Recentemente as relações entre saúde mental, violência e trabalho policial têm estimulado pesquisas, relatórios e matérias jornalísticas de grande repercussão devido aos altos índices de violência e vitimização policial que o Brasil vem alcançando em nível mundial (Dias & de Andrade, 2021; Futino & Delduque, 2020; Fantástico, 2019). Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (ABSP, 2020), morreram mais policiais por suicídio em 2019 do que em confrontos no trabalho, numa proporção de 91 suicídios para 62 mortes em serviço. Tal fato aponta para o elevado impacto que o sofrimento psíquico não acolhido e tratado pode produzir sobre a vida dos profissionais. Por outro lado, as polícias brasileiras foram consideradas as que mais matam entre as instituições policiais de todo mundo, fazendo 5.660 vítimas civis em 2019, um aumento de 188de letalidade em relação ao ano de 2013.
Por mais que os dados apontem para um aumento da violência policial, há uma série de diferenças institucionais entre as corporações policiais. Sendo assim, devem-se destacar dois aspectos: as polícias civis, foco deste artigo, possuem uma letalidade muito inferior às polícias militares1, que atuam na linha de frente da segurança pública. De outro lado, há grandes diferenças regionais, sendo que nas corporações gaúchas, região de nossa pesquisa, a taxa de letalidade é uma das mais baixas, 1 pessoa morta por 100 mil habitantes - enquanto a média nacional é de 3 por 100 mil habitantes (ABSP, 2020; Lei n° 12.527).
De qualquer forma, o aumento das mortes nas ações policiais instiga a pensar sobre a possibilidade de questões psicossociais estarem sobrepondo-se à técnica do trabalho policial, que deveria ser baseada no uso progressivo e racional da força2. Tanto a vitimização quanto a letalidade das polícias brasileiras têm gerado questionamentos sobre a saúde mental dos policiais, em especial, sobre a forma como os profissionais têm gerenciado emoções e sobre a responsabilidade das instituições no tratamento destes conflitos (ABSP, 2020; Albernaz, Ribeiro, & Luz, 2009).
Diante do cenário complexo que envolve as polícias no Brasil, este artigo tem por objetivos contribuir para a compreensão das relações entre trabalho policial e adoecimento psíquico. Para tanto, tomamos por base registros de um centro de atendimento em saúde da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, entre os anos de 2015 e 2020. Procuramos, assim, mapear algumas características dos policiais que procuram atendimento psicossocial, seus motivos expressos de sofrimento e, ensaiar, algumas possíveis relações destes últimos com as características, condições e formas de organização do trabalho policial. Neste caso, é importante lembrar que o sofrimento pode não estar no trabalho policial “de fato”, mas na maneira como ele se estrutura e se organiza, tendo potencial para aumentar ou minimizá-lo.
Sofrimento Psíquico e Trabalho Policial
Dejours (1988) empregou a noção de “sofrimento psíquico” como mais adequada para analisar os impactos do trabalho na saúde mental, já que o sofrimento e o prazer são inerentes ao trabalho, num equilíbrio delicado que, ao longo da vida, pode promover dois tipos de sofrimento: o criativo e o patológico. O “sofrimento criativo” seria o agenciador da realização do verdadeiro trabalho, alavanca do processo criativo e da evolução do sujeito na profissão. O “patológico”, por sua vez, surge quando os recursos de ego falham diante dos desafios enfrentados, empurrando o sujeito para um sentimento de incapacidade, que pode vir acompanhado de sintomas psicossomáticos, tristeza, raiva e desesperança. Estes sintomas não se restringem exclusivamente ao ambiente laboral, mas podem repercutir nas diversas esferas da vida do sujeito.
