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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
On-line version ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.7 no.1 Florianópolis June 2007
ARTIGOS
A construção das práticas de consultoria em psicologia organizacional e do trabalho
Consulting practices building in organizational and work psychology
Vanise GrassiI; Maria da Graça Corrêa JacquesII; Ticiana SchosslerI
IMestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. (vanisegrassi@yahoo.com.br)
IIDoutora em Educação pela PUCRS. (fjacques@terra.com.br)
RESUMO
Este estudo teve como objetivo descrever a trajetória de empresas pioneiras na prestação de serviços em psicologia organizacional e do trabalho no Rio Grande do Sul, investigando as relações entre as práticas de consultoria e as configurações políticas, históricas e socioeconômicas do contexto de trabalho das últimas décadas. A pesquisa foi desenvolvida dentro da abordagem qualitativa, fundamentada pelas orientações do estudo de caso. Foram escolhidas para estudo duas empresas pioneiras na prestação de serviços em psicologia organizacional e do trabalho. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas e exame de documentos das empresas. Constatou-se que as práticas de recrutamento e seleção predominavam entre os serviços disponibilizados na década de 1970, amplamente favorecidas pelo contexto político e socioeconômico do período do "milagre brasileiro". Nos últimos anos, as transformações no contexto produtivo promoveram o fortalecimento das práticas de consultoria, que assumem, para os participantes do estudo, concepções bastante diversificadas. A adaptação ao mercado, através da diversificação de atividades e da reprodução dos processos de enxugamento e terceirização de serviços, figura como estratégia importante para a sobrevivência das organizações.
Palavras-chave: consultoria; psicologia organizacional e do trabalho; estudo de caso.
ABSTRACT
This study aimed at describing the path of pioneering enterprises in the offering of organizational and work psychology services in Rio Grande do Sul, investigating the relationship between the consulting practices and the political, historical and social-economical configurations of the working environment in the last decades. The research was developed in the qualitative approach based on a case study. Two pioneering companies in organizational and work psychology were chosen for the study. The findings collected by means of semi-structured interviews and documents of enterprises exam. It was verified that the recruitment and selection practices prevailed among the services available in the decade of 1970, thoroughly favored by the political and social economical context of the "Brazilian miracle" period. Lately, the last transformations in the productive context promoted the development of the consulting practices, that assume, for the participants of the study, quite diversified conceptions. The adaptation to the market, through the diversification of activities and the reproduction of the compressing processes and out source services, is an important strategy for the survival of the organizations.
Keywords: consultancy; organizational and work psychology; case study.
1. Introdução
As relações de trabalho contemporâneas estão inseridas em um intenso processo de transformação dos modelos de gestão e organização da dinâmica produtiva. O foco no mercado internacional, a descentralização do processo produtivo e a implementação de tecnologia de ponta tornaram-se estratégias comumente associadas à sobrevivência das empresas em um cenário de competitividade crescente. Tais estratégias, que permitem um fluxo ágil de materiais e informações, também transformam, numa velocidade surpreendente, as relações e vínculos de trabalho. Um estilo de gestão de resposta imediata ao mercado somente pode ser implementado com alterações profundas no processo de trabalho. Atualmente, tais alterações costumam ocorrer, principalmente, através da busca pela flexibilidade interna ou externa (CASTEL, 1998). Na primeira situação, as empresas recorrem ao treinamento de funcionários para que eles se tornem mais flexíveis e polivalentes. No segundo caso, as empresas descentralizam as atividades, atribuindo às empresas-satélites as etapasacessórias do processo de produção. É nesse contexto de flexibilidade externa que as consultorias em diversos campos de conhecimento, incluindo a psicologia, vêm se tornando uma opção de trabalho cada vez mais freqüente.
As atividades de consultoria em psicologia organizacional e do trabalho se constituem como um dos campos de atuação mais promissores. Ademanda pelas chamadas consultorias de recursos humanos vem aumentando consideravelmente (OLIVEIRA, 1999), num contexto caracterizado pela crescente terceirização de serviços. Tal crescimento, entretanto, contrasta com a escassez de pesquisas relacionadas à temática. Embora exista bibliografia nacional (JACQUES, 1989, 1999; SPINK, 1996; CODO, 2001, entre outros) que resgata a trajetória histórica da psicologia organizacional e do trabalho através de reflexões teóricas e conceituais, os estudos empíricos que investigam o contexto de ação de consultorias em psicologia organizacional e do trabalho, particularmente no Rio Grande do Sul, são pouco comuns (MANCIA, 1997; MARTINS, 2002).
A escassez de estudos e reflexões sobre o tema, frente à crescente demanda por atividades de consultoria, constituiu a principal justificativa para o desenvolvimento desta pesquisa. O estudo buscou a articulação entre elementos empíricos e pressupostos teóricos, de modo a problematizar as práticas de consultoria em psicologia organizacional e do trabalho como um fenômeno atravessado por determinações históricas, políticas e socioeconômicas. Conhecer a trajetória de consultorias gaúchas pioneiras e compreender suas práticas inseridas nas complexas configurações do cenário de trabalho contemporâneo constituem os principais objetivos do estudo.
No início da década de 1970, período em que surgem as primeiras empresas em psicologia organizacional e do trabalho no Rio Grande do Sul, o país vivia um período de expansão, no qual os créditos governamentais impulsionavam o setor industrial e de serviços (LOPEZ, 1991). Com o modelo econômico adotado, o Produto Interno Bruto (PIB) chegou a crescer anualmente numa média de 8%, entre 1969 e 1973. Como referem Costa e Mello (1996): "Os meios de comunicação e a propaganda proclamavam a existência de um 'milagre brasileiro' e o empresariado estrangeiro e nacional demonstrava euforia" (p. 298). As oportunidades de emprego aumentavam intensamente com o crescimento da atividade das multinacionais no país, e a expansão do crédito ao consumidor possibilitou uma elevação no padrão de consumo da classe média em níveis de sofisticação até então desconhecidos.
