Violência letal contra segmentos infantojuvenis na cidade de Fortaleza e a atuação do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação
Este artigo visa refletir sobre aspectos psicossociais ligados à violência no Ceará, apontando implicações éticas e possibilidades metodológicas da Psicologia na problematização de operações de poder e políticas de (des)subjetivação que produzem vidas matáveis e não passíveis de luto. As reflexões se subsidiarão no relato de três experiências de extensão realizadas em 2018, em territorialidades periferizadas da cidade de Fortaleza, pelo VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação.
A expressão “Foi Sal” escolhida para nomear o texto é uma gíria comumente usada pelos jovens que participaram das ações que serviram de base para as reflexões do manuscrito, como sinônimo de “deu certo” ou "foi bom". As experiências que fundamentam as reflexões aqui trazidas enfocaram dinâmicas de exclusão social e dos processos de subjetivação concernentes aos segmentos infantojuvenis, bem como as implicações dos aspectos psicossociais ligados às conflitualidades e violências na capital cearense junto a tais segmentos e seus familiares.
Nos últimos anos, no que se refere à dinâmica das conflitualidades e violências em contextos urbanos, segmentos infantojuvenis negros e pauperizados têm sido um dos principais alvos de um processo de intensificação e “nordestinação” da violência letal, especialmente no estado do Ceará e sua capital, Fortaleza, com maiores Índices de Homicídios na Adolescência - IHA (Melo & Cano, 2017).
No ano de 2017, registraram-se, no Ceará, 5134 homicídios, sendo que, destes, 981 foram de pessoas entre 10 e 19 anos, implicando no crescimento de 91% nos assassinatos nessa faixa etária, em comparação com 2016. Segundo o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA, 2018), no primeiro semestre de 2018 foram mortos 514 jovens violentamente no Ceará; 70% das mortes (de 10 a 19 anos) aglutinam-se em dez das 189 cidades, com ênfase em sete municípios: Fortaleza, Caucaia, Maracanaú, Sobral, Juazeiro do Norte, Eusébio e Horizonte.
No que tange à cidade de Fortaleza, 20 bairros concentraram praticamente metade das taxas de homicídio da capital em 2017. Em comum, estes bairros apresentam Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito baixo (IDH < 0,5) (CCPHA, 2018), sendo, por isso, considerados assentamentos precários, com a presença de regiões sem asfaltamento, iluminação pública, infraestrutura e equipamentos de saúde e de lazer. Isto nos indica uma maior vulnerabilidade ao homicídio de quem mora nos assentamentos precários da cidade.
Em torno desse cenário de violência letal, o VIESES, criado em agosto de 2015, na condição de Programa de Extensão, tem produzido ações de médio e longo prazo que articulam pesquisa, extensão e ensino, com vistas primordialmente à produção de intercessões entre a universidade e outros agentes sociais. Assim, suas atividades incidem a um só tempo na qualificação de processos formativos voltados à produção de conhecimento crítico e em práticas micropolíticas de produção de resistência e criação no cotidiano da cidade de Fortaleza. São foco de atenção do grupo as problemáticas da violência e das tramas de exclusão social, em suas diversas expressões e contextos, com destaque para suas implicações nos modos de subjetivação, sobretudo de segmentos infantojuvenis, de seus familiares e de profissionais que atuam com esses públicos.
Em suas atividades de pesquisa e extensão, o VIESES estabelece interlocuções com a Psicologia Social a partir de seus diálogos tanto com estudos pós-estruturalistas, quanto com referências pós-coloniais, decoloniais e interseccionais, além de produções de áreas afins em torno dos estudos da violência e das práticas de poder, dominação e resistência na contemporaneidade. Particularmente neste artigo, as reflexões oriundas das ações de extensão serão experimentadas a partir de diálogos entre a Psicologia Social e as discussões de Judith Butler (2015; 2018), Achille Mbembe (2014; 2017) e Michel Foucault (2005; 2008).
Possibilidades ético-políticas e metodológicas da Psicologia em contextos de violência: ações de extensão do VIESES nas periferias de Fortaleza, no ano de 2018
No ano de 2018, o VIESES abrigou três projetos de extensão, os quais, naquele ano, foram realizados em três regiões periféricas da cidade de Fortaleza que estavam entre as mais afetadas pela violência urbana e pelos homicídios infantojuvenis (Vicente Pinzon, na Secretaria Executiva Regional II; Jangurussu, na Regional VI; Grande Bom Jardim, Mondubim e Conjunto Ceará, na Regional V). As ações ocorreram a partir de diversas parcerias, tanto com organizações governamentais, quanto com organizações da sociedade civil, colocando a Universidade em conexão com demandas, desafios e potencialidades da cidade. Tais parcerias nos proporcionaram o primeiro contato com os participantes das nossas ações, seja por atuarem na mobilização direta desses ou por proporcionarem a abertura de espaços em atividades já existentes, permitindo que nos somássemos a elas. A partir disso, compactuamos com os participantes a construção conjunta das atividades, buscando, a todo momento, proporcionar um espaço horizontal e que contemplasse as demandas desses grupos.
Estas ações de extensão produzidas em 2018 voltaram-se a: 1) adolescentes e jovens de 15 a 29 anos, tanto do gênero feminino como do gênero masculino, na sua maioria negros, residentes de territórios periféricos da capital cearense afetados pela violência urbana, podendo estes serem participantes de coletivos juvenis, estarem em cumprimento de medida socioeducativa e/ou amigos ou parentes de adolescentes vítimas de homicídios; 2) profissionais de políticas públicas que atuavam com adolescentes e jovens nesses contextos territoriais, com distribuição equânime em termos de gênero, sendo que todos atuavam há pelo menos 1 ano em algum dos locais do estudo; 3) familiares, em sua maioria do gênero feminino, que tiveram algum jovem ou adolescente vítima de violência letal ou em cumprimento de medida socioeducativa e moram em territórios periféricos da capital cearense afetados pela violência urbana.
A seguir, apresentaremos o que cada um dos três projetos de extensão realizou em 2018, o que permitirá vislumbrar possibilidades ético-políticas e metodológicas da Psicologia em contextos de violência. Ressaltamos que todos esses projetos de extensão e seus desdobramentos analíticos surgem como produtos da investigação guarda-chuva do VIESES em vigor entre os anos 2015 e 2020, que segue a perspectiva da pesquisa-inter(in)venção, intitulada Juventude e Violência Urbana: Cartografia de Processos de Subjetivação na Cidade de Fortaleza-CE10.