No caso dos policiais que atuam em delegacias e departamentos voltadas para investigação de crimes violentos, por exemplo, o risco de vida, a exposição constante à violência e transtornos pós-traumáticos são três dos fatores mais relacionados ao estresse e que podem gerar adoecimentos difíceis de discernir sua origem: se de ordem pessoal ou institucional (Lancman & Sznelwar, 2004). Outras situações complexas que compõem o cotidiano de policiais no Brasil são as práticas de assédio moral, os conflitos burocráticos típicos de organizações hierarquizadas, a falta de treinamento e recursos adequados, além da ausência de programas de saúde mental abrangentes. Soma-se a isso, as pressões dos meios de comunicação, práticas de corrupção nas corporações e as frustrações diante de índices criminais que resistem em baixar (ABSP, 2020; França & Duarte, 2017).
Minayo, Souza e Constantino (2008) concluíram que os policiais acreditam que a imagem que a sociedade tem deles é negativa, considerando-a “truculenta, corrupta e ineficaz” (p. 56). Reiner (2004) destaca que esta visão nem sempre corresponde à realidade, pois há muita ambivalência sobre a figura do policial, que é comumente associado ao “herói” ou ao “guardião da ordem”. Neste sentido, é oportuno relembrar a definição de Brandão (2002) acerca do arquétipo do “herói”, mergulhado com devoção na missão, ora encantador, ora agressivo, no entanto ele vai, faz e cumpre seu dever, quer seja ajudando ou destruindo.
O mito do “herói” se faz presente em um dito popular que circula entre os policiais brasileiros para caracterizar sua relação com o trabalho “Missão dada é missão cumprida”. Este poderia ser entendido como o “trabalho prescrito”, tarefa imposta ao trabalhador pela organização, que é diferente do “trabalho real”, aquilo que é possível realizar dadas as condições e forma de organização do trabalho. O “trabalho real” não é visível para quem está de fora ou em outro nível hierárquico, pois as normas consolidadas, culturalmente ou pelas relações interpessoais, atuam como limitadores da atividade, diferente do modelo idealizado nos dispositivos técnicos (Dejours, 1988; Dejours, Abdoucheli, Jayet & Betiol, 1994).
Diversos autores (Bretas, 1997; Monjardet, 2002; Muniz, 2001; Reiner, 2004) destacam que a ambivalência em torno da figura do policial, sujeito temido e ao mesmo tempo admirado por seu poder, geraria um fechamento do mundo policial em relação às outras pessoas. Para Muniz (2001) ocorreria uma separação subjetiva “nós-eles”, onde não só atividades profissionais, mas de lazer e de relações conjugais, passariam a ser realizadas entre pares, como estratégia de proteção e por um reconhecimento subjetivo difícil de ser construído com pessoas que não partilham de um cotidiano tão específico e exigente.
Cultura Policial
Reiner (2004) destaca que as corporações polícias de todo mundo tendem a manter alguns traços culturais em comum, cuja força de sua expressividade levou a cunhar a expressão “cultura policial”, como importante dispositivo de análise das relações intra-institucionais. A cultura policial disputa espaço com os códigos legais na produção dos comportamentos a partir de um conjunto de valores, compartilhados pelos policiais de várias partes do mundo como: a divisão do mundo social, a solidariedade em pares, o conservadorismo moral e o machismo3. Estes pressupostos compartilhados mudariam de acordo com a divisão do trabalho, dos fluxos internos, das responsabilidades ligadas à categoria, do gênero e das relações instituídas com os tipos de público: “gente suspeita, doutores e pés de chinelo” (Monjardet, 2002).
Deve-se destacar que ao longo dos anos, especialmente com o advento da exigência de nível superior para ingresso nas polícias e a implantação de ferramentas técnicas de trabalho, a “cultura policial” tem sofrido aberturas e transformações. No caso da Polícia Civil, tais traços são atenuados pela caraterística do trabalho, não diretamente ostensivo como na Polícia Militar, mas investigativo e também de atendimento de vítimas na Delegacia (Art. 144 da Constituição Federal). Neste sentido, Lima, Bueno e Mingardi (2016) apontam que o organograma das polícias civis possibilita dois tipos de conflitos principais: “conflitos de natureza da atividade” (entre atividades operacionais de rua, que são distintas de funções burocratizadas e internas à delegacia) e os “conflitos de nível hierárquico” (proporcionados pela carreira dupla, dividida entre Delegados de Polícia de um lado, e Agentes de Polícia de outro).
