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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.19 no.2 Brasília abr./jun. 2019
https://doi.org/10.17652/rpot/2019.2.15124
Gênero e trabalho na psicologia: revisão sistemática e metanálise qualitativa
Gender and work in psychology: systematic review and qualitative meta-analysis
Género y trabajo en la psicología: revisión sistemática y meta-análisis cualitativo
Valéria Machado Rufino; Tatiana de Lucena Torres; Paulo César Zambroni-de-Souza
Universidade Federal da Paraíba; João Pessoa, Paraíba, Brasil
RESUMO
O presente estudo objetiva analisar a produção científica brasileira em psicologia sobre trabalho e gênero. Para tanto, uma revisão sistemática foi realizada a partir de cinco bases. Inicialmente, após critérios de inclusão, 186 artigos foram selecionados em todas as áreas do conhecimento. Com a análise de juízas, 59 artigos foram classificados como pertencentes à área da psicologia, os quais foram divididos em dois grupos a partir de uma análise cientométrica: (1) (2008-2017, N=38), e (2) (1997-2007, N=21). Uma metanálise qualitativa foi realizada com os artigos publicados nos últimos 10 anos, e estes foram submetidos a análises textuais com auxílio de software. Os resultados indicam que, entre eles, a temática gênero tem sido tratada como foco, sendo o trabalho temática de fundo; e que ainda há uma naturalização dos papéis femininos. Aponta-se a necessidade de estudos em psicologia do trabalho sobre identidade profissional e da trabalhadora, trabalho e não trabalho para mulheres e precarização do trabalho feminino.
Palavras-chave: psicologia; cientometria; metanálise qualitativa.
ABSTRACT
The present study aims to analyze Brazilian scientific production in psychology on work and gender. For this purpose, a systematic review was carried out from five bases. Initially, 186 articles were selected in all areas of knowledge. With an analysis by judges, 59 articles were classified as being from the psychology area. A scientometric analysis was performed on these articles, dividing them into two groups: (1) (2008-2017, N = 38), and (2) (1997-2007, N = 21). A qualitative meta-analysis was done with the articles published in the last 10 years. These were submitted to textual analysis with the use of software. The results indicate that, among them, the theme of gender has been treated as the main focus, with work as the background theme; and that there is still a naturalization of women's roles. There is a need for studies in work psychology on working women and professional identity, work and non-work for women, and threats to job security for women.
Keywords: psychology; scientometrics; qualitative meta-analysis.
RESUMEN
El presente estudio objetiva analizar la producción científica brasileña en psicología sobre trabajo y género. Para ello, se realizó una revisión sistemática a partir de cinco bases. Inicialmente, después de criterios de inclusión, 186 artículos fueron seleccionados en todas las áreas de conocimiento. Con análisis de juzgadores, 59 artículos fueron clasificados como pertenecientes al área de la Psicología., los cuales se dividieron en dos grupos a partir de un análisis cienciométrico: (1) (2008 a 2017 N = 38), y (2) (1997 a 2007 N = 21). Un meta-análisis cualitativo fue realizado con los artículos publicados en los últimos 10 años, que fueron sometidos a análisis textuales con ayuda de software. Los resultados indican que, entre ellos, predominantemente la temática género ha sido tratada como foco, siendo el trabajo temático de fondo; y que aún hay una naturalización de los papeles femeninos. Se apunta la necesidad de estudios en Psicología del trabajo sobre identidad profesional y de la trabajadora, trabajo y no trabajo para mujeres y precarización del trabajo femenino.
Palabras-clave: psicología; cienciometría; meta-análisis cualitativo.
Os novos cenários produtivos, oriundos das transformações dos paradigmas no mundo do trabalho e das rápidas transformações sociais e tecnológicas, têm impactado sobremaneira os estudos acerca da compreensão da relação trabalho e gênero. Partimos do entendimento que a categoria gênero é distinta de sexo. Enquanto sexo diz respeito à uma questão fisiológica, genital e reprodutiva, embora também questionável atualmente, gênero é compreendido como uma construção histórica, social e cultural, implicando sujeições e regulações (Butler, 2014; Scott, 2005; Strey, 2008). Nesse contexto, o campo dos estudos de gênero e suas relações com o trabalho tem recebido cada vez mais destaque no cenário nacional de psicologia (Macêdo & Macedo, 2004), uma vez que a "desigualdade de gênero, na nossa sociedade, se manifesta em variadas formas sutis e repercute em uma violência cotidiana e silenciosa" (Santos, 2013, p. 27).
As mulheres ainda vivenciam desigualdade de oportunidades, de tratamentos e de direitos no mundo do trabalho. Dados atuais indicam que após mais de 20 anos da realização da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em Pequim em 1995, os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceram que a desigualdade de gênero ainda é uma realidade em todos os países do mundo (ONU Brasil, 2018). No Brasil, a desigualdade de gênero no trabalho afeta as mulheres de forma mais objetiva nos salários e nas taxas de participação no mercado de trabalho. Elas recebem em média 75% da renda dos homens e têm uma taxa de participação 20% menor (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2017; Organização Internacional do Trabalho [OIT], 2018).