Re-Tratos da Juventude:
Esta ação enfoca modos de subjetivação e direitos de juventudes. Tendo em vista que a cidade de Fortaleza se apresenta como a capital com maior Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), as nossas ações têm enfocado questões psicossociais relativas à temática dos homicídios na adolescência e juventude. Em 2018, desenvolveu-se em parceria com a Rede Cuca, especialmente o Cuca Jangurussu e o Cuca Mondubim; a Rede Acolhe, programa da Defensoria Pública do Estado do Ceará; o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), ONG que atua no Grande Bom Jardim; o Centro Cultural do Bom Jardim, ligado ao Governo do Estado do Ceará; e o Fórum de Escolas pela Paz, constituído pela direção de 12 escolas estaduais do Grande Bom Jardim, por profissionais do Pacto pelo Ceará Pacífico e por profissionais da saúde e militantes que atuam neste território.
No primeiro semestre de 2018, foi realizada uma oficina sobre prevenção de homicídios com 20 jovens na região do Vicente Pinzon, por meio de exibição de vídeo sobre o assunto e discussões desencadeadas por matérias de jornais locais sobre o tema, com vistas a problematizar, a partir do ponto de vista e do cotidiano dos jovens, condições mediante as quais se exerce a necropolítica (Mbembe, 2017) no contexto local e seus efeitos junto a segmentos infantojuvenis. Já no Cuca Mondubim, foram realizadas seis oficinas sobre violência contra jovens com estudantes de escolas públicas que frequentavam o equipamento, com a participação de cerca de 35 adolescentes em cada uma delas. A partir de metodologias grupais, tais como produção de esquetes, construção de fanzines e colagens sobre experiências cotidianas daqueles adolescentes, bem como relatos de experiências de coletivos juvenis da região do Mondubim, tivemos o objetivo de discutir sobre as condições de violações de direitos e múltiplas violências a que estão submetidas as juventudes periféricas, bem como pensar coletivamente os modos de resistência a essas violências.
Em 2018, iniciamos ações de extensão no Grande Bom Jardim, região composta por cinco bairros. Este território registrou a maior taxa de homicídios de adolescentes e jovens em 2017 (CCPHA, 2018). A nossa inserção teve início por meio de parceria com a Rede Acolhe, programa da Defensoria Pública do Ceará voltado à assistência psicossocial e jurídica a famílias vítimas de violência letal. Esta parceria ainda proporcionou a articulação de outros três programas/projetos de extensão do Departamento de Psicologia em diferentes espaços do Grande Bom Jardim.
Nosso plano de ação foi delineado a fim de criar dispositivos de problematização coletiva dos aspectos psicossociais implicados na dinâmica da violência urbana e de apoio psicossocial a amigos e familiares de vítimas de homicídio. Ademais, visou à participação em processos de mobilização comunitários para o enfrentamento da violência, em diálogo com articuladores sociais e entidades locais, tais como a ONG CDVHS, o Centro Cultural do Grande Bom Jardim, o Fórum de Escolas pela Paz e a Rede de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (Rede DLIS). Pelo projeto Re-Tratos da Juventude, o VIESES contribuiu com ações referentes ao tema dos direitos das juventudes e de prevenção de homicídios na adolescência por meio de atividades que se organizaram em três eixos. Foram definidos e nomeados, a partir de pactuação com articuladores comunitários do próprio território, na perspectiva de um delineamento participativo da ação extensionista do VIESES: “Bom de Papo”, “Escutas sensíveis” e “Tamo junto”.
O eixo de ação chamado de “Bom de Papo” teve como objetivo principal problematizar aspectos presentes nas trajetórias e perspectivas de vida de adolescentes e jovens a partir de temas pertinentes à prevenção de homicídios, extraídos das evidências e recomendações decorrentes da pesquisa do CCPHA junto a familiares de adolescentes assassinados e a adolescentes a quem se atribui autoria de homicídios. Tais recomendações, produzidas a partir da realidade das principais vítimas de homicídios, apontam para três níveis preventivos: 1) Prevenção terciária - dirigida a pessoas e grupos que sofreram violência, atuando na redução de danos causados por essa violação, a fim de evitar a revitimização e outros possíveis homicídios; 2) Prevenção secundária - estando direcionada a pessoas e grupos com alto risco de se tornarem vítimas ou autores de homicídios; 3) Prevenção primária - sendo ações pensadas para o conjunto da população (CCPHA, 2018). Por isso, esse eixo foi realizado em uma das escolas estaduais do Grande Bom Jardim, mediante oficinas que buscaram levantar discussões que favorecessem a criação de novos sentidos acerca das trajetórias de vida e perspectivas de futuro de adolescentes e jovens inseridos em contextos estigmatizados pela violência. Na Escola Estadual Senador Osires Pontes, as oficinas aconteceram quinzenalmente junto à quatro turmas do segundo ano, no período de maio a dezembro de 2018, contabilizando cerca de 140 adolescentes e jovens participantes. Nesta escola, realizamos nove oficinas com cada turma, totalizando 36 momentos grupais.
Entre os temas trabalhados, discutimos sobre as trajetórias de vida dos jovens no campo das políticas públicas, no âmbito familiar e em contextos escolares e educacionais. Tematizar as relações dos adolescentes e jovens com políticas públicas, bem como suas trajetórias familiares e educacionais, justifica-se pelo fato de que, segundo evidências do Comitê, a grande maioria dos adolescentes vítimas de homicídios no Ceará não participava de projetos sociais, fazia parte de contextos familiares marcados pela vulnerabilidade no tocante ao acesso a direitos sociais e também estava fora da escola há pelo menos seis meses, o que acarretou recomendações do comitê segundo as quais, para prevenir homicídios, fazem-se necessários movimentos na direção de maior investimento em políticas públicas para adolescentes, de um maior apoio e proteção às famílias vítimas de violências e da criação de estratégias de incentivo à permanência de adolescentes na escola.
Para discutir suas trajetórias e perspectivas em relação a esses temas, adotamos estratégias como círculo de cultura sobre direitos de adolescentes e jovens e políticas públicas (não) existentes em seus bairros, discussões a partir de letras de músicas que remetessem às suas experiências familiares, assim como construção, pelos adolescentes, do desenho de uma linha do tempo de suas trajetórias educacionais e escolares, destacando os pontos mais marcantes, os maiores desafios e os caminhos que gostariam de construir. Em outras duas oficinas, ambas sobre relações entre pares, propusemos a confecção de painéis coletivos sobre amizades e conflitos. A metodologia escolhida, colagem em grupo, foi realizada em dois encontros e se baseou em recomendações do CCPHA referente à mediação de conflitos e proteção a ameaçados, levando em consideração uma de suas evidências, que foi a forte presença de armas de fogo nas resoluções de conflitos interpessoais.