Considerando que as Polícias Civis possuem grande diversidade de funções internas, Bretas e Poncioni (1999), destacam atividades especialmente estressantes: o Investigador de rua que realiza “campanas” e escutas telefônicas, enfrentando riscos e cargas horárias excessivas; e o Plantonista, o policial que realiza plantões de até 24 horas ininterruptas em Delegacias, atendendo as vítimas, ao mesmo tempo em que lavra os Autos de Prisão em Flagrante e faz custódia de detento. Esta realidade exigiria grande esforço psíquico em trocar em pouco tempo a postura acolhedora necessária para escutar vítimas de crimes, com a firmeza que o trato com sujeitos detidos exige (Bretas & Poncioni, 1999; Misse, 2010).
As angústias e conflitos vivenciados por policiais geram redução da motivação ao trabalho, absenteísmo, acidentes de serviço e, ampliam, estigmas sobre os agentes policiais, além de trazer altos custos econômicos e sociais (Souza & Bernardo, 2019). Efeitos que, segundo Castro, Rocha e Cruz (2019) se relacionam a quatro campos estressores: (I) a instituição policial com suas condutas e formas de relação; (II) as problemáticas organizacionais, como falta de padronização, burocratização, falta de pessoal; (III) os estressores sociais, havendo uma expectativa social de que o policial tenha um comportamento exemplar, seja com as supostas vítimas ou com os supostos suspeitos; (IV) e o risco iminente de morte. Daí que identificar os fatores associados ao comprometimento da qualidade de vida pode auxiliar a subsidiar intervenções psicossociais nos pontos de maior incidência nos processos de adoecimento psíquico (Ministério da Saúde, 2006).
Bassani (2020) propõe uma análise pela lente “territorial”, onde a gestão do crime toma a forma de um “percurso punitivo” composto de quatro etapas: (I) Abordagem/detenção (Polícia Militar); (II) Registro da ocorrência/abertura de inquérito (Polícia Civil); (III) Exame de corpo de delito/perícias (Instituto Geral de Perícias/Polícia Técnico-científica) e; (IV) Aprisionamento (Polícia Penal). Isto é, uma estrada longitudinal, por vezes circular, já que a reincidência de delitos gira em torno de 70no total de presos (NotíciasR7, 2014). Diante deste cenário, Misse (2010) aponta para o papel central que as polícias civis vêm ganhando nos últimos anos, tendo em vista que o Código de Processo Penal define o Delegado de Polícia como a “autoridade policial” no território, sendo de sua responsabilidade decidir se a ocorrência se configura em crime e se há materialidade e autoria.
Azevedo e Vasconcellos (2011) lembram que na última década, houve um inchaço do sistema de justiça criminal pela postura de muitos juízes de apenas homologar o que é apresentado nos documentos policiais, contribuindo para os altos índices de presos provisórios no Brasil, cerca de 40do total (Justiça e Segurança Pública, 2016). Pesa ainda o fato de que grande parte da decisão policial é baseada no princípio da “discricionariedade”, sendo comum que, diante de exigências de gestão, sejam pressionados a acelerar o tempo da investigação, gerando tensão, podendo levar ao estresse e adoecimento policial (Azevedo & Vasconcellos, 2011; Lima et al., 2016; Misse, 2010).
Polícia Civil do Rio Grande do Sul
As Polícias Civis do Brasil possuem uma estrutura organizacional relativamente padronizada a partir da carreira dupla de servidores: uma formada por agentes de polícia, incluindo Escrivães e Inspetores (que podem chegar ao cargo máximo de Comissário de Polícia) e outra, hierarquicamente superior, composta de Delegados de Polícia. Os agentes de polícia em geral devem possuir formação superior em qualquer curso de graduação, já os Delegados, devem ser formados em Direito, atuando em grande parte, em cargos de gestão.
