A disputa de guarda no Brasil ganha destaque nos meios jurídicos, considerando os altos índices de divórcio na atualidade – os quais evidenciam acentuada crise na instituição do casamento. O estudo realizado por Shine (2003) nos aponta o aumento dos pedidos judiciais de guarda pelos progenitores (53% dos pedidos de guarda nas varas de família de São Paulo foram requeridos pelos pais, no primeiro semestre de 2001). O autor explica que há ainda os pedidos de modificação de guarda de um responsável para o outro, sendo que esse fenômeno social tem chamado a atenção de juízes, de assistentes sociais e de psicólogos, especialmente pelo impacto que causa na estrutura familiar.
Negrão e Giacomozzi (2015), Granjeiro e Costa (2010) e Lago e Bandeira (2008) atentam para o fato de que os padrões familiares ocidentais sofreram com as transformações econômicas, sociais e trabalhistas ocorridas a partir da metade do século XX, o que acarretou uma reorganização dos papéis familiares tradicionais. Para os autores, está mais fácil casar e está mais fácil descasar. Em consequência, os autores ainda argumentam que disputas pela guarda dos filhos em processo litigioso têm ocorrido com maior frequência no decorrer dos anos, devido a esse fenômeno e às novas reconfigurações familiares. Além disso, Negrão e Giacomozzi (2015), Granjeiro e Costa (2010) e Lago e Bandeira (2008) explicam que nem sempre as separações são amigáveis e, com frequência, filhos são utilizados como objeto de disputa sobre os termos do término da relação. Segundo os autores, essa situação, associada aos problemas jurídicos, socioeconômicos e psicológicos decorrentes, pode ocasionar acentuados conflitos de diferentes ordens (social, psicológico, afetivo, emocional etc.), principalmente para os filhos envolvidos na disputa.
A partir dessa ‘guerra sigilosa’, pois ocorre em segredo de justiça, os autores esclarecem que a avaliação psicológica pode se configurar como uma situação de orientação, de esclarecimento e de discernimento do ponto de vista dos casais em litígio. Porém, para o juiz da Vara da Família, a avaliação, prevista no Código de Processo Civil, é vista como um recurso utilizado para embasar sua decisão, uma vez que este não tem a possibilidade de conhecer todos os aspectos da disputa, cercando-se, portanto, de pareceres e laudos. A avaliação psicológica se configura como uma importante intervenção, contribuindo para uma melhor compreensão da problemática e dos envolvidos, subsidiando os magistrados com informações mais fidedignas e amplas para as decisões judiciais cabíveis.
Segundo Shine (2003), diante desse cenário, a avaliação psicológica forense, para fins de subsidiar decisões judiciais pela disputa da guarda, tem papel importante dentro do processo de separação litigioso e deve ser realizada sempre por um psicólogo, levando-se em conta dois aspectos: um no nível das competências desse profissional com o conhecimento técnico e teórico necessário, e outro no nível ético, considerando que o psicólogo atua como um perito judicial imparcial, pois não trabalha a favor de nenhuma das partes, mas, sim, do melhor interesse e bem-estar da(s) criança(s) envolvida(s) na disputa.
A prática psicológica deve ser desenvolvida sempre assegurando importantes pressupostos éticos, determinados a partir de um código de ética apresentado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que deve assegurar que esses pressupostos sejam atendidos na prática profissional dos psicólogos. O Código de Ética Profissional do psicólogo em vigor foi atualizado e aprovado mediante Resolução do CFP nº 10/05 e visa estabelecer padrões esperados no tocante à prática psicológica, fomentando a autorreflexão e responsabilizando os profissionais por ações e consequências no exercício profissional. O Código de Ética atual procura ser mais um instrumento de reflexão do que de um conjunto de normas e procedimentos a serem seguidos pelos profissionais da Psicologia.
Os princípios fundamentais éticos da prática psicológica em sua atividade profissional ressaltam a necessidade de o profissional de Psicologia trabalhar sempre na direção da promoção da saúde e de bem-estar das pessoas, atuando para eliminar quaisquer formas de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão, apoiado sempre nos valores basilares da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, nos processos de disputa de guarda, o psicólogo deve salvaguardar o desenvolvimento psicológico pleno das pessoas envolvidas, identificando e se posicionando em situações que lhes causem prejuízos. Faz-se importante a compreensão de que a família representa papel preponderante no desenvolvimento dos filhos, e quando há uma ruptura nessa instância de vida, o fato deve ser tratado com cuidado e atenção.
Para Negrão e Giacomozzi (2015, p. 112), a família é uma instância crucial para o desenvolvimento humano e “a criança para conseguir ter condições humanas propícias ao desenvolvimento favorável, necessita de cuidados físicos, emocionais e psicológicos e, portanto, os laços familiares são cruciais na formação biopsicossocial do ser humano”. As autoras realizaram estudo sobre alienação parental no divórcio litigioso dos genitores, identificando consequências dessa prática para os filhos, pois consideram que, por sua inocência e espontaneidade, as crianças, conforme sua própria condição de ânimo, demonstram mais os problemas presentes em seu convívio familiar. O estudo explica que o termo alienação parental foi cunhado por Richard Gardner, psiquiatra americano e perito judicial, no decorrer da avaliação de vários casos de litígio pela guarda de filhos. Segundo Negrão e Giacomozzi (2015), uma explicação para o termo é:
[...] o cônjuge que aliena, denominado «alienador», além de impedir o contato entre o filho e o ex-cônjuge, manipula a criança com o intuito de destruir o vínculo existente entre ambos. Este genitor denigre a imagem do outro, levando a criança a rejeitá-lo, e a acreditar que aquele age de modo desprezível (p. 104).
Para Fermann, Chambart, Foschiera, Bordini e Habigzanz (2017), a alienação parental é um fenômeno que acompanha o contexto de separações e divórcios, referindo-se ao ato de uma criança se aliar intensamente a um dos genitores e rejeitar o convívio e contato com o outro genitor sem justificativa legítima.