As pesquisas de gênero na psicologia historicamente focaram as diferenças individuais, buscando estabelecer relações entre as diferenças sexuais e suas habilidades correlatas ou de papéis sociais (Fonseca, 2000; Nuernberg, 2008; Saavedra & Nogueira, 2006; Strey, 2008). No início da década de 1960, foi criada uma divisão na American Psychological Association (APA) dedicada aos estudos das mulheres. Tal divisão permanece até os dias atuais com a denominação de Society for the Psychology of Women ([APA], 2017). Contudo, vale frisar que sua criação, dentro do contexto dominante da ciência psicológica da época, não colocou no bojo das discussões a questão política e as práticas hegemônicas da psicologia (Nogueira, 2000). A partir de 1990, estudos de abordagens metodológicas com perspectiva social, histórica e cultural se intensificaram na área (Portugal & Jacó-Vilela, 2012; Santos, 2013), discutindo para além das questões objetivas das desigualdades de gênero, refletindo as questões de produção de subjetividades das mulheres (Guimarães, 2012).
Diante desse contexto, para compreender as configurações das relações de gênero e trabalho na psicologia, optamos por fazer um estudo metanalítico de cunho qualitativo das produções científicas brasileiras publicadas em periódicos nacionais indexados na área da psicologia. Para tanto, procuramos responder aos seguintes questionamentos: (a) quais as características dos estudos científicos sobre as temáticas trabalho e gênero nas revistas científicas brasileiras de psicologia?; (b) quais os consensos e as contradições encontradas nos achados dos estudos selecionados?; (c) qual a agenda de pesquisa se configura, diante dos achados e lacunas existentes na produção científica da área de psicologia, sobre a temática gênero e trabalho?
Método
O delineamento deste estudo se configura como de levantamento de dados secundários para a realização de revisão sistemática da literatura científica nacional em psicologia, seguida de uma metanálise com as informações acessadas nos artigos selecionados, compondo, portanto, um estudo documental e de levantamento bibliográfico, seguindo as indicações das normas de publicação para metanálises - MARS (APA, 2012).
Procedimento de levantamento de dados
Foi desenvolvida uma revisão sistemática com análise cientométrica dos achados, seguida de uma metanálise qualitativa. A revisão sistemática ocorreu com base em artigos sobre a temática "gênero" e "trabalho" em cinco bases de dados nacionais eletrônicas: SciELO Brasil (Scientific Eletronic Library Online), Portal Periódicos CAPES, LILASCS (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde), PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia), IndexPsi Periódicos/BVS-Psi (Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil). Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: periódico nacional, língua portuguesa, ter os descritores gênero e trabalho no assunto. Com o intuito de averiguar a dimensão dos estudos da área que atendem aos critérios de inclusão, assim como para se ter um panorama do desenvolvimento desses estudos, não foi delimitado um recorte temporal de publicação. Mesmo assim, o artigo mais antigo está datado de 1997. O levantamento e sistematização desse estudo ocorreu entre os meses de maio a setembro de 2017.
Dadas as características de busca de cada base de dados, foram utilizados os descritores "gênero" e "trabalho" no campo "assunto" nos portais SciELO, Periódicos CAPES e PePSIC; "descritor de assunto" no portal LILACS; e "descritor PsiPortugues" no portal BVS-PSi. Na base de dados da BVS-Psi, utilizou-se o refinamento adicional "Index Psi Periódicos Técnico-Científicos". Nas bases de dados do Portal Periódicos CAPES ainda foram aplicados os refinamentos que atendessem aos critérios deste levantamento, tais como: tipo de recurso - artigos; idioma - português; periódicos revisados por pares. Procedimento similar foi realizado na base de dados da LILACS, em que se utilizaram os refinamentos adicionais: base de dados - nacionais e Brasil; idioma - português. Após a realização desse procedimento, foram encontrados 269 artigos sem restrição de ano ou de área indexada no Qualis CAPES (Qualis CAPES, quadriênio 2013-2016). Após a exclusão de 73 artigos repetidos que estavam indexados em mais de uma base de dados, e 10 que não atendiam aos critérios de inclusão deste estudo, restaram 186 artigos que atenderam aos critérios iniciais de consecução da presente pesquisa.
Dada a amplitude encontrada, a relação de artigos foi enviada a três juízas para que avaliassem: (1) se o artigo, de fato, discutia as temáticas tanto de gênero como de trabalho, e (2) se o artigo estava circunscrito na área de psicologia, independentemente da área de avaliação do periódico no Qualis CAPES. Após essas análises, o artigo era incluído se houvesse o consenso de ao menos duas juízas. Diante disso, 59 artigos foram classificados com temática de gênero e trabalho na psicologia, todos também estavam classificados no Qualis Capes na área de psicologia, independentemente do ano de publicação. A Figura 1 demonstra todos os passos descritos.