No Regimento Interno da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, os Escrivães são voltados à construção e registro de fatos e provas em documentos e os Inspetores de Polícia, voltados à investigação e cumprimento de mandados, embora ambos podem ampliar suas atuações a partir do tipo de delegacia ou modalidade de trabalho. Atualmente o efetivo da Polícia Civil do Rio Grande do Sul é de 5.200 profissionais4, sendo 465 Delegados e 4.745 agentes de polícia (Escrivães, Inspetores e Comissários de Polícia) sendo que, desde 1997 há a exigência de nível superior para qualquer cargo na PC/RS.
Método
A pesquisa foi desenvolvida a partir de método quantitativo, descritivo e documental, baseada na análise de fichas de triagem realizadas pelo Serviço Psicossocial da Divisão de Saúde da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul.
Participantes
Fizeram parte do estudo 758 fichas de triagem de policiais ativos e inativos que buscaram atendimento individual no Serviço Psicossocial da Polícia Civil do RS (Psicologia Clínica, Psicologia Institucional e Serviço Social) no período de 01 de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2020.
Instrumentos
Utilizou-se para coleta de dados a ficha de triagem desenvolvida pelo serviço: questionário semiestruturado com 20 questões que abrange as áreas de dados pessoais e de identificação, dados familiares, fatores sociais, histórico de saúde e descrição da queixa.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
Para a coleta dos dados foram analisadas as fichas de triagem preenchidas entre os anos de 2015 a 2020, excluindo-se aquelas que não foram localizadas no sistema eletrônico e/ou arquivo morto (indicação de abertura de prontuário em livro de registro, mas não sendo localizado) e fichas incompletas (sem data de abertura, data de nascimento, cargo, local de lotação ou queixa). A partir desses critérios, 124 fichas de triagem foram excluídas, restando 634 fichas ou 83,6do total de triagens do período. A fim de compor uma amostra exclusiva de policiais, uma segunda filtragem excluiu fichas de dependentes, como filhos ou companheiros(as), restando 543 (85,6%) fichas de triagem de policiais ativos e inativos, representando a amostragem final.
Para a realização desta pesquisa foi apresentado documento de projeto de pesquisa à Delegada diretora e ao Coordenador Técnico da Divisão de Saúde da Polícia Civil do RS. Na coleta e análise de dados, foram resguardados dados de identificação dos pacientes, assim como seu histórico de atendimento, a fim de preservar eticamente a identidade dos mesmos.
Procedimentos de Análise de Dados
Após padronização das fichas de triagem e criação do banco de dados, estes foram transpostos a uma planilha composta das seguintes variáveis: número de prontuário, data de abertura, sexo, data de nascimento, cargo, vínculo com a instituição, local de lotação e motivo da triagem. Com relação à variável motivo da triagem, foram construídas categorias analíticas, posteriormente associadas a siglas identificatórias. Os principais resultados da pesquisa foram apresentados a partir da estatística descritiva (Zanella, 2013).
Resultados
Busca por Atendimento Psicossocial
Ao longo dos últimos 6 anos, registrou-se uma média de 126 novos atendimentos individuais psicossociais por ano de policiais civis. Observa-se que o ano de 2017 foi aquele com maior procura, com 142 novas buscas por atendimento. Já o ano em que se registrou a menor demanda foi o de 2020, tendo 114 novas buscas pelo serviço. Em termos longitudinais, entre o primeiro e último ano da análise, evidenciou-se uma queda de quase 20em novas procuras pelo serviço.
Com relação às formas de acesso ao atendimento em saúde, evidenciou-se que pelo menos 93dos policiais procuraram o serviço de forma espontânea (n = 504). Os outros 7(n = 39) foram encaminhados formalmente por suas chefias.