Após 1975, a denominada crise do petróleo mostrou como persistiam intocados os problemas estruturais da economia brasileira. Embora o processo de abertura da economia brasileira ao capital externo já tivesse seu início em anos anteriores, é na década de 1990 que ele se intensifica. Nesse período, a importação foi amplamente liberalizada, e o controle estatal sobre produtos básicos do consumo foi praticamente eliminado (SINGER, 1999). A abertura da economia e a desregulamentação do mercado impulsionaram a importação das propostas de reestruturação produtiva no país: modelo japonês, especialização flexível, qualidade total, enxugamento do quadro funcional e terceirização foram termos gradativamente incorporados ao cotidiano das empresas brasileiras, com impacto também nas práticas em psicologia organizacional e do trabalho.
A discussão sobre as relações entre psicologia e o contexto laboral se torna mais intensa a partir do início do século XX. Nesse período de consolidação da razão científica, principalmente nos Estados Unidos, a premissa de que, para cada problema, haveria uma solução racional se tornou ponto de partida para a psicologia aplicada. O cenário, no setor produtivo, era especialmente favorável à aproximação com a psicologia. Os princípios do taylorismo enfatizavam a seleção de homens com aptidões necessárias a cada atividade, a instrução dos trabalhadores eleitos, a fim de evitar o gesto inútil e a perda de tempo, e a estimulação máxima dos trabalhadores à produção (PATTO, 1984). Seleção, treinamento e motivação são as três noções essenciais para uma atuação sob a perspectiva taylorista, e é pautada pela lógica da Escola da Administração Científica que a psicologia se insere no espaço laboral.
A suposta neutralidade da ciência e da técnica, aliada à valorização das competências individuais, funcionaram como um eficiente instrumento de incremento da produtividade e dissociação dos laços de solidariedade entre os trabalhadores. Entretanto, o crescente agravamento dos conflitos nas relações laborais, o decréscimo da produção e os altos índices de absenteísmo e afastamento por doenças indicavam que ainda faltavam pressupostos que garantissem às organizações uma aparência mais dinâmica, saudável e produtiva. Surge, então, uma corrente de pensamento, idealizada pelo psicólogo australiano Elton Mayo, que apontava para a necessidade de se ampliar a compreensão sobre os fatores psicológicos relacionados ao desempenho. Baseada no princípio da cooperação entre diversos níveis hierárquicos, a então chamada Escola das Relações Humanas consolida a participação da psicologia nas organizações, com o objetivo de identificar, canalizar e dissolver os conflitos relacionados ao trabalho. Segundo Spink (1996), o potencial conflitivo entre a influência taylorista na psicologia e os pressupostos da Escola das Relações Humanas não aconteceu na prática, e as duas tendências acabaram por coexistir, criando tão somente uma falsa dicotomia entre os chamados psicólogos tecnicistas e os humanistas.
É a partir do Movimento das Relações Humanas que a aproximação com a produção teórica da psicologia social norte-americana se consolida (JACQUES, 1999). Estudos sobre atitude, motivação, liderança e comportamento grupal desenvolvidos por essa vertente da psicologia social foram essenciais às práticas da então chamada psicologia industrial. Os princípios de equilíbrio, adaptação e cooperação norteiam as atividades propostas e se fundamentam em pressupostos associados à perspectiva funcionalista da psicologia social e ao modelo biológico. Esse modelo inspira o uso da expressão organização, que se difunde e se consolida nas teorias da administração, expressando a concepção de que qualquer sistema em mudança constante sobrevive somente através da adaptação ao ambiente. O enfoque sistêmico alcança o psicólogo, que deixa de ser industrial para ser organizacional. A psicologia organizacional amplia seu espaço de atuação e, pela primeira vez, assume o formato de consultoria empresarial (JACQUES, 1989), que vai adquirir diferentes configurações conforme as demandas do contexto produtivo.
Block (2001) afirma que o consultor é "... uma pessoa que está em posição de exercer alguma influência sobre um indivíduo, grupo ou organização, mas não tem poder direto para produzir mudanças ou programas de implementação." (p. 2). Não possuir o controle direto da situação é, para Oliveira (1999), a premissa principal da atuação do consultor, pois é essa característica que o diferencia de um diretor ou executivo da empresa-cliente. O autor define a consultoria empresarial como:
... um processo interativo de um agente de mudanças externo à empresa, o qual assume a responsabilidade de auxiliar os executivos e profissionais da referida empresa nas tomadas de decisão, não tendo, entretanto, o controle direto da situação. (OLIVEIRA, 1999, p.21)
Orlickas (1998) salienta a necessidade de capacitação profissional do consultor, pois, para a autora, "consultoria (...) é o fornecimento de determinada prestação de serviço, em geral por um profissional muito qualificado e conhecedor do tema" (p. 22). Outros autores em administração (CASE, CASE e FRANCIATTO, 1997) ressaltam que tal qualificação freqüentemente se restringe a uma área de conhecimento determinada: "Ele (o consultor) é um expert na solução de algum tipo particular de problema." (p. 2).
Enfatizando a idéia de que o consultor é um profissional que auxilia os clientes a encontrarem soluções para problemas da organização, Schein (1972) define a consultoria como "um conjunto de atividades desenvolvidas pelo consultor, que ajudam o cliente a perceber, entender e agir sobre fatos interrelacionados que ocorram em seu ambiente" (p. 8). A perspectiva do autor se aproxima do enfoque clínico em psicologia, quando ressalta que a tarefa do consultor é:
... ajudar a organização a resolver seus próprios problemas, tornando-a consciente dos procedimentos organizacionais, através dos quais eles podem ser modificados, O consultor de procedimentos ajuda a organização a aprender através da autodiagnose e da auto-intervenção. (SCHEIN, 1972, p. 145).
A consultoria empresarial (em suas mais diversas definições e caracterizações) é apontada como um dos segmentos de prestação de serviços que mais tem crescido no mundo (OLIVEIRA, 1999). No Brasil, esse fenômeno começou a ser percebido na década de 1960, com o crescimento do parque industrial, mas é na década de 1990 que essa tendência se fortalece. De acordo com o autor, o aumento recente na demanda pelo serviço de consultoria é resultado do processo de globalização, que exige das empresas a busca de desenvolvimento, inovações e melhorias contínuas que consolidem suas vantagens competitivas no mercado.
