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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.21 no.4 Brasília out./dez. 2021
https://doi.org/10.5935/rpot/2021.4.22227
10.5935/rpot/2021.4.22227
Precarização do trabalho travestida de modernidade: uma análise da tarefa de entregadores de mercadorias
Precarization of work disguised as modernity: an analysis of the work of delivery drivers
Precarización del trabajo travestida de modernidad: un análisis de la tarea del repartidor de mercaderías
Raoni RochaI; Leonardo PistolatoII; Eugênio Paceli Hatem DinizIII
IUniversidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil
IIUniversidade Federal de Itajubá (Unifei), Brasil
IIIFundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO), Brasil
Informações sobre o autor principal
RESUMO
O trabalho vem passando por modificações intensas nas últimas décadas e o chamado trabalho "uberizado", mediado por plataformas de aplicativo, tem absorvido milhões de trabalhadores em todo o mundo. Esse cenário já justificaria a necessidade de se compreender melhor esse tipo de trabalho, mas o distanciamento social provocado pelo novo coronavírus torna o desafio ainda maior, já que restringe a presença do pesquisador em campo. Diante disso, a atual pesquisa tem como objetivo oferecer uma proposta metodológica alternativa em momentos de distanciamento social e, a partir disso, analisar as características das relações de trabalho existentes entre essas empresas e os entregadores. Realizou-se uma Análise da Tarefa, etapa metodológica da Análise Ergonômica do Trabalho, com 15 entregadores de mercadorias. Os resultados revelam a existência de perfis de comportamento submetidos à precarização, bem como a estratégia, pelas empresas-plataforma, em travesti-la com a retórica da necessidade de modernização do trabalho.
Palavras-chave: precarização do trabalho, uberização, plataformas digitais.
ABSTRACT
The work of delivery drivers has undergone intense changes in recent decades and the so-called "uberized" work, mediated by application platforms, has absorbed millions of workers around the world. This scenario justifies the need to better understand this type of work, although the social distancing caused by the new coronavirus makes the challenge even greater, as it restricts the researcher's presence in the field. Therefore, the objective of this current research is to analyze the characteristics of the existing work relationships between delivery companies and the couriers. Task analysis - a methodological stage of ergonomic work analysis - was carried out with 15 delivery people, aiming to offer an alternative methodological proposal in moments of social distancing. The results reveal the existence of behavior profiles subjected to precariousness, as well as the strategy, by the platform-companies, to cross this with the rhetoric of the need to modernize work.
Keywords: work precarity, uberization, digital platforms.
RESUMEN
El trabajo ha sufrido intensos cambios en las últimas décadas y el llamado trabajo "uberizado", mediado por plataformas de aplicaciones, ha absorbido a millones de trabajadores en todo el mundo. Este escenario justificaría la necesidad de comprender mejor este tipo de trabajos, pero la distancia social que genera el nuevo coronavirus hace que el desafío sea aún mayor, ya que restringe la presencia del investigador en campo. Por ello, la presente investigación tiene el objetivo de ofrecer una propuesta metodológica alternativa en momentos de distanciamiento social y, a partir de ello, analizar las características de las relaciones laborales entre estas empresas y los repartidores. Se realizó un Análisis de Tareas, una etapa metodológica del Análisis Ergonómico del Trabajo, con 15 repartidores de mercaderías. Los resultados revelan la existencia de perfiles de comportamiento sometidos a la precarización, así como la estrategia, por parte de las empresas-plataforma, de travestirlo con la retórica de la necesidad de modernizar el trabajo..
Palabras clave: precarización del trabajo, uberización, plataformas digitales.
Nas últimas décadas, o mundo do trabalho vem passando por múltiplos, complexos e contraditórios movimentos, marcados pela instabilidade e insegurança em trabalhos realizados sem contrato, sem direitos e feitos sob demanda. Uma nova morfologia do trabalho já vinha se desenhando desde o início do século XXI, com o desenvolvimento da economia neoliberal no mundo ocidental e a explosão do setor de serviços atrelado ao desenvolvimento tecnológico, gerando trabalhos terceirizados, intermitentes e precarizados (Antunes, 2018).
A pandemia gerada pelo novo coronavírus agudizou esse processo, já presente há alguns anos na sociedade. No final de 2019, período ainda pré-pandêmico, mais de 40% da classe trabalhadora brasileira já se encontrava na informalidade e mais de cinco milhões de trabalhadores experimentava as condições da uberização (trabalho mediado por plataformas digitais), além das altas taxas de desemprego (Antunes, 2020). A pandemia causada pelo SARS-CoV-2 também trouxe consigo uma série de mudanças no trabalho, ocasionadas, sobretudo, em razão da necessidade de distanciamento social. Diversos tipos de trabalho, até então presenciais, passaram a ser realizados remotamente, como forma de conter o avanço do vírus e minimizar os impactos causados pela pandemia (Castro, Oliveira, Morais, & Gai, 2020).
Algumas atividades profissionais, no entanto, permaneceram no formato presencial, muitas delas sendo consideradas "atividades essenciais", tais como aquelas do setor hospitalar, do setor alimentício, do setor de entregas (delivery), dentre outros. Para essas categorias, a exposição ao risco aumentou consideravelmente, fazendo-se necessário conhecer o trabalho destes indivíduos, especialmente neste momento, para que medidas de prevenção possam ser tomadas (Jackson Filho et al., 2020).
