As produções teóricas do campo da saúde mental indicam que têm sido realizados debates e pesquisas que procuram articular gênero e saúde mental. Observamos, todavia, diferentes paradigmas orientando as investigações. Nesse sentido, o trabalho de Rosa e Onocko-Campos (2012) buscou compreender como tem sido feita essa articulação, apontando que uma das principais tendências são as pesquisas epidemiológicas, as quais têm investigado diferenças entre homens e mulheres na incidência, prevalência, curso, apresentação sintomática e prognóstico dos chamados transtornos mentais. Tais pesquisas encontram-se aderentes a um paradigma hegemônico do saber psiquiátrico sobre os processos de saúde/transtorno mental.
As pesquisas epidemiológicas apontam maior prevalência de transtornos do humor, ansiosos e somatoformes, bem como de transtornos mentais comuns (TMC) entre mulheres, enquanto os homens apresentam maior prevalência de transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas (Santos & Siqueira, 2010; Zanello, 2015). As diferenças entre os dois grupos são explicadas principalmente por fatores biológicos, relacionados aos hormônios; psicológicos, na medida em que as mulheres perceberiam mais facilmente os sintomas; e culturais, uma vez que as mulheres se preocupam mais com a saúde do que os homens e, por consequência, procuram com mais frequência ajuda especializada e são, portanto, mais diagnosticadas (Santos & Siqueira, 2010).
No entanto, como aponta Zanello (2018), é preciso refletir até que ponto os sintomas elencados para caracterizar um ou outro transtorno não estão favorecendo seu diagnóstico em determinados grupos. Existem expectativas em relação às mulheres e aos homens que influenciam tanto aquilo que aparece nas narrativas de cada grupo como aquilo que será visto com mais cuidado pelo profissional. Além disso, Cohen (2016), ao partir de uma abordagem marxista para pensar a saúde mental, critica os conhecimentos produzidos pela chamada psiquiatria hegemônica, que tem contribuído para a produção de conhecimentos normativos e que colaboram para processos de medicalização da vida social, necessários para a manutenção do modo de produção capitalista. Em relação às mulheres, Zanello (2018), bem como o autor anteriormente mencionado, salienta que a história da psiquiatria se centrou, em grande parte, no estudo da “loucura” da mulher, apresentando-se como produção intelectual de psiquiatras homens sobre as narrativas e o sofrimento das mulheres. Nesse sentido, o conhecimento produzido sobre as mulheres, conforme esse modelo hegemônico, tem contribuído para o reforço de ideologias patriarcais e, consequentemente, para a naturalização de determinadas características (leia-se sintomas) tidas como exclusivamente femininas.
A violência contra a mulher é de especial interesse para o campo da saúde mental devido à associação entre a experiência de violência e o surgimento de diversos transtornos mentais, como depressão, transtorno de estresse pós-traumático e transtornos ansiosos (Santos et al., 2017; Zanello, 2018), além da associação com estados emocionais como tristeza, rebaixamento da autoestima, labilidade, sentimentos e pensamentos persecutórios, auto e heteroagressividade (Barbosa, Dimenstein, & Leite, 2014) e aumento do uso de tranquilizantes e antidepressivos (Ludermir, 2008).
Os estudos sobre violência contra as mulheres normalmente utilizam uma categorização da violência, que pode ser classificada como física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, e apontam que frequentemente ocorrem de forma associada (Silva & Oliveira, 2014; Cisne & Santos, 2018). No entanto, no presente trabalho, não utilizaremos essas classificações, pois partiremos de uma concepção relacional do fenômeno da violência, tomando-a como um ato de objetificação do outro. Assim, as relações violentas se manifestam de formas imediatamente identificáveis (agressões, xingamentos, ameaças, estupro) ou de maneiras mais veladas (silenciamento e dominação). Entendemos que relações violentas se dão sempre que uma das partes for considerada mero objeto da ação da outra parte (Saffioti, 1997).
Nessa direção, autoras como Saffioti (2011), Cisne (2014) e Federici (2017) afirmam que se constituiu, historicamente, uma estrutura de relações hierárquicas entre homens e mulheres na qual as mulheres são desvalorizadas socialmente, enquanto atribui-se poder aos homens, os quais gozam de privilégios e primazia. A hierarquia entre homens e mulheres e a desvalorização destas se expressam em diferentes âmbitos da vida social.
Além disso, autoras como Gonzales (1984) e Davis (2016) consideram que é necessário analisarmos o lugar das mulheres em nossa sociedade tendo em vista a dimensão racial que interpela as experiências de violências e opressões vivenciadas, de maneira particular por mulheres negras. Segundo Gonzales (1984), o racismo e o sexismo se articulam e produzem violências que são socialmente naturalizadas e se expressam no cotidiano das relações sociais em nosso país. Essa condição, portanto, estrutura as relações sociais e produz efeitos particulares nos processos de subjetivação de mulheres negras em nossa realidade.
Ainda em relação à violência, Saffioti (2002) considera que é importante compreendermos os partícipes de uma relação, mediada pela violência, como sujeitos. Isso contribui para escaparmos de uma visão estática e simplista que reduz o fenômeno da violência a agressor e vítima. Como aponta a autora, se por um lado, no geral, as mulheres não medem forças com os homens, por outro se vingam ou reagem de formas mais encobertas. Nesse sentido, por mais que uma das partes da relação seja intensamente reificada pela outra, esta não perde sua característica fundamental de sujeito. A compreensão de que se trata de dois sujeitos permite capturar as contradições inerentes às relações e garante a possibilidade de transformação da relação, conforme desejo e ação das duas partes.