Outro tema trabalhado envolveu discussão das trajetórias juvenis e de suas relações com drogas, a partir de oficina sobre redução de danos, mediante jogo de perguntas e respostas sobre drogas, a fim de estimular a participação dos estudantes e a troca de saberes sobre o tema. Entre outros pontos, os adolescentes trouxeram situações de seus cotidianos e relatos de experiências que corroboram outra evidência do CCPHA, que aponta que a hegemônica política de guerra às drogas tem acarretado aumento de conflitos armados, encarceramento e extermínio de juventudes negras, pobres e periféricas. Noutra oficina, debatemos sobre trajetórias juvenis e perspectivas de futuro no tocante à temática da profissionalização, a partir de oficina de teatro do oprimido, em que os próprios estudantes foram convidados a dramatizar cenas vividas por eles ou amigos sobre o assunto. Após isso, discutimos sobre o que pensavam acerca de seus futuros profissionais, tendo em vista que uma das evidências do comitê aponta que a falta de oportunidade de trabalho e renda formais era um ponto em comum entre os adolescentes vítimas de homicídio no estado.
Na penúltima oficina, discutimos a relação entre juventude e mídia, tendo em vista que uma das evidências do CCPHA aponta a propagação da violência em programas policiais e recomenda, consequentemente, uma mídia sem violação de direitos. Nessa oficina, trouxemos exemplos de vídeos dos programas policiais e trechos de reportagens de portais de notícias locais, a partir do que os adolescentes e jovens compartilharam experiências pessoais, de familiares e de amigos nos contextos territoriais em que viviam em torno de estigmatizações produzidas pelas narrativas midiáticas sobre a violência urbana.
Na última oficina temática do ano, realizamos a construção de mapas individuais e coletivos acerca das trajetórias juvenis em suas relações com seus bairros e a cidade. A partir das evidências de que a maior parte dos homicídios de adolescente ocorreu em apenas 20 bairros da capital e que há territórios mais vulneráveis ao homicídio - os quais também se caracterizam pela existência de acirramento de conflitos armados, por violências institucionais e por se constituírem como assentamentos precários, com baixo nível de infraestrutura e graves situações de desigualdade e abandono institucional -, discutimos implicações da violência nos itinerários dos adolescentes e jovens em seus bairros e na cidade de um modo geral. Nesta atividade, sobressaíram discussões sobre o medo e a insegurança vividos pelos jovens ao se deslocarem no próprio bairro e em outras territorialidades da capital, o que indica como aquelas trajetórias juvenis eram permeadas por conflitos territoriais, ameaças e tentativas de homicídio. Também se discutiu, a partir do que os participantes apresentaram, como a redução de desigualdades e a qualificação dos territórios poderiam prevenir homicídios, o que vai ao encontro das recomendações do CCPHA. Os mapas confeccionados pelos participantes mostraram de forma mais nítida seus percursos cotidianos e, a partir disso, o agravamento tanto das segregações na cidade, quanto das vulnerabilidades às quais estes jovens estão submetidos por conta do acirramento das conflitualidades entre facções criminosas nas periferias. Os mapas evidenciaram como aqueles jovens vivem “acuados” em seus bairros, prisioneiros a céu aberto, o que agrava a escassez de acesso a espaços de cultura, de lazer e até mesmo equipamentos de saúde pública.
Já o eixo “Escutas Sensíveis” foi constituído por ações individuais e coletivas de acolhimento e apoio psicossocial a amigos e familiares de jovens vítimas da violência letal. Em maio de 2018, a partir de parceria com outro programa de extensão do Departamento de Psicologia da UFC, foi realizada uma roda de conversa com 20 professores da Escola Estadual Michelson Nobre, contemplando temáticas sobre vínculo e acolhimento de adolescentes em sofrimento psicossocial decorrente das conflitualidades e violências inscritas nos seus contextos de vida. Em junho de 2018, participamos de dois momentos na Escola Júlia Alves, após o assassinato de um de seus estudantes, em parceria com profissionais da Rede Acolhe e do CCPHA. No primeiro momento, participamos de um espaço em grupo de escuta e de apoio a cerca de 15 professores. Em outro momento, realizamos um grupo de acolhimento com cerca de 25 estudantes da turma deste adolescente assassinado. Além disso, ao longo de todo o ano, procedemos escutas individuais com nove familiares, a maioria mães de jovens assassinados, o que representou um momento de acolhimento com posterior encaminhamento para a rede de atenção psicossocial ou psicoterapia.
No eixo de ação chamado “Tamo Junto”, as atividades foram direcionadas à participação em iniciativas comunitárias diversas, como atividades artístico-culturais e de reivindicação social. De abril a novembro de 2018, participamos do Fórum de Escolas pela Paz do Grande Bom Jardim, mediante reuniões mensais. Além de diretores e coordenadores das 12 escolas estaduais, também participam desse fórum outros parceiros: representantes do Programa Pacto pelo Ceará Pacífico, ligado à Vice-Governadoria do Estado do Ceará, representantes da Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC), profissionais e militantes da ONG CDVHS e do CCBJ, integrantes do CCPHA, entre outros convidados. Em cada reunião, com cerca de 40 participantes, foram definidas pautas comuns das escolas para a prevenção de violências e para a promoção de direitos sociais para estudantes, professores e comunidade escolar. Neste espaço, também pactuamos ações nas escolas e apresentamos o trabalho desenvolvido nestes locais, colaborando assim com processos formativos de gestores e profissionais das escolas em torno da questão dos aspectos psicossociais atinentes à violência contra adolescentes/jovens e suas reverberações em contextos com altas taxas de homicídios.
Entre maio e agosto de 2018, participamos de oficinas sobre juventude, território, mediação de conflitos e projetos de vida no “Festival das Juventudes”, formação política promovida pelo CDVHS, com a participação de 80 jovens de escolas da região do Grande Bom Jardim. As atividades quinzenais ocorreram em torno de quatro grandes temas, escolhidos e nomeados por jovens daquele contexto: “ser jovem”; “ser das áreas”; “ser agente de paz” e “ser livre”.