Somado ao novo cenário da pandemia, a autonomia das empresas gestoras de aplicativos, ou empresas-plataforma, se sustenta no predomínio do receituário neoliberal que vem sendo imposto ao país desde o final do século passado, caracterizado pela desregulamentação do trabalho, por relações baseadas na concorrência extrema e pela atribuição de culpa do desemprego nos trabalhadores protegidos pela legislação (Galvão, 2007), gerando uma profunda regressividade produtiva e distributiva (Pochmann, 2020). A política governamental recorrente no Brasil de retirada de direitos trabalhistas - como a reforma trabalhista, a reforma da previdência e o teto de gastos - entregou, ao contrário do prometido, expressivo excedente de desempregados e precarização da força de trabalho no Brasil (Kalil, 2020).
Para compreender o real impacto desse cenário no trabalho das pessoas, seja ele qual for, é necessário lançar mão de disciplinas que estudam o trabalhador em ação. Nesse campo, a Ergonomia da Atividade é uma das principais representantes, oferecendo subsídios teórico e metodológicos para compreensão do trabalho real (Rocha, 2016).
A Ergonomia da Atividade é uma disciplina científica que busca compreender as interações entre os indivíduos e os outros componentes do sistema por meio da atividade por eles desenvolvida no trabalho (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg, & Kerguelen, 2001). Essa compreensão se dá fundamentalmente pela confrontação entre a tarefa prescrita pelos gestores e a atividade real desenvolvida pelos trabalhadores da ponta do processo. Para isso, a Análise Ergonômica do Trabalho (AET) preconiza o desenvolvimento de uma "Análise da Tarefa" - composta basicamente de análise documental e entrevistas com os trabalhadores com o intuito de se compreender aquilo que está implícito e explícito em relação aos objetivos do trabalho - e de uma "Análise da Atividade" - composta por períodos de observação no campo, acompanhamento da atividade e entrevistas com os trabalhadores, buscando compreender os sentidos dos gestos observados e como o trabalho acontece em condições reais (Falzon, 2007).
Todavia, sendo uma disciplina etnográfica que necessita, portanto, da presença em campo do ergonomista para analisar a atividade e buscar compreender como o trabalhador coloca seu conhecimento em ação ao executar a tarefa, o distanciamento social provocado pela pandemia dificultou, inevitavelmente, a aplicação do método. Neste contexto de acesso restrito, mas com demandas urgentes e necessárias de análise do trabalho, principalmente daquelas categorias que executam atividades essenciais, uma pergunta se torna inevitável: como, do ponto de vista da Ergonomia da Atividade, analisar o trabalho em tempos de distanciamento social? Nossa hipótese é que o desenvolvimento de uma Análise da Tarefa aprofundada pode contribuir bastante para a compreensão do trabalho em momentos nos quais a Análise da Atividade não é possível de ser realizada.
Buscando responder a essas reflexões, foi realizada uma pesquisa com uma das categorias mais impactadas pela pandemia causada pelo SARS-CoV-2: os trabalhadores que prestam serviço de entrega para as plataformas digitais por meio de aplicativos, ou os "entregadores de mercadorias"1, neste caso, do setor de alimentação. Sem condições de acessar plenamente o campo e analisar de perto a atividade desses profissionais devido ao distanciamento social imposto pela pandemia, um grupo formado por três pesquisadores partiu da "Análise da Tarefa" proposta pela Ergonomia da Atividade (Falzon, 2007) para se aproximar da realidade de trabalho dessa categoria profissional.
Partindo desse cenário, esse artigo tem um duplo objetivo: oferecer uma proposta metodológica alternativa para a compreensão do trabalho em momentos de distanciamento social; e, a partir disso, analisar as características das relações de trabalho existentes entre as empresas-plataforma e os entregadores de alimentos.
O Contexto de Trabalho dos Entregadores de Alimentos
O desenvolvimento capitalista vem ocorrendo de maneira que a terceirização e a informalidade se tornaram mecanismos vitais para a sua preservação, levando milhões de homens e mulheres em todo o mundo se encontrarem em situações de trabalho precarizado, ou aquele com uma "tendência à informalidade" (Antunes & Druck, 2015, p. 24), ou seja, sem a garantia de direitos sociais e com baixos níveis de remuneração. Esse movimento proporcionado pelo capitalismo, associado ao avanço tecnológico presente na sociedade e no mundo do trabalho criaram o fenômeno da uberização, que se tornou a principal manifestação da precarização no trabalho (Antunes, 2020). A uberização, ou o trabalho precarizado mediado por plataformas de aplicativo, representa assim um novo e particular modo de acumulação capitalista no qual o trabalhador, sob precárias condições de trabalho, ainda assume a responsabilidade pelos principais custos e riscos da atividade produtiva (Franco & Ferraz, 2019). É dessa forma que um entregador de aplicativo de alimentação se torna responsável pelos custos dos seus instrumentos de trabalho, como a própria moto, os equipamentos de proteção individual, a gasolina, etc., mas também dos riscos de acidentes (Abílio et al., 2020).
Concomitante a esse contexto, a disseminação do SARS-CoV-2 no Brasil e a consequente adoção de medidas de distanciamento social e de teletrabalho como tentativa de frear a velocidade de propagação do vírus gerou uma elevada demanda no trabalho de tele-entrega, realizado por trabalhadores que prestam serviço para as plataformas digitais através das próprias motocicletas e bicicletas (Filgueiras & Antunes, 2020). Seria de se esperar que os entregadores passassem a auferir maiores ganhos pelo seu trabalho, já que é considerado como uma das atividades essenciais (Decreto n. 10.282, 2020). Contudo, a pesquisa realizada por Abílio et al. (2020) registra uma redução dos rendimentos, mesmo para aqueles que passaram a trabalhar mais horas por dia. Tal redução se expressou mesmo quando 70% dos participantes afirmaram trabalhar para quatro plataformas digitais diferentes e 52% informaram trabalhar os sete dias da semana. Cabe ressaltar que, para essa categoria, o rendimento mensal se refere ao salário por peça, cujo valor unitário é estabelecido unilateralmente pelas plataformas digitais para cada tarefa executada (Kalil, 2020).
