O presente artigo tem por objetivo analisar o lugar da sexualidade nos processos de subjetivação produzidos no cotidiano de mulheres usuárias em tratamento em uma comunidade terapêutica que fazem uso abusivo de álcool, crack e outras drogas. Inicialmente, pontua-se que o campo das políticas públicas voltadas ao uso abusivo de álcool, crack e outras drogas no Brasil, sobretudo nas diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, foi criado para provocar questionamentos e reflexões sobre a constituição do modelo de atenção nos equipamentos sociais. São vários os desafios vivenciados pela sociedade para lidar com os problemas decorrentes do consumo abusivo dessas substâncias, o qual apresenta consequências subjetivas e coletivas.
Os desafios enfrentados pelos usuários da política pública não perpassam apenas o campo da saúde, mas também da assistência social e segurança pública. Isso porque o plano de erradicação das drogas tem sido engendrado em uma perspectiva higienista da abstinência e da guerra às drogas, em vez de trabalhar como um analisador de saúde pública e bem-estar social (Vale, Lavor, & Costa, 2017). Com a atual conjuntura política, vivenciamos a reorganização das forças políticas conservadoras no Brasil, com o fortalecimento de uma pauta antidemocrática e autoritária, orientada para o aprofundamento da mercantilização dos direitos sociais brasileiros (Mososini, Fonseca, & Lima, 2018) prejudicando diretamente as conquistas no campo da saúde das últimas décadas.
Vale compreender que com a promulgação da Emenda Constitucional n. 95/2016, conhecida como “Teto dos Gastos”, o orçamento da Saúde foi congelado por 20 anos, produzindo efeitos negativos nas diversas políticas públicas da área, especificamente no financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS (Emenda Constitucional n. 95, 2016), contribuído para o desmonte e para retrocessos neste. Ainda em 2016, temos a incorporação das comunidades terapêuticas na tabela de tipos de estabelecimentos de saúde do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) por meio da Portaria n. 1.482/2016. Em 2017, a Portaria n. 3.588 promove mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Por fim, em 2019, o governo federal, por meio do Decreto n. 9.761/2019, aprovou a nova Política Nacional sobre Drogas (PNAD). A política apresenta inconsistências históricas, legais, éticas, normativas e técnicas no campo da saúde mental ao trazer como abordagem preferencial para o tratamento dos dependentes químicos a adoção da abstinência (Decreto n. 9.761, 2019). Até então, a estratégia privilegiava a redução de danos (RD). Outra novidade é o estímulo à inclusão de instituições segregadoras, como os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas, na Raps. Todas essas mudanças macropolíticas já estão se refletindo no campo micropolítico, produzindo efeitos nos processos de subjetivação da assistência em saúde.
Assim, a fragmentação e a flexibilização das políticas públicas têm aberto espaço para o crescimento de um serviço conhecido como comunidade terapêutica, o qual, vinculado a instituições religiosas, tem oferecido ações de tratamento da dependência química em escalas cada vez maiores e a um grande número de pessoas (Prado & Queiroz, 2012). Por outro lado, a Política de Redução de Danos preconiza que aquilo que deve estar no centro das ações é a minimização do dano causado pelas drogas, e não a erradicação do seu uso. Isso porque, como pontuam Prado e Queiroz (2012, p. 307), essa política “trata do manejo seguro de uma ampla gama de comportamentos de alto risco e dos danos associados a eles”. Esses autores também refletem que a Redução de Danos anuncia possibilidades de construir uma lógica de cuidado que foge da lógica da exclusão, repressão, retenção e associação imediata a quadros psiquiátricos. Isso permite abordar outras estratégias que considerem os arranjos pessoais dos sujeitos. Pontuar essa questão é significativo para que se reconheça que existem determinantes sociais no uso abusivo de drogas e na maneira de ver o usuário e o cuidado dele, implicando que há disputas de saber e de poder no campo trabalhado, as quais determinam a abordagem, o público-alvo e os objetivos do cuidado.
Entendemos que, nesse cenário de disputas de poder sobre as práticas de cuidado para pessoas usuárias de álcool e outras drogas, é relevante facilitar processos que visibilizem a pessoa e não apenas as substâncias que ela, porventura, utilize. Tais processos são ainda mais relevantes no atual cenário político e ideológico, em que são fomentados modos de subordinação, violências, aprisionamentos e aniquilação de formas de existências contrárias às prerrogativas conservadoras, autoritárias e antidemocráticas (Mososini et al., 2018). Assim, este trabalho entende que partimos de uma sociedade que tem privilegiado formas de vida em detrimento de outras. Ademais, é necessário reconhecer que, historicamente, as discussões sobre uso e abuso de drogas têm se centrado em uma perspectiva masculina; por isso, entende-se como relevante a discussão sobre gênero.
Nesse aspecto, Villar e Santos (2018) apontam em seus estudos que 80% das comunidades terapêuticas têm vagas exclusivamente voltadas para homens e apenas 5% são voltadas para o público feminino. Algumas questões podem ser pontuadas acerca dessa disparidade de vagas entre gêneros, uma delas é o reconhecimento que a demanda pode tender para o sexo masculino; contudo outra questão é apresentada: de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2017), aproximadamente 90% das comunidades terapêuticas no Brasil não permitem relacionamentos sexuais entre os internos. Villar & Santos (2018) consideram, então, que um importante questionamento se dá em relação a como é feito o impedimento de relações homoafetivas nessas instituições.
