503, M)
Benefícios sociais
Sobre o tema benefícios sociais, os participantes descreveram os tópicos: aprimoramento dos relacionamentos interpessoais e amizades (60 – 19,2%); estreitamento de laços familiares (6 – 1,9%). No subtema aprimoramento dos relacionamentos interpessoais e amizades foram descritos relatos como:
“Fortaleceu meus laços com meus amigos.” (P 320, F)
“Aprendi a conviver melhor com as pessoas.” (P 473, F)
“Fez com que eu valorizasse mais minhas amizades e melhorou o modo como eu me relaciono com as pessoas.” (P 116, M)
Alguns relatos indicaram estreitamento de laços familiares, como o da participante 465:
“Adquiri mais confiança e união com minha família. Minha família ficava unida e me apoiou.”
A participante 314 descreveu sua pior experiência:
“Uma colega de classe fazia tudo para me prejudicar, inventava histórias e fazia com que os outros alunos também se afastassem de mim. Isso durou uns dois anos, e a situação só foi piorando. Isso fez com que eu perdesse a vontade de ir à escola, e trouxe a necessidade de acompanhamento com psicóloga.”
Indicando ainda que teve como benefício:
“Essa situação me aproximou mais da minha família, aprendi a lidar com situações, e procurava estratégias para passar por cima disso. O apoio da minha família e de alguns funcionários da escola foi muito importante para mim. A ajuda da psicóloga também.” (P 314, F)
Outros benefícios
Por fim, foram descritos outros benefícios, tais como postura crítica diante dos educadores e modelo de profissionalismo, como indicam os relatos seguintes:
“Me fez refletir sobre o tipo de professora que quero ser.” (P 77, F)
“Vi como o mundo educacional é e me lembrou o quão irresponsável uma pessoa pode ser e decidi não me tornar um profissional como tais.” (P 437, M)
Nesse sentido, a participante 584 descreveu sua pior experiência:
“A professora não deixava as crianças irem no banheiro, inclusive eu e quase fiz xixi na roupa; depois quis me colocar no caroço de milho de joelhos e bater com palmatória.”
Ela afirmou ter tido como benefício:
“Decidi que não ia ser pessoa ruim como a professora.” (P 584)
Discussão
Embora o presente estudo tenha como alvo os benefícios percebidos pelos participantes após a sua pior experiência escolar, cabe enfatizar que tal proposta não significa minimizar os efeitos negativos dessas experiências para os indivíduos, efeitos nocivos já extensamente documentados na literatura (Albuquerque & Williams, 2015b; Idsoe, Dyregrov & Idsoe, 2012; Nielsen, Tangen, Idsoe, Matthiesen & Magerøy, 2015). Por exemplo, na presente pesquisa 61,4% dos participantes afirmaram ter se incomodado muito com a pior experiência e 26,9% assinalaram que a duração das mesmas foi superior a um ano, indicando que tais experiências foram impactantes.
Apesar de os efeitos negativos de eventos adversos não serem apagados por experiências relatadas como crescimento (Cho & Park, 2013), as pesquisas têm indicado que vítimas de violência na escola e bullying podem recuperar-se das experiências, reportando benefícios de experimentar tais adversidades (Fraccaro, 2014; Ratcliff et al., 2017), o que foi observado também no presente estudo. Os participantes descreveram benefícios relacionados ao aprimoramento das competências, como mudança de comportamento e ampliação do repertório de habilidades; autoaceitação; autoconfiança e valorização da própria opinião; respeito pelos outros e aceitação da diferença; assertividade; autocontrole; empatia.
Tais aspectos parecem representar ganhos aos indivíduos, uma vez que o comportamento assertivo está relacionado à baixa ansiedade e à alta autoestima (Bandeira, Quaglia, Bachetti & Ferreira, 2005), bem como ao comportamento prossocial (Barrett & Yarrow, 1977). Já a empatia tem um papel importante para a vida em sociedade, estando relacionada à pró-sociabilidade, redução da agressividade na infância, avanços no julgamento moral e maior responsabilidade pessoal e social (Sampaio et al., 2013). O autocontrole, por sua vez, relaciona-se à capacidade de restringir os próprios impulsos, agindo de acordo com as normas sociais (Arnett, 2013). Nesse sentido, os pares podem afetar o desenvolvimento de controle emocional em crianças, podem ser uma fonte de suporte emocional e modelar as habilidades de controle. Podem prover, ainda, um ambiente para a prática dessas habilidades (Fox & Calkins, 2003).
