A titularidade de sujeitos de direitos atribuída a crianças e adolescentes pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proclamou a proteção integral e a prioridade absoluta que devem ser asseguradas a fim de promover o pleno desenvolvimento destes (Lei n. 8.069, 1990). Ao legislar sobre as condições a serem asseguradas pelo Estado, pela sociedade e pelos adultos responsáveis em prol do desenvolvimento completo de crianças e adolescentes, o ordenamento estatutário rompeu com o viés caritativo, tutelador e filantrópico predominante nas propostas assistenciais até o século XX (Rizzini & Pilotti, 2011).
Mudanças significativas ocorreram na assistência social voltada para o público infantojuvenil, no que diz respeito às instituições de acolhimento, as quais passaram a ser regidas por parâmetros normatizadores tanto da estrutura física quanto das práticas profissionais e dos propósitos a serem alcançados. Edificado como política social integrante de um Sistema de Garantia de Direitos (SGD), o acolhimento institucional assumiu caráter de medida protetiva, aplicável excepcional e provisoriamente perante a ameaça ou a violação de direitos, até que sejam asseguradas as possibilidades de reintegração familiar ou de encaminhamento para famílias substitutas, por meio da adoção, guarda ou tutela (Lei n. 8.069, 1990; Lei n. 12.010, 2009).
A permanência de crianças e adolescentes sob medida protetiva de acolhimento institucional passou a requerer o cumprimento de objetivos pedagógicos, de modo a representar ganhos para a autonomia e para a construção de projetos de vida. A autonomia envolve o exercício de escolha, a conquista de maiores possibilidades de independência pessoal e a superação das contingências impeditivas do protagonismo, o que, segundo a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/Suas, 2005), só se concretiza quando amparada por provisões estatais, proteção social pública e direitos assegurados.
A promoção da autonomia é prevista nas Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (2009, p. 52), ao definirem que o projeto político-pedagógico das instituições deve contemplar “o fortalecimento de habilidades, aptidões, capacidades e competências das crianças e adolescentes”, assim como o incremento da apropriação de sua história e da “elaboração de projetos que versem sobre sua trajetória futura”. Tal objetivo é também enfatizado na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais para Serviços da Proteção Social Especial em Alta Complexidade (2014). O projeto de vida, por sua vez, corresponde a uma construção singular que se dá a partir das relações estabelecidas e das possibilidades concretas de vida, sendo a partir dele que os sujeitos constroem e atribuem sentido à própria vida, passando a orientá-la a partir de um plano de ação (Mandelli, Soares, & Lisboa, 2011; Pessoa, 2017).
Para a psicologia histórico-cultural, o ambiente em que crianças e adolescentes estão inseridos funciona como fonte de desenvolvimento, de tal modo que acessar atividades condizentes com as forças motrizes que guiam e potencializam o desenvolvimento em cada etapa da vida é imprescindível, na medida em que se reflete nas possibilidades de construção de projetos de vida. As condições materiais vivenciadas pelos sujeitos mobilizam a formação do psiquismo e da singularidade de cada pessoa, determinando o curso do desenvolvimento (Pasqualini, 2016; Vigotski, 2017).
Para Martins, Abrantes e Facci (2016), o desenvolvimento integral ou omnilateral ocorre diante de condições concretas que possibilitam a formação de uma pessoa de pensamentos, sentimentos e práxis, ou seja, que tenha autonomia intelectual para analisar a realidade e as contradições sociais com senso de justiça e prontidão para opor-se à dominação e à opressão.
Partindo desse entendimento, pode-se arguir que o período sob acolhimento reflete ganhos ou perdas para crianças e adolescentes, a depender de como o desenvolvimento integral, preceituado no ECA, é operacionalizado. Na tentativa de avaliar os avanços advindos com o paradigma protetivo estatutário e as permanências de uma arraigada cultura tuteladora e assistencialista, autores como Leal e Carvalho (2017), Moraes Martinez e Soares-Silva (2008) e Silva (2010) têm se voltado para o público de adolescentes e jovens com trajetórias de institucionalização, investigando como acontecem a preparação para a maioridade, o desligamento e a orientação de projetos de vida.