Nesse ponto, destaca-se que, desde a Resolução CFP n. 01/1999, estabeleceram-se normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Assim, tornou-se obrigatório que os profissionais psicólogos alinhassem sua atuação aos parâmetros da Organização Mundial da Saúde (OMS). A necessidade de publicar uma normativa no que tange ao comportamento sexual do indivíduo foi necessária devido às iniciativas de profissionais vinculados a grupos religiosos que propunham a “cura gay”, baseados em preconceito e não no fazer psicológico (Sposito, 2017). Tal resolução é o documento produzido pelo CFP com maior número de questionamentos judiciais. O último deles, em 2017, proibiu os Conselhos Regionais e Federal de punir profissionais que atuem nas chamadas “terapias de reversão sexual para homossexuais egodistônicos” (Cavalcanti, Carvalho & Bicalho, 2018).
Nos achados de Villar e Santos (2018), apresentaram-se por parte dos participantes da pesquisa (a saber, dirigentes de comunidades terapêuticas) percepções que eles tinham como argumentos. Entre os pontos há a crença de que há menos “êxito” no “tratamento” de mulheres em comunidades terapêuticas porque elas seriam mais propensas a prostituir seus corpos, entre outras explicações que justificavam o comportamento das mulheres a partir de seus corpos. Sendo isso uma leitura inóspita, percebe-se uma perspectiva determinista biológica que reduz as mulheres às diferenças que apresentam em seus corpos e interpõe análises e descrição de interações sociais (Zanello, 2016).
Sendo assim, entendemos relevante reconhecer que existem implicações de gênero sobre os saberes e as práticas desse campo, visto que historicamente as mulheres têm sido postas como dependentes dos homens e inferiores a eles, refletindo no modo como se organizam as práticas sociais e os saberes relativos às relações de gênero, tornando visível a nossa organização social sexista. Sustenta-se, assim, que as situações que associam as mulheres ao uso de drogas são marcadas por (e reproduzem) desigualdades de gênero que estabelecem condição de insuficiência e submissão (Zanello, 2016; Prado & Queiroz, 2012).
Zanello e Silva (2012) pontuam que abordar as relações de gênero na saúde mental permite a produção de intervenções que sejam de fato efetivas, sendo preciso considerar que o conceito de gênero é emancipatório como categoria feminista. Nesse sentido, é importante forjar no campo das intervenções uma escuta que permita ouvir as mulheres, as quais, como pontuam Zanello e Campos (2017), quase não são ouvidas sobre uma perspectiva de relações de gênero. Embora tenha havido (e ainda haja) transformações e lutas no campo da saúde mental no Brasil que possibilitaram reformulações e mudanças significativas no cuidado à saúde, do ponto de vista social, cultural e conceitual, essas transformações não foram suficientes para o cuidado voltado às mulheres – permanecendo elas invisíveis diante em um cenário mais amplo, sendo vítimas de múltiplas violências de gênero (Zanello & Campos, 2017) e práticas de silenciamento de suas sexualidades em comunidades terapêuticas de cunho religioso. Para as mulheres lésbicas, esses contextos de comunidades terapêuticas se tornam ainda mais perversos, pois é esperado e sobreposto a elas um imperativo androcêntrico e moralista, o qual fomenta relações de gênero assimétricas, características de sociedades patriarcais (Villar & Santos, 2018).
Assim, neste trabalho reflete-se acerca das questões de gênero, das abordagens psicossociais e da articulação destas na práxis em saúde mental e redução de danos, especialmente em classes minoritárias, historicamente negligenciadas. É importante considerar que as pesquisas com enfoque de gênero e sexualidade na saúde mental, como pontua Zanello (2016), resgatam a fala do sujeito e reconhece o lugar social do qual o sujeito fala. Além disso, a análise do sofrimento psíquico sob o viés de gênero permite novas possibilidades de intervenção e caminhos para a produção de cuidado perante regimes de desigualdade, injustiça social e vulnerabilidades.
Destarte, considera-se relevante visibilizar as questões de gênero, sexualidade e saúde mental relacionadas à socialização das mulheres que têm relações problemáticas com distintas drogas, lícitas e/ou ilícitas. A partir do debate que propomos, Deparamo-nos com uma realidade ainda mais rígida quando são experienciadas relações homoafetivas.
Nesse sentido, por meio da cartografia, acompanhamos os processos de subjetivação de mulheres em uma comunidade terapêutica feminina no interior do Nordeste em relação à interlocução gênero, sexualidade e saúde mental, em seus fluxos e movimentos (Kastrup, 2008; 2015). A produção de subjetividade tem a ver com o engendramento de um regime de verdade, que se caracteriza pela junção de normas, instituições, ditos e não ditos na qual cada um acaba se articulando e moldando o modo de pensar e agir (Foucault, 1978/2007). Desse modo, o regime de verdade que circunda a liberdade e a subjetividade da mulher se manifesta de várias formas: discriminação, preconceito, inferiorização da figura feminina, dispositivos que reforçam a desigualdade entre homens e mulheres, sobretudo deixando-as expostas a vulnerabilidades e violências de todos os tipos.