Essa perspectiva nos permite ampliar o reconhecimento de como se estabelecem diferentes tipos de relações violentas com as mulheres, de tal forma que diferentes sujeitos podem considerá-la objeto: seu companheiro, seu filho, sua mãe, sua patroa, uma instituição, uma política pública. Em consonância com essa perspectiva, trabalharemos a violência contra a mulher tomando como referência o conceito de violência de gênero, de Saffioti (2001), que o caracteriza como uso da violência para garantir obediência das mulheres aos mandos e desejos de um homem ou para garantir a manutenção da estrutura que os privilegia, ainda que tal ação venha a ser efetivada por uma mulher. A essa estrutura, chamaremos de patriarcado, o qual pode ser definido como “o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens” (Saffioti, 2001, p. 44). Como aponta Arruza (2015), esse conceito evidencia que o conjunto de relações desiguais e opressivas entre homens e mulheres é um fenômeno não esporádico e não redutível às relações interpessoais. Cumpre assinalar que o patriarcado, o qual estrutura as relações sociais, tende a gerar efeitos violentos em outros sujeitos que se identificam com o que é pejorativamente tido como o “sexo feminino”: travestis e mulheres transexuais por exemplo. Portanto, diz respeito a uma construção social que desvaloriza e busca legitimar posições subalternas e subservientes às mulheres e aquelas/aqueles com elas identificados.
Nesse cenário, a saúde mental das mulheres, conforme mencionado, tem sido compreendida sob os marcos do paradigma biomédico e da psiquiatria hegemônica (Burstow, 2019) e, portanto, as explicações no tocante ao surgimento de transtornos, bem como os tratamentos ofertados, têm sido orientados a partir de marcos de seu ciclo reprodutivo (Cohen, 2016; Barbosa et al., 2014; Medeiros & Zanello, 2018; Santos, 2009). Tais perspectivas partem da compreensão de um sujeito ensimesmado, desvinculado de sua realidade social, tal qual da eleição de um modelo ideológico (e, portanto, a-histórico e pretensamente universal) do que é ser mulher, culminando: a) na naturalização do adoecimento feminino, relegando suas causas a fatores biológicos; b) na individualização do problema, quando não por meio de explicações organicistas, por intermédio de explicações psicologizantes; e c) na ênfase em estudos pelo viés dos transtornos.
Em contraposição à perspectiva hegemônica do campo (biomédica, individualizante, positivista), nos ancoramos no paradigma da determinação social da saúde (Nogueira, 2010) e em uma abordagem crítica no campo da saúde mental (Burstow, 2019; Cohen, 2016) para compreender o adoecimento da mulher, situando-o como um produto da sociedade (capitalista, racista e machista) na qual elas se constituem e vivem. Nesse sentido, buscamos uma análise psicossocial sobre o fenômeno em questão, a qual, segundo Martín-Baró (2017/1983), busca compreender a relação entre o social e o individual, tomando-os como fenômenos interdependentes, de tal forma que na constituição do sujeito o social converte-se em pessoal, ao mesmo tempo em que na constituição da sociedade o pessoal converte-se em social mediante uma relação complexa e não mecânica.
A partir dessa perspectiva, a compreensão sobre saúde mental sofre uma inversão em relação aos estudos hegemônicos na área: em vez de ser compreendida como um mau funcionamento interno do indivíduo, cujas explicações encerram-se no próprio sujeito, passa a ser compreendida dialeticamente, “de fora para dentro” (Martín-Baró, 2017/1984, p. 253). Martín-Baró (2017/1984, p. 251) propõe que a saúde mental seja entendida como “a materialização, na pessoa ou no grupo, do caráter alienante ou humanizador de uma estrutura de relações históricas”. No caso específico das mulheres, sobretudo das mulheres pobres e negras, elas se inserem em um conjunto de relações e condições de exploração e opressão que tendem a limitar sua experiência no mundo e que repercutem no processo saúde-doença. Esse conjunto de relações produzirá efeitos e enraizamentos singulares em cada um dos sujeitos, provocando diferentes manifestações, sejam estas pontuais, sejam isoladas, na forma de algum sintoma específico, ou por meio de estados mais duradouros, conformando uma síndrome.
Nessa direção, a presente pesquisa objetivou refletir sobre as experiências de violência contra a mulher e suas expressões no âmbito da saúde mental, a partir do estudo de caso de uma mulher usuária de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps-II) de Minas Gerais. Destacamos que as reflexões aqui desenvolvidas se deram a partir do encontro cotidiano com mulheres que buscam as instituições públicas de saúde, especialmente os Caps-II, perfil constituído, em sua grande maioria, por mulheres da classe trabalhadora, negras, pobres e com baixa escolaridade (Campos, Ramalho, Zanello, 2019). Assim, é a partir delas, de suas histórias de vida e de seus sofrimentos, e também de sua força e resistência, que surgiram as inquietações que culminam no presente artigo.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, no formato de estudo de caso. Conforme Borges e Luzio (2016), a pesquisa qualitativa busca compreender o sujeito em sua historicidade, entendendo-o como complexo, inacabado, contraditório e em constante transformação. Preocupa-se em investigar uma dimensão da realidade que não pode ser quantificada: a saber, “o universo dos significados” (Minayo, p. 21, 1993). Destarte, pretende alcançar as produções simbólicas, os valores, as crenças, em suma, a maneira como o sujeito interpreta sua existência e a realidade. Nesse sentido, o estudo de caso surge como uma opção metodológica que permite um duplo processo reflexivo: a análise em profundidade das especificidades do objeto delimitado e, ao mesmo tempo, o que esse caso específico revela em relação ao todo (Peres & Santos, 2005; Ventura, 2007).