Já Cassarino-Perez (2018), Moreira (2013) e Hoffmann (2008) têm investigado as iniciativas em torno da qualificação profissional e do processo de transição entre o acolhimento institucional e a vida adulta para esse público. Esses estudos constataram que, por ser concebido a partir do princípio da provisoriedade, o trabalho desenvolvido nas instituições de acolhimento não reflete a preocupação com aqueles que lá permanecem por longos anos, inviabilizando o fortalecimento da autonomia e a preparação de projetos de vida. Romanelli (2013) alerta que a adoção de nomenclaturas afinadas com a defesa e promoção de direitos e a emancipação em programas de políticas públicas assume mais um valor discursivo, não sendo por si só suficiente para efetivar propostas que resultem na autonomia de crianças e adolescentes com trajetórias institucionais.
Para Cassarino-Perez (2018), o favorecimento da autonomia dos acolhidos se torna possível quando estes deixam de ser meros usuários do serviço de acolhimento e são situados como protagonistas de suas próprias histórias. Para além da proteção, os serviços devem ser qualificados para trabalhar com questões ligadas à moradia, atividades cotidianas, estudos, preparação para o trabalho, relacionamentos interpessoais, vivência comunitária e projeto de vida. A escassez de investimento nessas áreas pode resultar em desvantagens para as trajetórias de vida dos acolhidos e dependência das políticas socioassistenciais.
Passadas três décadas desde a promulgação do ECA, o qual representa um marco legal e regulatório dos direitos humanos de crianças e adolescentes, questiona-se: a que se referem a autonomia e o projeto de vida nas instituições de acolhimento? Que iniciativas têm sido realizadas em prol da autonomia e do projeto de vida de crianças e adolescentes institucionalizados? Que lugar a temática da autonomia e do projeto de vida em instituições de acolhimento tem ocupado na produção científica brasileira? Na tentativa de encontrar apontamentos para essas questões, este artigo teve como objetivo realizar uma revisão sistemática da produção científica brasileira sobre as temáticas da autonomia e do projeto de vida em instituições de acolhimento para crianças e adolescentes.
Método
Realizou-se revisão sistemática de literatura pautada nas seguintes etapas: a) elaboração de uma questão de pesquisa que orientou a estratégia de busca: “A que se referem a autonomia e o projeto de vida nas instituições de acolhimento para crianças e adolescentes?”; b) pesquisa das terminologias e palavras-chave na Biblioteca Virtual de Psicologia (BVS-Psi); c) definição dos critérios de inclusão e exclusão; d) escolha de bases de dados para pesquisa; e e) sistematização dos resultados das produções selecionadas.
Na pesquisa das terminologias em psicologia que compuseram a investigação, foram identificados os termos abrigo, institucionalização, autonomia e projeto de vida, como indexados na BVS-Psi (www.bvs-psi.org.br), cujas notas explicativas acerca das terminologias reportam a: a) abrigo: “instituição-abrigo. Podem ser abrigados tanto por abandono ou orfandade como por medida de proteção em decorrência de situações de risco”; b) institucionalização: “paciente infantil que está recebendo serviços de longa duração ou que reside em um ambiente institucional”, cujo termo relacionado é “criança institucionalizada”; c) autonomia: “a totalidade do indivíduo, consistindo de todos os atributos característicos, conscientes e inconscientes, mentais e físicos. Além de sua referência básica a identidade pessoal, ser e experiência” e d) projeto de vida: “modo de vida típico ou costumes de vida característicos de um indivíduo ou grupo”.
A fim de ampliar a busca, além dessas terminologias indexadas na BVS-Psi, foram incorporadas na investigação palavras-chave amplamente utilizadas nas produções científicas acerca da temática em estudo, a saber: acolhimento institucional, instituição de acolhimento, sistema de proteção, política de acolhimento e política de acolhimento institucional.