Ainda sobre o estudo realizado por Negrão e Giacomozzi (2015, p. 108), as autoras analisaram sete processos de disputa de guarda, nos quais se revelaram prejuízos substanciais e afastamento na relação entre a criança e um dos genitores, ambos periciados por psicólogo forense no sul do Brasil. As análises dos processos foram realizadas mediante estudo retrospectivo documental, no qual foram identificadas crianças com comprometimento em seu desenvolvimento saudável por apresentarem, de alguma forma, sofrimento psíquico com a situação do litígio, como manifestação de angústia e ou de conflito com a situação, ou com o próprio genitor não guardião. As autoras identificaram que os comportamentos da criança em outros ambientes, como o escolar, por exemplo, apresentaram relação positiva com comportamentos agressivos, depressão, ansiedade, uso de mentiras para se comunicar, rejeição ao genitor não guardião e incorporação das falas do genitor guardião como se fossem próprias. As autoras ainda identificaram que a desqualificação entre os pais, para a criança, contribui para o afastamento emocional entre pais e filhos. O estudo revelou o significativo impacto que os processos de disputa de guarda exercem no comportamento das crianças e na relação dessas com os genitores.
Quando os genitores afastados do convívio da criança buscam voltar a exercer sua função de paternidade – o que implica nos cuidados e na vinculação afetiva com a criança, além daquela de provedor financeiro –, recorrendo à justiça para a revisão do parecer de guarda, pode instaurar-se um processo de disputa de guarda, no qual a avaliação psicológica é fundamental (Negrão & Giacomozzi, 2015).
O texto aqui apresentado pretende tecer considerações sobre a importância da realização de avaliação psicológica em situações que envolvem disputas de guarda, sobretudo para dar ao processo um encaminhamento com maior número possível de informações de todos os envolvidos e das relações estabelecidas, sempre na direção de resguardar, de forma mais cuidadosa, o bem-estar destes, especialmente as crianças, visando minimizar os impactos emocionais negativos que podem se originar dessa situação. Para tanto, faz-se importante uma compreensão sobre a avaliação psicológica e seus cuidados, baseando-se na literatura disponível sobre avaliação psicológica nos contextos jurídicos e de disputa de guarda no Brasil. Faz-se significativa também uma breve compreensão sobre o processo de disputa de guarda e a importância acerca de uma possível colaboração interdisciplinar entre Assistência Social, Direito e Psicologia, todos envolvidos no processo de guarda.
O processo de disputa de guarda: considerações
Lima e Campos (2006) explicam que as organizações familiares procuram a Justiça por diversas razões, entre elas, os litigantes que buscam regular seu status de ex-casal, o que inclui questões referentes à guarda de filhos, visitas, alimentos etc. Os autores consideram que há dois tipos de divórcio: o primeiro deles é caracterizado por existir comunicação e garantias do vínculo entre filhos e os dois membros do ex-casal após um período inicial de adaptação e de vivência do luto pelo casamento desfeito – chamado divórcio de ciclo vital, no qual os cuidados com os filhos não são negligenciados. O segundo caso, o divórcio destrutivo, é caracterizado por existir disputa, que é colocada acima dos cuidados com filhos.
Segundo Miermont (1994, citado por Lima & Campos, 2006), quando existe uma impossibilidade de regulação intrafamiliar, uma ou várias pessoas ou instituições são levadas a cumprir essa função. Os ex-cônjuges, não encontrando um acordo possível, entram em litígio para regularizar a situação via aparato legal.
A legislação que regulamenta a guarda de filhos consta no setor específico do Código Civil, na Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008, e na Lei n° 13.058, de 22 de dezembro de 2014. O processo de disputa de guarda ocorre na Vara da Infância, situada dentro da Vara da Família (ambas as Varas pertencem à Vara Cível), e, como tudo aquilo que envolve criança e adolescente, tramita em segredo de justiça.
Quirino e Menezes (2017) fizeram um estudo do estado da arte nas teses e dissertações produzidas em universidades brasileiras, no período entre 2004 e 2014, cujo tema é a guarda de filhos, em que apresentaram um breve histórico da legislação que define a guarda, salientando suas alterações. As autoras partem da Lei n° 6.515/1977, que regulava o divórcio e estabelecia a divisão da guarda, atribuindo ao genitor não culpado pela efetivação do divórcio o papel de cuidado e de responsabilidade pelos filhos, sendo, nos demais casos, delegado à mulher. Já em 1988 surgiu a discussão sobre o direito das crianças à convivência familiar plena, que foi assegurado pela Carta Magna em seu Art. 227 (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988) e corroborado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069, 1990), provocando assim uma mudança na legislação que dispôs sobre a guarda de filhos.
Nesse sentido, na busca por tentar garantir o melhor interesse da criança, o Código Civil de 2002 determinou que a guarda fosse atribuída àquele que apresentasse melhores condições para exercê-la, levando em consideração o grau de parentesco e da afetividade estabelecida entre criança e guardião (Lei nº 10.406, 2002). Ulteriormente, tal entendimento foi repensado e sofreu novas retificações em decorrência das imposições da Lei nº 11.698, de 2008. Esta instruiu, disciplinou e preconizou a guarda compartilhada, determinando sua aplicação sempre que possível. Assim, a modalidade unilateral de guarda seria determinada apenas de modo excepcional. No ano de 2014 foi sancionada a Lei nº 13.058, que alterou novamente o Código Civil, esclarecendo sobre o significado da guarda compartilhada e dispondo acerca de sua aplicação. A lei previu que quando não houvesse acordo acerca da guarda dos filhos, e ambos os genitores estivessem aptos a exercer a guarda, seria aplicada a guarda compartilhada, exceto se um dos pais declarasse judicialmente que não pretendia exercê-la (Lei nº 13.058, 2014). (Quirino & Menezes, 2017).
Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, pela Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, enfatizou-se o uso de audiências de mediação e de conciliação como fórum primário de resolução de conflitos de disputa de guarda em processos de separação judicial, com o auxílio de um mediador. O mediador deve ser um terceiro imparcial sem poder decisório, escolhido e aceito pelas partes. A principal função do mediador é facilitar a comunicação entre os mediados, utilizando-se de técnicas próprias para busca de consensos.
Na inexistência de um acordo entre as partes envolvidas, o caso é encaminhado para a apreciação e decisão de um juiz. Nesses casos, o processo torna-se mais complexo, demandando maior volume de trabalho na coleta das informações que embasarão as decisões. É este o momento no qual se insere a possibilidade ou a necessidade de realização de uma avaliação psicológica pelo psicólogo jurídico, considerado um trabalho de perícia, para provimento de informações ao juiz, que julgará o mérito da questão.
Em relação aos tipos de guarda existentes – definidas pela Lei nº 10.406/2002 (Código Civil) e com redação dada pela Lei nº 11.698/2008 – há a guarda unilateral, que é atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º), no qual a criança fica com um dos responsáveis e são regulamentados períodos de visitas para o outro. Há também a guarda compartilhada, entendida como “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”, na qual há divisão de direitos e deveres. Dois aspectos importantes a serem considerados na guarda compartilhada são a existência de uma residência fixa designada como a moradia para as crianças e, além disso, que as decisões a respeito das questões que envolvem crianças sejam conjuntas entre os detentores da guarda. Desse modo, a guarda compartilhada significa um aumento de participação na rotina das crianças por parte do genitor/detentor da guarda compartilhada cuja residência não é a de sua moradia fixa.
A avaliação psicológica, no auxílio das decisões decorrentes dos processos judiciais de disputa de guarda, requer procedimentos muito bem estruturados, originados de um minucioso planejamento anterior. Assim, é importante atentar-se para os cuidados que são necessários para sua aplicação.
Avaliação psicológica na disputa de guarda: importância, cuidados e procedimentos
A avaliação psicológica é prática privativa do psicólogo e se faz presente em todas as áreas de sua atuação profissional, uma vez que qualquer intervenção psicológica dependerá da compreensão do funcionamento do(s) indivíduo(s) para atender adequadamente às suas demandas (Freires, Silva Filho, Monteiro, Loureto & Gouveia, 2017; Nunes et al., 2012).
De acordo com a Resolução nº 09, expedida em abril de 2018 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), a avaliação psicológica é definida como um processo estruturado de investigação de fenômenos psicológicos, composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas.
Desta forma, a avaliação psicológica é entendida como uma ferramenta avaliativa considerando seus objetivos, o contexto e o momento em que é solicitada, não implicando em rotulações ou categorizações fixas do indivíduo. Segundo Shine (2003), esse processo deve oferecer diretrizes sobre como se proceder a partir da queixa ou da demanda apresentada, podendo também ter função terapêutica para o avaliado, não sendo essa sua principal função.
O processo de avaliação psicológica deve ser desenvolvido mediante a utilização de instrumentos psicológicos. Sobre os instrumentos psicológicos que devem ser usados nos processos de avaliação psicológica, o psicólogo tem autonomia para decidir quais os métodos e instrumentos adequados para seu trabalho, ressalvando que tais ferramentas devem estar devidamente fundamentadas na literatura científica psicológica e nas normativas vigentes do CFP.
Em seu 2º artigo, a Resolução nº 9 de abril de 2018 (CFP) ressalta a importância da fundamentação teórica e da aprovação do CFP dos instrumentos para coleta de informações da Avaliação Psicológica, estabelecendo como fontes fundamentais de informações: testes psicológicos aprovados pelo CFP; entrevistas psicológicas, anamnese e/ou protocolos ou registros de observação de comportamentos obtidos individualmente ou por meio de processo grupal e/ou técnicas de grupo. Estabelece também como fontes complementares as técnicas e os instrumentos não psicológicos que possuam respaldo da literatura científica da área e que respeitem o Código de Ética e as garantias da legislação da profissão, além de documentos técnicos, tais como protocolos ou relatórios de equipes multiprofissionais.
Além das diretrizes e cuidados sobre instrumentos que são utilizados no processo de avaliação psicológica, há a exigência sobre as competências dos próprios profissionais que executam uma avaliação psicológica. Nunes et al. (2012, p. 309) enfatizam que a avaliação psicológica “é uma área de formação básica em Psicologia, pois está relacionada a um conjunto de habilidades que todo psicólogo deve adquirir ao longo de sua formação, independentemente da área em que irá atuar profissionalmente”. Noronha, Carvalho, Miguel, Souza e Santos (2010, p. 142) consideram 12 competências que os profissionais que trabalham com avaliação psicológica devem apresentar para o exercício adequado na área. São elas:
…. evitar erros ao formular os resultados que são produtos do processo de avaliação; não rotular as pessoas com termos específicos; assegurar segurança do material utilizado no processo (sigilo profissional); fornecer instruções necessárias ao avaliado; garantir condições ótimas dos procedimentos; evitar que o avaliado seja treinado nos testes e técnicas utilizadas; fornecer devolutiva para o avaliado em sessão adequada; não fazer cópias do material que será utilizado; evitar o uso de material não oficial que pode comprometer a padronização dos procedimentos; estabelecer boa relação com avaliados; não responder dúvidas passando informações além do necessário; e considerar as idiossincrasias do avaliado.