A participante é uma mulher que realizou acompanhamento em um Caps-II de uma cidade localizada na zona da mata mineira. Ela foi encaminhada ao serviço de psicologia pelo serviço de psiquiatria, ambos da mesma instituição, momento a partir do qual foram realizados atendimentos semanais individuais durante quatro meses pela psicóloga-residente e pesquisadora/autora deste artigo. O conteúdo dos atendimentos (relatos, queixas, estratégias empregadas) foi registrado detalhadamente em diário próprio da psicóloga-residente/pesquisadora logo após os encontros. Do diário de campo, foram retirados os dados que constam em seguida, na apresentação inicial do caso. Optou-se por não gravar os atendimentos para que não houvesse constrangimento e, consequentemente, para que o objetivo terapêutico não fosse prejudicado.
Depois do encerramento dos atendimentos (tendo em vista a atenuação dos sintomas e o desparecimento das queixas), foi realizada uma entrevista na mesma instituição, a qual, com consentimento da participante, foi gravada. A entrevista foi construída a partir do método da história de vida, a qual busca alcançar em profundidade aspectos da subjetividade da entrevistada e elucidar os pontos de convergência entre o estrutural e o simbólico, uma vez que a história de cada sujeito é, ao mesmo tempo, a história de um grupo, de uma coletividade (Beartaux, 1999).
Realizou-se a transcrição da entrevista, respeitando-se os regionalismos e os modos específicos de produção da linguagem da participante, sendo esta submetida à análise de conteúdo do tipo temática (Gomes, 2009). Essa técnica permite estudar o conteúdo manifesto da comunicação humana classificando a mensagem em categorias determinadas a priori e a posteriori da realização da pesquisa de campo, a partir do processo dialógico estabelecido com os sujeitos da investigação. No estudo em tela, após a realização das etapas de pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos, inferência e interpretação dos resultados, delimitamos a construção do eixo temático intitulado “História de vida: trajetória de violências”. De acordo com Beartaux (1999), existem diferentes maneiras aceitáveis de se apresentar os resultados partindo da adoção do método de história de vida, a depender do objetivo, referencial teórico e perspectiva ético-política da/do pesquisador. No presente manuscrito, optou-se por apresentar os resultados em um formato que se assemelha à narrativa construída pela participante no processo de contar sua história, em que foram identificadas experiências singulares de violências vividas e suas expressões na produção de saúde mental da entrevistada, o que se mostrou coerente a partir do estudo de caso realizado.
Cumpre ainda informar que depois da construção e discussão dos dados o texto foi apresentado à participante, para que ela pudesse avaliar se sua história foi devidamente relatada, bem como para que pudesse sugerir modificações. Ela manifestou concordância com o conteúdo apresentado e, por opção dela, sua identidade será preservada, sendo utilizado o nome fictício Lúcia.
Esta pesquisa seguiu os princípios e as diretrizes das Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora sob o Parecer n. 2.868.307.
Resultados
Apresentação inicial
Lúcia é uma mulher de 40 anos, negra, que estava desempregada na época do início dos atendimentos. Ela nasceu e viveu parte da infância na zona rural de uma pequena cidade mineira, onde ela e os irmãos ajudavam os pais nos trabalhos da roça. Dividia a casa com os pais e com 18 irmãos, gostava de estudar e tinha o sonho de ser veterinária, mas a necessidade/imposição de se dedicar ao trabalho desde criança e acontecimentos inesperados durante a juventude impediram que desse seguimento aos estudos, tendo estudado até a sétima série. Lúcia trabalhou a maior parte de sua vida como empregada doméstica, atividade que exerce atualmente. Morou com um ex-companheiro durante 12 anos e tem dois filhos e uma filha. Deseja voltar a morar na roça em que nasceu, mas não o faz pois acredita que os filhos têm mais oportunidades morando na cidade.
Lúcia faz acompanhamento neurológico devido a crises de epilepsia, que começaram há cerca de 15 anos. Do neurologista, foi encaminhada ao serviço de psiquiatria devido a um importante quadro depressivo e tentativas de suicídio. Segundo ela, as crises tiveram início em um momento de sua vida em que se sentia muito sobrecarregada: o filho mais velho estava com um problema grave no pé, correndo risco de amputação, ela trabalhava fora de casa e cuidava de um filho pequeno.
Quando se iniciaram os atendimentos psicológicos, Lúcia havia sido diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG). Conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), em síntese, o TAG caracteriza-se por ansiedade e preocupações durante a maioria dos dias da semana e em relação a diferentes temas e situações, de tal forma que o sujeito considere difícil controlá-las, apresentando sintomas como inquietação, irritabilidade, tensão muscular, prejuízos no sono, entre outros (Sadock, Sadock, & Ruiz, 2017).
A ansiedade de Lúcia manifestava-se por meio de taquicardia, sudorese, tremores, tonteiras e desmaios, os quais eram muito frequentes. Ela relatava pensamentos quase ininterruptos de preocupação (com a casa arrumada, com os compromissos da semana, com o que pensariam dela caso tivesse uma crise na rua, entre outros) e passava o dia inteiro arrumando a casa. Muitas vezes, deixava de sair por medo de passar mal na rua, arrumava-se muitas horas antes dos compromissos, deixava opções de roupas separadas no dia anterior (para frio e para calor), conferia documentos mais de dez vezes e pedia aos filhos que fizessem o mesmo. Do ponto de vista do humor, Lúcia apresentava-se triste e desanimada. Nos primeiros atendimentos, mantinha o olhar baixo e frequentemente chorava. Estava desesperançosa em relação ao tratamento, conforme excerto do diário de campo: “eu acho que eu não vou melhorar nunca”.