Assim, na realização desta cartografia, recorremos ao seguinte objetivo geral: analisar o lugar da sexualidade nos processos de subjetivação produzidos no cotidiano de mulheres que fazem uso abusivo de álcool, crack e outras drogas e/ou vivenciam situações de vulnerabilidade social extrema e estão na comunidade terapêutica. O que nos mobilizou à realização dessa cartografia foi dar visibilidade à vivência de mulheres que perpassam comunidades terapêuticas de cunho religioso. Esses locais as acolhem para “tratar” do uso abusivo de álcool, crack e outras drogas; em contrapartida, agenciam modos de produção de desejos “proibidos” e “questionáveis”. Uma das proibições mais evidentes no âmbito sexual é a percepção de que a orientação homoafetiva é tomada como um desvio a ser “combatido” na mesma medida que o uso abusivo de substâncias psicoativas em seus cotidianos. Tendo um viés “moral” no cuidado disponibilizado, agenciam essas mulheres ao lugar da negação de campos significativos da sua existência, como o da sexualidade, em prol de uma “cura”.
A pesquisa que move é a que fica: cartografando um território coletivo de forças
O desenho metodológico narrado trata-se de uma pesquisa-intervenção (PI) de cunho cartográfico. Caracteriza-se como pesquisa de natureza qualitativa, pois compreende que a realidade estudada e as diferentes formas de organização social se constituem como um contexto das ciências sociais e, também, como forma de satisfazer as necessidades epistemológicas e metodológicas das ciências psicológicas que versam e estudam a produção de subjetividade na contemporaneidade (Minayo, 2010; Romagnoli, 2009; González Rey, 2002). Para compreender o que é real na produção dos modos de existência, faz-se necessário, além de técnicas e saberes estruturados, desprendimento, doação e sensibilidade para reconhecer que o processo de viver e os modos de subjetivação não são estanques ou imóveis, são mutáveis, expressando segmentações e singularizações em multiplicidades de devires (Romagnoli, 2009).
Trazemos para a centralidade deste artigo a cartografia como modo de fazer PI, pois não basta repetir que toda pesquisa é intervenção. Faz-se necessário, na cartografia, um mergulho na experiência para a composição de territórios existenciais pelas(os) cartógrafas(os). Dessa maneira, o campo de análise e o campo de intervenção, ou seja, o conhecer e o fazer, se tornam inseparáveis, impedindo qualquer pretensão à neutralidade (Kastrup, 2015; Rocha & Aguiar, 2007).
A cartografia, como parte de uma relação de significado, pode facilitar o processo de compreensão da experiência vivida pelas mulheres nesse contexto. Por intermédio de uma perspectiva feminista (Mayorga, 2014; Zanello & Campos, 2017; Castro & Mayorga, 2018), debruçamo-nos sobre as vivências das usuárias no contexto da Casa de Acolhimento Feminino. Essa perspectiva facilitou o diálogo com as participantes por meio das experiências produzidas com o grupo de mulheres.
Ao utilizarmos a cartografia, mapeamos o lugar da sexualidade nos processos de subjetivação produzidos no cotidiano de mulheres que fazem uso de drogas e estão em uma comunidade terapêutica, fazendo a problematização dos atravessamentos e das transversalidades que permeiam o cotidiano experienciado (Deleuze & Guattari, 1980/2012). Tanto as lógicas instituídas e cristalizadas que operam no agenciamento do desejo feminino por meio das linhas de segmentação dura quanto os processos de ruptura e resistência a essa lógica são abordados, ressaltando os processos criativos, as linhas de singularização maleável que possibilitam o afetamento da subjetividade e criam zonas de indeterminação pessoais e coletivas (Mansano, 2009; Passos & Barros, 2015). Dessa maneira, essa PI possibilitou a elaboração de uma oferta de intervenção que emergiu dos processos de produção de vida e de cuidado no contexto da instituição e sobre estes, compreendendo que os atores se agenciam, inventam e engendram nos seus cotidianos a fim de produzir diferentes afetos e possibilidades de cuidado em saúde mental (Paulon & Romagnoli, 2010).
O cenário de composição dessa cartografia emergiu da experiência de dois anos atuando como profissionais residentes de uma das equipes de residência multiprofissional em saúde da família vinculada a uma universidade pública situada na região Nordeste do Brasil. A atividade em campo surgiu a partir da territorialização realizada junto com uma das equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), que acolhia as equipes de residência multiprofissional e no compartilhamento de intervenções na perspectiva da rede de Atenção Básica territorial. A presente pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética com o título de pesquisa “Saúde mental e Gênero: a experiência de mulheres usuárias de uma casa de Acolhimento”, sob o CAAE: 91376018.9.0000.5214.
Nesse processo de territorialização, foi possível o mapeamento e a aproximação com os dispositivos e instituições que compunham o território, entre estes a comunidade terapêutica para mulheres, que, a partir da portaria n. 1.482/2016, poderia ser incluído na tabela de tipos de estabelecimentos de saúde do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES (Emenda Constitucional n. 95, 2016). Embora a portaria anteriormente citada possibilite o reconhecimento da instituição como dispositivo da rede de saúde, na realidade da experiência pesquisada, a comunidade terapêutica para mulheres não compõe a rede formal de assistência à saúde ou de assistência social. Ainda assim, a instituição se apresenta como referência para as mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade, necessitando de auxílio para lidar com questões relacionadas ao uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas no município.
A comunidade terapêutica para mulheres em questão é uma instituição filantrópica de caráter religioso que se mantém financeiramente a partir de parcerias com órgãos públicos e entidades religiosas. O local não dispõe de recursos próprios para a contratação de profissionais, recebendo atuação de instituições religiosas, educacionais de nível técnico e superior e profissionais liberais voluntários. Nesse sentido, as atividades realizadas com as mulheres usuárias na instituição, embora fossem vinculadas ao Programa de Residência, não se atrelavam oficialmente à rede de saúde e socioassistencial do município. Com a territorialização e contato com a instituição, houve o reconhecimento da necessidade de intervenção psicossocial no tratamento dessas mulheres que lá se encontravam. Destarte, durante seis meses, realizamos encontros semanais com as usuárias da Casa.