Atendimento por Gênero
Do total de policiais atendidos, percebe-se que 55(n = 300) eram do sexo masculino e 45(n = 243) do sexo feminino. Se, em termos absolutos, os homens são maioria entre os novos atendimentos psicossociais, em termos proporcionais o dado se inverte. No Gráfico 3 pode-se perceber que, a PC/RS (n = 5.200) é composta por 62(3.245) de homens e 38de mulheres (1.955).
Com relação às formas de acesso ao atendimento em saúde, evidenciou-se que pelo menos 93dos policiais procuraram o serviço de forma espontânea (n = 504). Os outros 7(n = 39) foram encaminhados formalmente por suas chefias.
Entretanto, se analisarmos a partir do efetivo total, evidencia-se que, foram atendidas 12,5do total de mulheres, comparado a 9de atendimentos masculinos, ou seja, o número de atendimentos femininos é 3,5superior ao de policiais homens.
Atendimento por Faixa Etária
Dentre os policiais que buscaram atendimento psicológico e/ou social, percebe-se que quase metade dos policiais atendidos está na faixa dos 31 a 40 anos, isto é, 40(n = 217) do total. A segunda parcela mais incidente foi a de policiais entre os 41 e 50 anos de idade, com 27(n = 146) dos atendimentos, conforme se pode observar na Figura 3. Além disso, foi observado que a média de idade dos policiais ao ingressaram na instituição é de 31 anos e, com base nisso, pode-se pensar que 40(n = 217) do total de policiais que buscaram atendimento psicossocial estavam em seus primeiros 9 anos na instituição
Atendimento por Cargo Institucional
Os policiais que mais buscaram atendimento foram os Escrivães, correspondendo a 53(n = 289) dos atendimentos, seguidos pelos Inspetores 37(n = 201). Juntos, esses 2 cargos compreendem 90(n = 518) do total de servidores. Evidencia-se também que os Delegados representam somente 5(n = 25) no número de novos atendimentos do local. Cabe destacar que 204 (38%) policiais buscaram atendimento enquanto atuavam na função de plantonistas, atividade em que a carga horária pode chegar a 24 horas ininterruptas (24h x 72hs de folga), que lida com o atendimento às vítimas e com a guarda de detentos nas carceragens.
Contudo, na Polícia Civil do RS, é a categoria de Inspetores a que possui um maior número de policiais, com 1.975 servidores, seguida da de Escrivães com 1.930 pessoas, depois Comissários, com 800 pessoas e, por fim, Delegados, com 495 pessoas. Na figura 4, há uma proporção comparativa sob o total da instituição, onde se percebe que foram atendidos 15dos Escrivães, 10dos Inspetores, 4dos Comissários e 5dos Delegados.
Evidencia-se, então, que os servidores que mais buscam atendimento são os Escrivães, encarregados, em geral, do trato com processos de burocratização institucional. Outro dado importante é que, do total de Escrivães (n = 1.930), quase 55são mulheres (1.049 ou 54,4%), isto é, trata-se do único cargo onde a incidência feminina é superior à masculina.
Atendimentos por Tipo de Serviço
Observa-se que do total da amostra, 40(n = 217) foram atendidos pelas Seções de Psicologia e 25(n = 135) foram atendidos pela Seção de Serviço Social. Contudo, há a atuação multidisciplinar em 30(n = 162) dos casos. A Categoria Outras, que corresponde a 5(n = 27) da amostra, corresponde a encaminhamentos para o Serviço de Policlínica (consultas médicas com especialidades, fisioterapia, fonoaudiologia e nutrição).
Motivos da Busca por Atendimento
Observou-se que, ao procurar atendimento psicossocial, os policiais, em geral, apresentavam múltiplos fatores concomitantes de sofrimento e sinais de adoecimento, sendo os mais recorrentes os: conflitos com companheiro(a), sintomas depressivos, sintomas psicossomáticos, sintomas de ansiedade e acidentes em serviço. Dessa maneira, os motivos foram categorizados, associados a siglas identificatórias e quantificados no total de vezes em que apareceram no discurso inicial dos policiais.