A partir dos primeiros contatos com Lúcia, fez-se necessário buscar em sua história de vida as possíveis raízes da sensação de perigo que sentia em relação ao mundo, da insegurança, da crença de que tudo em sua vida daria errado, da cobrança excessiva e da necessidade de controle. Assim, ao ser convidada a contar sua história, emergem relatos que denunciam as violências vivenciadas por ela desde criança.
História de vida: trajetória de violências
Como dito, Lúcia passou parte da infância na roça, em uma casa com muitos irmãos e todos ajudavam os pais nos trabalhos rurais desde a infância. Relata que era muito apegada à mãe e diz ter sido um período muito feliz de sua vida, até certo ponto:
Eu sempre gostei de ficar na roça, lá com a natureza, e... eu gosto de família grande, igual eu sempre chegava, assim, a casa tava cheia.. cê chegava da escola já tá outros em casa que ainda não ia pra escola, entendeu? Então, quando dava quatro horas da tarde, todo mundo chegava do serviço, a casa cheia [...] Eu acho que até uns dez, 11 anos, eu fui muito feliz na casa cheia, entendeu? Depois que começou a ficar chato por causa dos meus irmãos.
A consideração relativa aos irmãos diz respeito ao momento em que Lúcia passou a frequentar uma escola mais afastada da casa da família, trajeto que fazia na companhia dos irmãos mais velhos e momento no qual aparece o primeiro relato de violência durante a entrevista:
A gente ia estudar lá perto de casa mesmo, depois eu fui estudar lá na cidade, que era mais afastado de casa e aí, assim, a gente já ia na companhia deles, entendeu? Eu acho que eles aproveitava desse momento, assim, quando ficava mais sozinho com a gente, igual eu te falei, meus irmãos, um dos gêmeos, eles abusava de mim.
Essa situação, somada à imposição do pai de que os filhos poderiam estudar somente até a quarta série, leva Lúcia a buscar os primeiros trabalhos fora de casa, aos dez anos de idade, conforme relato a seguir:
Eu queria continuar estudando lá, entendeu? [...] Mas só que como era muita gente na casa e, geralmente, assim, casa quando tem muitos irmãos, né? Os mais velhos têm que ir saindo pra trabalhar. Então meu pai não dava muita importância para gente continuar os estudos, era até a quarta série e acabou. Daí em diante ele achava que era sem-vergonhice, que queria ficar na escola pra não trabalhar, entendeu? Aí eu comecei a, já que tinha esse problema dentro de casa já com meu irmão, comecei a querer sair, a trabalhar, né? Arrumava emprego mesmo na cidade lá tomando conta de criança.
A fala da participante indica uma das principais consequências tanto do impedimento do pai quanto do abuso por parte dos irmãos e, ao mesmo tempo, uma das formas de enfrentamento que Lúcia encontrou: passou a buscar formas de ficar longe de casa por meio do trabalho, tanto para evitar os irmãos como para dar continuidade aos estudos: “Pra ficar morando assim, na casa dos outros e voltar, eu já tinha 11 anos, 11 anos. Que foi quando eu fui pra quinta série, que aí eu tive que ficar fora, que meu pai, meu pai... não podia estudar. Aí, pra não ter problema com ele, eu ficava pra lá”.
Em um primeiro momento, Lúcia trabalhava na cidade próxima à roça em que a família morava, mas, aos 13 anos, passa a trabalhar na casa de uma família que se muda para uma cidade vizinha e Lúcia acompanha essa mudança, mesmo contra sua vontade: “Aí eu fui, mas não gostei de lá, aí eu voltei pra casa dos meus pais, entendeu? Mas, assim, não tinha jeito de ficar lá, com meus irmãos. Então eu peguei e fui pra casa da mãe dela, da minha patroa”.
Ao se mudar novamente, agora para a casa da mãe da patroa anterior, relata tentativa de retomar os estudos, a qual é prejudicada por mais uma situação de violência sexual, vivenciada aos 17 anos: “Aí eu tentei voltar a estudar, né? Só que aí eu fui estuprada lá”.
A situação do estupro é sucedida por uma série de outras violências. Observamos, por exemplo, por parte do irmão e do pai, a deslegitimação do sofrimento de Lúcia paralelamente à sua culpabilização: “Ele [pai] não acreditava, ele achava que era meu namorado, então ele falou que se eu não casasse, ia me matar, e ele levantou a arma mesmo e falou que se eu voltasse lá, ele me matava”.
Lúcia relata que só veio a sofrer com o abuso dos irmãos anos mais tarde, após o estupro, momento a partir do qual percebe a culpa em relação às duas situações:
Isso veio me prejudicar, eu acho que, assim, mais tarde, entendeu? Quando eu fui, assim, dar conta da situação, ou então eu acho que depois, assim, do estupro, aí que eu acho que isso aí me abalou mais, porque, até então, eu comecei a botar outras coisas na cabeça, a sair, então eu me afastei deles, né? Meu irmão mesmo, ele ficou com ironia: “pois é, começou com a gente, agora já foi outro aí, daqui a pouco cê tá virando piranha”, eles falavam comigo, entendeu? Aí que eu comecei a sofrer com isso, assim que eu vi que, pra mim, era tudo culpa minha.