Neste estudo, a produção das informações se deu a partir de algumas estratégias e recursos, tais como oficinas, grupo focal, dinâmicas de grupo e produção de narrativas, sessões fotográficas, entre outras que permitissem um trabalho com as mulheres e não sobre elas. Para registro da produção das informações, foi utilizado o recurso de diários de campo para cada encontro com o grupo de mulheres, pois o consideramos um importante dispositivo teórico-metodológico para produzir análises, uma vez que as implicações do ser profissional e ser pesquisador também são consideradas e coengendradas no processo de pesquisa- intervenção e acabam por ter no diário de campo um lugar privilegiado da escrita dessa afetação. (Paulon & Romagnoli, 2010). O registro dos diários de campo nos traz elementos da história de vida narrados por elas, bem como de seus modos de vida e do processo de elaboração psíquica no decorrer dos encontros em grupo, sobretudo na atenção da escuta e acolhimento, que tiveram uma perspectiva feminista de gênero, nossos balizadores de intervenção (Pedrosa & Zanello 2017).
Para produção das informações, um dos recursos utilizados com o grupo de mulheres foram oficinas semanais que articulavam temas como gênero, sexualidade, trajetória de vida, mundo do trabalho, uso abusivo de drogas etc. Essas questões foram levantadas durante oficinas de matriciamento realizadas no processo de territorialização como problemáticas a serem enfrentadas por elas. Nas oficinas, temas como sexualidade e orientação sexual eram avaliados e considerados pela direção como tabus que deveriam ser ignorados e cerceados nas atividades entre pares. Assim, a experiência com as oficinas desvelou práticas normativas e opressoras impostas a essas mulheres e que engendravam como elas deveriam ser e estar dentro da Casa. Esse processo se tornava visível principalmente nas mulheres que tinham experiências sexuais homoafetivas.
Outro recurso de produção de informação foi a realização de um grupo focal com as usuárias residentes. A participação foi voluntária e, devido à rotatividade de entrada e saída de usuárias na instituição (considerando o tempo de permanência da usuária), houve variação da quantidade de participantes nos encontros do grupo entre oito e 14 mulheres. A formação do grupo focal é intencional e pretende-se que haja semelhanças entre as participantes, por isso, foi tão importante como critério de composição do grupo que todas as mulheres fossem residentes na Casa de Acolhimento. Desse modo, os relatos de experiência, afetos, desejos e interesses traçados na cartografia se mostraram potentes analisadores, uma vez que todas as mulheres participantes compartilharam suas histórias de vida com o coletivo.
A experiência compartilhada com o grupo de mulheres aconteceu durante seis meses, incluindo momentos de conversa informal, visitas, oficinas e grupo focal, com sete encontros de duração aproximada de duas horas. Os encontros do grupo ocorreram na Casa de Acolhimento onde elas residem. A proposta de trabalhar com o grupo foi que as próprias participantes pudessem levantar temas que tenham interesse de conversar e que tivessem a ver com suas histórias de vida. A abordagem facilitou o compartilhamento de experiências, o reconhecimento de situações e a apropriação das histórias vividas por elas, (Duarte, 2011).
A análise do lugar da sexualidade nos processos de subjetivação produzidos no cotidiano das mulheres, feita neste estudo, está baseada em conceitos e concepções da cartografia (Paulon & Romagnoli, 2010). Para a análise e interpretação das narrativas, adotamos a leitura minuciosa dos diários cartográficos, pois o método cartográfico deve ser traçado no e a partir do plano da experiência (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2015). Assim sendo, as questões ético-políticas são de suma importância na pesquisa, pois, por ser uma pesquisa que utiliza relações intersubjetivas, as análises de dados serão feitas a partir de subjetividades e, portanto, de sujeitos atuantes e implicados com o cotidiano.
A cartografia produzida nesta experiência nos ajudou a problematizar o cotidiano das mulheres interlocutoras de nossas análises, pois mostrou ser um dispositivo de pesquisa que nos dá pistas de ferramentas sensíveis aos processos de abertura e conectividade com a vida, com os territórios e com as pessoas (Alvarez & Passos, 2015). Essas ferramentas visam fomentar nos sujeitos envolvidos um processo de reconhecimento e construção de autoanálise e construção do inédito viável a partir do campo dos afetos, das vivências e dos modos de vida produzidos e ressignificados a partir dos seus modos de vida.
Primeiro ato: o diário de campo como dispositivo de intervenção
A proposta que apresentamos à instituição foi construída com o grupo de mulheres que eram usuárias da Casa. Nesse momento, é importante pontuar que há grande rotatividade entre essas mulheres; muitas entram na instituição, mas não perduram por muito tempo. Desse modo, durante os encontros, era comum termos sempre um grupo com integrantes novas. O diário de campo como estratégia para registo das informações, neste estudo, foi um recurso potente para visibilizar não só a desterritorialização que o encontro com as mulheres possibilitou às pesquisadoras, mas também o desejo de composição das paisagens psicossociais com as mulheres. Nesses encontros, realizamos uma gama de atividades com as mulheres, como sessões fotográficas, escritas de si e escutas em grupo sobre questões relacionadas a ser mulher: sexualidade; prostituição; uso abusivo de drogas; maternidade; relações familiares; relacionamentos conjugais; amor; identidade de gênero; dificuldades de reinserção social; religiosidade, entre outras. Nessa perspectiva,
O que propus inicialmente foi apresentar meus registro de diário de campo, a que fiz após o primeiro encontro. E li, retirando algumas partes que elas não queriam que a coordenação soubesse (uma das coordenadoras estava presente), e elas ficaram impressionadas, elas não acreditavam que eu conseguia lembrar de tudo que me diziam, e ficaram entusiasmadas com a possibilidade de publicar o que escrevi. (Pesquisadora, Diário de Campo).