Definidas as terminologias e palavras-chave para busca da produção científica, elegeram-se como critérios de inclusão dos artigos: a) estar disponível na íntegra na base de dados na modalidade de artigo científico; b) revisado por pares; c) referente a instituições de acolhimento para crianças e/ou adolescentes; e d) abordassem a temática da autonomia e/ou do projeto de vida. Os critérios de exclusão foram: a) artigos não indexados, livros, capítulos de livros, monografias, dissertações, teses, resenhas, cartas, obituários, resumos, atas de congressos e notícias; b) indisponíveis na íntegra; c) redigidos em outros idiomas, distintos da língua portuguesa; d) com temática não relacionada à autonomia e/ou projeto de vida em instituições de acolhimento; e f) repetidos.
A revisão sistemática foi conduzida no mês de abril de 2019, inspirada nas diretrizes do protocolo PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses), a partir das etapas de identificação, seleção, elegibilidade e inclusão (Liberati et al., 2009). Na etapa de identificação, realizaram-se buscas nas bases de dados da Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), do Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), do Scientific Electronic Library Online (SciELO) e do Periódicos Capes. Optou-se por essas bases de dados por oferecerem acesso gratuito ao texto completo no meio eletrônico.
Em cada uma das bases de dados, foi utilizada a combinação entre o termo autonomia e um dos sete termos referentes a instituições de acolhimento, a saber: abrigo, institucionalização, acolhimento institucional, instituição de acolhimento, sistema de proteção, política de acolhimento institucional, política de acolhimento. De forma semelhante, foi empregada a combinação do termo projeto de vida com cada um desses sete termos, fazendo-se o uso do operador booleano “AND” a cada combinação. As buscas foram realizadas considerando todos os campos (título, resumo, assunto etc.) e não se fez restrição ao ano de publicação, a fim de evitar que algum artigo fosse excluído no levantamento.
Na etapa de seleção, todos os artigos identificados pela combinação dos termos foram submetidos, primeiramente, a uma análise dos títulos. Identificados aqueles relacionados à temática, procedeu-se a um cruzamento entre as bases de dados a fim de identificar e excluir os artigos repetidos. Na etapa de elegibilidade, foram selecionados os artigos para leitura na íntegra, excluindo-se aqueles que não atendiam a todos os critérios de inclusão, notadamente no que tange a abordar o assunto da autonomia e/ou do projeto de vida em instituições de acolhimento para crianças e/ou adolescentes. Por fim, na etapa da inclusão, foram analisados os artigos que atendiam a todos os critérios elencados.
Resultados e discussão
Na etapa de identificação, as buscas nas bases de dados geraram ao todo 6.212 artigos, mas a maior parte não se relacionava à temática da autonomia e/ou do projeto de vida em instituições de acolhimento para crianças e/ou adolescentes. Desse modo, na etapa de seleção, 6.091 artigos foram excluídos após a leitura dos títulos, a maioria pertinente a processos de institucionalização de idosos e de práticas na área da saúde. Os 121 artigos restantes foram submetidos a um cruzamento entre as bases de dados para identificação de artigos repetidos, sendo excluídos 88, majoritariamente do Portal de Periódicos da Capes, o qual apresentou tanto artigos repetidos entre as combinações dos termos de busca quanto, em menor quantidade, artigos já identificados em outras bases.
Na etapa da elegibilidade, os 33 artigos remanescentes foram lidos na íntegra e, por intermédio da aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, apenas seis foram considerados aptos para a fase de extração dos dados e análise, notadamente por satisfazerem o critério de abordagem da temática da autonomia e/ou do projeto de vida em instituições de acolhimento. A Figura 1 ilustra o fluxograma com as etapas de identificação, seleção, elegibilidade e inclusão dos artigos.