Além da culpabilização, Lúcia é impedida de realizar a denúncia do estupro:
Na época elas não deixaram, porque até depois quando eu falei quem era, aí elas descobriram que ele era filho de uma lavadeira da mãe da minha patroa. [...] Elas não quiseram, falou que ia ser vexame, que ia todo mundo ficar sabendo, meu pai já não acreditava que era isso mesmo, entendeu? Então aí, na época, assim, eu não entendia muito das coisas, então, ficou por isso mesmo.
O estupro traz ainda outra consequência: a primeira gravidez de Lúcia, em relação à qual se soma o impedimento da interrupção da gestação por parte da mãe e da patroa e, em seguida, o impedimento de cuidar do filho: “Aí a minha mãe e ela [patroa] não quis tirar, não quis deixar eu tirar não, falou que não, que tomava conta e que eu trabalhava, que ela tomava conta e acabou que eu não tirei não, foi passando... fiquei”.
Sobre os cuidados do filho, Lúcia explica que a patroa negociou o futuro da criança com sua mãe, mais uma vez alheias à sua vontade: “Quando ele nasceu, ela [a patroa] foi lá na minha casa comigo e ela combinou com a minha mãe que ela ia tomar conta dele pra mim, e que ele ia ficar na casa dela, e eu ia voltar pra continuar trabalhando pra sustentar ele, e assim foi até eu conseguir sair da casa dela”.
Feito o combinado entre a patroa e a mãe, o primeiro filho de Lúcia passou os primeiros oito anos de vida morando com a avó. Se, por um lado, havia a imposição de que a criança fosse cuidada pela avó, por outro, Lúcia sofria ameaças por parte do pai: “Ele [pai] ligava pra mim aqui, ele ligava escondido dela [mãe], falava que ia matar a minha mãe, que ia matar meu menino se eu não desse um jeito, que eu tinha que tirar ele de lá. Então, assim, só me pressionando, pra eu tirar ele de lá”.
Vale lembrar que desde os 13 anos Lúcia morava na casa da patroa, em outra cidade, e visitava a casa da família e o filho nos fins de semana, mesmo contra a vontade do pai, que brigava com a esposa e com a filha se ela visitasse a casa da família. Sobre essa época, relata:
Eu praticamente não dormia, né? Era quase 24 horas de serviço, entendeu? Ela era muito exigente, muito enjoada, cobrava demais, e ela tinha os dois rapazes, um até da minha idade, assim, então ela era muito exigente com as coisas, e como eu morava lá, então, assim, eu trabalhava direto, direto, às vezes umas loucuras que ela tinha, a gente chegava do supermercado, tudo que chegava do supermercado tinha que lavar, as embalagens, tinha que passar pano. Então às vezes eu ficava até, entrava madrugada adentro arrumando aquilo pra guardar, então praticamente não dormia nada.
A essa época atribui um importante papel no seu adoecimento: “Eu acho que esse problema meu do sono, estresse, foi por causa disso, falta de... assim, eu não conseguia dormir, era só ligada no serviço o tempo todo. Então, assim, ela explorava muito”.
Como se vê, além da intensa exploração levada a cabo pela patroa, seu mecanismo de controle extrapolava o âmbito do trabalho. A patroa de Lúcia havia determinado que seu primeiro filho fosse cuidado pela avó. Além disso, não permitia que Lúcia trouxesse o filho para o trabalho, o que, somado às ameaças e brigas do pai, delineou um duplo impedimento: o pai não permitia visitas à casa da família e ameaçava a criança morte, enquanto a patroa não permitia a presença do filho no trabalho.
Outro exemplo que demonstra a extrapolação da relação de poder para além do trabalho diz respeito ao aborto que Lúcia realizou induzido pela patroa:
Quando eu tava trabalhando com ela, eu engravidei de novo, e assim, ela e a, aí eu já tinha conhecido um rapaz aqui, só que eu fiquei grávida e eu já tinha outro pequenininho, então ela e uma outra moça que trabalhava junto comigo, ela me deu um remédio, falou comigo que era pra dor, que era um remédio pra dor. Só que não, era pra eu abortar, tendeu? Então eu fiz um aborto na casa dela.
Quando questiono Lúcia porque ela acredita que a patroa tenha feito isso, a resposta é direta e denuncia a que ponto pode chegar a apropriação sobre a vida das mulheres: “porque ela não queria que eu tivesse mais filho, ela tinha medo de eu sair da casa dela”.
Essas condições de trabalho, somadas à pressão do pai e ao desejo de assumir o cuidado do filho, levam Lúcia a buscar formas de sair da casa da patroa com quem residia: “Eu comecei de tudo em quanto é jeito tentar arrumar uma pessoa, um casamento, um relacionamento, assim, pra eu ficar, pra poder sair fora, assim, dela [patroa], e até, assim, do meu pai”.
Com a ajuda de uma amiga, ela consegue alugar uma casa para morar sozinha e também outro emprego, ainda como empregada doméstica, mas na casa de outra família. Lúcia acreditava que poderia assumir os cuidados do filho, mas é novamente impedida:
Aí eu queria trazer ele pra ficar comigo, falei assim, eu tenho que estabilizar minha vida aqui, trazer ele, colocar numa creche e ficar com ele. Só que aí ela não queria, minha mãe não quis deixar. E a minha patroa falou que eu saí da casa dela porque eu tava muito levada, não queria obedecer ela, falou um monte de coisa pra minha mãe, então aí minha mãe não me entregou ele, aí eu já comecei a sofrer, entendeu? E continuei na busca de tentar um relacionamento, pra poder, porque eu achava que com isso minha mãe ia começar a acreditar que eu, já que eles achava que eu não tinha juízo, né, acreditar que eu tinha juízo, que podia pegar ele.
