Produzir conhecimentos científicos constitui um desafio permanente para o desenvolvimento teórico, metodológico e tecnológico da ciência. Por sua vez, disseminar esses conhecimentos na sociedade, por meio de processos formativos e da atuação profissional, é uma condição necessária e relevante ao desenvolvimento das profissões (Cruz et al., 2021).
Ciência e profissão são instituições sociais e históricas, que se tornaram indissociáveis, especialmente a partir do século XIX, com a disseminação do papel da racionalidade científica na compreensão da realidade e com os avanços técnicos e tecnológicos (Cupani, 2005). Ambas resultam de esforços individuais e coletivos em sistematizar conhecimentos, construir perspectivas de compreensão e estratégias na busca de soluções para os desafios humanos. Funcionam como componentes de uma “correia de transmissão”, uma frequentemente transferindo potência para a outra, embora inexista interdependência integral entre eles. Por exemplo, projetos de pesquisa podem estar fundamentados em problemas da prática profissional e esta pode ser beneficiada pelos achados desses projetos.
Há características marcantes de uma profissão e de seus profissionais. Uma profissão é essencialmente um conjunto de atividades, baseadas em um corpo sistemático de conhecimentos científicos, e de práticas aderentes a um código de ética (Sheehan, 1994). Ou, ainda, pode ser definida como um grupo ocupacional, organizado em corporações relativamente autônomas - em função de capacidade de autorregulamentação - e que presta serviço especializado à sociedade (Abbott & Meerabeau, 2020; Crompton, 1990). Profissionais, por sua vez, são orientados e motivados por premissas, ideais, métodos, padrões de conduta e obrigações sobre o que fazer, porque fazer, como fazer e quais resultados se espera alcançar em suas especialidades técnicas. Em função disso, assumem responsabilidades individuais - eventualmente multiprofissionais - em prover os melhores serviços, recursos e intervenções voltadas a demandas individuais, grupais e organizacionais.
As profissões se distinguem umas das outras pelo status de poder, legitimado pelo Estado e baseado em três pilares fundamentais: o monopólio de área do conhecimento especializada e institucionalizada, a autonomia técnica para o profissional decidir sobre o seu próprio trabalho e o credencialismo como via no acesso à profissão (Freidson, 1998, 2001). O poder das profissões reside em seu potencial de recrutar e formar pessoas, realizar treinamentos especializados e acreditações técnicas, assim como criar mecanismos de proteção à discricionaridade, legalidade e legitimidade do exercício profissional (Abbott & Meerabeau, 2020). Esse poder é continuamente desafiado pela consistência e eficácia dos conhecimentos, métodos e tecnologia utilizados nas práticas profissionais, assim como pela confiança depositada pela sociedade na conduta dos profissionais.
Nesse contexto, é importante compreender o papel da Psicologia como área do conhecimento humano, reconhecida como ciência, aplicada como profissão regulamentada e integrada ao imaginário social como um instrumento de compreensão do comportamento humano em diferentes contextos (Malvezzi, 2021). Afirmar, portanto, que a Psicologia é uma ciência e profissão, nesse caso, acentua a legítima e necessária interlocução entre uma área do conhecimento científico e um campo de intervenção profissional, com diferentes especialidades e finalidades, valorizada por um público interno (psicólogos/as) e externo (usuários dos seus serviços profissionais). Decorre dessa relação, a organização de uma comunidade acadêmica, orientada para os processos de pesquisa, ensino e intervenção profissional, e a institucionalização social da profissão e de suas especialidades, por meio de regulamentações do exercício profissional (Cruz, 2016).