Assim, num momento crítico, no qual essa categoria deveria ser mais bem reconhecida e melhor remunerada por prestar um serviço essencial para a população e para as empresas que dependem deles para continuar a operar, o que se observa é justamente o contrário. Esse estranho fenômeno de trabalhar mais e receber menos pelas tarefas executadas se dá, por um lado, como consequência do aumento do número de trabalhadores que ingressaram no setor e, por outro, por escolha das próprias empresas-plataforma, que adotam tarifas dinâmicas, reduzem o valor da bonificação ou extinguem prêmios (Abílio et al. 2020).
Mas qual seria a responsabilidade das empresas-plataforma em relação aos trabalhadores de tele-entrega? Segundo Kalil (2020), o direito dos trabalhadores à saúde e segurança independe do vínculo trabalhista, ou seja, da natureza jurídica entre o trabalhador e o tomador de serviços. Por essa razão e amparado nos instrumentos internacionais de direitos humanos, na legislação federal e no posicionamento da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, o autor sustenta que as empresas gestoras de plataformas digitais são obrigadas a cumprir algumas determinações sobre as relações de trabalho com os seus entregadores. Apesar disso, de acordo com Abílio et al. (2020), 58% dos trabalhadores não receberam nenhuma orientação ou apoio para evitar o contágio do SARS-CoV-2 durante a realização de suas tarefas e 96% dos participantes informaram que adotaram por conta própria medidas de proteção, como por exemplo, uso de álcool-gel (89%) e máscaras (75%). Ao assumir a responsabilidade que seria da empresa, adquirindo por conta própria os meios para tentar se proteger da pandemia durante a realização da tarefa de entrega de bens, produtos e serviços, os trabalhadores comprometem ainda mais a sua restrita remuneração e escancaram a transferência de responsabilidade da empresa para o próprio trabalhador (Filgueiras & Antunes, 2020).
A Análise da Tarefa a partir da Tarefa Prescrita: da Divulgada à Efetiva
A Ergonomia da Atividade, disciplina que objetiva conhecer e transformar o trabalho, diferencia a "tarefa" - i.e. o objetivo a ser cumprido - da "atividade", ou seja, o modo como a tarefa é executada pelos trabalhadores para fazer frente ao contexto da situação real do trabalho e à sua própria condição (Guérin et al., 2001). Mas se a atividade é o eixo central nas análises, exigindo a presença in loco do analista, a tarefa é muito frequentemente deixada de lado no processo, perdendo-se as contribuições que ela pode oferecer na compreensão do trabalho (Veyrac & Bouillier-Oudot, 2011). Assim, embora a Análise Ergonômica do Trabalho descreva a Análise da Tarefa como uma etapa crucial de seu método, poucos estudos desenvolveram suficientemente a forma como ela deve ser realizada (Veyrac, 2018), o que nos leva à um necessário resgaste conceitual do termo.
O conceito de "tarefa" ou "tarefa prescrita" está bastante consolidado na ergonomia francófona, sendo compreendida como um "resultado antecipado, fixado em condições determinadas" (Guérin et al., 2001, p. 14). Embora essa definição traga a ideia de antecipação e planejamento, é interessante observar que isso nem sempre é explícito ou está escrito em alguma parte da organização. Neste sentido, a tarefa prescrita não é necessariamente escrita, mas é também o que é implícito na forma de gerir o trabalho nas organizações. Parte da tarefa só será conhecida se for verbalizada pelos trabalhadores que a executam, sendo assim imprescindível a realização de entrevistas como parte da análise da tarefa, além da consulta aos documentos da empresa, tais como contratos de trabalho, padrões e procedimentos operacionais (Montmollin, 1995). Portanto, nem toda tarefa prescrita está escrita. A tarefa escrita é aquela divulgada, mas outra parte dela, implícita, é esperada pela gestão. Neste caso, a tarefa permite "prescrever sem escrever" (Falzon, 2007, p.25).
É nesse sentido que Guérin et al. (2001, p. 25) afirmam que "a tarefa é um conjunto de prescrições, mas também de representações" e Falzon (2007, p. 25) que "a tarefa prescrita é o que se espera explicitamente ou implicitamente de um indivíduo". Portanto, nos casos em que uma organização não possui nada (ou muito pouco) escrito, a tarefa prescrita virá quase exclusivamente da expectativa dos gestores em relação ao trabalho do outro, ou da expectativa dos trabalhadores em relação ao próprio trabalho.
A tarefa prescrita é subclassificada de acordo com os seus desdobramentos, tanto ao nível da gestão quando da operação, desde o seu nascimento até o momento em que é, de fato, executada. No nível da gestão, a Tarefa Prescrita é dividida em dois tipos, a tarefa divulgada - ou aquela oficialmente prescrita e explícita - e a esperada, ou aquela implicitamente desejada pelos gestores em relação ao trabalho dos seus trabalhadores.
A divisão entre tarefa divulgada e esperada se dá ao nível daqueles que prescrevem as regras, ou seja, na gestão. Mas o nível daqueles que recebem e executam as regras também deve ser avaliado, já que as tarefas podem ser mais ou menos definidas por linguagens, mais ou menos codificadas nas regras, mas passam necessariamente pela interpretação dos trabalhadores (Ferreira, 2011). Portanto, se a tarefa prescrita é dividida em tarefa divulgada e esperada ao nível da gestão, há uma outra classificação, agora no nível da operação, entre tarefa compreendida, que é aquilo que o indivíduo pensa que se pediu para ser realizado e tarefa apropriada, aquela escolhida pelo operador como mais adequada a partir da tarefa compreendida (Falzon, 2007).