Nesse processo de busca por um relacionamento, Lúcia conheceu um rapaz que trabalhava próximo à sua casa, com quem namorou por cerca de um ano e meio. Após esse tempo de relacionamento, mudou-se para a casa do companheiro, já grávida do segundo filho. Dois meses depois do nascimento do segundo filho, Lúcia finalmente assume os cuidados do filho mais velho, que se muda para a casa da mãe para realizar um tratamento em função de um grave problema no pé. Ela explica que acreditava que o filho estivesse com um problema simples, devido à recusa de sua mãe em trazê-lo ao médico. No entanto, ao perceber a gravidade do problema da criança, fica muito nervosa e preocupada. Explica que nessa época sentia-se também muito sobrecarregada e foi quando iniciaram as crises epiléticas:
Quando ele chegou aqui que eu vi a gravidade da situação, eu fiquei em desespero. Já com o pequenininho. E ele lá com o aquele pé daquele jeito, eu saía de noite, não dormia, porque ele gritava o tempo todo, o tempo todo, aí levei ele no pronto socorro (...), eles engessaram o pé dele, depois que engessou piorou, aí ele gritava noite e dia, noite e dia [...]. Aí eu fui ficando enlouquecida com aquela situação. Aí eu tive a primeira crise, um dia antes deu acordar pra ir pro trabalho.
As crises somam-se às demais situações já relatadas e agudizam o desespero de Lúcia:
Aí eu comecei a ter crise uma atrás da outra, e com isso eu fui ficando chateada, porque não passava, não melhorava, entendeu? Às vezes na rua, caía na rua, e assim, com muita frequência, era muitas crises na semana e assim eu fui ficando desesperada com aquilo. Aí eu comecei a tentar suicídio [...] Eu comecei a tentar suicídio, entrando numa depressão grave, até chegar aqui, fazer o acompanhamento no hospital, aí de lá eles me transferiram pra cá pra fazer o acompanhamento com a psiquiatria.
Sobre o acompanhamento que realizou no Caps-II, Lúcia percebe que este trouxe mudanças para sua vida. Ela afirma que foi importante conseguir “botar tudo pra fora”, mas que durante algum tempo em que realizou acompanhamento psicológico, em outra instituição, não percebia oportunidades para tal:
Eu tava muito sufocada, se eu não falasse, assim, se eu não botasse pra fora aquilo, eu não ia sair da depressão, entendeu? E eu não via oportunidade, assim, eu não via, assim, eu não achava que eu podia contar aquilo, entendeu? [...] Ela [psicóloga] não perguntava muita coisa, não falava, só perguntava como que tava, entendeu? Então eu não sabia como começar, acho que eu não sabia como fazer um acompanhamento psicológico.
Voltando à sua história conjugal, Lúcia morou com o companheiro durante 12 anos e teve “um menininho com ele e a menininha”. O relacionamento também é considerado por ela um importante fator de estresse, sobretudo após o nascimento da filha caçula. Sobre essa situação, Lúcia relata:
Eu sei que tomando anticoncepcional eu engravidei da menina. Aí eu já não queria mais filho, então, assim, quando eu fiquei grávida dela, eu surtei. E assim, até porque meu marido não queria mais filho e principalmente se fosse menina. [...] Falava que ia me tocar de casa com ela, e aí pronto, meu casamento virou um inferno.
E acrescenta:
Aí ele entrou na bebida, depois começou a chegar em casa, falar que tinha homem dentro de casa comigo, caçar confusão dentro de casa, aí aquilo ali foi virando um inferno na minha vida, uma bola de neve. Então eu já não tava, eu tava no fundo do poço mesmo. Eu acho que se eu não tivesse separado eu morria.
Por fim, alguns apontamentos sobre seu processo de adoecimento são interessantes. Lúcia faz algumas conexões entre este e sua história de vida. Inicialmente, acredita que o fato de ter sido muito cobrada durante toda a vida tenha contribuído para que se tornasse uma pessoa muito exigente, por consequência, muito preocupada e estressada. Ela afirma:
Eu sempre fui muito cobrada, tanto pelos meus pais como nos empregos que eu passei, não sei se era o fato de tá lidando com criança [...] As pessoas, sempre, assim, sempre exigiram muito de mim, eu acho que foi até um pouco isso que me estragou também, porque eu comecei a cobrar de mim, cobrar dos meus filhos, não tava me dando bem com eles, por causa de cobrança também, e eu tava só me afundando.
E acredita também que o fato de ser mulher interfere nesse processo: “Pra mim o homem não tem depressão, não tem pânico, essas coisas. Eu acho que geralmente isso acontece com a mulher. Eu acho que o homem é mais difícil ficar doente, porque eles não dão muita importância pras coisas, não. Agora, a mulher, tudo atinge ela”.
Quando realizamos um exercíco imaginativo, com perguntas projetivas, questiono o que Lúcia imagina que teria sido diferente em sua vida se ela fosse homem:
Ah, eu acho que eu tinha insistido em estudar, não ia ter filho, então não ia ter problema. O homem não tem filho, não tem o que impede eles de parar a vida, então, quem para a vida por causa de filho, marido, essas coisas, é a mulher, o homem, pra eles, não tá nem aí. Então eu acho que eu tinha seguido estudando, eu falava que eu queria ser veterinária, eu acho até que eu podia até ter chegado lá.