As temáticas emergiram das falas dessas mulheres e nas escritas de seus diários, muitas vezes implicadas com as questões da instituição, que tanto acolhia/protegia das ruas, do uso abusivo de drogas e da violência quanto isolava e cerceava de tudo que as significava, especialmente da vivência de suas sexualidades e ainda mais negada quando eram homossexuais. Havia forte associação entre sexo e o uso abusivo de drogas, sendo vedada a essas mulheres quaisquer tipo de manifestação sexual dentro da Casa.
Considerou-se importante pelo grupo a sistematização do que havíamos vivenciado. Em um primeiro momento, as mulheres nos autorizaram a escrever suas histórias e vivências em nossos diários. Na realidade, o que gostariam é que fizéssemos registro do que diziam e, assim, iniciamos o registro do diário cartográfico, perpassado pelas falas, frases, pensamentos e construções coletivas do grupo. No segundo momento, consideramos importante a escrita de cada mulher. Então, cada uma mantinha um diário-caderno no qual ia dizendo de suas vivências, sendo livre a decisão de compartilhar ou não com o grupo. Esse movimento coletivo da produção de diários para a pesquisa qualitativa em que operamos possibilitou uma interface profícua com a produção de subjetividades, cujo objeto toma como material a linguagem em suas variadas formas de expressão (Bosi, 2012).
A escrita, dessa maneira, ganhou um espaço importante como dispositivo de narratividade de si, possibilitando que essas mulheres se relacionassem com suas histórias e vivências a partir do lugar de autoras e atrizes. A produção dessas narrativas deflagrou o reconhecimento de um outro lugar, de um lugar visível e passível de reconhecimento. Sendo assim, considerando a relevância de suas escritas, este trabalho de caráter qualitativo e de cunho cartográfico (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2009) produz agenciamentos de análises dos processos de subjetivação baseados na narrativa produzida em diários cartográficos autobiográficos das participantes-autoras envolvidas na pesquisa. Observamos essa operação em trechos escritos por elas:7
A todas as pessoas que vão ler essa história verídica, são fatos real que aconteceu em toda minha vida! [...] Foi onde entra a história da maconha, conhecida pelo nome científica: Cannabis. (Babalu, Diário de Campo).
Os dias fora da casa de acolhimento são dias de liberdade nas ruas. Eu tenho visto muitas pessoas com o mesmo problema de dependência química, mas elas não têm vontade. Eu tenho lutado pra tirar algumas pessoas da rua pra casa de acolhimento, mas é difícil, porque elas não querem mudar. (Ana, Diário de Campo).
Como pesquisa qualitativa de cunho cartográfico, e considerando a natureza do trabalho, cabe salientar o que se busca: a compreensão do fenômeno humano psicossocial e subjetivo por meio de aproximações dos modos de vida produzidos, não tendo a intenção de produzir verdades e/ou afirmações passíveis de reprodução e aplicação em diversas realidades. Assim, discorre-se sobre uma experiência única demarcada por um tempo e espaço, que considera o conhecimento uma coconstrução do saber produzido para a geração de autonomia dos setores mais oprimidos da sociedade (Cruz, 2010).
Para Medrado, Spink e Méllo (2014), o diário se torna atuante no coletivo como uma ferramenta fictícia de suas realidades; assim, narrar suas histórias, desejos, interesses, proibições e seus pensamentos condiz com a possibilidade de dar movimento às suas implicações dentro e fora da Casa. A cartografia é uma proposta que nos auxilia com ferramentas sensíveis aos processos de abertura e conectividade com a vida, com os territórios e com as pessoas (Rolnik, 1989). Para tanto, a partir do diário cartográfico, foi possível pensar, afetar e deixar-nos tocar e refletir sobre o movimento que estava se produzindo por meio dos agenciamentos possíveis. Considerando a plasticidade da escrita, permite-se não apenas o conhecimento dos afetos que perpassam o cartográfico, mas também a afetação e o refletir da leitora/espectadora com a escrita.
Segundo ato: trajetórias de mulheres narradas numa escrita coletiva atuante
A subjetividade é produzida por agenciamentos coletivos, quando, ao mesmo tempo que cada um acolhe componentes de subjetivação das interações sociais, “também os emite, fazendo dessas trocas uma construção coletiva viva” (Mansano, 2009. p. 111). Ao buscarmos nos diários de campo fragmentos da experiência de ser mulher dentro da Casa, reconhecemos contornos mais marcados pelo uso abusivo de drogas. Concomitantemente, também mapeamos que a vivência da sexualidade na instituição é apenas uma das barreiras enfrentadas por elas; os relatos transcendem os muros da instituição e perpassam os modos de vidas produzidos.