Essa distinção entre o que é compreendido e apropriado vai depender tanto da maneira com que os gestores constroem as tarefas divulgadas e esperadas (ou seja, da clareza das instruções e do grau de implícito) quanto do nível de formação e das possibilidades de julgamentos que o trabalhador faz em função das suas prioridades, contexto de trabalho e valores. Neste caso, a tarefa apropriada é um produto da representação que o indivíduo tem da situação ou a combinação entre os questionamentos "em qual situação eu me encontro?" com "o que eu tenho que fazer nessa situação?" (Barbier, 2011, p. 152-153).
Por fim, há ainda aquelas tarefas que, após compreendidas e apropriadas, foram efetivamente realizadas através da atividade, ou foram impedidas de serem executadas. A tarefa efetiva é, assim, aquela que foi executada e que, descrita ou verbalizada, se torna uma representação ou modelo mais próximo possível da atividade concretizada (Falzon, 2007). Para que ela seja analisada é necessário, portanto, o acompanhamento da atividade real. Já a tarefa ou atividade impedida (Clot, 2007) é aquela que não foi efetivada em razão das circunstâncias do trabalho e/ou de si próprio, apesar de todas as possibilidades de ação que os indivíduos tinham na situação de trabalho. Compreender, dentro do quadro analisado, quais são as tarefas efetivas e impedidas é a última etapa da análise da tarefa e só é possível com o acesso do pesquisador ao campo ou com a possibilidade de uma confrontação em vídeo da situação real.
Método
O desenvolvimento da análise da tarefa compreende geralmente uma estrutura que possui a presença de duas fases: análise documental e entrevistas com gestores e trabalhadores (Montmollin, 1995). Essas fases, bem como o desenvolvimento completo do método, estão descritos a seguir.
Participantes
A amostra foi composta por 15 entregadores de alimentos, todos eles homens (100%), a maioria com idade entre 25 e 44 anos (73,3%), todos eles da região metropolitana de Belo Horizonte/MG. Para que a amostra se mantivesse homogênea, foram definidos, como critérios de inclusão, entregadores de alimentos que prestam serviço para plataformas digitais e utilizam motocicleta como meio de transporte.
Os entregadores entrevistados trabalhavam, em média, 14 horas/dia, e ganhavam entre R$ 1.500 e R$ 2.000 por mês. A maior parte deles (66,6%) trabalhava 7 dias/semana, mesma porcentagem daqueles que tinham esse trabalho como principal fonte de renda.
Instrumento
Como documentos relativos ao trabalho, os entregadores possuem apenas os chamados "Termos de Uso" dos aplicativos de entrega de alimentos, que podem ser encontrados no website de cada uma das empresas-plataforma e que descrevem as políticas, normas e aspectos legais, as obrigações ao exercer o trabalho e elementos gerais da relação com os entregadores. Nessa pesquisa, foram coletados e analisados quatro termos de uso dos aplicativos mais utilizados no mercado, com o intuito de verificar a tarefa prescrita e as obrigações dos entregadores, bem como a forma com que elas são apresentadas no documento.
Paralelamente à análise documental, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 15 entregadores. A entrevista semi-estruturada focaliza em um assunto sobre o qual é feito um roteiro com perguntas principais, dentro de categorias específicas, que são complementadas por outras questões dadas pelas circunstâncias da entrevista (Manzini, 1990). Para elaborar as perguntas, foram utilizadas as categorias de Triviños (1987): perguntas de consequências, perguntas avaliativas, perguntas hipotéticas e perguntas categoriais. Dessa forma, foi desenvolvido um roteiro com 6 perguntas principais (relacionadas com as atividades exercidas pelo entregador num dia típico de trabalho; sua relação com os colegas, restaurantes e aplicativo; o seu grau de satisfação com o trabalho; as dificuldades que ele enfrenta; as estratégias utilizadas para superar as dificuldades encontradas; e as modificações na execução das tarefas que ocorreram em função da pandemia), além de informações pessoais como gênero, horas trabalhadas por dia e média salarial. Esse roteiro foi utilizado como um guia, de forma que cada entregador poderia discorrer livremente sobre quaisquer assuntos que considerasse pertinentes.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
A coleta de dados foi realizada em um período total de nove meses (abril a dezembro de 2020) por um grupo de três pesquisadores, por meio das entrevistas e análises documentais. Dos três pesquisadores, dois deles possuem ampla experiência em pesquisa no campo da Ergonomia da Atividade, tendo um deles realizado pesquisas em nível de mestrado e doutorado sobre o trabalho de motociclistas. Um aluno de mestrado completou o grupo, de maneira a auxiliar na operacionalização das entrevistas juntos aos entregadores, bem como na análise dos dados.
Para selecionar os participantes das entrevistas, os pesquisadores estiveram presencialmente em pontos comerciais utilizados pelos entregadores para buscar a encomenda, tais como bares, lanchonetes e restaurantes. Nesses locais, os pesquisadores explicaram aos trabalhadores os objetivos da pesquisa, convidando-os para participar da mesma. Muitos deles negaram a demanda, com a justificativa de falta de tempo ou por não se sentirem à vontade em participar. Para aqueles que aceitaram, foram explicados os objetivos e combinada a forma (presencial ou à distância) e o momento em que a entrevista poderia acontecer (durante nossa abordagem ou em momento posterior). Assim sendo, 15 entregadores, todos eles motociclistas, concordaram em participar voluntariamente da pesquisa.