Procedimento de análise de dados
Para a análise cientométrica, buscamos primeiro evidenciar as características dos primeiros autores dos artigos: (1) sexo, (2) área de formação acadêmica e (3) localização das instituições. Depois, optou-se por caracterizar os artigos acessados considerando: (1) Qualis CAPES, (2) frequência anual e (3) quantidade de autores por artigo. Dadas as características dos estudos selecionados, optamos por realizar uma metanálise qualitativa. Apesar de a metanálise em geral ser enquadrada como uma forma de análise estatística de dados secundários para estimar o posicionamento da literatura sobre um determinado problema de pesquisa (Figueiredo Filho, Paranhos, Silva Júnior, Rocha & Alves, 2014), observa-se que a metanálise qualitativa é entendida como um procedimento que, a partir da revisão sistemática, pode propiciar uma integração dos achados, consolidando a teorização de diversos temas pesquisados, ressaltando as contradições entre eles (Bicudo, 2014; Lopes & Fracolli, 2008; Pinto, 2013; Zimmer, 2006).
Como no fundamento teórico-metodológico das pesquisas qualitativas não está o objetivo de fazer generalizações, a metanálise qualitativa também não pretende fazê-la. Busca-se, assim, obter uma interpretação dos diversos temas estudados, quais seus achados e para onde estão apontando, "enfatizando nessa metodologia técnicas de descrição, narração e interpretação" (Pinto, 2013, p. 1037). Nas metanálises qualitativas se propõe "interpretar as interpretações" constitutivas das análises nos estudos primários (Bicudo, 2014, p. 9), visando a possibilidade de aplicação em situações práticas (Zimmer, 2006).
Para a realização da metanálise, no presente estudo, optamos por utilizar o software de análise textual lexicográfico (IRaMuTeQ [Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires]), considerando para a composição do corpus de análise a seção de resultados e discussão dos artigos selecionados na fase de revisão sistemática, sendo possível, assim, identificar as características consensuais e contraditórias dos estudos analisados.
O referido corpus foi submetido à análise de Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e análise de similitude, respectivamente. Na CHD, o corpus é dividido em segmentos de texto e agrupado considerando-se as similaridades e distanciamentos das palavras e segmentos. Considera-se para a inclusão na análise os seguintes critérios: (1) frequência média igual ou acima do ponto de corte estabelecido, e (2) X2> 3,84 e p<0,0001. Na análise de similitude, verificam-se quais os elementos centrais e organizadores de outros elementos que compõem o corpus de análise, considerando-se para tal a coocorrência e conexões entre as palavras nos segmentos de texto.
Resultados
Os resultados dividem-se em duas partes. Inicialmente serão apresentados os dados cientométricos da revisão sistemática da literatura, para, posteriormente, descrever a metanálise qualitativa dos estudos selecionados (Figura 2).
(A) Dados cientométricos
Tendo em vista que após a análise das juízas foram encontrados 59 artigos publicados nos últimos 20 anos (1997 a 2017), decidimos analisar, inicialmente, a produção científica por meio da cientometria dos trabalhos divididos em duas categorias de tempo, uma mais recente, incluindo as publicações dos últimos 10 anos (2008 a 2017), e outra mais antiga (1997 a 2007). Nesse sentido, a cientometria realizada permitiu dar visibilidade à caracterização dos estudos de gênero e trabalho na área da psicologia.
Caracterização das(os) primeiras(os) autoras(es)
Referente aos dados e informações levantadas nesta investigação, com relação a "quem pesquisa", "estuda" e "escreve" sobre esse tema, observamos a predominância de mulheres (aproximadamente 95%), conforme demonstrado na Tabela 1.
Foi observada uma pulverização de autoria entre as(os) autoras(es). Entre os 59 artigos, encontramos 51 diferentes primeiras(os) autoras(es), assim, 47 (79,66%) artigos foram escritos por diferentes primeiras(os) autoras(as). Das 51 diferentes autoras, apenas 4 publicaram mais de um artigo, totalizando 12 trabalhos (20,33%) dos 59. Nessas publicações, se sobressai a pesquisadora Jussara Cruz de Brito, que publicou 5 artigos discutindo a temática de gênero e trabalho como primeira autora, correspondendo a 8,47% do total de publicações. Outras três pesquisadoras publicaram mais de um artigo como primeira autora: Giovana Ilka Jacinto Salvaro, Maria Fernanda e Maria Juracy Toneli Siqueira. Com relação à área de formação acadêmica das primeiras autoras, observamos uma concentração na área da psicologia - conforme assinalado na Figura 3.
No que concerne à localização das instituições nas quais as(os) autoras(es) estão afiliadas(os), a produção científica brasileira concentra-se no eixo Sul-Sudeste, e ainda é a realidade da produção científica na área da psicologia no Brasil, conforme demonstrado na Figura 4.
Caracterização dos artigos
Com relação aos estratos de classificação do Qualis-Periódico (Qualis CAPES, quadriênio 2013-2016), na Figura 5 observa-se uma maior concentração em revistas com classificação A2 na área de conhecimento psicologia.
A Figura 6 ilustra a distribuição de publicações ao longo dos anos, no qual é possível observar que 2010 apresentou acentuado número de publicações em comparação aos demais anos. Na leitura dos artigos, não se identificou os possíveis motivos para tal demanda, uma vez que não se tratou da publicação de uma série especial, por exemplo.
Com relação à quantidade de pessoas envolvidas na autoria dos artigos que discutem gênero e trabalho na área da psicologia (Tabela 2), observamos que, enquanto nas publicações mais antigas (1997 a 2007) a predominância era de autoria individual ou de até duas pessoas (38,10% e 42,86%), no período mais recente (2008 a 2017), a concentração se dá principalmente com a autoria de três pessoas (44,74%), aparecendo até seis autores.