Cada uma delas tinha uma história diferente e perdas distintas e, principalmente, davam valores diferentes às perdas. Elas ressignificam essas perdas de modo singular: Babalu pensava em recuperar tudo o que perdeu para as drogas; Macêdo dizia sobre tudo o que a mãe poderia ter e que não tem, por cobrir/pagar pelos prejuízos causados pelo uso abusivo de drogas; Valentina não se importava muito com as perdas e percebia um preço a pagar para manter o uso; Jennifer não ligava muito para essa questão – de todas, ela era a que perdeu o vínculo familiar e há muito não consegue compreender o que é dela, porque tudo vinha de roubos, prostituição e se destinava a apenas ao uso abusivo de drogas. Hoje está grávida, e isso foi importante para a decisão de aceitar o convite de estar na casa (Pesquisadora, Diário de Campo).
Macêdo, uma das usuárias, se encontra em sua terceira passagem pela Casa. Já passou por muitas comunidades terapêuticas. Relata que saiu de duas delas por um único motivo: “eu não vestia saias e vestidos”. Assim que chegava nessas instituições era “convidada” a se desfazer de suas roupas, que, como diziam a ela, “é roupa pra homem, você é mulher”. Ela não se via vestida com “a roupa de mulher” e, em menos de 48 horas, abandonava as instituições. Era oferecido um agenciamento da negação de sua própria identidade de gênero em favor de um modelo estereotipado de ser mulher. Butler (2015) pontua que a diferença entre sexo e gênero corresponde à ideia de que, apesar de biologicamente o sexo conseguir ser definido, o gênero vai muito além das questões físicas e perpass a campos como a individualidade e a produção de subjetividades, que são construídas socialmente e dadas por meio de uma relação de poder, aqui representada pela instituição Casa de Acolhimento na necessidade de controlar os corpos das mulheres internas.
Nesse processo de ajustamento à instituição, o cuidado ofertado é perpassado pelo fomento do modelo de mulher. Macêdo nos contou que era muito difícil estar nessas instituições: “é proibido namoro aqui dentro, sabe? E aí, as outras meninas basta não deixa os cara entrar. Já eu, é vigilância 24 horas. Cheguei perto de uma menina, já começam a pensar coisas [...]” (Pesquisadora, Diário de Campo). A partir do relato de Macêdo, podemos analisar que, na sociedade brasileira, temos dois gêneros (mulher e homem) baseados em dois sexos (fêmea e macho), separados dicotomicamente de acordo com características sexuais primárias (aparelhos reprodutores) e secundárias (pelos, voz, forma do corpo, seios) distintas. Assim, o gênero se dá como uma sofisticada tecnologia social heteronormativa como padrão, operacionalizada pelas instituições linguísticas, domésticas, escolares etc., que produzem constantemente corpos-homens e corpos-mulheres nos quais trajetórias homoafetivas são anuladas (Méllo, 2012; Bourdieu, 1998/2012).
No entanto, algumas mulheres, mesmo contra as regras da instituição, se envolviam amorosamente com outras internas. Há, assim, possibilidades de brechas a esse padrão heteronormativo que tem raiz colonial (Walsh, 2017). Esses relacionamentos, quando descobertos pela coordenação, eram passíveis de punição e até mesmo expulsão da Casa.
Ouvimos sobre a saída das usuárias. Uma delas estava na casa porque se julgava que ela era viciada em sexo. Trancava numa casa com mulheres (sendo essas heterossexuais), mas ela estava privada de vivenciar esse desejo. As colegas relatam que ela usava de masturbação com muita frequência. Porém, em algum momento, não foi suficiente e ela aproveitou a oportunidade e fugiu. Chamou-me a atenção essa usuária se encontrar na Casa, e não ter uso problemático de álcool, crack e outras drogas. Começo a perceber a comunidade terapêutica com outro vieses. As usuárias relatam a proibição das relações sexuais na Casa. Expressões de afetos, beijos, entre outras, são proibidas. Entre as usuárias e entre estas e pessoas externas. (Pesquisadora, Diário de Campo).
A presença de Macêdo, e de outras mulheres que mantinham relação homoafetiva (muitas mulheres tiveram sua primeira relação homoafetiva dentro da casa), escancarava o medo do controle e do não controle dos corpos daquelas mulheres. Era proibido a elas a vivência de qualquer manifestação da sexualidade. Seus companheiros e companheiras, ao visitá-las, não poderiam tocá-las. Macêdo, então, é a possibilidade de fuga do controle dos corpos. Em seu corpo e no seu desejo quem movia era ela; nas relações, ela produzia seus próprios agenciamentos que rompiam com os da instituição. Com intuito de estancar esse movimento de liberdade ao desejo, ela foi convidada novamente a se retirar. Entendemos que havia privações, conflitos e tensões e que as internas, ao discutirem no coletivo e na escrita, traziam à tona seus silenciamentos e gritos de mulheres oprimidas. Esse motivo as unia de alguma forma na casa de acolhimento. O que nos provoca questionamento é pensar em que desejos serão mobilizantes a pulsão de vida dessas mulheres, quando se é proibido desejar.