A análise aponta que a “queixa” mais presente, com 55de incidência (n = 295) reúne preocupações ou eventos relacionados ao campo das relações conjugais (violência psicológica ou física, relações extraconjugais, discussões recorrentes, distanciamento emocional do(a) parceiro(a) e dificuldades com a separação.
O 2º e 3º motivos mais presentes na queixa inicial são sintomas depressivos (falta de motivação, desesperança, tristeza, falta de vontade de viver, isolamento social) e sintomas psicossomáticos (insônia, aumento ou perda de peso, dores no corpo, doenças de pele, cefaleia). Os sintomas de ansiedade (dificuldade de “desligar do trabalho”, medos recorrentes, pensamentos repetitivos e/ou intrusivos) foram apresentados por 130 policiais.
Por fim, aparecem questões relacionadas ao processo de reconhecimento de acidente em serviço (n = 124), de acordo com as normas da Secretaria de Segurança Pública/RS. Essa modalidade de processo é direito de todo servidor público de segurança, sendo amparada pelo decreto 32.889/97 e pela Lei 14.66/14.
Resultados
É comum pensarmos as polícias como territórios ocupados em sua maioria por homens. Neste sentido, filmes e debates populares tendem a reduzir a compreensão dos dilemas psicológicos de seus servidores a questões associadas a valores como virilidade, força e honra. Segundo Calazans (2004) tem se nesta percepção o reforço de masculinidades hegemônicas que facilmente deslizam para o ideal do policial como herói, ou como um sujeito que teria como principal meio de trabalho o uso da força, ao invés da técnica, do treinamento e do raciocínio. Esses ideais constroem o que a Psicologia Social entende como desenvolvimento social da subjetividade onde há a identificação com o grupo de pertença e incorporação de valores culturais institucionais no seu modo de vida global (Dias & Andrade, 2021; Monjardet, 2022).
Misse (2010) dialoga sobre a questão do próprio território policial, onde descobrir-se vulnerável e, especialmente, reconhecer para outros sua vulnerabilidade torna-se um ato complexo, que pode só se tornar possível quando outras áreas da vida, dentre elas a esfera íntima, começa a ser prejudicada. Neste sentido, torna-se de fundamental importância questionar até que ponto a entrega integral exigida aos policiais não pode estar produzindo efeitos nocivos em áreas sobre as quais a própria instituição policial não tem a tradição de prestar atenção ou amparo.
As questões relacionadas ao sofrimento psíquico e trabalho policial são temas envoltos em uma série de preconceitos e práticas culturais que, historicamente, distanciam os policiais de um atendimento em saúde mental que escute e acolha suas emoções. Um exemplo disso é a ausência de uma política pública integralizada com as condições de cada região do Brasil 5para atendimento em saúde a policiais, estruturada sobre leis/regulamentos específicos com sistemas de controle, registro e notificação padronizados.
Contudo, a pesquisa constatou uma abrangência considerável de policiais civis atendidos, com 11do efetivo policial total da instituição PC/RS tendo iniciado atendimento psicossocial entre os anos de 2015 a 2020. Frisa-se que se trata apenas dos atendimentos individuais e iniciados no período, sendo que a abrangência do serviço é maior se considerarmos os atendimentos grupais. Como exemplo, somente o Programa de Acompanhamento ao Policial em Estágio Probatório (PAEP) iniciado em 2015 pela PC/RS, atendeu 900 policiais. Isto é, 29dos policiais da PC/RS foram atendidos em necessidades psicossociais de forma institucional no período de 6 anos.