A avaliação psicológica deve proceder em respeito ao Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005), que tem como um de seus princípios básicos a promoção de saúde e qualidade de vida das pessoas e das coletividades. Além disso, como já retratado, a prática psicológica deve se pautar exclusivamente nos conhecimentos produzidos pela ciência psicológica. É, portanto, dever do psicólogo, embasado nos conhecimentos da Psicologia, analisar informações obtidas sobre o indivíduo no processo de avaliação psicológica de forma a ter uma compreensão mais apurada desse indivíduo, visando planejar ações e intervenções profissionais, que atendam aos objetivos que levaram à avaliação. Portanto, a avaliação psicológica tem por objetivo maior beneficiar as pessoas envolvidas, promovendo sua saúde e seu desenvolvimento psíquico (Freire et al., 2017; Nunes et al., 2012; Noronha et al., 2010; Gomes, 2004; Shine, 2003).
Como já descrito, a avaliação psicológica é uma prática que permeia todas as áreas de atuação do psicólogo, porém, considerando os objetivos do texto aqui apresentado, atentar-se-á para a sua aplicação em situações de disputa de guarda, sua especificidade na interface entre o Direito e a Psicologia e seus principais instrumentos de avaliação.
A avaliação psicológica na disputa de guarda de filhos acontece no âmbito jurídico e sua aplicação deve ser conduzida por um psicólogo jurídico. França (2004) define o objeto de estudo da Psicologia Jurídica como o comportamento humano no âmbito do mundo jurídico, bem como as consequências das ações jurídicas sobre o indivíduo. Segundo a autora, apesar de apresentar um conteúdo específico por se tratar de uma área de especialidade da Psicologia, a Psicologia Jurídica também pode valer-se de todo o conhecimento produzido pela ciência psicológica. Ainda para a autora, o objeto de estudo da Psicologia Jurídica são os comportamentos complexos que ocorrem ou podem vir a ocorrer no âmbito jurídico.
Tavares (2018) explica que os primeiros trabalhos que envolveram a participação do psicólogo no contexto jurídico ocorreram primeiramente no campo penal, enfocando adultos criminosos e adolescentes infratores da lei, porém o envolvimento da Psicologia foi evoluindo também para as áreas Cível e Trabalhista. Segundo o autor, o posicionamento do Conselho Federal de Psicologia aconteceu por meio da Resolução nº 013/2007, ao reconhecer a atuação no contexto jurídico como uma das especialidades da Psicologia. Essa Resolução descreve a ampla possibilidade de atuação do psicólogo nesse contexto, tornando esse campo legítimo, recebendo o nome de Psicologia Jurídica. Todo esse movimento de consolidação do trabalho do psicólogo permitiu sua atuação em diferentes áreas do contexto jurídico: Direito de Família, Direito da Infância e Juventude, Direito Civil, Direito Penal, Direito do Trabalho, além de outros que são menos citados como a Vitimologia e a Psicologia do Testemunho, e em espaços como penitenciárias, centros psiquiátricos, forenses e na vara da família (Tavares, 2018; Moura, Costa, Lima, Souza & Barbosa, 2015).
Lago, Amato, Teixeira, Rovinski e Bandeira (2009), em uma perspectiva teórica mais comportamental, elaboraram uma discussão sobre o histórico da Psicologia Jurídica no Brasil, apresentando também um referencial teórico para as disciplinas que tratam desse tema. De acordo com esse estudo, o psicólogo jurídico cumpre predominantemente a função de avaliador, destacando-se também a função de mediador – quando os litigantes desejarem tentar um acordo. Porém, nos casos de separação e divórcio, em que o juiz considera inviável a mediação, é solicitada ao psicólogo uma avaliação de uma das partes ou do casal. Lago et al. (2009) explicam:
Processos de separação e divórcio englobam partilha de bens, guarda de filhos, estabelecimento de pensão alimentícia e direito à convivência familiar. Desta forma, seja como avaliador ou mediador, o psicólogo buscará os motivos que levaram o casal ao litígio e os conflitos subjacentes que impedem um acordo em relação aos aspectos citados. Nos casos em que julgar necessário, o psicólogo poderá, inclusive, sugerir encaminhamento para tratamento psicológico ou psiquiátrico da(s) parte(s) (p. 486).
É importante esclarecer que diferentes mediações teóricas podem embasar a atuação profissional do psicólogo jurídico, tais como a mediação sócio-histórica, a sistêmica-complexa, a psicanalítica, entre outras. Assim, sua atuação em avaliação psicológica se dará à luz dos preceitos e pressupostos dessas mediações no que se refere ao seu planejamento, escolha e utilização de instrumentos psicológicos e análises das situações identificadas. Bueno e Peixoto (2018) explicam que, com o surgimento de abordagens humanistas e sócio-históricas, houve no início certas críticas à prática da avaliação psicológica, por considerarem que esta estava a serviço da estigmatização dos indivíduos, desconsiderando o desenvolvimento deles. Porém, para Primi (2010), embora haja um certo preconceito irrefletido na utilização dessa prática, não se pode comprometer sua importância para a construção da Psicologia como ciência. O autor argumenta ainda que, para além disso, sua função é na direção de auxiliar em decisões mais exitosas do profissional da Psicologia.
O processo de avaliação psicológica na disputa de guarda, assim como qualquer processo de avaliação psicológica, deve obedecer aos parâmetros do Conselho Federal de Psicologia. Devem ser assegurados os direitos de privacidade, de confidencialidade, de autodeterminação e de autonomia dos sujeitos avaliados, o que garante a guarda sigilosa das informações recebidas pelo avaliador (Wechsler, 2001).
Ao analisarem os campos de atuação do psicólogo jurídico, Lago et al. (2009) salientam que ao profissional de psicologia jurídica é necessário conhecer as terminologias pertinentes da área jurídica, além de realizar um trabalho interdisciplinar com advogados, juízes, promotores, assistentes sociais e sociólogos. De acordo com os autores, é necessário que o profissional tenha conhecimentos sobre os diversos assuntos envolvidos nos processos, tais como a avaliação psicológica, psicopatologia, psicologia do desenvolvimento e psicodinâmica do casal, assuntos atuais como a guarda compartilhada, falsas acusações de abuso sexual, alienação parental, entre outros. Os autores enfatizam ainda que se faz necessário que os profissionais da área estudem esses temas, conheçam seu teor e procurem a melhor forma de investigá-los, a fim de garantir a qualidade da avaliação psicológica.