Os demais artigos excluídos na etapa da elegibilidade (n = 27), apesar de tratarem da temática do acolhimento institucional para crianças e/ou adolescentes, reportavam a outros objetivos, tais como: a caracterização de serviços de acolhimento e de experiências profissionais; avaliações do trabalho de profissionais; tinham foco a família da criança e/ou adolescente institucionalizado; tratavam de adoção, reintegração familiar, abandono e família acolhedora, não se referindo à autonomia e/ou ao projeto de vida.
Ao fim desse processo, os títulos dos seis artigos selecionados para análise na íntegra foram inseridos em todas as bases de dados elencadas (Lilacs, PePSIC, SciELO e Periódicos Capes), a fim de identificar os que constavam em mais de uma base de dados, tendo sido excluídos por estarem repetidos. Constatou-se que dos cinco artigos selecionados para análise na Lilacs dois lhe eram exclusivos (Figueiró & Campos, 2013; Luvizaro & Galheigo, 2011), um constava também no Periódicos Capes (Lopes et al., 2016) e dois constavam no Periódicos Capes e no SciELO (Poker, 2017; Uziel & Berzins, 2012). O artigo selecionado para análise no PePSIC constava também no Periódicos Capes (Nascimento, Lacaz, & Alvarenga, 2010).
Caracterização dos artigos revisados
Durante a análise dos seis artigos selecionados, procedeu-se à extração das principais características, as quais se encontram listadas no Quadro 1, no intuito de sistematizar as informações quanto ao ano de publicação, autoria, objetivo, metodologia empregada e amostra.
Quadro 1 Características dos artigos
Autoria/Ano | Objetivo | Metodologia | Amostra |
---|---|---|---|
Nascimento, Lacaz e Alvarenga (2010) | Analisar as diferentes subjetividades que perpassam os diversos discursos dos especialistas que trabalham ou trabalharam em abrigos para crianças e adolescentes | Pesquisa-intervenção e entrevista aberta | Profissionais (amostra não informada) |
Luvizaro e Galheigo (2011) | Apresentar uma reflexão crítica, de caráter histórico e conceitual, na tentativa de se construir um olhar múltiplo e complexo sobre o cotidiano e o habitar de crianças e adolescentes em acolhimento institucional | Revisão de literatura | Sem amostra |
Uziel e Berzins (2012) | Refletir sobre direitos sexuais, adolescência e autonomia | Diário de campo; anotações dos grupos e entrevistas individuais | 11 adolescentes acolhidas |
Figueiró e Campos (2013) | Identificar o papel da rede de acolhimento institucional no que diz respeito à preparação e à orientação do jovem para a vida pós-desligamento obrigatório devido à maioridade. | Estudo de caso; entrevistas abertas; visitas exploratórias; leitura de documentações e notas de campo | Um jovem egresso |
Lopes, Boesman, Lopes, Monte, Pinheiro e Cordeiro (2016) | Apresentar a atividade de extensão do projeto liga de cores e as discussões por ele suscitadas. | Pesquisa intervenção | 25 crianças |
Poker (2017). | Entender as possibilidades de superação e de ganho de autonomia diante do estigma social do abandono de uma pessoa que necessitou no período da infância e adolescência ser acolhida. | Estudo de caso e entrevista de história de vida | Uma jovem egressa |
Fonte: Elaboração própria.
Quanto ao ano de publicação, os artigos analisados situam-se no intervalo entre 2010 e 2017, ou seja, após duas décadas da promulgação do ECA. Esse intervalo temporal corresponde ao que foi encontrado acerca da temática, considerando os critérios de pesquisa empregados, que, como mencionado no método, não fez restrição à data de publicação. A exígua produção sobre a temática e o período relativamente recente de publicação evidenciam a pouca discussão acerca da autonomia e do projeto de vida em instituições de acolhimento, sendo possivelmente refletido na qualidade das produções.