Terceiro ato: práticas coletivas mobilizadas entre mulheres
A subjetividade oscila entre dois extremos, um da relação de alienação e opressão, que se submete a um modo de vida tal como recebe de fora, e outro numa relação de expressão e criação que se apropria desses componentes e possibilita invenção de novas maneiras de experimentar, perceber e resistir a agenciamentos de poder (Guattari & Rolnik, 1986/2010). Diante dos agenciamentos opressores presentes na instituição e da necessidade de produção de saúde, questionamos: Quais afetos eram oprimidos na estrutura da instituição? E que afetos se produziam a partir desta? Para Mayorga (2014), as práticas em psicologia social precisam tomar como centralidade as questões de gênero, raça e classe, território, entre outros marcadores, pois práticas dissociadas do compromisso ético-político fomentam e fortalecem processos de opressão e invisibilização dos processos de subjetividades. Esses processos de dominação podem, inclusive, romper com as possibilidades de produção de sentido a partir das realidades vividas pelas mulheres.
Dessa forma, é essencial que a psicóloga e o psicólogo social tenham como cerne de suas ações uma postura ético-política que vá ao encontro das estratégias de resistências e libertação (Martín-Baró, 2009). Nesta experiência, tornou-se visível a relevância de perceber os processos de agenciamentos de novas identidades individuais e coletivas a partir dos encontros com essas e junto dessas mulheres
Nesse encontro, construí uma mandala para expor as fotografias do encontro passado. E fizemos o exercício de nos reconhecermos e reconhecer a outra que fotografamos. Embora o espaço de uma semana seja relativamente curto, houve algumas dificuldades para reconhecer as donas de algumas imagens. Discutimos sobre os afetos despertados a partir desse encontro e foi interessante perceber os vínculos e afetos tocados pelas fotografias. (Pesquisadora, Diário de Campo).

Fonte: Arquivo da pesquisa.
Figura 1 Fotografia da oficina “reconhecimento de si e da outra enquanto lugar do comum” realizada com as mulheres do grupo
Em outro encontro, trabalhamos uma oficina com a produção de poesias no grupo. Na escrita da poesia, cada participante foi apresentando uma frase, colocando aquilo que lhe vinha e, assim, o poema se fez. Em suas próprias contradições de existir, encontravam uma rima própria que, mais do que diferenças, apresentava o modo de sentir do grupo. Desse modo, elas reconheceram em si e no grupo a capacidade de declamar e construir poiesis de forma criativa. A partir disso, dialogamos sobre a vida e sobre como as usuárias do grupo sempre se renovam na experiência nova a cada encontro. Nesse encontro, especificamente, foi presente a temática da saudade dos filhos. Compreendemos que, por meio da perspectiva metodológica a que nos aliamos, nos processos grupais a narratividade de si deixa de ser um elemento puramente de conteúdo representacional da história vivida ou catártica da experiência na cartografia. Antes de tudo, emerge a produção de uma narrativa polifônica que ocupa uma atitude ético-política indissociável dos interesses e desejos do coletivo (Passos & Barros, 2015).
Foi importante reconhecermos também as vivências dessas mulheres e não apenas as falas que emergiram a partir das experiências de cada encontro, explorando outros campos de sentido. Dessa forma, propusemos que em uma das oficinas as mulheres pudessem experimentar a fotografia como possibilidade de intervenção. Foi entregue para elas uma máquina de fotografia e formaram-se duplas. Nesse momento, as pesquisadoras também se disponibilizaram a experimentar a oficina com as participantes. Cada uma apontou um detalhe no corpo da outra e fotografou apenas o detalhe. Algumas destacaram marcas de expressão, sinais, olhares, formato das maçãs do rosto, dos pés, tatuagens, entre outros. Um momento de profunda sensibilidade em que o cuidado por meio do olhar emergiu de forma implicada. Elas solicitaram que pudessem ter fotos de todo o corpo, além das que destacavam os detalhes. Sendo assim, montamos uma sessão de fotos, fornecendo acessórios para que se expressassem como quisessem.
Quando estavam maquiadas, oferecemos acessórios, bijuterias, chapéus, óculos, elas trocaram as roupas. E então, quando elas já se sentiam belas, como de fato são, logo começamos a fotografá-las nos diversos ambientes da casa e com poses inusitadas. Naquele instante, todas eram modelos, e as expressões de sexualidade, do feminino, exalaram a cada click. Ao ver o resultado das imagens, elas ficaram surpreendidas, pois não imaginaram serem capazes, e mais, não reconheciam o belo que habitava em cada uma delas. (Pesquisadora, Diário de Campo).
No encontro seguinte, olhamos as fotos que haviam feito e perguntamos a cada uma para quem elas gostariam de enviar uma foto, caso lhes fosse possível. Foi um momento de muita emoção, porque algumas disseram que enviariam para seus companheiros; outras, para o filho. Babalu disse que enviaria para as pesquisadoras e para as outras residentes, porque havíamos transformado a vida dela. Com os nossos encontros, ela dizia saber qual era o seu valor, saber que ela era importante e que ela pode fazer o que quiser.
E era notório que, como coletivo, elas haviam crescido em reconhecimento de si, em autonomia e, principalmente, em autoestima. Elas não eram mais as coitadinhas e/ou as criminosas. Elas eram mulheres que cometeram “erros”, mas que não se findam neles. E era esse lugar que elas reivindicavam, especialmente, à coordenação da casa, que continuava a subjugá-las. Quando olhavam as imagens, reconheciam nelas próprias o belo, o feminino, a sexualidade, a força; e tanto na sua imagem quanto nas das outras, demonstravam a satisfação e o orgulho do que eram. Era como uma resposta ao mundo de que elas podiam ser melhores, e que de fato eram melhores. (Pesquisadora, Diário de Campo).