A consultoria para desenvolvimento organizacional (DO) é um estilo de trabalho que surge em meados da década de 1960, num contexto em que grandes transformações históricas, socioeconômicas e culturais começavam a se delinear. Tem suas raízes no pensamento sistêmico, que emergiu simultaneamente em diversas áreas do conhecimento, na primeira metade do século XX. "Os pioneiros do pensamento sistêmico foram os biólogos, que enfatizavam a concepção dos organismos vivos como totalidades integradas." (CAPRA, 1996, p. 33). A noção de evolução e desenvolvimento contínuo dos organismos vivos foi um conceito adaptado do entendimento biológico para o funcionamento das empresas, que passaram a receber a nomenclatura de organizações. Embasado na perspectiva sistêmica, o desenvolvimento organizacional (DO) parte do pressuposto de que uma empresa ou organização é um sistema aberto que sofre pressões e demandas ambientais, necessitando de renovação constante para manter sua capacidade de adaptação (SOUZA, 1975).
Em suas definições iniciais, o processo de desenvolvimento organizacional envolveria a empresa como um todo em um trabalho de mudança em longo prazo, exigindo a assistência do consultor por um tempo prolongado. Entretanto, a velocidade das mudanças contemporâneas vem alterando o papel do consultor: "Os dias de longos estudos e respostas guiadas pela experiência estão ficando para trás." (BLOCK, 2001, p. XXI). Cada vez mais, o consultor é convocado a solucionar problemas comportamentais com intervenções em curto prazo, que assegurem a competitividade da empresa no mercado.
A terceirização é apontada como outro fator que contribui decisivamente para o incremento da atividade de consultoria: "Muitas grandes organizações descobriram que era mais lucrativo contrair e fundir e terceirizar tarefas; essa mentalidade dominou os anos 80 e 90 e não mostra nenhum sinal de abatimento. (...) e a indústria de consultoria tem se beneficiado desse movimento." (BLOCK, 2001, p. 230). A terceirização ocorre quando atividades que não constituem a essência dos produtos ou serviços de uma empresa são transferidas a terceiros (pessoas físicas ou jurídicas), o que possibilitaria às empresas delimitar o núcleo do seu negócio (OLIVEIRA, 1999). Entretanto, a grande vantagem competitiva do processo de terceirização é a redução dos custos fixos da organização-cliente.
Para o profissional responsável pela consultoria, uma das principais vantagens desse tipo de prestação de serviços seria a possibilidade de ação. De acordo com diversos autores em administração (OLIVEIRA, 1999; CASE, CASE e FRANCIATTO, 1997), o consultor disporia de maior liberdade para correr riscos, devido à sua maior aceitação entre os dirigentes e funcionários da empresa. Amaior liberdade de atuação do consultor em relação ao empregado da organização é, no entanto, questionada por Bock (2001), quando afirma que o consultor enfrenta permanentemente o conflito entre expor suas idéias e se conformar às expectativas dos clientes. Destaca que o consultor geralmente é contratado quando os gestores têm a sensação de que perderam o controle sobre determinada situação e esperam que o consultor os auxilie a retomá-lo: "... a consultoria, na maioria dos casos, causa impacto sobre pessoas que desejam ter mais controle. (...) O fato de que a maioria dos clientes procura nos consultores um modo de aumentar o próprio senso de controle torna o trabalho de consultoria mais difícil." (p. XXV). Para o autor, a verdadeira função do consultor é ajudar os clientes a aprenderem a funcionar melhor, em um mundo permanentemente fora de controle.
2. Método
A pesquisa seguiu as orientações metodológicas do estudo de caso, investigando o conjunto de processos socioeconômicos, históricos e políticos que atravessam a construção das práticas de consultoria em empresas pioneiras no campo da psicologia organizacional e do trabalho no Rio Grande do Sul.
O primeiro procedimento da pesquisa consistiu na realização de um levantamento sobre todas as empresas que possuíam registro de pessoa jurídica no Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul - Região 07 (CRPRS). Esse levantamento, autorizado pelo órgão referido, forneceu um panorama geral, caracterizando as empresas cadastradas no período de janeiro de 1979 a dezembro de 2004.
De 1979 a 2004, foram registradas 347 empresas no CRPRS. Dessas, 269 (77,5%) continuam em atividade. As empresas com registros inativos somam 76 (21,9%), e o restante dos arquivos (duas empresas, correspondentes a 0,6% do total) não foi localizado (ver figura 1). Tendo em vista os objetivos da pesquisa, foram consultados somente os registros de empresas que continuam em atividade. Desses, pôde-se ter acesso a 224 arquivos (64,5% do total de registros), pois o restante (45 arquivos, correspondentes a 13% do total de empresas) não estava disponível para consulta. Todos os dados discutidos a seguir referem-se a esses 224 registros de empresas ativas.
Os arquivos do CRPRS disponibilizam, entre outros, dois dados fundamentais sobre as empresas cadastradas: a data de início da atividade da empresa e a data de registro de pessoa jurídica no Conselho Regional de Psicologia. Em parte dos arquivos, essas datas não coincidem, o que ocorre devido a duas circunstâncias diferentes: a empresa ter sido cadastrada em ano posterior ao de início da atividade; ou a empresa ter iniciado sua atividade comercial antes da criação do CRPRS, em 1974 (ver figura 2). Assim sendo, nem todas as empresas que começaram a prestar serviços em 1995, por exemplo, registraram-se no mesmo ano. Aconvergência das duas datas (início de atividade e registro no CRPRS) é uma tendência recente, possivelmente impulsionada pela consolidação do Conselho Regional de Psicologia como órgão responsável pela regulamentação da atividade profissional em psicologia.