Os artigos foram escritos por 16 autores, cuja formação acadêmica, à época da publicação, concentrava-se nas áreas de psicologia, ciências sociais, educação e terapia ocupacional. Quanto à titulação, seis autores eram doutores nas áreas de psicologia/psicologia social/ psicologia escolar (n = 3), ciências sociais (n = 2) e educação (n = 1); seis eram mestres em psicologia/psicologia cognitiva (n = 5) e educação (n = 1); dois eram mestrandos em psicologia e dois eram graduados em psicologia (n = 1) e terapia ocupacional (n = 1).
As áreas de concentração dos periódicos são predominantemente em psicologia (n=4), havendo duas produções interdisciplinares, uma relacionada à psicologia e outra à terapia ocupacional. Apesar de o maior agrupamento da produção ser na área da psicologia, no geral, não foi explicitado pelos autores a adoção de uma teoria própria desse campo epistemológico para subsidiar as pesquisas e discussões, de modo que em apenas dois artigos identificou-se a referência à Teoria da Identidade e à análise do discurso, não derivadas especificamente da psicologia. Os demais referenciavam o ECA, assim como autores de dissertação de mestrado e de artigos científicos que têm se debruçado em investigar o acolhimento institucional, mas que não formularam uma teoria específica a partir desses estudos.
Instrumentos normativos como a NOB/Suas (2005) e as Orientações Técnicas (2009), embora divulgados antes da publicação dos artigos analisados, não foram incorporados nas discussões, sendo as Orientações Técnicas (2009) citada apenas na introdução do artigo de Figueiró e Campos (2013). Tais normativas, somadas à Tipificação Nacional (2014), poderiam fundamentar o debate em torno da autonomia e do projeto de vida, tendo em vista que orientam quanto à segurança na garantia de condições favoráveis ao processo de desenvolvimento da criança e do adolescente institucionalizado, versando especificamente sobre a autonomia individual, familiar e social, mediante o desenvolvimento de capacidades para autocuidados e a construção de projetos de vida.
Além da ausência de uma teoria que subsidie a discussão dos dados, como observado nos estudos de Figueiró e Campos (2013), Lopes et al. (2016), Luzivaro e Galheigo (2011), Uziel e Berzins (2012), outros fatores de impacto na qualidade das produções são observados no estudo de Nascimento et al. (2010), que não explicita a quantidade de profissionais entrevistados nem o modo como estes foram selecionados para participar das entrevistas.
Já no estudo de Lopes et al. (2016), cuja intervenção ocorreu entre os anos de 2013 e 2014, o lócus de realização do estudo é situado como sendo um abrigo com capacidade para 80 crianças entre zero e 12 anos, o que está em desacordo com as normativas para funcionamento do serviço de acolhimento. Nesse sentido, as Orientações Técnicas (2009) e a Tipificação Nacional (2014) regulamentam que o acolhimento na modalidade de casa-lar deve comportar no máximo 10 crianças e/ou adolescentes, enquanto o tipo abrigo comporta grupos de até 20 acolhidos. Os modelos assistenciais com grande quantidade de acolhidos remetem ao atendimento massificado e higienista que antecedeu a doutrina do ECA (Rizzini & Pilotti, 2011), de modo que seria prudente que Lopes et al. (2016) evidenciassem esse descompasso, deixando claro ao leitor as circunstâncias envolvidas no abrigo em que empreenderam a pesquisa.
Em relação às características metodológicas dos estudos, todos os artigos adotaram o delineamento qualitativo, utilizando instrumentos e técnicas de coleta de dados variados, tais como o estudo de caso, a história de vida, o diário de campo, entrevistas abertas e a pesquisa-intervenção, tendo cada estudo feito uso da combinação dessas ferramentas, à exceção de um artigo de revisão de literatura, de autoria de Luvizaro e Galheigo (2011). As amostras variaram entre um participante, nos estudos de caso, até 25 participantes, entre adolescentes, jovens egressos dos serviços de acolhimento e profissionais.