Ademais, estivemos na V Caminhada pela Paz do Grande Bom Jardim, em maio de 2018, em que diversas escolas e associações se mobilizaram para reivindicar paz e infraestrutura para a região, além de denunciar as altas taxas de homicídio de jovens. Entre setembro e novembro, auxiliamos na construção da proposta, da formação, do roteiro e da execução do curta “Não Pare de Sonhar”, produzido por jovens de escolas públicas do Grande Bom Jardim, por um coletivo audiovisual local, pelo Centro Cultural do Bom Jardim e pelo CDVHS, com apoio do CCPHA, da Secretaria de Educação, da Secretaria de Cultura e da Vice-Governadoria do Governo do Estado. A proposta foi de que o vídeo fosse exibido nas mais de 700 escolas estaduais do Ceará. Uma vez que o filme teve como mote a temática da prevenção de homicídios na adolescência, extensionistas do VIESES participaram também da equipe responsável pela formação dos estudantes envolvidos na realização do documentário em torno da temática: foram realizadas quatro oficinas, abrangendo 60 estudantes, nas três escolas de tempo integral que cursaram a disciplina eletiva de audiovisual. O vídeo foi lançado na abertura da I Semana Estadual de Prevenção de Homicídios na Juventude do Ceará, em 12 de novembro, no Cine-Teatro São Luiz.
Participamos ainda de reuniões promovidas pela Rede DLIS para a composição da Rede Territorial de Prevenção de Homicídios de Crianças, Adolescentes e Jovens do Grande Bom Jardim, da qual o VIESES é um dos colaboradores e com a qual contribuiu com momentos formativos, tais como o I e II Seminários “Nossas Vidas Importam”, ocorridos no CDVHS. Integramo-nos ainda à programação da Semana Estadual de Prevenção de Homicídios na Juventude (realizada de 12 a 16 de novembro de 2018), a partir da colaboração com cinedebates sobre o vídeo “Não Pare de Sonhar”, em três escolas públicas do Grande Bom Jardim, contando com a participação de mais de 200 estudantes.
Como consequência do reconhecimento das ações do Re-Tratos da Juventude e de outras atividades do VIESES frente ao enfrentamento da violência, participamos de diversos debates em rádios, aumentando, dessa forma, o alcance das nossas discussões. A convite da Rádio Cuca, parte de nosso grupo de extensionistas participou de uma roda de conversa sobre prevenção de homicídios de jovens, gerando um programa que foi transmitido nos Cucas Barra, Jangurussu e Mondubim e, em seguida, disponibilizado posteriormente no YouTube. Além disso, nossos integrantes participaram como convidados de cinco programas da Rádio Universitária; dois deles eram parte de uma série especial em comemoração aos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: um tematizou o aumento do número da morte de mulheres no Ceará e o outro teve como tema “Prevenção e Enfrentamento à Violência: o que os estudantes têm a ver com isso?”. Na oportunidade, foram publicizadas as ações do Projeto Re-Tratos da Juventude.
As diversas oficinas produzidas pelo Projeto Re-Tratos da Juventude tiveram em comum o fato de que muitas narrativas dos jovens sobre suas trajetórias enfatizaram frequentemente sua condição socialmente estigmatizada e alvo de criminalização por morarem em territorialidades periféricas e interseccionalizarem este marcador territorial a outros, tais como classe, raça, gênero e geração. Seus relatos costumavam indicar que a pecha de “sujeitos potencialmente perigosos” (Coimbra, 2001) assumia cotidianamente a condição de tecnologia de controle social das virtualidades juvenis, o que vai ao encontro da discussão trazida por Borges (2018), segundo a qual, após a abolição, a criminalização se tornou um forte dispositivo de perpetuação de racismos no Brasil, legitimando extermínios a partir da divisão necrobiopolítica entre vidas vivíveis e vidas matáveis (Bento, 2018).
As narrativas daqueles adolescentes frisaram ainda que o homicídio juvenil não é um acontecimento isolado, senão o ápice de uma rede de violências múltiplas, cumulativas, reiteradas, vividas psicossocialmente e alicerçadas por uma matriz de dominação colonial, como retoma Mbembe (2014) das reflexões anticoloniais de Franz Fanon. Assim como frisa Mbembe (2014; 2017) em relação à “invenção do negro” e às “políticas de inimizade” na contemporaneidade, o jovem “suspeito” ou “potencialmente perigoso” é uma ficção útil, pois sua demonização como “inimigo” o produz como o outro do cidadão de bem, regulando práticas sociais e institucionais de criação de “zonas de morte”, espaços heterotópicos, marcados pela extraterritorialidade, exceção e exclusão e pela aniquilação de sujeitos virtualmente perigosos que o habitam (Birman, 2015).
Em contraposição ao panorama de naturalização da violência letal na cidade de Fortaleza, buscamos movimentar os seguintes questionamentos em conjunto com profissionais, jovens e familiares inscritos em contextos periferizados da capital cearense: quais as condições de produção das mortes de adolescentes negros, pobres e residentes das margens urbanas da capital cearense? Como desmontar os aspectos psicossociais que contribuem na sustentação dessa maquinaria necropolítica?
As reverberações dos assassinatos de adolescentes tanto do sexo masculino, quanto do sexo feminino nas dinâmicas da violência sinalizam que, diante de enquadramentos estigmatizantes, tem se produzido corpos matáveis como uma característica psicossocial necessária à legitimação social do extermínio em massa de jovens na atualidade. Esse fenômeno tem sido socialmente justificado pela criminalização desse segmento, sendo isso um dos principais dispositivos de precarização induzida dessas vidas e de gestão/produção das políticas de morte nas margens urbanas.
As reflexões de Achille Mbembe (2014; 2017) em relação à invenção do negro e às políticas da inimizade no contemporâneo fornecem-nos pistas para compreender a produção psicossocial do jovem “envolvido” como identidade para o extermínio, sendo esta uma ficção útil, pois sua demonização acaba produzindo uma espécie de “avesso da cidadania” ou “outro do cidadão de bem”, figura do “dessemelhante”. Essa divisão entre as vidas é expressão de um “racismo de estado” (Foucault, 2005), que regula, segundo Mbembe (2014; 2017), práticas sociais de “zoneamento” que constroem espaços heterotópicos, caracterizados pela extraterritorialidade, exceção e exclusão (Agier, 2015), e aniquilação de sujeitos potencialmente perigosos que o habitam, convertidos, assim, em inimigos ficcionais e vidas não passíveis de luto.
Ao falar de racismo de estado, é necessário ressaltar quais as funções do racismo, segundo o ponto de vista de Foucault, e que são retomadas e redirecionadas por Mbembe em sua discussão sobre necropolítica (Almeida, 2018). Nesse sentido, o racismo, do ponto de vista foucaultiano, tem a função de separação dos sujeitos entre aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer, estabelecendo a morte destes como condição de sobrevivência daqueles, justificando as funções assassinas inclusive do Estado, e fornecendo condições de aceitabilidade da morte.