Dos 15 entregadores entrevistados, 9 deles concordaram que as entrevistas fossem realizadas de maneira presencial, no momento da abordagem, respeitando as medidas de prevenção do SARS-CoV-2, como o uso de máscaras e álcool-gel, além do distanciamento de 2 metros. Os outros 6 entregadores participaram de maneira remota, através de chamadas de vídeo e áudio feitas por telefone celular. Cada uma das entrevistas teve duração média de 40 minutos e todas elas foram gravadas mediante autorização dos entrevistados e posteriormente transcritas para análise.
Os entregadores que aceitaram participar do estudo foram devidamente esclarecidos sobre seus objetivos e expressaram sua concordância através de um termo de consentimento livre e esclarecido. Foi respeitada a privacidade e a confidencialidade das informações obtidas em todas as etapas do projeto, tendo sido solicitada autorização para a escrita e publicação do artigo.
Procedimentos de Análise de Dados
O material de análise dos pesquisadores foi composto, portanto, dos termos de uso das empresas e das transcrições das entrevistas realizadas. Com esse material, os pesquisadores buscaram identificar nos textos, para a busca e análise dos dados, cada uma das classificações da tarefa prescrita, em que nível essa tarefa ocorre (se na gestão ou na operação), qual a definição do tipo de tarefa analisada, bem como a fonte de informação na qual essa tarefa poderia ser encontrada (Tabela 1).
Sabendo que a tarefa divulgada é aquela que está explícita nos textos da empresa ou que é verbalizada pelos gestores, para identificá-la nessa pesquisa, foram destacadas, nos termos de uso, as frases consideradas mais relevantes na relação empresa-plataforma e entregador. Como a tarefa esperada é aquela relacionada à expectativa implícita (não escrita ou verbalizada do gestor) em relação ao trabalho do entregador, procurou-se identificar, nos termos de uso e nas entrevistas, as situações relacionadas ao comportamento provavelmente esperado pelos gestores sobre os entregadores. Sendo a tarefa compreendida aquilo que é entendido pelo indivíduo, foi ressaltado nas entrevistas o que parecia estar claro para o entregador, buscando encontrar frases ou expressões que se referissem essa ideia (por exemplo, "eu sei que", "eu acho que", "eu penso que", "eu entendo que"). Por fim, sendo a tarefa apropriada aquela escolhida pelo indivíduo para executar a ação, procurou-se identificar, nas transcrições das entrevistas, trechos que remetessem à essa escolha, principalmente do ponto de vista da execução das ações frente a determinadas situações. A análise das tarefas efetiva e impedida não foi realizada nessa pesquisa, dado que necessita do acompanhamento da atividade, in loco, pelos analistas ou de uma confrontação por vídeo da situação real. Os resultados da análise realizada serão descritos a seguir.
Resultados
Da Tarefa Divulgada pelas Empresas à Apropriada pelos Entregadores
Tarefas ao nível da gestão: Divulgada e Esperada. Um entregador só tem registrado como tarefa divulgada ou explícita os termos de uso que ele aceita no momento em que cria a sua conta no aplicativo da empresa. Alguns trechos importantes analisados nestes documentos, relacionados à relação empresa-entregador, incluem:
A inexistência de qualquer vínculo empregatício;
A obrigatoriedade de arcar com todos os custos referentes aos equipamentos de trabalho, como o próprio veículo utilizado, sua manutenção e combustível, luvas, capacete, jaqueta e a mochila;
A obrigatoriedade de indenizar a plataforma em caso de qualquer dano, prejuízo, demanda, despesas e "utilização indevida" ou "violação dos termos de uso";
A responsabilização, por parte do entregador, caso ocorram multas, acidentes, danos, extravio do produto e processos decorrentes das entregas;
A obrigatoriedade de "envidar" (ou empregar) os melhores esforços na execução das entregas, solução de problemas, atendimento de clientes e atualizar o status da entrega a cada etapa realizada.
A tarefa esperada é aquilo que não está escrito (neste caso nos termos de uso), mas é esperado que o entregador faça sob o risco do mesmo receber algum tipo de punição ou sanção por parte da empresa, conforme relatado pelos entregadores. No trabalho analisado, não está dito e nem escrito, mas é esperado pelas empresas-plataforma, que o entregador não se atrase, que ele seja cordial com o cliente e que o alimento chegue ainda quente e íntegro ao destino. Embora não haja treinamentos prévios ou orientações explícitas para cumprir esses requisitos, qualquer cenário diferente desse é passível de reclamação do cliente e sanção da plataforma junto ao entregador, como bloqueios ou exclusão do trabalho. Assim, embora as empresas-plataforma declarem que não há vínculo empregatício formal, as análises mostram que elas têm imposições como a de empresas formais junto aos seus empregados, tais como exigências de compliance em relação aos entregadores junto aos clientes e definição de quanto os entregadores devem ganhar em cada tarefa efetivada, ou seja, cada entrega concluída.
Tarefas ao nível da operação: Compreendida e Apropriada. A tarefa compreendida é aquilo que é entendido pelo operador em relação ao que foi dito/escrito e ao que é esperado pela gestão. Já a tarefa apropriada é aquela que o operador escolhe fazer a partir do que foi compreendido por ele.
Na análise das transcrições das entrevistas sobre o grau de compreensão e apropriação da tarefa por parte dos entregadores, foi possível observar pelo menos dois parâmetros transversais às verbalizações de todos eles: o grau de satisfação em relação à algumas situações vividas e grau de obediência em relação às regras explicitas ou implícitas que envolvem o trabalho da categoria.
Alguns deles se mostram satisfeitos com o trabalho e obedientes às regras da empresa e de trânsito. Outros se mostram satisfeitos, mas desobedecem a algumas dessas regras. Outros ainda se dizem insatisfeitos. Mesmo assim, obedecem a essas regras. Por fim, alguns se manifestam como insatisfeitos e desobedientes a tais regras. A tabela 2 apresenta esses padrões de comportamento e algumas verbalizações2 dos entregadores que representam a ideia de cada um desses padrões.