Os três artigos que identificam o estado em que o estudo foi realizado referem-se às regiões do Nordeste e do Sudeste e outros três que não mencionam, possivelmente, optam por resguardar a identidade dos profissionais ou dos serviços nos quais se empreenderam os estudos. Quanto à qualidade da produção científica, conforme o Qualis da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) mais atual e disponível na Plataforma Sucupira, que reporta ao Quadriênio 2013-2016, a avaliação dos periódicos em sua versão on-line variou entre os estratos A2 e B4, com apenas um na versão impressa.
Acerca dos objetivos tracejados, o construto da autonomia foi evidenciado em dois dos estudos (Poker, 2017; Uziel & Berzins, 2012), sendo abordado pelos demais artigos em suas discussões (Figueiró & Campos, 2013; Lopes et al., 2016; Luzivaro & Galheigo, 2011; Nascimento et al., 2010). Já o projeto de vida, embora mencionado comumente em associação com a autonomia, não foi enfatizado como construto teórico específico.
Concepções sobre autonomia e projeto de vida em instituições de acolhimento
A intenção de compreender como pode ser promovida a autonomia de crianças e/ou adolescentes durante a experiência de institucionalização é a tônica dos estudos analisados, ainda que seja constatada maior ênfase aos determinantes que a inviabilizam. Já a referência ao projeto de vida é menos evidenciada, surgindo por vezes como resultado ou parte do trabalho em prol da autonomia.
O fortalecimento da autonomia e o favorecimento para a construção de projetos de vida durante a experiência de institucionalização são apontados como desafios permanentes dos serviços socioassistenciais, pois há uma arraigada cultura assistencialista e tuteladora que permeia o imaginário e as práticas profissionais. A atenção ao trabalho em torno desses construtos desponta nos discursos dos profissionais (Nascimento et al., 2010) e, sobretudo, quando se discutem casos de adolescentes na iminência do desligamento devido à maioridade (Figueiró & Campos, 2013; Poker, 2017).
Quanto às definições assumidas para autonomia, evidencia-se o entendimento de que se trata de um construto processual e influenciado pelas mediações do contexto, o que requer condições que favoreçam o desenvolvimento integral, tais como experiências voltadas para o autocuidado, a construção de projetos de vida e o empoderamento, além do reconhecimento e da valorização das histórias de vida, atentando-se para os percursos singulares de cada sujeito quanto ao que lhe foi oferecido ao longo do desenvolvimento (Lopes et al., 2016; Luzivaro & Galheigo, 2011; Nascimento et al., 2010; Uziel & Berzins, 2012).
Tal entendimento aproxima-se da ênfase feita por Pasqualini (2016) e Vigotski (2017), no que se refere aos diferentes percursos do desenvolvimento do indivíduo. Para esses autores, são as circunstâncias histórico-sociais em que se processa o desenvolvimento, as condições específicas disponibilizadas no ambiente, bem como o conteúdo e a qualidade das mediações, que viabilizam – ou não – o desenvolvimento integral (Martins et al., 2016). Pessoa (2017) também ratifica que a construção do projeto de vida está vinculada àquilo que é palpável ao longo do desenvolvimento.
Poker (2017), por sua vez, destaca que a processualidade e a dinamicidade são constituintes tanto da autonomia quanto do projeto de vida, os quais estão intimamente relacionados à subjetividade e às experiências coletivas dos sujeitos. Essa ideia do projeto de vida como movimento processual é também discutida por Mandelli et al. (2011), cujo entendimento é que ele implica um movimento através do tempo, mediante as relações estabelecidas pelo sujeito com sua trajetória de vida, na qual se constrói um futuro desejado, nos limites da realidade socioeconômica e do contexto de inserção.