A partir das discussões sobre precariedade - que consideram que toda vida é precária, pois sua sobrevivência depende invariavelmente de suportes coletivos, mas essa precariedade se distribui desigualmente no corpo social (Butler, 2015) - e com base na discussão acerca da necropolítica, tecnologia de produção e gestão da morte no contemporâneo (Mbembe, 2014; 2017), as seguintes questões são de suma importância para que sejam traçadas reflexões sobre as implicações éticas da Psicologia em contextos de violência: que condições, conjuntos de forças, arranjos políticos e processos psicossociais fabricam certos corpos matáveis? E quais operações fazem suas vidas serem desabilitadas pelo não reconhecimento de vidas que importam?
Ao problematizar a produção de corpos vivíveis e matáveis, a partir da tematização dos homicídios infantojuvenis, com base nos diálogos de Butler e Mbembe, chegamos à seguinte pista: para entendermos como se atualiza uma necropolítica à brasileira, sustentada pela produção e gestão da morte, buscamos nas ações de extensão colocar em análise o estatuto político de determinadas vidas, pois ao não serem reconhecidas como vidas efetivamente humanas, mas, sim, como identidades abjetas, nem todas são consideradas passíveis de luto e dignas de direitos fundamentais, como o próprio direito à vida.
Histórias Desmedidas
Com título inspirado no documentário “Crônicas (Des)Medidas”11, de Alyne Alvarez, tal projeto focou, em 2018, duas frentes de ação: a primeira se voltou à escuta de trajetórias e perspectivas de vida de adolescentes autores de ato infracional, em cumprimento de medida socioeducativa, particularmente as de meio aberto, como a Prestação de Serviço à Comunidade (PSC) e Liberdade Assistida (LA), a partir de oficinas temáticas; já a segunda se direcionou à colaboração com o monitoramento dos sistemas socioeducativo e prisional no Ceará, sobretudo em Fortaleza, em articulação com organizações da sociedade civil em defesa de direitos de crianças, adolescentes e jovens. A partir da escuta das trajetórias de sujeitos considerados vitrines das tensões sociais (Diógenes, 2009) ou como metáforas da violência e em condição de (in)visibilidade perversa (Sales, 2007), e da reflexão sobre temas ligados à condição juvenil, cidadania, desejos e perspectivas de futuro, buscou-se por meio da atuação da Psicologia fortalecer: a) propostas de responsabilização juvenil preconizadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE); b) a construção de ressignificações da relação dos jovens participantes com a violência; c) bem como a criação de perspectivas singularizantes de vida com esses jovens diante de diversas funções de sujeição capitalísticas (Guatarri & Rolnik, 2005). Essas sujeições são agenciadas tanto por processos de criminalização quanto pela inscrição subalternizada em dinâmicas varejistas dos mercados ilegais de drogas, na condição de “acionistas do nada” (Zaccone, 2007).
No que diz respeito à primeira frente, no primeiro semestre de 2018, ela se operacionalizou pelo acompanhamento de cinco encontros de um grupo de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de LA, no CREAS da Secretaria Executiva Regional V (SER V), que atende pessoas do Grande Bom Jardim e Mondubim, contextos nos quais o VIESES já atuava. Em média participaram do grupo 15 adolescentes, em sua grande maioria do sexo masculino. Acompanhamos discussões relacionadas a temas como racismo, hip hop, cultura negra e capoeira como expressão cultural, conduzidas por educadores sociais contratados pelo Governo do Estado do Ceará, vinculados ao Programa Ceará Pacífico e ao Centro Cultural do Bom Jardim. Ao término do grupo, a atividade de inserção foi o acompanhamento de três acolhidas a novos adolescentes e jovens, responsabilizados com medida socioeducativa de PSC ou de LA no referido CREAS. Estas consistem em momentos de recepção por parte da equipe do equipamento, que expunham ao adolescente e ao parente responsável que o acompanha como funciona o cumprimento da medida.
Já no segundo semestre de 2018, demos continuidade a essa primeira frente por meio de 12 oficinas com adolescentes em cumprimento de LA no Centro de Referência Especializada da Assistência Social (CREAS) que atende a região do Grande Bom Jardim e outros bairros localizados na Secretaria Executiva Regional V de Fortaleza. Dessas 12 oficinas, seis foram temáticas, as quais discutiram - por meio de metodologias como construção de fanzine, exibição de filme e vídeos, colagens, desenhos e círculos de cultura mediados por imagens que remetiam a experiências juvenis - os seguintes temas: i) juventude e cidadania; ii) direitos humanos e instituições; iii) violência institucional e formas de enfrentamento; iv) discriminação e resistências populares; v) responsabilização juvenil e projetos futuros; e vi) educação, liberdade e convivialidade. As seis oficinas restantes se dividiram em três de vídeo e três de grafite. Essas atividades ocorreram em parceria com o projeto de extensão “Traficando Saberes” do LEV, ligado ao Departamento de Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC, que construiu todo o projeto junto aos extensionistas do “Histórias Desmedidas”, com a ONG Visão Mundial, que disponibilizou dois grafiteiros para as oficinas de grafite e lanches para o final de cada oficina, e com o Centro de Defesa dos Direitos de Criança e Adolescentes do Ceará (CEDECA-CE), que ajudou com o transporte dos jovens durante a 6ª Marcha da Periferia e na cerimônia de encerramento dos projetos de extensão. As 12 oficinas foram realizadas semanalmente, entre setembro e dezembro de 2018, com a participação de 16 jovens no total, incluindo socioeducandos em cumprimento de LA, familiares e egressos do sistema socioeducativo do estado do Ceará.
Por sua vez, no tocante à segunda frente do projeto, em 2018 ela se realizou a partir da nossa participação na Comissão de Monitoramento do Sistema Socioeducativo do Fórum DCA-CE e no Comitê Estadual de Monitoramento da Política Nacional para Mulheres Encarceradas e Egressas do Sistema Prisional. Especificamente, no semestre 2018.1, contribuímos na elaboração do Plano Decenal do Socioeducativo do Ceará, o qual consiste em um documento de metas, destinado a cumprir durante uma década (2018-2028), para a melhoria do sistema socioeducativo no estado. Durante esse processo de elaboração do plano decenal, foi possível identificar algumas denúncias de familiares e socioeducandos, a partir das organizações não governamentais presentes, como: dificuldade de atendimento de saúde, perseguições de profissionais por parte de direções devido às denúncias que estes fazem da violência institucional contra adolescentes nas unidades de internação, novas rebeliões e mortes de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no mês de junho de 2018.