No âmbito da Psicologia das Organizações e do Trabalho (POT), esse desafio não é diferente. Compreender e intervir no âmbito do trabalho e das organizações, com base no corpus de conhecimentos e de práticas desenvolvidos na Psicologia e nas ciências afins, é um compromisso científico e ético. Cientistas e profissionais, que atuam nessa área e especialidade, fazem parte de uma comunidade que deve contribuir e zelar pela qualidade dos conhecimentos produzidos e disponibilizados à sociedade. Esse é o contexto em que se delineiam os desafios da formação de profissionais que pretendem atuar ou atuam no campo da POT.
De uma maneira geral, o objetivo principal da formação profissional, seja ela básica ou continuada, realizada essencialmente em instituições de ensino/capacitação especializadas, é promover o desenvolvimento de competências científicas e profissionais entre os aprendentes de uma profissão e de suas respectivas especialidades (Cruz, 2016). Formar pessoas para atuar profissionalmente no campo da POT é uma atividade complexa, que envolve, basicamente: 1) compreender o papel científico e relevância social dos conhecimentos científicos e tecnologias produzidas em POT; 2) demonstrar interesse em compartilhá-las e integrá-las aos processos de ensino e no desenvolvimento de habilidades das pessoas; 3) zelar por sua efetiva aplicação, tendo em vista os contextos de trabalho/organizacionais, as finalidades da intervenção, as práticas regulamentadas e as responsabilidades técnicas e éticas associadas à prestação de serviços profissionais.
No Brasil, uma formação profissional em POT deve contemplar um conjunto de competências técnicas fundamentais ao exercício profissional, tendo em vista os principais campos da POT: a Psicologia do Trabalho, a Psicologia das Organizações, a Psicologia e Gestão de Pessoas, o Ensino e a Pesquisa em POT. No escopo geral dessas competências, se incluem: a) Analisar necessidades e/ou demandas de clientes/usuários e determinar os objetivos da intervenção; b) Planejar a avaliação, avaliar e diagnosticar condições individuais, grupais, organizacionais relevantes à intervenção; c) Definir estratégias, selecionar e construir método e técnicas necessárias à intervenção; d) Identificar, preparar e conduzir intervenções consideradas apropriadas ao alcance dos objetivos, com base no desenvolvimento de atividades e os resultados obtidos; e) Estabelecer a adequação da intervenção realizada à solução do problema inicial; f) Fornecer feedback para clientes/usuários da prestação de serviço (SBPOT, 2020).
No desenvolvimento e aperfeiçoamento dessas competências em POT é relevante considerar as relações entre conhecimentos e problemas práticos oriundos do mundo do trabalho e das organizações (Rodríguez, 2017). É um processo de integração entre teoria-prática e reflexão-ação, de descoberta e absorção de conhecimentos oriundos do estado da arte (produção científica atualizada) e da experiência (pessoal ou supervisionada), de desenvolvimento de habilidades de comunicação verbal e escrita, de uso de recursos técnicos, de identificação com ideais e valores profissionais no enfrentamento de demandas concretas (Arboleda & de Arboleda, 2012; Iñesta, 2006; Sierra-Barón, Mora, Quintero, & Santofimio, 2020).
Entre os desafios contemporâneos à formação profissional em POT, permanece a necessidade de integração entre conhecimentos científicos e capacidade de resposta às demandas das pessoas e das organizações, que produza a maior quantidade de benefícios possíveis para os envolvidos. Esse processo pode ser aperfeiçoado com base no desenvolvimento do pensamento estratégico, de habilidades técnicas, capacidade de interlocução interdisciplinar e versatilidade para enfrentar problemas complexos. Esses aspectos assinalam a busca por uma atuação profissional qualificada, sempre que for possível e eticamente desejável.
A Revista Psicologia: Organizações e Trabalho (rPOT), desde o início deste século, tem se constituído em um mecanismo de interlocução entre ciência e práticas profissionais em POT, por meio da avaliação da qualidade do conhecimento produzido e de sua difusão na comunidade. A expectativa é continuar contribuindo com o fluxo constante de informações científicas e técnicas qualificadas, buscando contribuir no processo formativo e no exercício profissional em POT.