Considerado a erraticidade dos programas de saúde mental à policiais nas diferentes regiões do país, tais dados foram considerados significativos. Pode-se pensar que o fato de a Divisão de Saúde ser um dos primeiros serviços de saúde institucionalizados nos órgãos de segurança do RS (1980) teria auxiliado sua popularização entre os policiais, desconstruindo estereótipos relacionados ao sofrimento psíquico. De outra forma, a possibilidade de utilizar os serviços mesmo em horário de expediente (mediante atestado fornecido pela DSA), a proximidade física de acesso aos servidores da capital (o órgão fica em área central, junto a sede gestora da PC-RS) e a oferta de atendimentos online podem ter influenciado no índice. Características que deveriam ser consideradas em implementações de serviços do tipo em órgãos policiais de outros Estados.
Com relação a curva de atendimentos, percebeu-se uma concentração no ano de 2017, quando foram realizados 142 atendimentos, quase 20a mais do que no último ano da análise. Pesquisando possíveis fatores associados constatamos que neste ano também foi registrado um dos mais altos índices de aposentadorias, cerca de 590 solicitações, um aumento de 22no número de aposentados em relação a anos anteriores. Tais dados podem relacionar-se a fatores histórico-políticos do período, quando servidores públicos tiveram seus salários parcelados, em uma medida relacionada à crise econômica local. Foi também entre os anos de 2016 e 2018 que o RS vivenciou uma ampla crise carcerária que levou à manutenção de presos em delegacias por tempo prolongado. Ambos os fatores foram noticiados pelos sindicatos de categorias policiais como produtores de estresse e sobrecarga de trabalho (Bassani, 2020; UGEIRM, 2020).
Com relação ao fluxo de ingresso das demandas, percebeu-se que 93dos policiais haviam procurado atendimento de forma voluntária. Esse dado reforça a análise anterior de redução do estigma em torno do tratamento em saúde mental, tendo em vista que é o próprio policial que identifica sinais de sofrimento e reconhece que precisa de auxílio especializado para saná-lo (Bretas, 1997). Sugere, assim, uma flexibilização no reconhecimento de vulnerabilidades pessoais, em que a figura do “herói” moldado pela cultura policial passa de um personagem rígido para alguém com traços humanos e, portanto, passíveis de adoecimentos (Monjardet, 2002; Muniz, 2001). Já a diminuição dos atendimentos no ano de 2020 podem relacionar-se às interferências relacionadas a pandemia de Covid-19, dada as inúmeras restrições sanitárias de circulação em voga na época e a ainda incipiente divulgação dos atendimentos online.
No que tange a maior procura proporcional das mulheres por atendimentos, estes dados podem relacionar-se à maior pressão vivenciada pelas mesmas na vida profissional associada às características de gênero, em uma instituição historicamente machista (Bretas, 1997; Monjardet, 2002). Nesse sentido, Soares e Musumeci (2005) apontam que existem visões de gênero discrepantes entre homens e mulheres sobre o policiamento com a tendência a projetar serviços burocráticos às mulheres, em detrimento dos serviços operacionais aos homens. Para Lopes, Ribeiro & de Souza (2021) as mulheres teriam a sobrecarga de lidar com o trabalho propriamente dito, acrescido da “missão” (p. 34) de desconstruir a expectativa de fragilidade projetada pelos padrões de gênero hegemônicos dentro das polícias. De qualquer forma, a maior procura proporcional de mulheres policiais aos serviços psicossociais é um dado que reivindica uma investigação mais apurada, podendo justificar políticas públicas voltadas à mulher policial.
Com relação à faixa etária dos policiais que buscaram atendimento, percebe-se que os primeiros anos de polícia tendem a ser especialmente conflitantes. Neste caso, alguns motivos comuns seriam: dificuldades de adaptação a “cultura policial” (Monjardet, 2002), dificuldades de relacionamento com chefias ou com colegas mais antigos; tensões por conta do período avaliativo de estágio probatório; frustrações com relação à estrutura física das Delegacias; e, por fim, lotação em local distante de casa. Nestes primeiros anos, a instituição parece radicalizar a distância entre o “trabalho prescrito” e o “trabalho real” (Dejours, 1988), sendo que as inúmeras precariedades percebidas no ingresso a PC acabam por rivalizar com a mensagem popular de que o “dever policial necessita ser cumprido a qualquer custo”.