É perceptível como o processo de reconhecimento de si como pessoa, para além do uso abusivo de álcool e outras drogas, pode produzir novos agenciamentos de subjetividades. Isso nos convoca a refletir sobre o movimento dessas mulheres como atuantes nos seus cotidianos, sobre como os diários e a escuta dessas vozes visibilizaram um não cerceamento de suas implicações dentro e fora da casa de acolhimento. Percebemos no coletivo, e por meio da cartografia, o privilégio do olhar sobre a forma que constitui o movimento, pois é na atenção da processualidade que nosso olhar se volta (Escóssia & Tedesco, 2015), como observamos na fala de uma das usuárias:
Pra elas é difícil passar por todo esse tratamento e ser transformado em uma nova pessoa, pois eu passei por todo esse processo e achei maravilhoso. Hoje eu sou uma nova criatura. Ser uma nova criatura é tudo que eu sempre quis. Ter uma vida nova é tudo de bom. Ter bons amigo, comer tudo de bom, ter boas roupas, ter bons sapatos, ter dinheiro pra compra coisa pro meu dia a dia é muito bom. (Ana, Diário de Campo).
Para Castro & Mayorga (2018), pensar esses cenários de opressão a partir de uma óptica feminista permite a produção de novos modos de vida que reconheçam as desigualdades que as mulheres sofrem a partir dos marcadores de gênero e sexualidade; reconhecendo, assim, que esses marcadores operam formas desiguais que afetam diretamente suas formas de vida e, ao mesmo tempo, também podem funcionar como estratégias de fortalecimento e resistências (Mayorga, 2014). Mesmo nesses contextos de opressão, os marcadores podem facilitar processos de tomada de consciência que podem reverberar em mudanças nas vidas individuais e coletivas dessas pessoas (Góis, 2012). A desnaturalização dos papéis sociais que essas mulheres ocupam nesses cenários permite a reinvenção de novas identidades como ser mulher (Neto & Lima, 2010). Depois do último encontro, resolvemos retornar à instituição e percebemos que o local estava vazio, pois as mulheres haviam saído de forma coletiva da casa. Ouvimos os relatos desse movimento de saída:
Ao me dar conta de que não havia mais grupo, me assustei. Mas não foi uma surpresa, a casa não as acolhia mais. Comida e teto já não eram suficientes para mantê-las no lugar. E algumas regras, para mim, já eram abusivas demais e em algum momento isso iria reverberar na saída delas. (Pesquisadora, Diário de Campo).
Lidar com o uso abusivo de álcool, crack e outras drogas parecia mais fácil para as mulheres do que lidar com as negações de si. Ao aceitarem o tratamento proposto pela instituição, tiveram de abdicar de muitas coisas, negar seus corpos, seus desejos. Logo começaram a questionar os agenciamentos propostos e a investir em outros processos subjetivos. O que lhe era proposto era o isolamento e a entrega de suas necessidades a outros que não elas próprias.
Diante do exposto e vivenciado, o tratamento pela negação de si e do desejo não nos parece eficaz. Não há provas de que o tratamento moralizante seja resolutivo (Cavalcanti et al., 2018). Certamente, desacreditar da capacidade de as pessoas desejarem e vivenciarem por si causa mais adoecimentos e são frequentes as desistências de permanecer na casa. Mediante o que ocorreu, as atividades do grupo também findaram, pois não era nosso desejo continuar na instituição realizando os encontros.
A saída coletiva das mulheres da comunidade terapêutica mostrou ser um acontecimento que, para nossas análises, perpassou o inusitado e o imprevisível daquilo. Mesmo engajadas no grupo de mulheres, extrapolou o que, até então, tínhamos de planejamento. Por outro lado, entendemos essa atitude coletiva como uma apropriação dessas mulheres para se posicionarem e agirem sobre seus interesses e corpos, dando abertura para experiências que agora vazam das proibições do cotidiano na Casa. É no plano comum imanente de enfrentamento da opressão e exploração que os corpos produzem modos de resistências. Esse comum é um movimento, uma passagem; sendo permeado pelo campo micro e macropolítico. Produzem-se, assim, novos modos de vida que defrontam lógicas dominantes (Rolnik, 2018).
Considerações finais
Percebemos que as práticas religiosas de comunidades terapêuticas podem ser ainda mais violentas e repressoras se levarmos em consideração a vivência de mulheres em situação de pobreza e que fazem uso abusivo de álcool, crack e outras drogas. As práticas de cuidado muitas vezes invisibilizam os marcadores identitários de usuárias de drogas. Essa cristalização da identidade dessas mulheres em ambientes institucionais acaba por produzir modos de subjetivação que as desqualificam como pessoas de múltiplas possibilidades de existir. Vimos também que o diário de campo exerceu centralidade durante toda a pesquisa-intervenção de manejo cartográfico, uma vez que a produção de narrativas das mulheres durante os encontros coletivos engendrou análises que radicalizaram o caráter participativo no processo grupal.
Nesse sentido, torna-se relevante produzir práticas psicossociais que dialoguem com essas mulheres e suas experiências com e para além do uso de drogas a fim de que possam reconhecer suas trajetórias de vida, suas potências como pessoas e suas múltiplas formas de expressar sexualidades e gênero. Entendemos também que essas experiências podem fomentar processos de transformação de realidades e produção de novos modos de subjetividade que fortaleçam essas mulheres, não apenas para lidar com o drogadição, mas para a própria vida. Por fim, compreendemos que esta experiência traçada numa pesquisa-intervenção pode ser relevante para psicólogas e psicólogos sociais que atuem com políticas públicas de redução de danos, especialmente com mulheres.