Lago e Bandeira (2008, p. 225) apresentaram um panorama sobre as avaliações em casos de disputa de guarda no Brasil, mediante investigação das práticas de psicólogos de diferentes regiões brasileiras envolvendo disputa de guarda. O estudo envolveu 51 psicólogos, que responderam a um questionário composto por questões sobre dados pessoais e profissionais, avaliação psicológica e uso de testes. As análises foram feitas de forma descritiva, considerando as características sociodemográficas e de formação dos participantes. De acordo com as autoras, a alta individualização necessária nos casos de avaliação envolvendo famílias em disputa judicial exige que os psicólogos busquem constantemente novos conhecimentos norteadores da prática, os quais, muitas vezes, não são encontrados no âmbito acadêmico. Ainda segundo as autoras, é necessário atentar para as especificidades de uma avaliação no âmbito forense e buscar as formas mais eficazes para realizar um trabalho qualificado.
Os instrumentos utilizados – entrevistas, testes, inventários, escalas –, os quais o psicólogo avaliador pode se dispor em um processo de avaliação psicológica, são aqueles que têm o parecer favorável do Conselho Federal de Psicologia e estão listados no Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI). O estudo de Lago e Bandeira (2008) mostrou que as entrevistas são o recurso mais utilizado entre os profissionais, em diversas modalidades: com os pais separadamente e/ou em conjunto, com os filhos separadamente e/ou em conjunto com pai e/ou mãe e também entrevistas com avós, babás, vizinhos, professores. Os autores revelam ainda que os instrumentos mais utilizados com adultos são os testes psicológicos House Tree Person (HTP), o Rorschach e o Teste de Apercepção Temática (TAT). Em crianças e adolescentes utiliza-se predominantemente o HTP e o Desenho da Figura Humana, além do Teste das Fábulas. A partir desse levantamento, as autoras concluem que se busca com a testagem avaliar principalmente aspectos de personalidade dos pais, no entanto, os vínculos da criança com seus genitores não pareceram ser avaliados por testes psicológicos, mas por meio de entrevistas e observações clínicas.
Entre os fatores considerados relevantes para a recomendação da guarda, Lago e Bandeira (2008) destacam o relacionamento da criança com cada um dos genitores, além da flexibilidade dos genitores em relação ao contato do filho com o ex-cônjuge, para assegurar os vínculos da criança com o genitor não guardião, evitando situações em que se configure alienação parental, como discutem Negrão e Giacomozzi (2015). Lago e Bandeira (2008) citam também, como fatores a serem avaliados para a elaboração de um parecer sobre a guarda, os sentimentos da criança em relação aos genitores, a identificação com cada genitor, habilidades dos genitores de maternagem e paternagem e aos cuidados cotidianos previamente ao processo de separação.
Shine (2003) é um dos poucos profissionais de psicologia que apresenta obra discorrendo sobre a disputa de guarda no Brasil e a avaliação psicológica nesse processo, e, assim, permitimo-nos, neste texto, explorar sua obra e as importantes contribuições que ele apresenta. Esse autor, a partir de seus estudos sobre a temática, levanta alguns questionamentos nos trabalhos encontrados acerca da atuação do profissional psicólogo e da prática de avaliação psicológica na disputa de guarda. A partir de uma breve retrospectiva histórica, explica que no Brasil a psicologia teve um papel subsidiário à psiquiatria no início das atividades ligadas ao meio forense, e as avaliações requeridas seguiam os moldes das perícias psiquiátricas, sendo que o profissional indicado pelo juiz assumia a responsabilidade da avaliação, tornando-se perito judicial. Normalmente, era alguém no exercício da psicologia clínica, com prática profissional liberal de consultório. Explica também que há um segundo grupo de psicólogos que atuam diretamente com os juízes – são os chamados psicólogos judiciais, cujo ingresso ocorre por meio de concurso público para os tribunais de justiça; ainda há um terceiro grupo, formado por profissionais que atuam em instituições ou centros de referência aos quais os tribunais recorrem para obter o produto de seu trabalho especializado, menos frequente no Brasil.
Shine (2003) esclarece, considerando a prática do psicólogo em avaliações psicológicas em disputa de guarda, que sua atuação deve diferir de uma atuação clínica, sobretudo sob diversos aspectos: a) ‘escopo’, no enquadre jurídico, a ênfase está relacionada a um foco determinado pelo sistema legal; b) ‘perspectiva do cliente’, cuja avaliação não se restringe ao examinado, mas deve responder sobre fatos que extrapolam a sua subjetividade; c) ‘voluntariedade e autonomia’, quando o enquadre é clínico, a participação do cliente (cliente aqui entendido como o avaliando) é voluntária e autônoma, enquanto no enquadre jurídico ela é feita sob demanda de um juiz ou advogado; d) ‘riscos’ à validade, no enquadre jurídico, por se tratar de uma disputa de posição, há um maior incentivo à mentira para que o resultado da avaliação beneficie a quem a responde; e) ‘dinâmica do relacionamento’, considerando que no enquadre jurídico, embora seja necessário o estabelecimento de rapport, como em qualquer avaliação psicológica, há um distanciamento maior do cliente; f) ‘tempo de avaliação’, aqui o tempo é determinado pelos prazos e processos judiciais; g) em relação aos ‘objetivos’, o laudo pericial visa subsidiar a decisão judicial e não sanar uma angústia dos pais; h) a ‘importância dos dados reais’, no enquadre clínico a importância é a de percepção da realidade, já no enquadre jurídico, a realidade objetiva é muito importante; i) em relação ao ‘alcance social’, as decisões judiciais baseadas nas avaliações podem virar jurisprudência, além de reconfigurar a vida social dos envolvidos; j) ‘técnicas empregadas’, o perito tem liberdade de escolha quanto ao seu embasamento teórico e testes psicológicos são recomendados.