Os registros do CRPRS também permitem identificar a(s) área(s) de atuação das empresas cadastradas, através dos objetivos definidos no contrato social. É importante salientar que a maior parte dos proprietários indica mais de uma área de atuação dentre os objetivos da empresa, englobando uma ampla gama de serviços disponibilizados, o que dificulta a sistematização dos dados. No presente estudo, os critérios utilizados para a classificação das áreas de atuação em psicologia foram os mesmos que servem de parâmetro para delimitar as especialidades instituídas para pessoas físicas. O percentual total supera os cem por cento, devido à já referida conexão entre diversas áreas de atuação presentes nos objetivos de uma mesma empresa (ver figura 3).
Com base no levantamento realizado no CRPRS, foram escolhidas duas empresas para realização de estudo de caso. Os critérios de escolha foram:
Principal área de atuação da empresa. A prestação de serviços em psicologia organizacional e do trabalho foi a atividade selecionada, em coerência com o tema de pesquisa. A definição dos serviços específicos da área de psicologia organizacional e do trabalho foi realizada de acordo com a resolução 02/2001 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), em conjunto com o Catálogo Brasileiro de Ocupações do Ministério do Trabalho.
Período de início da atividade e tempo de atuação no mercado. Foram selecionadas as empresas que iniciaram suas atividades na década de 1970 e que permanecem em atividade na área de psicologia organizacional e do trabalho. As empresas escolhidas efetuaram registro de pessoa jurídica entre 1970 e 1979 e são as únicas (nesse período) em cujos contratos sociais constam atividades relacionadas à área de psicologia organizacional e do trabalho. O tempo de atuação no mercado de trabalho foi um critério decisivo na escolha das empresas, pois permite maior riqueza de dados referentes aos processos históricos, políticos e socioeconômicos que marcaram a trajetória dessas organizações.
Os participantes do estudo foram os proprietários das duas empresas escolhidas para a pesquisa e os profissionais que nelas exercem atividades relacionadas à psicologia. A realização de entrevistas semi-estruturadas foi a principal fonte de dados empíricos da pesquisa. As entrevistas foram transcritas e posteriormente disponibilizadas a todos os participantes do estudo, para que eles as reformulassem ou confirmassem o conteúdo expresso nas transcrições dos depoimentos.
Outra fonte de informações para pesquisa foi a análise de documentos das empresas. Esses documentos incluíram, além dos arquivos do CRPRS, todo o material publicitário impresso (em períodos anteriores e atualmente), assim como as informações disponíveis nos sites das empresas na internet. Além dos documentos referidos, também foram analisados manuais de treinamento utilizados pelas empresas e publicações referentes a serviços prestados, todos disponibilizados pelos proprietários ou funcionários vinculados às organizações.
A análise dos dados foi baseada nos pressupostos gerais para estudo de caso, referidos por Yin (2001). O autor salienta que existem poucas estratégias definidas para análise no estudo de caso e que a produção de conhecimento está intimamente vinculada ao estilo de pensar do pesquisador, à apresentação cuidadosa dos dados e à análise acurada de possíveis interpretações alternativas para os dados. Como estratégias gerais para auxiliar a análise dos dados empíricos, o autor propõe duas alternativas.
A primeira, e mais importante, é seguir as proposições teóricas que fundamentam o estudo de caso, estabelecendo relações e novas interpretações a partir dos pressupostos teóricos norteadores. A orientação teórica serviria, portanto, como guia de análise para o estudo de caso, auxiliando o pesquisador a definir os seus focos de atenção e os dados que serão deixados em segundo plano. A segunda estratégia consiste em desenvolver uma descrição do(s) caso(s) que organize o estudo, servindo de base para estabelecer nexos futuros com as proposições teóricas.
3. Descrição das empresas
EMPRESAALFA*
Em março de 1972, surgia a empresa Alfa. Pioneira na prestação de serviços em psicologia industrial (hoje denominada psicologia organizacional e do trabalho), a empresa surge da sociedade entre um psicólogo e um administrador de empresas. Embora inclua, no contrato social, a prestação de serviços em psicologia clínica, a Alfa tem sua trajetória marcada pelo campo organizacional. No princípio, os serviços prestados pela empresa podiam ser sintetizados em quatro atividades principais: recrutamento, seleção de pessoal, treinamento e política de salários.
A atividade de recrutamento consistia no conjunto de ações destinadas à divulgação de vagas de trabalho e contato com candidatos dispostos a se submeter ao processo seletivo. Aseleção de pessoal era a etapa subseqüente, que consistia na realização de uma bateria de testes psicológicos e entrevistas para a escolha dos candidatos indicados às vagas. O treinamento englobava uma ampla gama de atividades (palestras, trabalhos com grupos, entre outras), cujo objetivo principal era promover a capacitação para o trabalho. Já a política de salários consistia em uma pesquisa realizada pela Alfa com empresas de grande, médio e pequeno porte da região metropolitana de Porto Alegre. Os gerentes de recursos humanos recebiam formulários nos quais informavam o nome dos cargos da empresa e os salários pagos aos funcionários que ocupavam tais funções. Os dados eram compilados e serviam de parâmetro para os empregadores definirem a remuneração dada aos seus empregados, de acordo com o mercado.
A empresa Alfa contava, inicialmente, com o trabalho dos proprietários, de uma auxiliar administrativa (esposa do psicólogo proprietário) e mais duas psicólogas, que elaboravam os laudos para a seleção de pessoal. Também integravam o grupo de funcionários da empresa uma datilógrafa, um office-boy e uma faxineira. A auxiliar administrativa refere que a demanda pelo serviço de seleção de pessoal, naquele período, era tão intensa, que os psicólogos chegavam a elaborar mais de 300 laudos para cargos diversos em apenas um mês.