(B) Metanálise qualitativa
A partir de uma análise minuciosa, observamos que havia semelhança das características cientométricas entre os artigos publicados nos últimos 10 anos (2017 a 2008) e no período anterior (2007 a 1997). Assim, considerando a necessidade em se fazer uma análise mais detalhada dos diferentes artigos, para a metanálise qualitativa foram considerados os artigos publicados na última década. As características dos artigos selecionados para a metanálise são descritas na Tabela 3.
Conforme referido anteriormente na seção de método, foram utilizados dois tipos de análises textuais: (1) Classificação Hierárquica Descendente e (2) análise de similitude, respectivamente. Optamos, assim, por uma descrição separada das análises.
Classificação Hierárquica Descendente
O corpus foi constituído por 203 páginas e 38 textos compostos pela seção de "resultados e discussão" dos artigos selecionados na análise das juízas. Apresentou 3.646 segmentos de texto, 13.282 formas, 128.382 ocorrências, com frequência média de aproximadamente 10 ocorrências por forma. De todos os segmentos de texto do corpus, 86,62% foram agrupados em três classes. O dendrograma da Figura 7 demonstra o conteúdo das classes constituídas na análise.
O corpus dividiu-se, formando a classe 3 (20,9% dos segmentos de texto) que não mais se decompôs. Posteriormente, em uma segunda divisão, as classes 2 (42,9%) e 1 (36,1%) foram constituídas. Percebemos que houve uma divisão em dois eixos. O primeiro eixo composto pela classe 3, que denominamos de "Trabalho doméstico como destino e obrigação", e o segundo eixo composto pelas classes 1, nomeada de "Dupla jornada: condições de trabalho e reflexos na família" e pela classe 2, chamada de "Perspectivas teóricas: gênero e trabalho". Observa-se que houve uma oposição, especialmente entre as classes 2 e 1, isto porque quase metade do corpus textual foi agrupado na classe 2, em que se encontram principalmente os aspectos teóricos desenvolvidos nos artigos analisados. Desse modo, o conteúdo da classe 2 se opõe às outras duas classes, como é possível visualizar na Figura 8.
Observa-se na Figura 8 que as classes 2 e 3 permanecem no mesmo eixo fatorial, enquanto a classe 1 se opõe a elas. Além disso, esta última se circunscreve no âmbito teórico e de discussão dos artigos, enquanto as classes 2 e 3 revelam um conteúdo mais atrelado aos achados empíricos encontrados nas entrevistas e demais instrumentos de acesso às informações.
Na classe 2 "Perspectivas teóricas: gênero e trabalho", destacam-se os elementos: gênero, social e identidade como os mais associados à classe (X2> 100). Além disso, os termos "masculino" e "feminino" só aparecem de forma significativa nesta classe, demonstrando que são utilizados na literatura científica para decompor a identificação de gênero contrapondo a sua conceituação em relação ao sexo, pois muitos estudos analisados evidenciaram essa diferença nos resultados e suas discussões. De forma geral, os estudos que compuseram essa classe demarcam a questão do gênero como foco em relação ao tema trabalho, como ilustra o segmento de texto a seguir: "...usamos o termo gênero como categoria analítica que se torna explicativa dos atributos específicos que cada sociedade impõe ao masculino e ao feminino a partir dos lugares social e cultural construídos hierarquicamente como relações de poder" (texto 1). Ainda na classe 2, os aspectos mais evidentes revelam uma discussão que perpassa teorias sobre estereótipos, preconceito e discriminação, com destaque para a desigualdade entre os gêneros com base em uma construção social, que se reflete na desigualdade das relações de trabalho. Muito embora variadas autoras tenham explorado essa temática em suas discussões e resultados, Judith Butler foi a mais citada no corpo do texto que compôs o corpus de análise. Alguns segmentos de texto exemplificam o conteúdo da classe:
"...em decorrência de atributos pessoais construídos a partir de estereótipos sexistas como voz mais suave convincente" (texto 2).
"...os estudos passaram a considerar que o trabalho produtivo e o lugar que as mulheres ocupam na sociedade também são determinados pelo papel que ocupam na família, um salto qualitativo nos estudos pode ser evidenciado quando a esfera produtiva e esfera doméstica ou reprodutiva começam a ser articuladas" (texto 4).
Na classe 3, intitulada "Trabalho doméstico como destino e obrigação", destaca-se a perspectiva das mulheres de que parece não haver possibilidade de escolha no que diz respeito ao trabalho doméstico, de modo que cabe a elas a conciliação entre o trabalho doméstico e a carreira, ou a escolha pela exclusividade do trabalho em casa. Nessa classe, também se evidencia o cuidado com os filhos como "destinado essencialmente" às mulheres. Elementos dos segmentos de texto como: ano, casa, filho, dormir, de forma mais predominante, mas também cozinha, almoço, jantar, limpar, lavar, cama, arrumar, comida revelam uma funcionalidade no conteúdo da classe. As tarefas domésticas aparecem como a responsabilização de cuidado dos filhos pequenos. Nesse sentido, quando há uma corresponsabilização com esse trabalho, ele majoritariamente é atribuído a outras mulheres, como mães, irmãs, vizinhas, ou terceirizado para empregadas domésticas e/ou babás: "...uma das entrevistadas trabalha sozinha, outra relata que conta com a contribuição da irmã e da filha, outra com a ajuda esporádica da filha" (texto 4); "...uma das saídas que pais e mães adotam hoje é lançar mão do que poderíamos chamar de substitutos da família ou redes de apoio, esses substitutos da família ou das tarefas, que antes eram delegadas exclusivamente à mulher são as creches e a escola" (texto 6).