No tocante ao objeto da avaliação, Shine (2003) explica que ela pode incidir sobre uma das partes, sobre ambas as partes e sobre as crianças. Independentemente disso, ela pode incidir ainda sobre a configuração de família que é considerada pela criança em disputa. Normalmente o demandante é o juiz da Vara da Família. Nesse âmbito, cabe ao psicólogo entrevistar o juiz para compreender quais seus questionamentos e demandas específicas sobre o caso, de modo a direcionar as avaliações para que as dúvidas sejam sanadas, considerando que todo o sistema judiciário atua de forma a garantir e preservar o melhor interesse da criança.
Considerando o processo da avaliação psicológica que será realizada, Shine (2003), a partir de seus estudos, explica que a mesma segue os seguintes trâmites: o ‘encaminhamento’, ou seja, a demanda chega ao perito judicial via Fórum, demandado pelo juiz. Procede-se então ao primeiro contato com as partes por meio de seus advogados, em que se fala da demanda encaminhada pelo juiz e procura-se ouvir das partes, com a maior imparcialidade possível, as queixas de seus clientes com relação à demanda. A ‘leitura dos autos do processo judicial’ é uma segunda parte do processo, a qual é importante para entender o que está em jogo e apreciar toda a dinâmica processual e, por fim, definem-se estratégias de avaliação.
De acordo com o autor, a ‘entrevista’, que é a técnica mais utilizada dentro da avaliação psicológica judicial, pode ser realizada em uma das partes ou em ambas, na criança, e pode ser complementada por testes psicométricos ou projetivos. A aplicação de testes é coadjuvante dentro desse processo de avaliação, sendo a entrevista o principal instrumento, em especial com os adultos envolvidos. A ‘observação lúdica da criança’ é, por sua vez, a técnica mais usada e recomendada por Shine (2003) para a avaliação da criança, que, por vezes, não consegue verbalizar o que passa em seu psiquismo, mas pode demonstrar isso por meio de jogos e brincadeiras dentro do espaço destinado à avaliação lúdica. O recurso do desenho é frequentemente muito utilizado por meio do Desenho da Família. Os ‘contatos colaterais’ visam ampliar o conhecimento da situação que se avalia por meio de contatos extrafamiliares, como companheiros atuais de pais de mães, professores, cuidadores e babás, empregados domésticos, entre outros. Nesse quesito, o psicólogo deve cercar-se de cuidados para evitar o que pareça ser um favorecimento de uma das partes, por chamar mais pessoas relativas a essa parte para conversar. As ‘diligências’ são os trabalhos do psicólogo forense fora dos respectivos tribunais e cartórios, sendo as mais comuns as visitas à escola da criança e à casa dos pais; o objetivo aqui também é ampliar o conhecimento de uma determinada situação.
O documento escrito que apresenta a avaliação psicológica, bem como sua execução e conclusões, é o laudo psicológico. Esse documento precisa estar em conformidade com cuidados técnicos, éticos e normas recomendadas pela Resolução CFP de 6 de novembro de 2019, que instituiu regras para a elaboração de documentos escritos produzidos a partir da prática profissional do psicólogo. Esse importante documento descritivo tem a finalidade de subsidiar a decisão judicial que mudará configurações familiares. Assim, sua redação, análises e conclusões devem se ater ao que foi tecnicamente avaliado, sem fazer juízos de valor e dar opiniões pessoais.
Sobre a ‘participação na audiência’, segundo Shine, aqui no Brasil a participação do psicólogo forense em audiência se faz somente mediante intimação com 5 dias úteis de antecedência, na qualidade de esclarecedor de dúvidas. Não há inquirição de peritos e debates sobre o que foi periciado, como é de praxe nos EUA. O trabalho do perito pode ser contestado aqui por meio judicial, porém não diretamente na audiência em que ele subsidia a decisão. Sobre a ‘entrevista devolutiva’, há alguma controvérsia a respeito de quando ela pode ser e o maior consenso é de que ela pode e deve ser disponibilizada às partes avaliadas após a entrega do laudo ao juiz, sendo esse o cliente demandante das avaliações. A devolutiva é para informar sobre os achados na avaliação, nunca para debater sobre a sentença.
No processo de disputa de guarda, bem como a avaliação psicológica, para o judiciário brasileiro o objetivo sempre é o bem-estar das crianças envolvidas na disputa e, dessa perspectiva, avaliam-se não só as características de desenvolvimento das crianças e formação, bem como seu ambiente familiar, sua noção de família e as relações que perpassam essa disputa.
Considerando as dificuldades da avaliação psicológica na disputa de guarda, Shine (2003) nos aponta para a falta de um modelo conceitual coerente que integre a utilização das técnicas psicológicas de validade comprovada com a assunção de um critério legal pertinente. Por se tratar de uma prática recente, ela está com seu arcabouço teórico em formação, o que ocasiona dificuldades aos ingressantes neste campo de trabalho, ainda mais tratando de temas tão delicados como reconfiguração de famílias. Por esses motivos, esse autor também indica a necessidade de o psicólogo sempre se manter atualizado, participando de eventos científicos e fazendo leituras ligadas à área e, por fim, o uso da supervisão de alguém com experiência reconhecida na matéria. Faz também a recomendação de que os cursos de graduação passem a contemplar essa matéria como forma de ampliar o arcabouço teórico da área.