No final da década de 1970, início dos anos de 1980, a empresa começou a sentir o impacto de uma "crise de mercado". A gradativa redução da demanda pelo processo de seleção de pessoal foi um dos principais sinalizadores dessa crise. Com a queda da demanda por um de seus principais serviços, a Alfa foi reduzindo o seu quadro funcional, até ficar apenas com os sócios proprietários e a auxiliar administrativa. Algum tempo depois, o sócio administrador recebeu outra proposta de trabalho e decidiu se afastar da sociedade. Entretanto, o registro de pessoa jurídica só foi efetivamente alterado no final dos anos de 1990, quando a filha do casal que mantinha a empresa substituiu o administrador na sociedade limitada.
O proprietário fundador afirma que hoje não contam com nenhum outro profissional no quadro fixo da empresa, que está em sua segunda sede. A contratação temporária de funcionários é a opção da Alfa quando assume compromissos que exijam maior número de profissionais. Atual sócio majoritário da empresa, ele continua no comando da Alfa, auxiliado por sua esposa. Os serviços de recrutamento, avaliação psicológica para seleção e promoção de pessoal, e treinamento ainda fazem parte das atividades da empresa. A prática de política de salários, no entanto, foi, em grande parte, abandonada pela Alfa, pois, segundo o proprietário, esse tipo de serviço não tem mais o impacto que tinha no período de grande inflação. Tal atividade surge apenas como uma das opções do extenso pacote de serviços disponibilizados pela Alfa através da prática de consultoria.
Embora já fizesse parte das opções de serviços da Alfa há muitos anos, a consultoria assumiu um papel importante no cotidiano da empresa apenas recentemente. O proprietário caracteriza a consultoria como sendo um trabalho
... lindo, é lindo. Então, você faz o quê? Você toma conta de toda a administração de recursos humanos, a parte técnica.
Na "parte técnica", ele inclui a definição da estrutura organizacional, com a descrição de funções e hierarquia de cargos (organograma); o treinamento semanal de grupos executivos ou de lideranças, o que inclui palestras e discussões sobre a rotina de trabalho; e o atendimento clínico de funcionários das empresas contratantes:
Você faz psicologia organizacional a mais pura possível, você acompanha estratégias da empresa e acompanha o pessoal, dá assistência ao pessoal, enfim, o objetivo é dar todo um amparo à equipe de funcionários.
A paixão e o entusiasmo do sócio fundador pela profissão transparecem ao longo das entrevistas, assim como o orgulho que sente por ter criado e mantido uma empresa pioneira em psicologia organizacional.
EMPRESABETA*
Foi no ano de 1972 que três psicólogos tiveram a idéia de montar uma empresa de prestação de serviços em psicologia organizacional e do trabalho. O começo da empresa foi difícil, mas compensado pelo intenso ritmo de atividades que caracterizaram a segunda metade da década de 1970. Os serviços de recrutamento e seleção, pilares das atividades da Beta naquele período, foram fortemente favorecidos pelo contexto socioeconômico brasileiro. Um dos sócios fundadores descreve esse momento:
Então, com o 'boom' dos anos 70, a segunda virada da década de 70, começou o milagre brasileiro; então tinha muito ingresso de mão-de-obra nas empresas, principalmente nas indústrias, então nós acompanhamos esse movimento.
A demanda pelos serviços de recrutamento e seleção possibilitou o crescimento da Beta. Aempresa, que contava inicialmente apenas com a sede em Porto Alegre, abriu mais três filiais, duas na capital gaúcha e uma na região serrana do estado.
No início da década de 1980, ingressaram dois novos sócios na Beta: um psicólogo e um administrador. Aos poucos, alguns sócios foram deixando a empresa, até que, em 1984, um dos fundadores comprou a parte dos sócios que restavam e seguiu como único proprietário da Beta. A partir de 1988, a empresa concentrou suas atividades em apenas um local, onde permanece até hoje.
Após a dissolução da sociedade, a gama de serviços disponibilizados pela empresa aumentou consideravelmente: além da avaliação psicológica, do recrutamento e da seleção de pessoal, a empresa passou a oferecer treinamentos (abertos e in company) e consultoria organizacional. A visão empreendedora do sócio remanescente já se manifestava antes da dissolução da sociedade, quando ele começou a se dedicar, de forma independente, à promoção de eventos em recursos humanos, atividade que não interessava aos demais proprietários. Os eventos cresceram nos anos seguintes e foram incorporados às atividades da empresa.
Na década de 1990, a empresa deixa de realizar recrutamento de pessoal, opção motivada por fatores que o proprietário fundador esclarece:
Paramos com o recrutamento porque, primeiro, porque começou a haver mais desemprego do que emprego e, segundo, que estava assim muito aviltado no mercado, o pessoal já não queria fazer com exclusividade; então, se tornou, em vez de trabalho técnico, se tornou uma correria pra ver quem chegava primeiro com o candidato. Então ficou muito pobre em questão de ética e possibilidade de fazer um bom trabalho.
Atualmente, a coordenação de congressos em recursos humanos e a atividade de consultoria são os principais serviços disponibilizados pela Beta. O atual proprietário e sócio fundador caracteriza a consultoria como o trabalho de agentes externos de mudança organizacional:
Às vezes trabalhando a diretoria, às vezes trabalhando com a área de RH, às vezes trabalhando com as duas ao mesmo tempo, então, o foco quase sempre em mudança, mudança de comportamento, mudança cultural, pra isso tem que fazer diagnóstico, tem que fazer as intervenções. Algumas vezes tem que fazer intervenções de grupo, a gente trabalha muito com dinâmica de grupo.
A diversificação de atividades é uma das estratégias à qual o fundador atribui o fato de a empresa vir se mantendo no mercado há tantos anos. Refere que, se a Beta continuasse exclusivamente na atividade de recrutamento, teria deixado de existir há muitos anos.
A Beta foi gradativamente sendo transformada em uma empresa com funcionamento familiar. Os atuais proprietários são, além do sócio fundador, sua esposa e dois de seus filhos. A empresa conta em seu quadro fixo com oito pessoas: o proprietário fundador; sua filha, que também é psicóloga e atua na empresa na área organizacional; seu filho, responsável pelo campo de informática na empresa; sua esposa, psicóloga que atua na coordenação dos eventos; uma psicóloga que é responsável pela avaliação psicológica e também trabalha na organização dos eventos; e mais três funcionários que auxiliam nas atividades administrativas da empresa (secretariado, entre outras).