Na classe 1, intitulada "Dupla jornada: condições de trabalho e reflexos na família", tornam-se evidentes elementos que circunscrevem a dificuldade de conciliação entre as escolhas de carreira profissional da mulher em relação ao trabalho doméstico e, sobretudo, à convivência familiar. Essa classe representa uma relação híbrida entre família e trabalho, que nos textos analisados se apresenta de forma conflituosa. Relembrando que essa classe reflete o conteúdo empírico dos estudos selecionados, observa-se uma perspectiva recorrente de que as mulheres seriam mais apropriadas para algumas funções, não por serem mais qualificadas para tal, mas porque características femininas se adequariam melhor para as atividades, sobretudo as domésticas e os trabalhos flexíveis: "...ao reduzir a carga horária de trabalho ou abandonar um emprego tradicional, muitas mulheres assumem atitudes de carreiras mais flexíveis e permitem a seus companheiros manter padrões de atitudes de carreira mais tradicionais" (texto 34).
Ainda na classe 1, outro aspecto também se evidencia: a gestão do tempo, pois diante do desenvolvimento da carreira profissional e da divisão desigual do trabalho doméstico, as mulheres apresentam sofrimento psíquico, com sentimentos de inutilidade e de frustração, por vezes reverberando em adoecimento. Isso ocorre porque sendo a carga de trabalho aumentada pela justaposição do trabalho doméstico e do trabalho da carreira profissional, não raro há uma inviabilização dos momentos de descanso e recuperação da trabalhadora: "...ela não tinha tempo livre para fazer amigos, conhecer a cidade, fazer cursos, buscar melhores oportunidades de trabalho ou mesmo dedicar-se a si, nesse caso o trabalho assumia uma função marginalizante" (texto 33).
Enquanto na classe 2 a discussão se baseia na identificação e desequilíbrio socioeconômico voltado para uma construção social dos gêneros, nos conteúdos textuais compostos pelos dados empíricos, na classe 3 há um destaque para os termos homem e mulher, inferindo-se que se trate de uma perspectiva mais naturalizada do que seria característico do homem ou da mulher: "...diferente do homem, ela tem sempre que cuidar mais dos filhos, cuidar da casa, por isso que hoje em dia as mulheres estão estressadas demais, porque o homem é aquela história, o homem tem que colocar o dinheiro em casa e a mulher fica em casa, mas não é porque ela tem que dividir, além de ser mãe ela tem que ser profissional também!" (texto 6).
Observamos nas narrativas dos estudos acessados na metanálise que o discurso de naturalização de papéis do homem e da mulher ainda se perpetua, mesmo nas narrativas das mulheres participantes das pesquisas. Em comum, identifica-se nas três classes desenvolvidas a partir da CHD sobre o corpus trabalho e gênero que: (a) os estudos baseados nas teorias de gênero são predominantes; (b) as relações família e trabalho são centrais no entendimento das questões de gênero; (c) nos estudos empíricos, o trabalho doméstico ainda é naturalizado como atividade (não trabalho) a ser desempenhada pela mulher e, por isso, considerado leve e desvalorizado; e (d) a jornada dupla de trabalho é evidenciada nos achados empíricos como uma escolha da mulher.
Análise de similitude
A análise de similitude foi realizada na tentativa de visualizar as relações entre os elementos textuais que compõem o corpus, ilustrando os aspectos centrais e organizadores, as frequências de palavras, as conexões entre os elementos e os arranjos semânticos, a partir das coocorrências de palavras e segmentos de texto. Para compor a análise, o ponto de corte (F=10) foi ampliado em cinco vezes (F=50), de modo a facilitar a visualização no grafo de similitude e, assim, diminuir a quantidade de elementos, como é possível identificar na Figura 9.
Para a composição da Figura 9 pelo software, optou-se por solicitar o agrupamento de conexões dos elementos. É possível perceber que houve três agrupamentos em torno das palavras organizadoras: mulher, não e como, com forte conexão entre elas. No arranjo onde a palavra organizadora foi "mulher", evidencia-se uma sobreposição em relação à palavra homem, demonstrando a maior frequência e conexão com os outros elementos pela primeira palavra (mulher), em detrimento da segunda (homem). Nesse arranjo foi possível identificar uma configuração que relaciona o feminino e o masculino, conforme evidenciado na análise da CHD na classe 2, mas também encontramos elementos relacionados ao trabalho doméstico, questões de gênero (construções sociais) e sexo (condição biológica), além dos papéis, posição e funções sociais das mulheres. Nesse sentido, o referido arranjo apresenta uma composição de mosaico que aproximou as análises e discussões teóricas, com os resultados empíricos de entrevistas e outros instrumentos descritos nos artigos.