A Reprodução de Padrões de (Des)Obediência e (In)Satisfação
As análises das transcrições das entrevistas realizadas nos permitiram compreender que existem quatros padrões típicos de comportamento entre os entregadores avaliados. Esses padrões foram agrupados em categorias, de acordo com a manifestação de (des)obediência em relação às regras e de (in)satisfação relativa a algumas situações vividas e verbalizadas pelos entregadores. Com o objetivo de sumarizar os resultados apresentados, foi elaborada uma matriz, categorizando os graus de satisfação versus obediência às regras (Figura 1). Cada categoria recebeu uma denominação distinta, a saber: o perfil "satisfeito e obediente" é aqui chamado de "aderente"; o perfil "satisfeito e desobediente", de "tolerante"; o perfil "insatisfeito e obediente" é aqui chamado de "intolerante"; e o perfil "insatisfeito e desobediente", de "resistente" (Figura 1).
As categorias de comportamento acima descritas não se tratam de perfis de personalidade, mas sim de modelos que variam de acordo com a situação na qual o entregador está exposto. Dessa maneira, não há um entregador que é, o tempo todo, "aderente" ou "resistente", mas há situações em que esses padrões de comportamento aparecem em maior ou menor frequência dentre os entregadores entrevistados. Destarte, um mesmo entregador pode apresentar todas as categorias definidas nessa pesquisa durante o mesmo dia ou semana de trabalho, de acordo com a situação na qual está exposto.
Discussão
Novos Contornos da Precarização do Trabalho
Diante da análise da tarefa realizada, podemos nos perguntar: o que as verbalizações dos entregadores revelam sobre a relação entre eles e as plataformas digitais?
Inicialmente, o trabalho de entrega mediado por plataformas digitais é extremamente novo na nossa sociedade, ainda sem nenhum tipo de regulação ou regulamentação no Brasil, o que faz com que as empresas do setor imponham livremente e unilateralmente as regras do trabalho e a vigilância sobre os trabalhadores (Kalil, 2020). Assim sendo, essas empresas definem, por si próprias, as formas de contratação, demissão e as relações a serem estabelecidas durante o período de trabalho ativo do entregador, mesmo defendendo, através da tarefa divulgada (ou termos de uso), a ausência de vínculo formal com eles.
De maneira mais detalhada, na contratação as plataformas definem quem pode trabalhar, delimitando, através dos termos de uso, o que vai ser feito e como deve ser feito, enquanto na demissão, ocorre um desligamento simples e rápido, sem necessidade de justificativas ao trabalhador (Filgueiras & Antunes, 2020). Já durante o período ativo do trabalho, as plataformas determinam os prazos de execução, estabelecem unilateralmente os pagamentos por peça ou contrato de zero hora, definem como os trabalhadores devem se comunicar com a gestão, usam bloqueios ou a possibilidade de dispensa para ameaçar os entregadores (Kalil, 2020). Frases como "fui bloqueado e nem entendi porque" ou "o aplicativo me cancelou" foram frequentemente verbalizadas nessa pesquisa. Ao mesmo tempo, as plataformas exigem, sem oferecer qualquer tipo de treinamento ou orientação que possa permitir uma compreensão do que é exigido, níveis de excelência e compliance, ao mencionar que os entregadores devem envidar os melhores esforços na execução dos serviços.
Nesse processo de aparente inexistência de vínculo formal, as plataformas transferem para o trabalhador as responsabilidades, os riscos e os custos do trabalho. Num sistema tradicional, a empresa contratante deve arcar com os custos e riscos da produção, uma vez que é ela própria quem detém o lucro. No capitalismo contemporâneo incorporado pelo sistema uberizado - caracterizado por trabalhadores just in time, disponíveis e descartáveis com as suas relações mediadas, organizadas e gerenciadas por plataformas digitais - é o próprio trabalhador quem assume os custos da produção e do seu instrumento de trabalho, qual seja, o veículo de transporte do alimento. É, portanto, exclusivamente sua a obrigação de aquisição, manutenção e transporte do seu carro, moto ou bicicleta. Ao mesmo tempo, fica a cargo do entregador os riscos na execução do trabalho, sejam eles acidentes, perda ou dano do produto transportado, multas de trânsito ou quaisquer outros decorrentes das entregas. Em outras palavras, o trabalhador detém os instrumentos de trabalho sem, entretanto, auferir qualquer compensação pelo uso, manutenção e depreciação de seus veículos (Abílio, 2019).
Além disso, até o aparecimento do sistema uberizado, cabia às contratantes assumir os custos e riscos não somente do período ativo de produção, como também da sua ociosidade. O trabalho mediado por plataformas digitais aprofundou ao extremo a essência do capital, fazendo o entregador, que passou a arcar com os custos e riscos do trabalho, internalizar também o custo da ociosidade, ou seja, o tempo de espera da produção (Kalil, 2020).
Em síntese, alegando ausência de vínculo e desejando um trabalhador just in time, o gestor da plataforma estabelece que o trabalhador esteja sempre disponível para buscar a encomenda no estabelecimento comercial no momento que o cliente demandar, para entregá-la nas melhores condições, com todos os custos e riscos entre esses dois pontos sendo exclusivamente do entregador3, lhe remunerando apenas pelo tempo efetivamente convertido em produção. Assim, as empresas gestoras de plataformas conseguem desenvolver um nível de exploração extremo e personalizado para cada trabalhador (De Siqueira, Pedreira, & Boas, 2020).