Já nas últimas perguntas da entrevista, ao ser questionada “você já deixou de fazer alguma coisa pra atender às vontades de outra pessoa?”, a resposta de Lúcia é rápida e espontânea: “Já, eu acho que a maior parte da minha vida eu passei fazendo isso”.
Essa resposta, além do mal-estar imediato que causou, trouxe uma série de questionamentos: quais as repercussões para uma mulher de viver uma vida que não se vive para si? Somado ao assujeitamento, toda a trama de opressões, limitações e violências, o que esperar senão o desgosto pela vida? A “depressão” ou até mesmo a vontade de morrer?
Além das inúmeras situações de violência e opressão a que foi submetida e as que foram enfatizadas tendo em vista o objetivo deste trabalho, não se pode deixar de notar que a história de Lúcia é também uma história de busca por alternativas às imposições e de luta por uma boa condição de vida. Atualmente, ela reside com os três filhos em um apartamento próprio. Após ter outras experiências de emprego, voltou a trabalhar na casa da patroa com quem residiu durante parte da juventude. Visita a irmã na roça em que nasceu e relata estar muito bem. Tem o sonho de voltar a morar na roça, mas está adiando em função dos filhos: “Lá não tem muita coisa, então eu vô tá atrapalhando a vida deles, tendeu? Aqui eles têm mais oportunidade”.
Discussão
A trajetória de vida descrita, que expressa o caso analisado, contribui para refletirmos sobre como a posição da mulher negra, imersa na estrutura social anteriormente delineada, a situa numa rede de relações de poder que contribuem para experiências opressoras que estão relacionadas ao seu processo de adoecimento. De acordo com a perspectiva da determinação social da saúde, é preciso considerarmos as relações sociais pelas quais produzimos nossa vida e, ao mesmo, tempo com o fato de que nos deparamos com situações-limite que podem contribuir para a deterioração de nossa condição de saúde (Fleury-Teixeira, 2009).
De acordo com Martín-Baró (2017/1984), quando invertemos a óptica de compreensão a respeito dos transtornos mentais, investigando sua determinação de “fora para dentro” a partir, sobretudo, das relações sociais mais significativas de cada sujeito, podemos entender a cronificação de um estado de tensão ou de ansiedade como desfecho mais ou menos esperado no caso de Lúcia.
Ferreira (2017) aponta ainda que, a partir de uma série de mediações, as mulheres se constituem como seres a serviço de outros. Seja pela socialização, que dociliza, sacraliza a submissão, ensina a obrigatoriedade do cuidado e naturaliza os afazeres femininos, seja pelas imposições, como fica evidente no caso relatado. Um bom exemplo da naturalização dos afazeres femininos é o trabalho doméstico, tanto aquele realizado no âmbito da própria casa (trabalho não pago) quanto aquele que as mulheres realizam de forma remunerada na casa de outras famílias. Uma vez que se compreende que as mulheres têm dons naturais e/ou destinação divina para realizá-la, elas são mais responsabilizadas pelas atividades desenvolvidas no âmbito doméstico, as quais, por não necessitarem de nenhuma especialização formal, são desvalorizadas em relação aos trabalhos realizados fora desse âmbito (Cisne & Santos, 2018; Federici, 2017).
Segundo Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019), nas sociedades capitalistas, a atividade de reprodução social está subordinada à atividade de produção (cujo fim é a obtenção de lucro) e é relegada às mulheres, constituindo o que se denomina divisão sexual do trabalho. A reprodução social diz respeito ao trabalho de “produção de pessoas” (Arruzza et al., 2019, p. 52), constituindo-se em uma atividade vital, uma vez que é responsável pela vida humana, pela educação, transmissão de valores, ensino de habilidades, cuidados com saúde, em suma, pela manutenção e reprodução da sociedade. Uma vez subordinada à lógica do lucro, a dinâmica do capital se apropria desse trabalho sem remunerá-lo, implicando na vulnerabilidade das mulheres, também, pela via econômica.
Segundo Biroli (2018), a divisão sexual do trabalho é a base a partir da qual se delineiam as hierarquias de gênero na sociedade capitalista. Essa divisão molda as trajetórias das mulheres, as quais, por sua vez, são diferenciadas conforme suas posições de classe e raça. Se, por um lado, o trabalho de reprodução social é socialmente desvalorizado, por outro, é extremamente importante para a engrenagem produtiva da sociedade (Cisne, 2014). Uma vez que são elas as grandes responsáveis por aspectos como limpeza e organização dos lares, bem como da educação dos filhos e da alimentação e dos cuidados com a saúde de todos os membros da família, conclui-se que ela é, em grande parte, responsável por garantir a educação e saúde da classe trabalhadora, logo, da força de trabalho – atual e futura. Essas atividades, uma vez relegadas às mulheres de forma naturalizada, consomem seu tempo de vida e constituem um cotidiano organizado conforme as necessidades e desejos de outras pessoas, o que, por sua vez, impacta em sua saúde mental, aspectos que podem ser observados na trajetória da participante anteriormente apresentada.