O reconhecimento do limite da perícia na disputa de guarda por parte dos psicólogos faz-se muito importante, uma vez que seu conteúdo foi gerado a partir de um recorte da realidade. França (2004) esclarece que o próprio conhecimento da conduta por meio da perícia apresenta limitações que devem ser reconhecidas, sendo necessário verificar constantemente a confiabilidade e a validez dos instrumentos e do modelo teórico adotados, a fim de salvaguardar a finalidade do procedimento. A autora chama a atenção para a compreensão interdisciplinar do fenômeno estudado, considerando essa compreensão como essencial para melhor abordá-lo em sua complexidade, especialmente pelas limitações que o conhecimento produzido apresenta. Ressalta ainda que, para os psicólogos jurídicos peritos, o grande desafio é “serem produtores de conhecimento levando em consideração os aspectos sócio-históricos, de personalidade e biológicos que constituem o indivíduo” (p. 75).
Sobre essa perspectiva, Granjeiro e Costa (2010) também defendem que, num contexto no qual há a complexidade da violência familiar, é importante o tratamento sob uma visão de construção do conhecimento, envolvendo a participação ativa de todos os sujeitos – tanto a vítima, o réu, como o juiz, o representante do Ministério Público, o advogado ou o defensor público quanto também o psicólogo, a assistente social e outros profissionais envolvidos. Segundo as autoras, a interface entre Direito e Psicologia carece de um tratamento capaz de integrar as competências de trabalho de cada um; ao Direito cabe a lei e a objetividade implícita nela – mesmo estando presente a intersubjetividade, considerando que quem as interpreta são pessoas – e essa lei é uma atividade extremamente formalista e hierarquizada; à Psicologia cabe avaliar a intersubjetividade implícita em qualquer atividade humana, ou seja, sempre existirá a visão de um observador com um conhecimento objetivo e subjetivo sobre o mundo. Desse modo, mesmo sendo um aplicador da lei, “a intersubjetividade do Juiz está presente na sentença que profere, como a intersubjetividade do Promotor está na denúncia que oferece” (Granjeiro & Costa, 2010 p. 204).
Para lidar com o efeito de se considerar a intersubjetividade em uma ciência como o direito, Granjeiro e Costa (2010 p. 203) evocam a perspectiva dialógica de Vasconcellos (2002), uma vez que é capaz de unir conceitos contraditórios, propondo uma nova visão sobre a função do Direito, a partir do “olhar” de diferentes juristas:
O Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa (Lyra Filho, 1982), deve libertar-se das amarras do formalismo jurídico, da previsibilidade, da controlabilidade para não se transformar em um falso Direito (Dallari, 1998). Nesse sentido, os juristas, ao acusarem, defenderem e julgarem, devem direcionar o seu trabalho para as pessoas envolvidas no conflito – e não para a lei, que apresenta apenas um norte, uma direção –, a fim de que elas possam “assumir a competência da autoria de suas próprias vidas” (Vasconcellos, 2002, p. 9). Assim, as instituições agiriam para propiciar a mudança, mas sem serem os autores da mudança.
Na mesma linha das autoras supracitadas, Lima e Campos (2006) também apontam a importância do trabalho interdisciplinar, afirmando que desta maneira é possível ampliar os olhares sobre o contexto da disputa. Os autores, logo, propõem a seguinte reflexão:
Quando a perícia ou o estudo psicossocial é solicitado, o profissional (psicólogo ou assistente social) é imposto às partes pelo juiz, o que já cria um bloqueio ao estabelecimento de uma interação espontânea. Em nossa prática, observa-se que o processo de estudo psicossocial gera desconforto, temor e ansiedade tanto nas famílias litigantes, quanto nos profissionais que realizam os estudos psicossociais. Os psicólogos e assistentes sociais que realizam estes estudos têm de lidar com a responsabilidade de ser alguém juridicamente instituído para fazer tais avaliações e com o ‘acerto’ da sugestão proferida quando não é possível a construção de um acordo entre as partes. Todo este processo é gerador de sofrimento (Lima & Campos, 2006, p. 185).
Lima e Campos (2006) consideram que o sistema institucional como um todo tem importante papel na construção de acordos. As autoras defendem que aos psicólogos e demais profissionais que tradicionalmente auxiliam nas decisões dos juízes cabe enfrentar esta situação e realizar um estudo que não só forneça ao juiz solicitante um parecer técnico, mas propicie uma reflexão da dinâmica familiar com vistas não somente à mudança de padrões promotores de sofrimento, mas ao resgate de sua competência e capacidade de auto-organização que possibilitem a construção de acordos saudáveis e factíveis (Lima & Campos, 2006, p. 187).
As autoras esclarecem ainda que a interface das áreas do Direito e da Psicologia promove benefícios tanto para os profissionais, quanto para a garantia da saúde da família envolvida. Um dos ganhos considerados é o maior entrosamento entre o Direito e o profissional de saúde, a partir da realização de reuniões conjuntas, nas quais os profissionais têm a oportunidade de refletir acerca da interdisciplinaridade do Direito, da Psicologia e do Serviço Social. Essa reflexão possibilita mudanças significativas como, por exemplo, passar a ver a situação da família como atores no resgate de sua competência e cidadania e não mais sob a ótica da disputa, passando do pensamento do ganhar ou perder a causa para priorizar o bem-estar de todos. No mesmo sentido, Bucher-Maluschke (2007) entendem a interdisciplinaridade como uma forma de enfrentar a crise que se instalou na sociedade, em função da quebra dos paradigmas tradicionais.
A questão da guarda, bem como o exercício da responsabilidade parental, é complexa e envolve atenção a múltiplos aspectos, tais como os caracteres psicossociais das crianças e das famílias em litígio judicial, além das particularidades das diversas formas de ser família que vêm se afirmando na contemporaneidade, como a monoparentalidade feminina e masculina, a homoparentalidade e as famílias recompostas, assim como o modo como os legisladores e o edifício jurídico pautam suas concepções em relação aos conflitos familiares ao longo da história (Quirino & Menezes, 2017).