Foram, também, apontados benefícios sociais a partir da pior experiência, como aprimoramento dos relacionamentos interpessoais e amizades e estreitamento de laços familiares. Tais aspectos mostram-se importantes no processo de desenvolvimento, uma vez que vínculos próximos e positivos com familiares e amigos funcionam como proteção, tornando o enfrentamento ao estresse mais tranquilo (Santrock, 2014). Nesse sentido, Schreck, Miller e Gibson (2003) afirmaram que os estudantes reduzem o risco de ser alvo de violência quando têm mais contato com pessoas protetoras (por exemplo, amigos e professores de confiança). Quando a vítima não consegue estabelecer uma relação de confiança, respeito e apoio, não encontrando quem a escute, acredite e se sensibilize com sua dor, poderá ter mais dificuldade de lidar com o bullying e, nesse caso, uma probabilidade maior de apresentar consequências negativas em sua vida (Galdino, 2013).
Especificamente sobre o estreitamento de laços familiares citados pelos participantes, é sabido que ter relacionamentos calorosos na família e um ambiente positivo em casa ajuda a proteger as crianças dos efeitos negativos associados com a vitimização do bullying (Sapouna & Wolke, 2013). Um ambiente familiar positivo tem a função de aliviar o estresse, permitindo que os jovens lidem mais eficazmente com as sequelas emocionais do bullying (Sapouna & Wolke, 2013; Pinheiro & Williams, 2009).
Os participantes descreveram, ainda, como impacto das piores experiências: amadurecimento; um novo olhar sobre os eventos; superação e resiliência (Rutter, 2006; Masten et al., 1990). Segundo Fraccaro (2014), a obtenção de benefícios pode ser um comportamento associado à resiliência no contexto do bullying. Isso ocorre porque o ser humano possui a capacidade de transformar dor e perda em fontes de compreensão e entendimento profundo de si e dos outros (Ryff, 2014).
A pesquisa apresenta limitações pelo fato de ser um estudo retrospectivo. Apesar de possíveis questões relativas à acurácia da memória dos participantes, justifica-se tal metodologia pelas vantagens no sentido de que o indivíduo pode ter um olhar diferenciado pelo que passou, considerando os fatos pregressos no percurso escolar e a experiência posterior. Cabe lembrar também que o presente estudo abarcou variadas formas de violência na escola (ver Stelko-Pereira & Williams, 2010, para uma definição abrangente) entre as piores experiências praticadas por atores escolares diversos, dificultando a comparação com dados disponíveis na literatura exclusivos sobre bullying e violência entre pares. Nesse sentido, são importantes estudos que englobem diferentes populações e foquem em tipos específicos de violência, bem como a construção de instrumentos que auxiliem na coleta de dados sobre a temática da violência entre pares.
Apesar das limitações, o estudo é pioneiro em termos da realidade brasileira e importante devido à necessidade de se investigar a percepção de impacto dos estudantes acerca da violência que sofrem, bem como acerca dos significados que os mesmos atribuem (Freitas, 2016). Adicionalmente, o estudo contribui para o esclarecimento sobre os eventos estressores que ocorrem no contexto escolar. Existem particularidades na forma como as pessoas elaboram e respondem a eventos estressores, assim como a maneira pela qual são afetadas por eles (Braga & Lisboa, 2010). Especificamente sobre os relatos de crescimento após eventos estressantes, é importante enfatizar as percepções dos indivíduos, levando-se em consideração, entretanto, que nem todos os relatos de crescimento refletem mudanças de comportamento reais (Cho & Park, 2013).
Além disso, a pesquisa contribui de forma original para a temática da violência na escola por investigar as potencialidades e qualidades humanas, estando de acordo com o paradigma da Psicologia Positiva (Senna & Dessen, 2012) ou para o maior conhecimento de virtudes e qualidades do ser humano (Gomide, 2010). Dessa forma, para promover o desenvolvimento saudável dos indivíduos é necessária a prevenção da violência e do bullying nos contextos escolares. A identificação de fatores que promovem resultados positivos em jovens que experienciaram eventos negativos como o bullying pode estimular o desenvolvimento de intervenções bem-sucedidas para as vítimas (Sapouna & Wolke, 2013). Além disso, o conhecimento específico sobre os benefícios obtidos após experiências traumáticas na escola pode auxiliar no delineamento de programas de prevenção à violência em geral.