Tendo em vista o agravamento do encarceramento em massa feminino no Brasil (Borges, 2018), a partir de agosto de 2018, inserimo-nos no monitoramento do sistema prisional voltado para o público feminino, especificamente do Instituto Penal Desembargadora Auri Moura Costa, única unidade prisional para o sexo feminino do Ceará. Essa nova inserção ocorreu devido às novas tramas da violência urbana no estado, que tem apresentado uma relação com o aumento do encarceramento feminino, bem como o aumento de morte de meninas e mulheres, o que convoca a Psicologia à problematização e atuação frente às políticas de aprisionamento na atualidade e ao extermínio juvenil (Scilescki & Guareschi, 2014). Esse processo tem se dado a partir do Comitê Estadual de Monitoramento da Política Nacional para Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional criado em 2017, período em que começou a ser tecido o Plano Estadual de Monitoramento da Política Nacional para Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional, tendo em setembro de 2018 retornando suas atividades para o aperfeiçoamento do plano e início do monitoramento das sugestões propostas previamente para a gestão da unidade desde o início operativo do Comitê.
Juntamente ao VIESES, como representante acadêmico, participaram do comitê o Programa de Extensão “Promoção de Arte, Saúde e Garantia de Direitos” (Pasárgada/[]), Pastoral Carcerária, Instituto Negra do Ceará (INEGRA), Secretaria de Justiça e Cidadania (SEJUS/CE) e representantes egressas e presas do sistema penitenciário. Nesse segundo semestre ocorreram um total de cinco encontros mensais de articulação do plano e monitoramento, além da participação em outros projetos como seminários produzidos pela SEJUS sobre o encarceramento feminino.
As duas frentes de ação estão conectadas pela reflexão de que as forças capitalísticas que incidem cada vez mais vigorosamente na produção de infâncias e juventudes desiguais afirmam-se por modos de dominação no plano econômico e social, mas também por sua instalação na própria produção de subjetividade, “tanto em nível dos opressores quanto dos oprimidos” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 53). Afinal, “a produção da subjetividade pelo Capitalismo Mundial Integrado é serializada, normalizada, centralizada em torno de uma imagem, de um consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendentral. Esse esquadrinhamento da subjetividade é o que permite que ela se propague em nível da produção e do consumo das relações sociais” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 48). Eis então o desafio às práticas de psicologia junto a segmentos sociais excluídos socialmente ou incluídos sob uma lógica perversa: ampliar sensibilidades às brechas desse dispositivo complexo de produção subjetiva, reconhecendo seus pontos de ruptura e os focos de resistência ético-estético-política.
Em ambas as frentes do projeto, buscamos interpelar criticamente a associação contumaz entre juventude pobre, risco/periculosidade social e violência, chamando a atenção para o seguinte ponto: entre os próprios jovens em situação de exclusão social circulam discursos de que aquele a quem se atribui o cometimento de ato infracional, vulgarmente conhecido como “envolvido”, não possui direitos fundamentais. Foi corriqueira também a escuta de relatos de jovens “em conflito com a lei” acerca dos inúmeros constrangimentos e das diversas violências físicas, psicológicas e institucionais sofridas em suas trajetórias de vida.
Em seu estudo sobre representações sociais acerca de crianças e adolescentes que nortearam as legislações nacionais, Pinheiro (2006) salienta a vagarosa metamorfose conceitual que deslocou, pelo menos legalmente, esses segmentos populacionais de objetos de disciplinamento, controle e repressão a sujeitos de direitos. Não obstante, as concepções objetificadoras que balizaram os diplomas legais sobre a infância e adolescência anteriores à promulgação da Constituição de 1988 ainda se fazem fortemente presentes no imaginário social brasileiro e em diversas práticas cotidianas dirigidas a segmentos infantojuvenis pauperizados, a despeito da existência do Estatuto da Criança e do Adolescente, que, mesmo depois de 26 anos de criação, nunca foi plenamente efetivado. Prova disso é que sob estes segmentos incidem ainda hoje todo um cabedal de relações de tutela, vitimização e minoração que os associam naturalizada e diretamente à violência.
Cabe deixar nítido que essa vinculação das classes populares, de um modo geral, à violência urbana, não se trata de um fenômeno contemporâneo propriamente. Donzelot (2001), por exemplo, aponta que tal vinculação deriva de um olhar estratégico das classes governantes sobre a população pobre, de modo que a genealogia do próprio “campo social” no Brasil é tributária do interesse de controle destas populações, em particular de suas infâncias.
Contudo, partimos da consideração de que as concepções supramencionadas têm, ainda que não sejam exatamente novas, adquirido vigor renovado e atualizações no presente. Como ilustração disso, assiste-se à contumaz e estereotipada exposição de jovens a que se atribui o cometimento de ato infracional nos meios de comunicação de massa e nos chamados “programas policialescos”, presentes em diversos canais abertos e com enorme popularidade, cujo objetivo principal é a veiculação de matérias que orbitam no campo da segurança pública e da violência urbana. Nessas tramas discursivas, corriqueiramente se forceja a redução da maioridade penal e o incremento de ações punitivas à figura do “jovem infrator”.
EntreTantos
O projeto “EntreTantos” tem sido pensado a partir de uma dupla aposta ético-estético-política, expressa já em seu título, qual seja: 1) tecer redes de conversações no cotidiano da cidade entre universidade, movimentos sociais, organizações e coletivos juvenis; 2) produzir contrapontos ao recrudescimento de perspectivas de maximização do estado penal no tocante ao fenômeno da violência envolvendo juventudes que habitam, especialmente, margens urbanas. O projeto visa, numa primeira frente, mapear e potencializar micropolíticas de resistência à violência urbana produzidas por coletivos juvenis, movimentos sociais e organizações não governamentais que atuam com jovens, contribuindo nos processos de articulação desses atores sociais e, numa segunda frente, fomentar rodas de conversações e cuidado junto a coletivos específicos.
Quanto à primeira frente, participamos do Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará, que promoveu, ao longo do ano, diversas ações de formação, mobilização social e monitoramento de políticas públicas. A partir de nossa integração no Fórum Popular de Segurança Pública, participamos de diversas atividades de sensibilização e mobilização social na cidade, tais como o Grito dos Excluídos, em setembro, a VI Marcha da Periferia, que tinha por tema “E se fosse seu filho? E se fosse sua filha?”, em novembro de 2018, sendo este um movimento da sociedade civil, coletivos, movimentos sociais e universidade que propôs várias ações na cidade de Fortaleza em defesa da juventude negra periférica, que historicamente sofre com a estigmatização e com práticas higienistas.