4. Resultados
O estudo da trajetória das empresas pioneiras no campo de psicologia organizacional e do trabalho permitiu identificar algumas regularidades nas propostas iniciais de trabalho da psicologia na década de 1970. As práticas de recrutamento e seleção predominavam entre os serviços disponibilizados, amplamente favorecidas pelo contexto político e socioeconômico do período. O "milagre brasileiro" ofuscava a população, com o crescimento vigoroso da economia, o estímulo ao consumo e o aumento expressivo no número de vagas de trabalho, enquanto ocultava o endividamento crescente do país e a crueldade da repressão política.
A abundância de oportunidades de trabalho e emprego, na década de 1970, são as principais lembranças dos proprietários fundadores da Alfa e da Beta. O proprietário da Alfa destaca o grande número de vagas disponíveis na época, assim como a ausência de qualquer preocupação dos empresários com o custo das contratações. Os psicólogos que atuavam no campo industrial ou organizacional também foram fortemente beneficiados com oportunidades diversas de trabalho, geradas, segundo os participantes, pelo suposto "milagre brasileiro".
A ênfase nas atividades de recrutamento, seleção (realizadas preferencialmente com base na avaliação psicológica), na época de surgimento das empresas, também é recorrente entre os participantes. Aliado às práticas de recrutamento e seleção, o treinamento também foi referido como um dos serviços principais na década de 1970:
O que mais se fazia: primeiro, seleção de pessoal. Segundo, recrutamento. Terceiro, tinha muito treinamento, se investia bastante no treinamento.
Os pressupostos que norteavam as práticas de treinamento, no período, encontravam subsídios entre alguns manuais de treinamento utilizados na época. Entre esses manuais, está o TWI - Training Within Industry (Treinamento dentro da indústria). O TWI chegou ao Brasil em 1949, e seu uso foi difundido através do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). Sua utilização atingiu o auge nas indústrias entre 1955 e 1960, continuou sendo freqüente na década de 1970 e ainda hoje figura entre as opções de cursos do SENAI e SENAC, com modificações e ampliação do número de fases de treinamento.
Os livros que contêm a descrição das fases do TWI estão repletos de diretrizes minuciosas sobre o trabalho em indústria. Enfatizando o distanciamento entre quem supervisiona o trabalho e quem deve ser supervisionado, o manual prescreve que:
Uma boa instrução ou supervisão consiste, principalmente, em conseguir que o aprendiz ou operário faça o que o instrutor deseja dele, na ocasião em que deve ser feito e de acordo com os padrões de qualidade exigidos. (...) O bom supervisor procura obter do seu operário o melhor trabalho no menor tempo. E esses resultados não poderão ser alcançados se os aprendizes ou operários não forem completa e cuidadosamente instruídos. (SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM INDUSTRIAL, 1958, p. 60)
Inserido nessa proposta, o treinamento seria uma estratégia que possibilitaria maior agilidade na adaptação total do trabalhador à função.
... o treinamento no trabalho consiste em alguma coisa mais do que apenas ensinar uma habilidade mecânica. Inclui o auxílio ao operário para que ele se ajuste ao meio, dando-lhe idéia da organização de que faz parte e do lugar que tem a preencher nessa organização. (SERVIÇO NACIONALDE APRENDIZAGEM INDUSTRIAL, 1959, p. 105)
As diretrizes que orientavam as práticas dos profissionais da psicologia na década de 1970 encontraram respaldo nos pressupostos teóricos que norteavam as práticas psi do período, nas formas hegemônicas de organização do trabalho e na produção conceitual do campo da administração. Como assinala Coimbra (1999), a marca da tradição positivista alcança a psicologia em todos os campos de atuação, o que pode ser exemplificado pela hegemonia do behaviorismo e dos pressupostos da psicologia social de inspiração norte-americana. No campo organizacional, essa tendência se fortaleceu, aliada a teorias da administração, como o taylorismo-fordismo.
Entretanto, as transformações que abalaram a sociedade ocidental nas últimas décadas produziram diversos desdobramentos, que atingiram os profissionais em todas as áreas de conhecimento, inclusive na psicologia. As transformações na organização produtiva e na gestão das empresas de capital privado tiveram impactos importantes na trajetória das empresas Alfa e Beta e nas práticas de seus proprietários e profissionais vinculados. A intensificação na retração do mercado e o processo violento de enxugamento das empresas são destacados por um dos participantes:
Com toda a abertura que o Fernando Henrique criou, o empresário começou a se voltar pra dentro da empresa, começou a se preocupar com o custo do pessoal. E começou a enxugar a empresa, pôr na rua, pôr na rua... Então, enxugou os quadros e foi um enxugamento muito violento. Ele foi tão violento, que a seleção acabou, porque você não admitia ninguém. Primeiro tu enxugou pondo pra rua. Depois tu enxugou pondo um tampão. Você não admitia. O fulano saía, morria ou ia embora e ele não repunha, ia deixando o quadro se ajeitar. Então os quadros começaram a trabalhar bem estrangulados. Falta de dinheiro, então, uma retração, essa coisa toda, não treina. Treinar é um investimento, mas custa dinheiro, então vamos tocando. Então a nossa área sofreu.
Os processos de enxugamento atingiram as empresas pesquisadas, que também passaram a reduzir gradativamente o quadro funcional e a terceirizar serviços, como estratégias para manter a sobrevivência no mercado. Outra razão apontada pelos participantes como essencial para que as empresas permanecessem no mercado foi a formação de uma rede de relações estabelecidas com profissionais da área e clientes. Para Oliveira (1999), a propaganda "boca-a-boca" é a principal forma de divulgação do trabalho na área organizacional. De acordo com o autor, os antigos clientes são os melhores contatos comerciais para os serviços de um profissional ou empresa.