Para Lago et al. (2009), o grande desafio da psicologia jurídica é não se limitar aos conhecimentos psicológicos, mas trocar conhecimentos com as áreas que compartilham o trabalho jurídico, promovendo o redimensionamento da compreensão do agir humano, considerando os aspectos legais, afetivos e comportamentais. Granjeiro e Costa (2010) explicam também que o estabelecimento de uma relação lado a lado e de igual para igual – uma verdadeira parceria – é o melhor caminho em que podem trilhar os profissionais da área jurídica e psicológica.
No entanto, precisamos aceitar que algumas questões basilares do trabalho interprofissional independem de territórios conceituais e requerem mais práticas colaborativas. Porém, a questão principal é que a formação dos profissionais não tem como norte o trabalho interprofissional, justificando a dificuldade existente quando há a necessidade de uma atuação em equipe. Entendemos que o trabalho interprofisional requer interações positivas e o compartilhamento de saberes, tudo isso permeado por ações e atitudes colaborativas, fatores que são dificultados se o processo educacional não contempla essa preocupação.
Sani (2017) salienta que, ao longo dos acompanhamentos e avaliações realizadas no contexto de divórcios litigiosos, muitos dos conflitos familiares violentos ganham visibilidade social, sendo reconhecidos vários aspectos, os quais precisam ser profundamente estudados e salientados de modo a apoiar a tomada de decisão judicial. Desse modo, além de ser um trabalho complexo e exigente, a atuação do psicólogo forense, a qual contempla a prática da avaliação psicológica na disputa de guarda, é de constatada relevância social para o bem-estar das crianças e famílias, bem como para uma compreensão mais ampla e integrada do processo litigioso.
Considerações Finais
O presente texto procurou compilar algumas das principais características da Avaliação Psicológica nos contextos jurídicos, mais especificamente na disputa de guarda de filhos, enfatizando aspectos de sua elaboração, tais quais as resoluções do CFP e os princípios norteadores que regem essa prática, bem como as leis que regulamentam o processo de guarda, além de um panorama dos tipos de recursos e instrumentos utilizados, encontrados na literatura científica. É importante salientar que os estudos e a bibliografia científica discorrendo sobre a temática da avaliação psicológica na disputa de guarda são bastante escassos, considerando a literatura nacional, e, assim, procurou-se explorar ao máximo aquelas que estão disponíveis.
A avaliação psicológica, tarefa exclusiva do psicólogo, além de possuir recursos exclusivos para a investigação subjetiva em casos em que isso é necessário, tem um potencial transformador das relações conflitantes das partes litigantes a ela submetidas, bem como pode ampliar a visão interdisciplinar dos profissionais de diversos setores do contexto em que ocorre.
A importância da avaliação psicológica no caso do contexto de disputa de guarda vai, portanto, além do trabalho pericial. Sempre em prol da qualidade de vida e do bem-estar das crianças envolvidas, é possível diminuir o conflito na relação com os litigantes da guarda, proporcionando-lhes uma visão mais ampla das complexas relações legais, históricas, sociais e familiares implicadas em um processo de disputa de guarda.
É certo que o profissional de psicologia pode e deve se responsabilizar pelo processo de avaliação psicológica, desde seu planejamento, sua execução e as análises e conclusões decorrentes. Porém, é certo também que, para que essa prática possa ser desenvolvida nos moldes do desejado, ou seja, contribuir com o processo de disputa de guarda – o que muitas vezes apresenta acentuados conflitos aos envolvidos –, o psicólogo precisa ter uma formação e qualificação para a prática muito sólida. Essa formação perpassa, necessariamente, por sólidos conhecimentos teóricos, técnicos e éticos, para que os resultados da avaliação tragam benefícios aos envolvidos, principalmente aos filhos que, em muitas vezes, são as pessoas mais prejudicadas e impactadas por essa situação. Precisa também ter sólidos conhecimentos sobre os instrumentos psicológicos que podem ser utilizados no processo de avaliação, extraindo deles o que podem oferecer para subsidiar análises e pareceres, sem subestimar ou superestimar seus resultados. É importante também considerar que, no processo de avaliação psicológica, a escolha dos instrumentos de avaliação e a análise integrada dos mesmos são fundamentais para a compreensão dos fenômenos que estão sendo analisados, evitando assim a utilização de um único instrumento de avaliação, por considerar que nenhum instrumento sozinho vai possibilitar uma compreensão desses fenômenos.
O comportamento ético do psicólogo na condução de todo o processo de avaliação psicológica na disputa de guarda é condição para um exercício profissional qualificado, tanto nas escolhas e condução e análises dos instrumentos utilizados, como nas relações interpessoais que serão estabelecidas nesse processo.
É importante também considerar que, pela complexidade da situação de disputa de guarda que envolve diferentes vertentes e análises, um trabalho multidisciplinar é muito bem-vindo, pois a somatória dos conhecimentos compartilhados e vivências de diferentes profissionais qualifica e oferece maior consistência às decisões e definições sobre a situação que está posta, visando garantir assim o direito de todos os envolvidos, dentro do possível.
Espera-se que as reflexões e considerações aqui trazidas possam contribuir para ampliar a visão sobre a avaliação psicológica no contexto de guarda e sua importância, ao menos instigando futuras investigações que possam aumentar o volume de conhecimentos, com qualidade, sobre essa área, preenchendo lacunas deixadas por este estudo. Espera-se também que as instituições formadoras possam, a partir de seus projetos políticos pedagógicos, dar atenção devida à área da avaliação psicológica, formando e qualificando melhor os futuros profissionais psicólogos para o seu adequado e ético exercício. Destaca-se também a necessidade de um processo formativo que promova competências colaborativas para facilitação do trabalho interprofissional, considerando sempre que a soma dos conhecimentos qualifica a prática e as decisões.