Inferimos que os três arranjos apresentados na Figura 9 configuram os dispositivos de ação e interpretação da mulher apresentada nos estudos, "como" ela se circunscreve nas pesquisas, desde sua identidade social - como trabalhadora -, até a relação com seus grupos profissionais, com a organização de trabalho, com o sentido de si e do trabalho, que reverberam em sua condição de saúde. Em contrapartida, o agrupamento organizado pela palavra "não" demonstra os variados impedimentos refletidos pela situação de conflito e conciliação entre trabalho e família, uma vez que acumular o trabalho com os cuidados com os filhos aparece como uma polivalência de difícil manutenção, de modo que parece mais fácil solucionar esse conflito assumindo o não trabalho produtivo, voltando-se para o trabalho doméstico.
Considerando-se que uma das categorias eleitas para análise foi o sexo do primeiro autor do artigo científico, optamos por realizar uma análise confrontando a coocorrência dos elementos e segmentos textuais com essa categoria, já que não era possível fazê-lo apenas a partir do nome sem conhecer de que maneira tais pessoas se definem em termos de gênero, o que pode ser visualizado na Figura 10.
Na figura 10, observamos que a configuração se assemelhou à Figura 9. No entanto, podemos identificar que alguns elementos são compartilhados pelas duas categorias de autoria, mas que para as autoras (sex_1) houve uma centralidade do termo mulher, forte elemento organizador dos demais, além da discussão muito presente entre a perspectiva de gênero (construída socialmente) e sexo (constituída biologicamente). Também, para as autoras, evidencia-se a relação entre carreira e família, o trabalho das mulheres como expressão de uma identidade social e profissional, e os impedimentos voltados às justificativas para a manutenção do trabalho doméstico e da possibilidade do exercício de trabalhos flexíveis, como o de professora, de modo a continuar conciliando, com todos os custos que isso acarreta para elas, trabalho fora de casa (dito produtivo), família e trabalho doméstico.
Faz-se necessário explanar que mesmo em minoria quantitativa de textos (apenas 2), os artigos de pesquisadores homens tiveram expressão significativa na elaboração das coocorrências e no arranjo dos elementos, fato que não se repetiu para nenhuma outra categoria considerada no presente estudo (abordagem metodológica, instrumentos utilizados, análises e foco temático do artigo em gênero ou trabalho). Para tais estudos, destacaram-se os elementos do contexto que circunscrevem o feminino, ao trabalho unicamente como uma atividade e os impedimentos relacionados principalmente à sobreposição dos trabalhos femininos (doméstico e produtivo).
Vislumbramos, assim, que as análises baseadas na CHD e na análise de similitude a partir dos 38 artigos selecionados conseguiram demonstrar as características dos referidos estudos, além de descrever de forma mais minuciosa os consensos e contrastes encontrados na literatura nacional publicada na área de psicologia. É indispensável, portanto, discutir tais achados para circunscrever os direcionamentos já encontrados, de modo a sustentar uma linha mais compartilhada entre os autores e autoras, mas, ao mesmo tempo, dar visibilidade às lacunas e contradições encontradas.
Discussão
Os dados bibliométricos encontrados neste estudo permitiram fazer uma análise quantitativa descritiva, mas também qualitativa. A partir do mapeamento e da construção de um panorama sistemático da literatura construída nas publicações científicas brasileiras, foi possível identificar as discussões já realizadas e os novos campos de estudo a serem delineados (Oliveira, Lima & Morais, 2016). É provável que o fato de mulheres serem predominantemente autoras de estudos que envolvem a relação gênero e trabalho seja decorrente de a problemática de gênero no ambiente de trabalho tratar prioritariamente da luta por equidade de condições e de direitos para as mulheres, sendo tema de interesse primordial de pesquisadoras mulheres, pois elas se incluem no universo da temática.
Tanto os atuais indicadores bibliométricos do SciELO quanto os atuais indicadores de pesquisa do CNPq não incluem a distribuição da autoria por gênero. Contudo, no Brasil, a quantidade de mulheres autoras cresceu 11% nas duas últimas décadas, chegando ao patamar de 49% de publicações de artigos científicos por mulheres, segundo o relatório Gender in the Global Research Landscape (Elsevier, 2017). Esse é um dado a ser celebrado como conquista de políticas públicas de educação e de C&T com foco na diminuição da disparidade de gênero na ciência. Nesse sentido, desde 2016 foi criado o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. A ONU afirma "que ciência e igualdade de gêneros são vitais para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, pois uma pesquisa feita em 14 países mostrou que o índice de graduação de mulheres na área de ciências é a metade do índice de homens" (Rádio ONU, 2016, on-line).