A pandemia causada pelo SARS-CoV-2 não é, portanto, a causadora principal da precarização contemporânea do trabalho. Ela somente agudizou o problema, que já vinha sendo fortemente agravado com o fenômeno da uberização.
Precarização Travestida de Modernidade e o "Privilégio da Servidão"
A uberização do trabalho gera uma mutação da gestão do trabalho que elimina direitos e transforma trabalhadores em indivíduos autogeridos, e, ao mesmo tempo, superexplorados (Abílio, 2020). Não obstante, as empresas-plataforma se servem de estratégias eufemísticas que adoçam o cenário de superexploração com as ideias neoliberais de que os entregadores são "parceiros", "empreendedores" e "autônomos", buscando fazer com que o trabalho ganhe ares de modernidade, de um jogo limpo, justo e com equilíbrio de forças entre as partes. A estratégia faz com que alguns trabalhadores altamente explorados pelo sistema se tornem, por vezes, mais "aderentes" a ele, afirmando satisfação e/ou obediência às suas regras de funcionamento. Não raro, encontramos verbalizações que representam esses padrões, tais como "tô satisfeito", "quem não tá satisfeito, é só sair", "faço tudo que eles mandam sem reclamar" e ainda, "sei dos riscos, mas eles já falaram a regra do jogo e eu topo jogar".
A estratégia de criar uma narrativa que esconda ou atenue um sistema de superexploração e ludibrie os próprios trabalhadores não é nova, sendo utilizada em outras indústrias como a carvoeira ou da cana-de-açúcar. Nesta última, Reis (2017) mostra vários exemplos: o termo "remuneração variável" esconde o principal mecanismo de intensificação do trabalho ao ser empregado como uma forma moderna do pagamento por produção; "líder de turma", nome dado ao fiscal, retira o estigma punitivista que o termo carrega neste setor; "campeão" ou "podão de ouro" é o título dado ao cortador de cana mais produtivo, mesmo que alguns deles morram por exaustão.
No trabalho uberizado, a estratégia léxica funciona, levando alguns trabalhadores, inclusive, a negar os próprios direitos trabalhistas. Mesmo trabalhando, em média, 14 horas/dia e a maioria deles 7 dias/ semana, alguns perfis, mais aderentes e tolerantes, verbalizam: "eu gosto é da liberdade e da autonomia"; "o bom desse trabalho é poder fazer o seu horário"; "prefiro um corre assim do que ficar fichado em algum lugar". Vinícius (2020), ao analisar os resultados de uma pesquisa feita com mais de 100 entregadores, constata que a maioria daqueles que usava motocicleta não gostaria de trabalho com carteira assinada. O autor argumenta que este posicionamento coloca em evidência a disposição ou não do trabalhador em substituir uma ilusória autonomia e flexibilidade, delimitadas pelas plataformas, pela proteção econômica e social oferecida pela carteira de trabalho.
Uma possível explicação para isso pode ser encontrada na pesquisa de Diniz (2003), realizada bem antes da era das plataformas digitais, com motofretistas de Belo Horizonte/MG, que revela os reflexos da baixa remuneração registrada em carteira desses profissionais e a insatisfação manifestada por eles. Ao se destruir o valor da remuneração registrada em carteira, se destrói também o valor subjetivo que esse instrumento de proteção social representa para a classe que vive do trabalho. E, por efeito, tem-se ainda uma obliteração do valor subjetivo do próprio trabalho.
Outra leitura que se faz dessa manifestação de usufruir de um "privilégio da servidão" (Antunes, 2018) tem relação com o grau de dependência do trabalhador com a empresa. Embora as empresas-plataforma defendam que este pode ser um trabalho utilizado como renda complementar, muitos deles (a maioria em nossa pesquisa) o tem como atividade principal. Apesar de não termos feito uma análise direta sobre a relação entre o nível de dependência e os perfis "aderente" e "tolerante", foi possível perceber que no grupo com maior grau de dependência com a empresa parte dos entregadores aceitam melhor as regras e utilizam os eufemismos praticados por elas, manifestando satisfação e obediência às regras (Tabela 2).
Por outro lado, outra parte deles se definem como insatisfeitos e/ou desobedientes às regras, tornando-se mais "resistentes" ao sistema. Segundo Kalil (2020), aqueles que possuem uma fonte de renda primária e utilizam as plataformas digitais como complemento salarial têm maior controle de quando, quanto, onde e para quem trabalhar. Assim, essa outra parte questiona as regras e se declara insubordinada sempre que possível, nos indicando que o motor da luta de classes sempre foi o desequilíbrio de forças e privilégios, bem como o desejo de fuga da subordinação do trabalho, que se expressa desde a busca do controle do ritmo de trabalho pelos trabalhadores até os movimentos revolucionários de autogestão (Abílio, 2019).
Alguns dos entregadores manifestam a sua insatisfação e desobediência verbalizando que "o sistema é injusto", questionando as formas de subordinação através de bloqueio e dizendo burlar frequentemente o sistema, por exemplo, pedindo a gorjeta em dinheiro, passando no ponto cego do radar, realizando alguns combinados com o porteiro ou dando "golpe" no aplicativo para ficar com o lanche.
Ainda que esse grupo traga exemplos que, à primeira vista, nos pareçam desconfortáveis sob o prisma legal, as verbalizações devem ser interpretadas não como uma burla inconsequente ao sistema, mas como um indicativo de basta às amarras, à superexploração, ao desequilíbrio de forças, ao controle e à rigidez das hierarquias do trabalho. Esse argumento pode ser observado nas verbalizações de diferentes padrões de comportamento dos entregadores, ao manifestarem com frequência o sistema "injusto" e "desequilibrado", e as formas que eles encontram de "compensar" esse cenário. Sob este prisma, a burla está menos presente nas estratégias desenvolvidas pelos entregadores e mais nas formas de gestão desenvolvidas pelas empresas-plataforma que buscam deliberadamente maneiras de negar o vínculo com os entregadores e, assim, evitar a regulação social da justiça do trabalho (Filgueiras & Antunes, 2020).