Quando associada exclusivamente a um trabalho a ser desenvolvido com adolescentes com idade próxima à maioridade e com longa trajetória institucional, observa-se uma ênfase na promoção da autonomia condicionada a experiências de profissionalização que viabilizem a independência financeira (Uziel & Berzins, 2012), algo observado também nos estudos de Hoffmann (2008), Moreira (2013) e Silva (2010). Essas iniciativas são valorizadas, ainda que se realizem em detrimento dos anseios particulares do jovem quanto ao seu ideal de projeto de vida (Figueiró & Campos, 2013), tendo em vista as demandas que o desligamento representa para a gerência da própria vida (Nascimento et al., 2010).
Nesses casos, pode-se perder o caráter de processualidade que envolve recursos psíquicos, pedagógicos e sociais, os quais estão significativamente associados a “hábitos da vida cotidiana do jovem dentro da instituição, à construção de pessoas mais ativas e conscientes do processo ao qual estão submetidos e ao incentivo do senso crítico” (Figueiró & Campos, 2013, p. 119). Por consequência, a autonomia pode restringir-se à busca por alcançar um modelo rigidamente predefinido e os projetos de vida podem ser direcionados, nas instituições de acolhimento, de modo massificado e sem que se consiga singularizar as diversas formas de ser e estar no mundo (Uziel & Berzins, 2012).
Em desafio à importância que é dada à autonomia e ao projeto de vida de crianças e, sobretudo, de adolescentes durante o período de institucionalização, os artigos analisados focalizam nos impedimentos ao alcance desses construtos. Poker (2017), por exemplo, cita o ofuscamento da participação ativa dos acolhidos nas decisões sobre a vida deles, tendo em vista o despreparo das equipes profissionais no atendimento às demandas não materiais, à pobreza simbólica, à culpabilização dos sujeitos, bem como à escassez de relações de afeto. Lopes et al. (2016), cujo estudo esteve vinculado ao registro de histórias de vida, identificaram a manutenção de práticas assistencialistas e tuteladoras, a inviabilização da subjetividade e a ausência de práticas institucionais de registro e valorização das histórias de vida dos acolhidos.
Outras situações de impedimento à promoção da autonomia são apontadas por Figueiró e Campos (2013), que identificam a proibição dos acolhidos de saírem da instituição sem a companhia de educadores, o trabalho para autonomia restrito à preparação profissional e práticas de supervisão e tutela. Além disso, verificou-se a ausência de um trabalho de preparação para o desligamento, posto que este ocorria em meio a um apoio social fragilizado e com ausência de orientação para a construção de projetos de vida facilitadores do início da vida adulta. A rigidez e a massificação da rotina institucional e do cuidado perpassam a discussão presente nos estudos de Figueiró e Campos (2013), Lopes et al. (2016), Nascimento et al. (2010) e Poker (2017).
Alguns indicativos de como promover a autonomia são apontados por Luzivaro e Galheigo (2011, p. 196), os quais preceituam que crianças e adolescentes devem não apenas ocupar o espaço institucional, mas habitá-lo, ou seja, participar ativamente “na organização material e simbólica do espaço e do cotidiano”. São nas demandas do cotidiano que, para Nascimento et al. (2010), as instituições de acolhimento resguardam o potencial de criação de práticas de autonomia. Atividades como a guarda dos pertences pessoais, responsabilidade pelas escolhas e gerência do tempo constituem um exercício que incide nos processos de subjetivação, pois rompem com a ideia de que esses sujeitos não são qualificados para conduzir a própria vida, o que se aproxima dos apontamentos feitos por Cassarino-Perez (2018) ao estudar o modo como ocorre o processo de transição entre o acolhimento institucional e a vida adulta.