Além disso, desde fevereiro, integramos o Movimento Cada Vida Importa, mobilização de laboratórios da UFC e de outras instituições de ensino superior do Ceará, em articulação com organizações da sociedade civil e entidades como o CCPHA. A composição do movimento envolveu participação em reuniões quinzenais e em seminários, bem como em atos de sensibilização social frente à questão da violência contra jovens no Ceará. Nossa atuação nessa frente do projeto se justifica teoricamente pelo fato de que, de acordo com Butler (2018), a luta por reconhecimento de vidas precarizadas por dinâmicas que distribuem sofrimento de modo desigual, a partir de operações de poder que maximizam a precariedade para uns e minimizam para outros ao mesmo tempo, ocorre pela política do aparecimento. Essa política do “aparecer” é potencializada pelos mais diversos segmentos sociais na busca pela produção de sensibilidades que possam reconhecer a importância de vidas tidas como “desimportantes”, indicando ser necessário reconhecer eticamente a existência dessas alteridades por via de alianças políticas que busquem torná-las “vivíveis” (Butler, 2018). Desse modo, temos buscado, com essa frente, estar entre esses tantos e tantas, por meio de aliançamentos que lutam não só contra a violência, mas por condições dignas e vivíveis de viver, potencializando os contrapontos que têm sido produzidos contra essa lógica da vulnerabilidade interseccional que faz parte da própria política de precarização da vida como modo de governamentalização necrobiopolítica (Bento, 2018).
Já no que se refere à segunda frente, em 2018, o projeto aprofundou sua inserção na Região do Grande Jangurussu. No primeiro semestre, em parceria com o Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (NUCEPEC), e a ONG Diaconia, foram realizadas 11 rodas de conversas e oficinas com um grupo de adolescentes e jovens da comunidade do Campo Estrela. Os temas foram escolhidos pelos próprios participantes, considerando que as intervenções foram trabalhadas na perspectiva de mapear as demandas do grupo para que pudéssemos contribuir com seu fortalecimento como um coletivo juvenil. Assim, a composição de cada encontro possibilitava que pensássemos conjuntamente a temática do próximo. Foram trabalhados temas que giravam em torno de “Projetos de vida”, “Estatuto da Juventude” e “Segurança Pública”, a partir do debate de letras de músicas, dramatizações, construção de cartazes, produção de desenhos e jogos cooperativos.
Pensar nas trajetórias e projetos de vida, por exemplo, possibilitou que os adolescentes e jovens refletissem a respeito das diversas dificuldades interpostas em seus cotidianos no tocante a vislumbrarem um futuro na comunidade, como a ausência ou o não acesso às políticas públicas e até mesmo a questão da violência. Desse modo, essas discussões fizeram surgir debates sobre direitos da juventude, a partir dos quais foram compostas rodas de conversas e oficinas em que os adolescentes e jovens pudessem dialogar sobre quais eram os direitos garantidos e quais não eram para aquelas juventudes, pensando a realidade de seu bairro. A maioria dos participantes comentou a ausência de garantia de direito na comunidade, o que corrobora a condição de cidadania escassa (Sales, 2007) a que estão submetidas tais juventudes em contextos periféricos, o que induz a maximização da condição precária daquelas vidas nas margens urbanas (Butler, 2015).
No encontro sobre “Segurança Pública”, os adolescentes e jovens montaram uma esquete na qual escolheram mostrar como era a abordagem policial em sua comunidade, o que desencadeou uma conversa sobre qual perfil de jovem tem sido parado nas abordagens e acerca do recrudescimento de práticas militarizadas de segurança naquela territorialidade, o que indica como juventudes que interseccionam marcadores raciais, de classe e gênero são (des)subjetivadas como virtualmente criminosas (Coimbra, 2001) e alvos precípuos de seletividade punitivo-penal e racismo estrutural (Almeida, 2018). Essa atividade foi emblemática em relação às outras, pois em todas as temáticas surgiam espontaneamente alguma fala ou algum gesto sobre violências institucionais no cotidiano daqueles jovens. Nos preparativos para uma atividade de jogo cooperativo, alguns participantes chegaram a encenar o modo como eram abordados pela polícia, evidenciando que seria preciso dar visibilidade e dizibilidade com os adolescentes e jovens àquele acontecimento cotidiano num encontro específico, e por isso, a esquete para fomentar as discussões a respeito de segurança pública.
No segundo semestre, o projeto realizou 20 encontros a partir de rodas de conversa e oficinas com mulheres em situação de violação de direitos, numa perspectiva de apoio psicossocial e promoção de cuidado compartilhado, em parceria com a ONG Visão Mundial.
Diante do que nos trouxeram, percebemos que essas mulheres passavam por diversas situações de violações de direitos, que iam desde a falta de saneamento básico até a perda de seus filhos em decorrência da violência urbana. As atividades, com frequência semanal, tinham o intuito de criar estratégias de apoio psicossocial frente a violências e violações de direitos, bem como fortalecer práticas de cuidado compartilhado entre essas mulheres. Durante as rodas de conversas pudemos trabalhar mais a respeito das significações de ser mulher dentro daquela comunidade, o reconhecimento de redes de afetos às quais elas poderiam recorrer em situação de sofrimento, sobre as condições de ser mulher negra e periférica, bem como sobre práticas de cuidado em saúde.
Já as oficinas tiveram por objetivo desenvolver as potencialidades das mulheres do grupo, pois elas eram desafiadas a sair de sua rotina de afazeres domésticos e preocupações cotidianas para produzirem pinturas, desenhos, escritas e danças que pudessem produzir tanto percepções de si, quanto grupais. Também foram realizados passeios, com o intuito de gerar uma maior democratização do espaço da cidade, uma vez que muitas das mulheres não podiam visitar certos lugares por conta de suas limitações socioeconômicas e dos conflitos territoriais.
Com as rodas de conversa e as oficinas, pudemos notar que as mulheres, no início do grupo, não se colocavam tanto e, muitas vezes, até se eximiam de falar. Isso pode estar relacionado ao tempo que era necessário para criar uma vinculação entre elas que permitisse que suas questões fossem apresentadas. No entanto, ao fazermos avaliações, com elas, de como estava sendo aquela criação grupal, ou, partindo de exposições espontâneas delas, era dito que aquele grupo lhes possibilitava cultivar o ato da fala. Ao pensar com Kilomba (2010) sobre o silenciamento da mulher negra como uma marca da colonialidade, sendo metaforizado, segundo esta autora, por uma máscara que tapa suas bocas, pudemos produzir uma atenção mais sensível em relação ao que se calava nas experiências daquelas mulheres naquela comunidade. É importante trazer essa reflexão sobre a fala e o silenciamento, porque dizer que o grupo possibilitava a fala se tornou um emblema daqueles encontros. Desse modo, entendemos que a partilha entre as mulheres possibilitou criar um comum que não é dado de antemão (Kastrup & Passos, 2013), um comum em que se pôde negociar nos sentidos ética-estética e politicamente. Ou seja, a partir do momento em que se põe em discussão o próprio silêncio, o que foi feito ao longo do grupo, começa-se a estilhaçar a máscara do silenciamento, instrumento do projeto colonial que se atualiza na periferização de mulheres negras.