Por fim, a pesquisa evidenciou o tema dos conflitos nas relações conjugais como principal motivador para a busca de atendimentos psicológicos e/ou sociais entre os policiais. Este dado surpreende especialmente porque o tema das relações afetivo-sexuais é pouco abordado em pesquisas relacionadas ao tema do trabalho policial. Para Rolim e Wendling (2013) de todas as problemáticas conjugais enfrentadas pelos policiais, a que mais se destaca é a questão da separação. Neste sentido, é importante lembrar que o fenômeno da conjugalidade é um processo de união de valores, crenças e perspectivas de vida que podem ser perturbados pela forma de organização do trabalho policial, como a exigência de trabalho em momentos de lazer, a tensão com possíveis perigos ou mesmo, as possibilidades de relacionamentos extraconjugais relacionados ao longo tempo de dedicação a polícia.
É comum pensarmos as polícias como territórios ocupados em sua maioria por homens. Neste sentido, filmes e debates populares tendem a reduzir a compreensão dos dilemas psicológicos de seus servidores a questões associadas a valores como virilidade, força e honra. Segundo Calazans (2004) tem se nesta percepção o reforço de masculinidades hegemônicas que facilmente deslizam para o ideal do policial como herói, ou como um sujeito que teria como principal meio de trabalho o uso da força, ao invés da técnica, do treinamento e do raciocínio.
As próprias instituições policiais podem estimular e normalizar comportamentos de enfrentamento - e ampliar seu risco de vida - quando adotam, por exemplo, um sistema de premiações por ações ligadas ao risco iminente da morte e ao uso da agressividade. Práticas que compõem o importante tema da “cultura policial” e que produzem subjetividades individuais muito próprias, onde a identificação com o grupo de pertença extrapola o papel profissional e passa a condicionar a vida dos policiais de modo global (Castro et al., 2019). Em territórios assim, descobrir-se vulnerável e, especialmente, reconhecer para outros sua vulnerabilidade torna-se um ato complexo, que pode só se tornar possível quando outras áreas da vida, dentre elas a esfera íntima e conjugal, começa a ser prejudicada.
Neste sentido, a pesquisa mostrou-se de grande utilidade, por desvelar que os conflitos de relacionamento conjugal são aqueles que têm maior potencial de levar policiais a procurar auxílio. De outra forma, torna-se de fundamental importância questionar até que ponto a entrega integral exigida aos policiais não pode estar produzindo efeitos nocivos em áreas sobre as quais a própria instituição policial não tem a tradição de prestar atenção ou amparo.
A pesquisa demonstrou que a presença crescente de mulheres na Polícia Civil do Rio Grande do Sul, veio acompanhada da maior presença feminina também na busca de atendimentos psicossociais. Realidade que precisa ser mais bem estudada em pesquisas específicas que viabilizem os novos dilemas e conflitos trazidos por essa mudança histórica na estrutura de gênero das polícias brasileiras. Além disso, deve-se destacar que os dados desta pesquisa não compõem um perfil dos sintomas e transtornos psicológicos mais incidentes entre policiais civis, mas podem indicar os motivos cuja intensidade ou dificuldade pessoal em lidar mais pressionaram os policiais a buscarem atendimento psicossocial.
Por fim, entende-se a importância de um investimento na qualificação dos registros de atendimento em saúde mental. Ação que poderia subsidiar políticas públicas mais assertivas, que criassem espaços e ferramentas institucionais aos policiais para o melhor gerenciamento de suas emoções e conflitos, não só laborais.
Destaca-se a importância de um investimento na qualificação dos registros de atendimento em saúde mental nas polícias de todo o país. Ação que poderia subsidiar políticas públicas mais assertivas, que criassem projetos e ferramentas institucionais aos policiais para o gerenciamento de suas emoções e conflitos, podendo contribuir na redução dos altos índices de violência e suicídio policial que o Brasil enfrenta atualmente.