A concentração de afiliações às instituições localizadas no eixo Sul-Sudeste pode ser compreendida a partir de várias perspectivas explicativas, entre elas (mas não só) estão: (a) a concentração, nessas regiões do país, de investimentos e recursos para o desenvolvimento científico de todas as áreas do conhecimento; (b) a grande concentração dos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia; e (c) pouca articulação entre pesquisadores e pesquisadoras de outras regiões do país, culminando na mobilidade de pesquisadores das regiões Norte-Nordeste para o eixo Sul-Sudeste. A despeito de o gênero ser um tema de estudo e investigação da psicologia há algumas décadas, assim como são as questões de trabalho, quando realizado um intercruzamento dessas duas categorias, observamos estudos pontuais ao longo dos anos, tendo um crescimento mais concreto no número de publicações nos últimos 10 anos (2007-2017). Isso pode ser explicado pelo crescimento geral no número de publicações da área de psicologia, estimulado pelas qualificações de revistas e programas de pós-graduação, especialmente no quesito produção intelectual, que tem sido um aspecto importante na avaliação dos programas (Relatório do Seminário de Acompanhamento dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia, 2015). O mesmo fato pode explicar o aumento na quantidade de coautorias de um artigo, pois, se de um lado pode ser entendido como ampliação do tema e/ou do estabelecimento de parcerias institucionais (embora tenha sido verificado a pouca relação interinstitucional na publicação dos artigos), de outro, pode ser compreendido por uma ótica de cobrança institucional e/ou da necessidade de produtividade.
Em síntese, observamos que a análise cientométrica indicou que ainda há uma concentração de publicações no eixo Sul-Sudeste, que o número de pesquisadores envolvidos com a temática gênero e trabalho tem aumentado, mas que isso não parece refletir em parcerias interinstitucionais, que as mulheres prevalecem como autoras principais e que o número de publicações sobre a temática foi ampliado na última década, embora tenha ocorrido um pico de produção em 2010, que não se manteve nos anos seguintes. Evidencia-se, assim, a necessidade de expandir os laços interinstitucionais no território nacional, uma vez que a internacionalização tem sido uma política permanente nas avaliações de programas de pós-graduação, mas o incentivo às colaborações entre pesquisadores de diferentes regiões do país tem ficado restrito a entidades como Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) e Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP).
Com base na metanálise qualitativa, observamos que os estudos envolvendo gênero e trabalho são marcados pela interdisciplinaridade, a exemplo dos achados de Lago e Toneli (2008).
Há, contudo, um destaque para as teorias de gênero, prevalentes na maioria dos estudos. Ao que parece, a psicologia do trabalho ainda tem tratado da temática de forma periférica, enquadrando as questões de gênero em discussões "ilustrativas", que mais descrevem as diferenças dos resultados entre homens e mulheres ou contextualizam o fenômeno estudado para o grupo de mulheres.
Destacamos, ainda, que a abordagem metodológica tem se apresentado predominantemente qualitativa, por vezes combinada com instrumentos quantitativos, mas o uso preferencial de entrevistas semiestruturadas se mantém como a técnica mais utilizada pelos pesquisadores da temática, confirmando estudos anteriores (Lago & Toneli, 2008). Embora os estudos empíricos sejam maioria, uma parte dos artigos retratou o tema de forma teórica e, novamente, a perspectiva da teoria de gênero se destacou. Evidenciamos, portanto, a necessidade de que a psicologia do trabalho se debruce de forma efetiva sobre as questões de gênero nas discussões que abordam condições laborais, preconceito e discriminação no contexto de trabalho, além dos direitos trabalhistas e da saúde da trabalhadora, temáticas tão atuais e pertinentes diante das mudanças na legislação trabalhista brasileira.
Na análise lexicográfica (CHD e similitude), evidenciamos certa contradição no que diz respeito à constituição do gênero, uma vez que nos dados empíricos secundários acessados evidencia-se a ideia de que haveria papéis para homens e mulheres constituídos de forma supostamente essencial, derivado da natureza, supostamente apenas biológico, quando entendemos que são construídos socialmente, elegendo-se em cada contexto social e cultural o que se define como características masculinas e femininas. Essa contradição foi discutida nos artigos, que evidenciaram especialmente as relações de poder e a construção da realidade social a partir de aportes teóricos como: (a) perspectiva histórico-cultural; (b) perspectiva foucaultiana; (c) clínicas do trabalho, especialmente psicodinâmica (Dejours); e (d) teorias de gênero, em especial teorias modernas (patriarcado, marxismo) e pós-modernas (performatividade) (De Tilio, 2014).
A perspectiva de Judith Butler, muito referenciada pelos autores e autoras dos artigos analisados, prevê uma reflexão a respeito dos denominados problemas do gênero, caracterizando uma subversão do feminismo e da identidade feminista (Rodrigues, 2005), de modo que, para a autora, não faz sentido colocar uma dualidade entre sexo e gênero, pois concebe ambos como culturalmente construídos. Essa perspectiva mais radical, ou seja, mais profunda e firme, de Butler, nem sempre é relatada nos artigos, mesmo entre os que se alinham ao posicionamento feminista. Inferimos, portanto, que aí pode estar a explicação para uma suposta cautela em tratar a temática gênero nos estudos e publicações referenciados na psicologia do trabalho. Tal temática pode estar demasiadamente circunscrita no campo do embate feminista, o que pode colocar os pesquisadores não militantes em uma sensação de tendenciosidade ou de pouca propriedade para tratar do tema.