A problematização da produção de vidas matáveis e não passíveis de luto: reflexões agenciadas pelas experiências do VIESES e caminhos possíveis à Psicologia
O que articula todas essas experiências? De que modo a reflexão sobre elas indica caminhos à Psicologia, do ponto de vista de metodologias possíveis e sobretudo quanto à sua responsabilidade ética em tempos de intensificação da violência?
As ações extensionistas buscaram complexificar o debate político e ético tanto sobre o extermínio de certas populações, a exemplo de segmentos infantojuvenis negros, mulheres, populações LGBTs e outras tantas, quanto sobre as políticas de precarização sistemática e desigual de suas existências. Ademais, ao invés de pensar esses processos de precarização da vida e produção da morte dessas populações como casos isolados e triviais, buscamos em todos os projetos acima relatados discutir como o extermínio desses segmentos e a imposição a eles de uma sobrevida são processos que podem ser compreendidos, sob o prisma analítico aqui proposto, como um dispositivo que sustenta a própria ordem política atual, articulando o diagrama do desempenho, a colonialidade e o conservadorismo em uma complexa governamentalidade neoliberal, expandindo-se aos diversos domínios da vida, inclusive na produção de subjetividades, tendo como um de seus efeitos a objetificação, instrumentalização, mercantilização e descartabilidade de certas existências (Barros, Costa, Cavalcante & Sousa, 2019a).
Nesta dinâmica, como denuncia Mbembe (2017), ao falar de uma “democracia de escravos”, discutimos nos três projetos de extensão acima referidos como a cidadania ainda é produzida pela exclusão, ou seja, como regalia de alguns, e não um direito de todos. Por isso, em conjunto com os participantes dos projetos, temos identificado elementos cotidianos envolvidos na produção de zonas de morte nas “periferias”, transformando-as em colônias contemporâneas. Para a viabilização desses “mundos de morte”, como se refere Mbembe (2017), vimos, a partir de situações vividas pelos participantes dos projetos de extensão, como se faz necessário que sejam fabricados inimigos a serem combatidos e aniquilados nessas zonas de morte (Barros, Benício & Bicalho, 2019).
No que se refere às experimentações nos territórios da periferia de Fortaleza, nos quais temos desenvolvido nossas ações, percebemos que um dos efeitos das maquinarias de guerra nas tramas da violência no estado, tais como guerra das facções criminosas e os efeitos da guerra às drogas, é o agenciamento de certos modos de sujeição que sustenta determinados segmentos como corpos que devem ser combatidos e aniquilados, e outros corpos vivíveis, que devem ser protegidos (Barros, Cavalcante, Nunes & Sousa, 2019b).
Outro agenciamento dos diálogos entre Butler e Mbembe que podemos acrescentar em torno das problematizações que tecemos nas extensões, que intitulamos de “quadros de guerra colonial sem fim”, é o seguinte: para resistir à necropolítica temos discutido que se faz relevante investir na reinvenção do próprio estatuto ontológico da vida como uma de nossas principais tarefas ético-políticas nos dias atuais, a fim de que todas as vidas efetivamente importem. Dito de outra forma, temos em nossas práticas extensionistas investido em uma noção de humanidade e, consequentemente, de direitos humanos, em que caibam e importem todos os segmentos infantojuvenis, e não só certos humanos, implicando o desmontar de maquinarias de produção de subjetividades truculentas e alterofóbicas, um dos efeitos simbólicos da necropolítica (Barros et al., 2019a; Barros, Benício & Bicalho, 2019; Barros et al., 2019b).
Dialogando com Butler (2015), a criminalização é uma das operações de poder inscritas nos enquadramentos seletivos e diferenciados das violências, como os que assujeitam determinados segmentos como “envolvidos”, culpabilizando-os por sua própria morte. Tais enquadramentos não só se articulam às condições de impossibilidade da vida desses segmentos infantojuvenis, como também colaboram na obstrução de um fluxo de comoção coletiva frente ao extermínio dessa população periferizada.
A discussão sobre vidas (não) passíveis de luto tem levado nossas ações à reflexão sobre a regulação da comoção, pela mídia e pelos discursos oficiais. Tanto Butler (2015) quanto Mbembe (2017) contribuem na problematização sobre os efeitos psicossociais e políticos das maquinarias de guerra, além da hierarquização das vidas, sendo a diminuição de sentimentos de interdependência e a produção de uma noção cada vez mais restritiva do que seria um “nós”.
Por fim, para Butler (2015), um aspecto importante para nossas discussões éticas na contemporaneidade e seus quadros de guerra deve ser a movimentação diferencial dessa condição precária, que é maximizada para uns e minimizada para outros. No contexto da capital cearense, a ressonância dos extermínios de segmentos infantojuvenis periféricos, em sua maioria negros, naturalizada a partir de enquadramentos acerca do envolvimento ou não dos que morrem em dinâmicas do tráfico, aponta justamente a distribuição desigual dessa precariedade em meio ao recrudescimento da insegurança social e às demandas de enfrentamento da violência a partir da reiteração de lógicas de subalternização típicas da colonialidade.
Ao mesmo tempo, em um contexto necropolítico de produção massificada de mortes, as ações de extensão buscaram por em discussão, em concordância com o que pontua Butler (2015), a necessidade de mudança dos próprios termos da condição de ser reconhecido/a e a construção de condições mais igualitárias e democráticas de reconhecimento e compartilhamento da precariedade que constitui a todos nós. Dessa maneira, entendemos que afirmar, a partir das ações de extensão acima relatadas, que todas as vidas (nos) importam, é um posicionamento ético que deve estar conectado à reivindicação política de condições das vidas dos mais diversos segmentos infantojuvenis, assumindo a importância coletiva de toda a sociedade civil na mudança das práticas sociais (Barros et al., 2019a). Por isso, a universidade, por meio das atividades de pesquisa, ensino e extensão, torna-se um espaço indispensável na composição de uma rede para o enfrentamento dessa problemática complexa.