A seriedade, a dedicação, o profissionalismo e o amor ao trabalho também são fatores destacados pelos participantes como motivos para as empresas permanecerem em atividade. Mas é a adaptação ao mercado, através da diversificação de atividades e serviços, que surge como uma das justificativas principais para a continuidade das empresas ao longo de mais de três décadas. A inovação e a descoberta de novos "nichos" de trabalho, como o serviço de consultoria, são estratégias importantes destacadas por vários participantes.
A multiplicidade de significados atribuídos pelos participantes do estudo ao termo consultoria é um dos resultados marcantes da pesquisa. Quando questionado sobre o assunto, um dos participantes apresenta justificativas para essa diversidade:
(A consultoria) é um campo muito amplo e muito pouco regrado: não existe um conselho, não existe uma sociedade assim, que fundamente formas de atuação. Então, cada um faz o seu caminho. Então, na realidade, eu acho que essa é a grande questão. Acho que isso é que dá esse contorno tão difuso.
A concepção de consultoria como promoção do desenvolvimento organizacional pode ser percebida nos depoimentos de diversos participantes:
Pegamos principalmente o desenvolvimento organizacional como foco de consultoria.
O fortalecimento da atividade de consultoria como conseqüência do desemprego crescente e da terceirização de serviços é outro aspecto importante, que surge no depoimento dos profissionais entrevistados:
Outro exemplo igualzinho ao nosso: a área de informática, como é que era a área de informática? Tínhamos dois ou três analistas, cinco programadores, vários digitadores. Cita uma, uma empresa que tenha isso hoje. Por quê? Tu tá em rede. Tu quer um programa, pega o telefone, telefona pra uma empresa de sistema. Faz o programa, acabou. Não precisa ter o empregado, o que me custa 100% do valor do salário. Então todos os caras que era gerentes de RH passaram a ser o quê? Consultores. Todos os caras que eram gerentes de sistemas passaram a ser o quê? Consultores. Todos os caras que eram chefes de marketing, passaram a ser consultores. E nós, psicólogos, passamos a ser consultores.
O depoimento desse participante retrata claramente o impacto das mudanças organizacionais no trabalho do psicólogo e corrobora a perspectiva de Oliveira (1999). O autor ressalta que as principais áreas atingidas pelo processo de terceirização são os serviços de informática e recursos humanos.
O uso do termo consultoria, entre os participantes, aplica-se como sinônimo de empresa ("dezenas ou centenas de consultorias abriram e fecharam"); como um serviço que se fortalece a partir dos processos de enxugamento e terceirização, anteriormente referidos; e, principalmente, como a intervenção de um agente externo, sem vínculos com a organização. A terceira definição de consultoria é, para Oliveira (1999), um dos aspectos essenciais, pois, segundo o autor, somente um profissional externo à empresa-cliente consegue exercer em plenitude a consultoria empresarial, devido ao seu menor envolvimento com o cotidiano da organização. A caracterização da consultoria como a ação de um agente externo à organização foi recorrente entre os participantes do estudo, e a maior imparcialidade desse profissional foi destacada como a principal vantagem da intervenção do consultor. Para os entrevistados, um consultor externo tende a identificar com maior precisão as dificuldades enfrentadas pelos clientes, justamente por não estar implicado com os valores e práticas vigentes na organização.
A maior credibilidade do profissional de consultoria frente à diretoria da empresa também foi destacada pelos participantes, o que vai ao encontro do pensamento de diversos autores em administração (OLIVEIRA, 1999; CASE, CASE e FRANCIATTO, 1997). O profissional responsável pela consultoria externa teria maior liberdade para correr riscos na intervenção, devido à sua maior aceitação entre os dirigentes e funcionários da empresa. As propostas do consultor externo seriam, portanto, melhor aceitas pela diretoria das empresas do que as propostas de um psicólogo contratado, por exemplo:
Ele (o funcionário de recursos humanos contratado) não tem a credibilidade duma consultoria. Os gestores nunca vão confiar 100% na palavra de um funcionário como eles confiam numa consultoria, não sei se por modismo, ou por achar que ele não tem capacidade. O funcionário de RH pode ter dito exatamente a mesma coisa que um consultor, mas eles sempre vão dar mais credibilidade pro consultor.
A maior proximidade do consultor com os gestores da empresa é outra característica tomada como um pressuposto do serviço de consultoria e que emerge nos depoimentos dos participantes. Como afirma Bastos (1999): "ser consultor de organizações significa trabalhar para uma organização no código de sua gestão." (p. 78). Oliveira (1999) corrobora essa perspectiva destacando que o trabalho do consultor deve "... estar direcionado a proporcionar metodologias, técnicas e processos que determinem a sustentação para os executivos das empresas tomarem suas decisões com qualidade." (p. 22). No momento em que um psicólogo se define como consultor, ele parece estar também delimitando o grupo de pessoas com as quais pretende trabalhar diretamente. De acordo com um dos psicólogos entrevistados, o profissional que hoje atua nas organizações é um consultor da diretoria, um profissional que auxilia a diretoria na gestão dos recursos humanos. Outro participante ressalta, entretanto, que:
O psicólogo, via de regra, ele não trabalha com o primeiro escalão, com o diretor, com o presidente. Via de regra ele trabalha mais junto ao gestor de recursos humanos. Então isso também reduz um pouco a sua amplitude e até a sua possibilidade de influenciar enquanto agente de mudanças.
Tal redução de poder de intervenção é atribuída pelo entrevistado ao fato de que o subsistema de recursos humanos, ao qual o consultor em psicologia está vinculado, ainda é considerado pelas organizações como um centro de custos e não de resultados. Orlickas (1998) faz referência a esse assunto quando argumenta que: "Em muitas empresas, a gestão de recursos humanos é encarada exclusivamente como centro de custos: ter pessoas é necessariamente ter despesas fixas que afetam o orçamento da empresa." (p. 15). Block (2001) ressalta que, embora exista toda uma retórica direcionada às pessoas e aos relacionamentos, esses "... continuam sendo tratados como uma inconveniência necessária - como se tivessem de ser tolerados." (p. XX). Essa perspectiva é corroborada nos depoimentos dos participantes, que afirmam que, embora a área de recursos humanos seja valorizada no discurso dos gestores como principal ativo das organizações, ela é, na maioria das empresas, deixada em segundo plano.