Observa-se que os apontamentos de Luzivaro e Galheigo (2011) e Nascimento et al. (2010), quanto aos fatores que podem favorecer a autonomia e a construção de projetos de vida, são os mesmo que, pela sistematicidade com que são violados, as têm impedido. Tal constatação também tem sido discutida em outros estudos, tais como Leal e Carvalho (2017), Romanelli (2013), Hoffmann (2008) e Moraes Martinez e Soares-Silva (2008). Esses autores identificam que o estigma da tutela, a rigidez das normas, a hierarquização das relações, o ambiente empobrecido, a autonomia como sinônimo de inserção em experiências de profissionalização e a não valorização das habilidades e interesses dos acolhidos repercutem na forma como o acolhimento é posto em exercício. No cerne desses aspectos, está a dificuldade de se trabalhar a partir de um construto abstrato e não mensurável, como a autonomia (Cassarino-Perez, 2018). Tais características muito se distanciam da proposta protetiva que prima pelo desenvolvimento integral, conforme preceituada na Lei n. 8069/1990 e na Lei n. 12.010/2009.
Considerações finais
Tendo em vista o objetivo de realizar uma revisão sistemática da produção científica brasileira sobre as temáticas da autonomia e do projeto de vida em instituições de acolhimento para crianças e adolescentes, constatou-se que nas três décadas depois da implementação do ECA há uma baixa produção científica acerca da temática. Essa baixa produção é confirmada pela identificação de apenas seis artigos, ainda que tenham sido empregadas um total de 14 combinações de terminologias e palavras-chave e não se tenha feito qualquer restrição à data de publicação, conforme explicitado no tópico sobre as estratégias de busca e as bases de dados consultadas.
Destaca-se que a identificação de poucos artigos também aponta para os limites deste estudo, na medida em que, por ter sido pesquisada a produção brasileira, inviabilizou-se a investigação de práticas e/ou resultados de iniciativas reportadas na literatura internacional. A pesquisa a partir de materiais em formato de monografias, dissertações e teses pode ampliar os resultados em torno da especificidade da temática elencada.
Quanto aos termos autonomia e projeto de vida, constatou-se a imprecisão e inconsistência teórico-conceitual como são compreendidos e tratados, assim como operacionalizados durante o período de institucionalização. Além disso, por ser debatido com mais ênfase em casos da iminência do desligamento devido à maioridade, ofusca-se o caráter processual de tais construtos, sendo fortemente associados a ações pontuais, descontínuas e focalizadas. Exemplo disso é a concretude que o construto da autonomia assume como sinônimo ou estando dependente de iniciativas como a qualificação profissional ou a inserção no mercado de trabalho. Já o projeto de vida tem menos notoriedade como construto específico, sendo fortemente associado ao trabalho em prol do desenvolvimento da autonomia.
Perante os limites dos resultados encontrados, sugere-se a realização de estudos futuros que abordem intervenções específicas quanto à autonomia e ao projeto de vida, focados no contexto institucional e que, em âmbito nacional, avaliem os avanços e/ou retrocessos depois do advento do ECA, considerando cenários mais amplos das regiões brasileiras. Somado a isso, a pesquisa de literatura internacional sobre a temática pode enriquecer o debate e colaborar para a formulação de uma política de acolhimento mais eficiente, efetiva e eficaz, que represente ganhos à população infantojuvenil e que faça jus à proposta de medida protetiva.
Colocar em evidência as instituições de acolhimento como local em que as crianças e adolescentes podem construir referenciais positivos e se desenvolver como sujeitos de direitos aponta para um posicionamento político de luta pela efetivação de direitos já positivados em lei. Considera-se que o exercício e o fortalecimento da autonomia e da construção de projetos de vida podem ser um caminho para solidificar a proposta de proteção dos direitos e da garantia do desenvolvimento integral das crianças e adolescentes que subsidia a política de acolhimento institucional.
Retomando os preceitos vigotskianos acerca da importância do ambiente como fonte de desenvolvimento, destacar o acolhimento institucional como contexto de vida de muitas crianças e adolescentes demarca esse cenário como lócus de investimento inesgotável em termos materiais e imateriais. Na medida em que é estruturado como política socioassistencial, que visa cessar a ameaça e/ou violação de direitos ao público infantojuvenil, o Estado deve ser competente para cumprir o compromisso legal que o rege: a proteção e o desenvolvimento integral com vias à construção da autonomia e de projetos de vida de suas crianças e adolescentes.