Essa naturalização é uma das facetas do que Saffioti (2011) chama de ideologia patriarcal: um sistema de crenças, valores e explicações sobre si, sobre as relações e sobre os fatos cotidianos que naturaliza a posição subalterna da mulher e a posição de dominação e os privilégios dos homens. Concretamente, essa ideologia dissemina uma visão sobre as mulheres que as caracteriza como naturalmente sensíveis, emotivas, delicadas, cuidadosas; e os homens como naturalmente corajosos, racionais, inteligentes, frios emocionalmente. No relato de Lúcia, temos um exemplo dessas concepções, quando ela afirma que homem não tem depressão e que tudo atinge a mulher. Assim, acreditamos ser importante que essas reflexões possam ser feitas com as mulheres, a fim de possibilitar processos de conscientização sobre a relevância das atividades que desempenham e sobre o impacto dessas atividades em suas vidas, sem, no entanto, naturalizar sua responsabilização por essas tarefas.
Também chama atenção na história da participante a centralidade do dispositivo da maternidade como mediador da opressão. Inicialmente, a “maternidade compulsória” (Biroli, 2018, p. 135) vivenciada por Lúcia, a partir da decisão da mãe e da patroa sobre a continuidade da gravidez. Em seguida, o controle sobre em quais condições e de que forma essa maternidade seria exercida. A história de Lúcia é um exemplo de como “a autonomia na definição de sua trajetória de vida fica fundamentalmente comprometida” (Biroli, 2018, p. 135) sem o controle da própria capacidade reprodutiva, a qual se torna alvo de domínio e fonte de sofrimento.
Outro ponto relevante é a importância de a violência ser investigada na trajetória das mulheres para que os Caps não reproduzam o silenciamento a que essas mulheres são submetidas. No caso de Lúcia, por exemplo, durante algum tempo, ela não sentia que poderia contar aquilo que a sufocava, o que é importante para nos alertar sobre a forma como acolhemos essas mulheres nos serviços e como investigamos seu processo de adoecimento. O tema da violência, por exemplo, pode ser deixado de lado pela dificuldade em se questionar abertamente se a mulher já passou por situações desse tipo. Ou pode se realizar um acompanhamento baseado exclusivamente na demanda apresentada espontaneamente pelo sujeito, abrindo mão de investigar amplamente sua história e a presença da violência no dia a dia dele. Nesse sentido, o trabalho de Barbosa et al. (2014) aponta a dificuldade dos profissionais da rede de saúde e da rede de atenção psicossocial em abordar o tema e o “jogo de empurra” daí derivado. Os profissionais entendem que a temática da violência é assunto de outros serviços e, portanto, o tema nem figura como tópico nos instrumentos de acolhimento.
Observamos, no Brasil, o impulso que bandeiras conservadoras e sexistas podem dar à violência contra as mulheres. Podemos citar o recente lançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Família e da Vida como exemplo, ator político que tem retomado propostas legislativas que acirram a criminalização do aborto (com o desarquivamento da PEC n. 29/2015), que coloca em questão o direito reprodutivo e sexual das mulheres, bem como discursos sexistas e homofóbicos (Biroli, 2018). Tais temáticas se relacionam à já mencionada ideologia patriarcal e contribuem para a naturalização da violência e para a reificação dos papeis de gênero, importantes elementos para o adoecimento das mulheres (Cohen, 2016; Zanello, 2015, 2018).
Considerações finais
O caso aqui apresentado chama a atenção para a importância de se considerar os efeitos das diversas formas de violência contra as mulheres sobre a produção de sua saúde mental, haja vista se tratar de um elemento estruturante das relações sociais em nosso país. Nesse sentido, o presente trabalho buscou contribuir para que possamos ampliar os elementos que compõem o alvo de nosso acolhimento, da nossa escuta e da nossa intervenção no âmbito da saúde mental, buscando chamar atenção para a trama de relações violentas nas quais as mulheres se inserem, especialmente as mulheres negras. Assim, acreditamos que a investigação ativa da experiência de violência na vida das mulheres atendidas seja prática fundamental no contexto da atenção psicossocial, dada sua relação estreita com o adoecimento feminino.
Consideramos que é importante contribuirmos no fortalecimento de uma práxis efetivamente implicada com o processo de emancipação das mulheres e que se preocupe em desnaturalizar a ideologia patriarcal em suas mais diversas formas de expressão: no âmbito da própria família, nas relações de trabalho, nas relações afetivas, entre outras. É imperioso, ainda, que não esqueçamos que a dimensão de gênero se imbrica, numa relação inextrincável, às dimensões de classe e raça e, portanto, devem ser consideradas no desenvolvimento do trabalho realizado no cotidiano dos serviços de atenção psicossocial.
Diante da impossibilidade de realizar generalizações a partir de um estudo de caso e, destarte, das limitações dessa modalidade de pesquisa, consideramos que novas investigações possam se ocupar de compreender melhor a relação entre violência contra a mulher e adoecimento psíquico, além das práticas realizadas por profissionais, considerando o impacto da violência na saúde mental das mulheres. Ademais, pesquisas interventivas com esse grupo, que possam explorar esta e outras dimensões silenciadas no âmbito da saúde mental, podem favorecer o desenvolvimento de metodologias de ação mais concatenadas com a realidade social em que nos inserimos e, quiçá, favorecer a qualificação de nosso trabalho nesse campo.
Reiteramos que a atenção psicossocial se preocupe também em compreender como a estrutura social e as relações de poder se relacionam com a ação concreta de cada sujeito, com sua forma de estar no mundo, com aquilo que pensa sobre sua realidade e, especificamente, com a produção de sofrimento, adoecimento psíquico, mas também de resistência e produção de vida, ou seja, de saúde.