Entre os motivos que levam uma empresa a contratar o consultor, os participantes destacam as crises nas organizações, especialmente as crises dentro da diretoria, e ressaltam o caráter emergencial da solicitação de intervenção do consultor:
Muitas vezes ele (o consultor) vai lá mais pra apagar incêndio do que pra promover mudança. Age mais como um facilitador em episódios em que a empresa não consegue resolver situações sozinha, conflitos.
O entendimento dos proprietários das empresas vai ao encontro do pensamento de Block (2001), quando destaca que o serviço de consultoria geralmente é contratado quando os gestores têm a sensação de que perderam o controle sobre determinada situação e esperam que o consultor os auxilie a retomá-lo.
A grande diversidade de significados atrelados ao termo consultoria nos dá a dimensão da complexidade de problematizar essas práticas, inseridas nas relações de trabalho contemporâneas. Como a própria palavra indica, o contemporâneo sinaliza para a convivência simultânea de diversas concepções e de formas de trabalhar.
5. Conclusão
A pesquisa junto ao cadastro de pessoa jurídica do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul permitiu identificar apenas duas empresas pioneiras no campo de prestação de serviços em psicologia organizacional e do trabalho no Rio Grande do Sul e que permanecem em atividade atualmente. Aponta também para o predomínio da psicologia clínica entre as propostas de intervenção das empresas cadastradas.
Temáticas que envolvem o funcionamento familiar da Alfa e da Beta surgiram com freqüência no depoimento dos participantes. O fato de ter pessoas da família como proprietárias da organização é o aspecto que permite aos entrevistados classificar as empresas como familiares. Entretanto, embora os núcleos proprietários de ambas as empresas sejam constituídos por membros da família, tanto a Alfa, quanto a Beta parecem ser mais bem classificadas como empresas pessoais, por ainda estarem fortemente associadas aos fundadores, psicólogos do sexo masculino.
As práticas de recrutamento e seleção predominavam entre os serviços disponibilizados na década de 1970, amplamente favorecidas pelo contexto político e socioeconômico do período do "milagre brasileiro". Nos últimos anos, as transformações no contexto produtivo promoveram o fortalecimento das práticas de consultoria, que assumem, para os participantes do estudo, concepções bastante diversificadas.
O fortalecimento do serviço de consultoria surge como uma resposta das empresas às novas configurações da organização do trabalho. O decréscimo da demanda pelo recrutamento e seleção de pessoal impulsionou a busca pela diversificação de serviços disponibilizados, agrupados sob a definição de consultoria. O termo consultoria foi associado a uma grande diversidade de conceitos e procedimentos. Foi classificado, principalmente, como a intervenção de um agente externo à empresa, responsável pela promoção de mudança e desenvolvimento organizacional (norteado pelos pressupostos da teoria sistêmica); também foi definido como um novo tipo de vínculo de trabalho, resultado dos processos de enxugamento e terceirização; e, finalmente, foi utilizado como um sinônimo de empresa de prestação de serviços.
O trabalho de consultoria também abre diversas possibilidades de ação do psicólogo, porque vem atrelado a procedimentos de diagnóstico organizacional, treinamento, desenvolvimento de equipes, análise da estrutura organizacional da empresa, políticas de remuneração e também aos serviços de seleção. A consultoria parece abrigar, em sua indefinição, vários procedimentos que anteriormente eram disponibilizados como serviços isolados. Ser consultor descortina um grande leque de funções em uma organização.
Os mesmos processos de transformação das relações de trabalho, que fortalecem a prática de consultoria, também atravessam a organização do trabalho dentro das empresas em psicologia. As consultorias em psicologia organizacional e do trabalho incorporam, em seu cotidiano, os mesmos processos de enxugamento e terceirização dos vínculos empregatícios, com escassas referências ao impacto desses processos para os demitidos e terceirizados. Acompanhar as transformações do contexto de trabalho emerge como estratégia fundamental para a sobrevivência dessas empresas.
A grande questão que emerge da análise da trajetória das empresas pesquisadas é a encruzilhada em que se encontram os psicólogos organizacionais e do trabalho e os profissionais que atuam na formação acadêmica. O campo de consultoria, na sua indefinição, acaba possibilitando também maior autonomia na intervenção do que a série de procedimentos isolados que cabiam ao psicólogo na década de 1970. Apergunta que emerge é como esses profissionais vão se posicionar nessas relações de poder. Como referem Guattari e Rolnik (1988, p. 29):
... devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências sociais e psicológicas, ou no campo do trabalho - todos aqueles, enfim, cuja posição consiste em se interessar pelo discurso do outro. Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para os processos de singularização, ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. Isto quer dizer que não há objetividade científica alguma nesse campo, nem uma suposta neutralidade na relação.
O presente estudo, ao resgatar a trajetória de empresas gaúchas pioneiras na prestação de serviços em psicologia organizacional e do trabalho, buscou contribuir para a reflexão sobre as práticas de consultoria e suas perspectivas de trabalho para o psicólogo. Algumas tendências identificadas neste estudo e não exploradas, como o funcionamento familiar dessas organizações e a centralização das decisões em figuras masculinas, suscitam questionamentos e abrem espaço para o desenvolvimento e aprofundamento de novas pesquisas nesse campo complexo e repleto de possibilidades de intervenção.
Referências
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1 Área não especificada: o objetivo descrito no contrato social não especifica a área da psicologia à qual a empresa se dedica. Por exemplo: "Prestação de serviços em psicologia".
2 Área da saúde e social: serviços em medicina; fisioterapia; fonoaudiologia; nutrição; terapia ocupacional; assistência social.
3 Outros: serviços em engenharia elétrica; formação de condutores; processos químicos industriais; fotografia; atividades artísticas.
4 Área administrativa e financeira: assessoria econômica e financeira; pesquisas de mercado; comércio exterior.