Para além dos enquadres teóricos, a análise dos artigos demonstrou que a grande problemática retratada nos estudos se refere principalmente ao trabalho doméstico e à dupla jornada feminina. Percebemos que nas relações de gênero e trabalho abordadas nos artigos, a responsabilização com os filhos apareceu como componente do cuidado mais vinculado com as obrigações das tarefas domésticas cotidianas, não evidenciando, desta forma, o componente do educar e das relações afetivas. Mesmo quando o gênero aparece como o foco, sendo o fundo o trabalho, é essa relação gênero-trabalho e suas implicações que se sobressai. O trabalho doméstico não é visto como trabalho, mas como uma atividade tida como fatalmente feminina - até mesmo as mulheres participantes dos estudos apresentavam essa naturalização da função. Alguns estudos retrataram o adoecimento dessas trabalhadoras em função da exaustão ocasionada pela dupla jornada, sendo, portanto, uma temática importante para o desenvolvimento de políticas públicas.
Mais recentemente, a relação entre família e trabalho, assim como trabalho e não trabalho, tem sido abordada pela psicologia do trabalho. Em nossas análises, essa associação foi evidenciada, especialmente quanto aos impedimentos constituídos no embate trabalho e não trabalho, uma vez que o trabalho, muitas vezes precário e invisível, seja ele doméstico ou dito produtivo - para diferenciá-lo do reprodutivo, desqualificando-o (Kergoat, 2009) -, parece impedir a realização de outras dimensões da vida, causando sofrimento e adoecimento. Aqui, há uma interseccionalidade de fatores, pois tal trabalho seria ainda mais precário para mulheres, especialmente as negras e pobres (Guimarães, 2012; IPEA, 2016).
Outro aspecto evidenciado na análise dos resultados e discussões dos artigos selecionados diz respeito às diferenças encontradas nas publicações de autores e autoras. Para os homens, o trabalho (doméstico e/ou produtivo) se apresenta como uma atividade entre tantas outras para a mulher. Já para as mulheres, o trabalho assume um conteúdo identitário. Além disso, as autoras evidenciam as diferenças entre sexo (biológico, natural) e gênero (socialmente construído). Embora tais diferenças tenham sido destacadas pela análise textual, o número inferior de artigos de autores do sexo masculino não permite interpretações mais apuradas sobre essa diferenciação.
Assim, identificamos uma agenda de pesquisa que pode servir de diretriz para futuros estudos: (1) avançar nos estudos sobre trabalho doméstico e trabalho produtivo, na perspectiva do gênero em psicologia do trabalho; (2) diversificar as abordagens metodológicas, configurando estudos quantitativos e mistos; (3) caracterizar em novas revisões sistemáticas o crescimento pontual da produção científica sobre trabalho e gênero, articulando com políticas em ciências e tecnologia; (4) ampliar estudos comparativos considerando a autoria de homens e mulheres sobre questões de gênero.
Considerações finais
Considerando tanto a abrangência temporal - sem delimitação prévia de período de publicação - quanto a busca em cinco bases de dados, identificamos um número de publicações científicas com pouca expressividade adiante da necessidade de se debater e dar visibilidade ao tema das relações de gênero no mundo do trabalho. Em especial no campo da psicologia, a situação fica mais restrita, sendo tais temáticas marcadas pela atualidade na área, uma vez que o primeiro artigo encontrado data do final da década de 90. O uso dos indicadores por meio da cientometria e da metanálise qualitativa, além de ter permitido dar visibilidade aos indicadores da produção científica nacional em psicologia que trata das temáticas de gênero e trabalho, também possibilitou vislumbrar a agenda de pesquisa desenhada até então. Observa-se que as publicações foram majoritariamente escritas por mulheres como primeiras autoras, o que é diferente do panorama nacional geral de publicações.
Os diversos artigos analisados por meio da metanálise qualitativa apontam a contradição ainda existente em nosso meio social, no qual ainda se atribui à "essência" da mulher características e traços que as colocam em situações de inferioridade com relação às suas capacidades físicas, cognitivas e, consequentemente, laborais. Estas, por sua vez, são usadas como justificativas para as barreiras implícitas para a entrada, permanência e ascensão das mulheres no mundo do trabalho.
Por entender que na psicologia contemporânea a discussão das relações de gênero e trabalho desempenha um papel importante para a efetiva promoção da autonomia e da conscientização da classe trabalhadora, assim como para uma atuação que garanta a equidade no mundo do trabalho é que este artigo aponta para a necessidade de novas investigações na área. Mais estudos poderão subsidiar a formação e os trabalhos de intervenção de profissionais de psicologia, além de poderem ser uma ferramenta importante para a proposição de novas estratégias de formulação de políticas públicas que promovam a equidade de gênero. Para tal, é mister que também se busque estratégias de fomento e práticas de pesquisa nessa área que abranja todo o território nacional.
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Endereço para correspondência:
Valéria Machado Rufino
Universidade Federal da Paraíba, CCHLA, Departamento de Psicologia, Cidade Universitária (Campus I) / Castelo Branco
58051-900 - João Pessoa - PB
E-mail: valeria_rufino@cchla.ufpb.br
Recebido em: 9/2/2018
Primeira decisão editorial em: 10/9/2018
Versão final em: 20/10/2018
Aceito em: 20/10/2018