Contribuições da Análise da Tarefa
Embora muito pouco utilizada de maneira aprofundada, a análise da tarefa pode representar uma solução alternativa para auxiliar a compreensão e a análise do trabalho quando os pesquisadores estão impedidos de acompanhar in loco o desenrolar da atividade. Para além disso, as contribuições presentes na análise da tarefa, enquanto etapa metodológica da Análise Ergonômica do Trabalho, são primordiais para a compreensão do trabalho dos indivíduos, independentemente do contexto de pandemia.
Contudo, faz-se necessário esclarecer que a análise da tarefa não substitui a análise da atividade e nem prescinde da análise subjetiva do discurso do trabalhador. A análise da tarefa feita nesse estudo corresponde ao que é determinado pelas empresas-plataforma e o que é entendido e escolhido pelos entregadores. Até aqui, permanecemos no limite das representações e percepções dos indivíduos em relação ao próprio trabalho. A partir disso, é necessária outra etapa, presencial, através do acompanhamento da atividade, o que permite verificar o que e como foi executado ou o que impediu a realização da tarefa, saindo da esfera das percepções e representações de trabalhadores e gestores, e adentrando o campo da atividade real vivida por eles. É nesse momento que se pode constatar as variabilidades presentes e analisar as respectivas regulações implementadas, como por exemplo, que o cliente que sempre dá gorjeta não deu ou deu a mais, que o porteiro não colaborou naquele dia ou, ao contrário, adiantou o trabalho do entregador e avisou previamente o cliente sobre a chegada da mercadoria, que o aplicativo aumentou a taxa em determinado dia, que o entregador não encontrou estacionamento onde normalmente encontra etc. Isso é a atividade real e a sua análise in loco, através do acompanhamento dos entregadores, é fundamental para prosseguimento dessa pesquisa.
Isto posto, a análise da tarefa, muitas vezes negligenciada por pesquisadores e consultores do trabalho, pôde nos mostrar elementos finos da atividade dos entregadores, nos levando a compreender padrões de (des)obediência e (in)satisfação por eles adotados, o nível de exploração ao qual estão submetidos, as estratégias que eles próprios utilizam para trabalhar e as armadilhas eufemísticas adotadas pelas empresas para dourar a pílula do trabalho precarizado que desenvolvem.
Considerações Finais
Considerando o contexto de distanciamento social imposto pela pandemia causada pelo SARS-CoV-2 e a necessidade de desenvolvimento de pesquisas sobre a atividade dos entregadores de mercadoria, a análise da tarefa permitiu compreender o modus operandi deste grupo de trabalhadores e das empresas-plataformas gestoras do trabalho. Apesar da amostragem relativamente limitada (15 entregadores), decorrente do contexto de distanciamento social e consequente dificuldade de seleção dos participantes, essa pesquisa possibilitou compreender como empresas-plataforma se utilizam de estratégias que geram, entre os entregadores de mercadorias, padrões de comportamento aderente, tolerante, resistente e intolerante.
Se, por um lado, o discurso engodado das empresas-plataforma ludibria alguns dos seus trabalhadores, por outro, essa pesquisa mostra que alguns deles se mostram insatisfeitos e, por vezes, desobedientes ao sistema imposto. Ora, faz-se necessário compreender que a desobediência não surge com o intuito de prejudicar outrem, mas ocorre no interior de um sistema de superexploração, que se beneficia do desenvolvimento tecnológico para concentrar renda e precarizar o trabalho dos indivíduos na ponta do processo. Daí a importância do debate no âmbito nacional e internacional do tema, pois trata-se de uma prática que, sob o escudo da modernização, da liberdade e do empreendedorismo, tende a se espraiar por diversos outros setores profissionais.
Estão postas aí as mutações do trabalho dos entregadores de mercadorias que, utilizando formas de expressão que podem nos causar estranhamento, reivindicam e tentam achar por si próprios, um caminho para, como um deles afirmara, "compensar de alguma forma a injustiça toda".
Referências
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Informações sobre os autores:
Raoni Rocha
Universidade Federal de Ouro Preto, Escola de Minas, Campus Morro do Cruzeiro s/n
35400-000 Ouro Preto, MG, Brasil
E-mail: raoni@ufop.edu.br
Leonardo Pistolato
E-mail: leonardo_pistolato@hotmail.com
Eugênio Paceli Hatem Diniz
E-mail: eugenio.diniz@fundacentro.gov.br
Submissão: 16/02/2021
Primeira Decisão Editorial: 14/08/2021
Versão Final: 29/11/2021
Aceite: 29/11/2021
1 Adotaremos os termos utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2020), em sua pesquisa PNAD-Covid, realizada durante a pandemia, que considera "entregadores de mercadorias" como aqueles que fazem o transporte de encomendas em seus veículos, normalmente através de plataformas digitais.
2 As verbalizações apresentadas no quadro são representativas dos padrões de comportamento encontrados e por questão de espaço, tiveram de ser selecionadas. Outras verbalizações, que não necessariamente estão presentes no quadro, serão encontradas no decorrer do texto.
3 Cabe ressaltar que essa transferência de riscos e custos não é só da empresa para o trabalhador, mas também para o Estado e toda a sociedade, uma vez que, em caso de acidente, é o hospital público quem irá lhe atender. Além disso, por ocasião da aposentadoria, na qual o indivíduo não puder mais trabalhar será o Estado, mais uma vez, que será demandado a lhe amparar.