A Psicologia Social do Trabalho (PST) configurou-se e estabeleceu-se ao analisar as dinâmicas psicossociais envolvidas nos problemas vivenciados pelos/as trabalhadores/ as e suas formas de enfrentamento a partir da compreensão das causas desses problemas (Esteves et al., 2017). Os objetos de estudo incorporam fenômenos sociais como o desemprego, reestruturações produtivas, precariedades do trabalho e percepções sociais dos/as trabalhadores/as sobre sua própria realidade. As temáticas investigadas emergem de problemas vivenciados no cotidiano dos/as trabalhadores/as, valorizando-se a articulação entre pesquisa e intervenção. Busca-se criar modos de enfrentamento das situações problemáticas, desde a inserção do tema em debates nos espaços públicos até a construção de práticas busquem modificar concretamente os contextos de trabalho. Por sua vez, as intervenções realizadas necessitam investir na produção de conhecimento, por não haver soluções universais para resolver as demandas dos/as trabalhadores/as.
Coutinho et al. (2017) apontam que, no âmbito das pesquisas na área de Saúde do Trabalhador, a PST se diferencia de outras perspectivas teóricas que enfatizam a melhora do desempenho do/a trabalhador/a e, consequentemente, sua produtividade, mediante a compreensão da relação entre trabalho e saúde. Há um manifesto caráter político e social nesta abordagem ao considerar as condições e os modos de organização do trabalho que produzem adoecimento, buscando caminhos para transformá-lo, contando com a participação dos/as trabalhadores/as. O adoecimento mental também pode se manifestar por meio do consumo problemático de álcool e o estudo ora apresentado buscará aprofundar nesta temática.
O álcool é uma droga extremamente conhecida e legalizada, cujo consumo não é somente socialmente aceito quanto inclusive incentivado, com baixo preço e fácil acesso no Brasil. Dados atuais mostram que o alcoolismo é um problema de saúde pública nacional e globalmente. Supõe-se que 237 milhões de homens e 46 milhões de mulheres sejam diagnosticados com transtornos decorrentes do consumo de álcool no mundo (Organização Mundial da Saúde, 2018). Dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 2020) sugerem que na América Latina e no Caribe seu consumo possui índice superior ao da média mundial. Há um marcante recorte de gênero relativo à ingestão desta droga, visto que homens bebem mais regularmente que mulheres.
Em janeiro de 2020 o contágio pelo novo Coronavírus tornou-se uma emergência de saúde pública de importância internacional. Em um contexto global, o número de mortes registradas pode ter chegado a 20 milhões; já no âmbito nacional, o quantitativo ultrapassou 700 mil pessoas e 37 milhões de casos1. O enfrentamento da pandemia foi influenciado diretamente pelo contexto social, econômico e político, com a incidência de mortes desigual entre os países e também internamente a eles. Para conter os índices de propagação de contaminação por COVID-19 foi necessário adotar medidas de distanciamento social (OPAS, 2020). Com isso, locais públicos (bares, restaurantes, boates, shows e festivais) nos quais se consumia bebidas alcoólicas foram proibidos de funcionar, porém, esta publicação ressalta o aumento do seu consumo.
Além da função socializadora, o álcool também é utilizado como mecanismo para manejar emoções difíceis. Ao longo da pandemia, os órgãos de saúde receberam muitas notificações sobre o aumento de ansiedade, depressão, tédio e incerteza, assim como de agravamento do consumo de álcool (Garcia & Sanchez, 2020). Esses autores acrescentam que o consumo problemático de álcool está associado à debilitação do sistema imunológico, aumentando a suscetibilidade a doenças infectocontagiosas tais quais a COVID-19. Em face desta preocupação, uma pesquisa exploratória com 33 países da América Latina e do Caribe visando analisar hábitos de ingestão de bebidas alcoólicas fez um comparativo do uso antes e depois da pandemia (OPAS, 2020). Os brasileiros representaram o maior número de entrevistados. Mesmo que tenha sido identificado aumento na frequência de episódios de beber pesado na pandemia, principalmente na faixa etária de 30 a 39 anos, observou-se que apenas 0,3% dos entrevistados buscaram ajuda para lidar com problemas relacionados ao consumo de álcool.
O II Relatório Brasileiro sobre Drogas (Opaleye et al., 2021) destaca que o álcool foi a substância psicoativa mais citada nas concessões de auxílio-doença e de aposentadoria por invalidez, com a maior prevalência na faixa etária de 25 a 49 anos e mais de 90% pertenciam ao gênero masculino. O diagnóstico de transtornos por uso de álcool estava presente em mais da metade dos pareceres favoráveis a liberação do auxílio-doença para pessoas com mais de 40 anos. O álcool, assim, é a droga que provoca maior custo para o sistema de aposentadoria brasileiro.
Salienta-se que os posicionamentos atuais da Justiça do Trabalho não corroboram demissões de trabalhadores/as diagnosticados como alcoolistas, mesmo no regime de justa causa. Segundo o Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT, 2016), o/a trabalhador/a alcoolista não pode ser demitido/a, pois foi diagnosticado/a com uma psicopatologia. Neste caso, deverá ser encaminhado ao INSS para avaliação, a qual poderá resultar em concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, a depender da situação do/a empregado/a. O desligamento do/a trabalhador/a por iniciativa da empresa se configura como ação discriminatória e, consequentemente, passível de anulação, havendo exigência de reintegração ao cargo. Muitos magistrados já prolataram decisões neste sentido, argumentando que a dispensa agravaria as situações de vulnerabilidades já vivenciadas pelo indivíduo e sua família.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2019), argumenta que os elevados índices de alcoolismo identificados em determinadas categorias profissionais sugerem a existência de elementos prejudiciais à saúde dos trabalhadores/as, sendo, portanto, possível e necessário construir ações preventivas ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Essa publicação orienta que a relação entre o consumo de álcool e o trabalho seja foco de atenção para os operadores de ações de saúde, principalmente pelos profissionais de Psicologia, em quaisquer serviços de saúde e não apenas naqueles especializados em álcool e outras drogas ou em saúde do trabalhador.
Considerando a inserção do profissional de Psicologia no campo de Saúde do Trabalhador e a alta prevalência do consumo problemático de álcool por trabalhadores/as no Brasil, é relevante identificar e compreender as práticas adotadas por psicólogas/os diante do consumo problemático de álcool e o alcoolismo no contexto de trabalho. Além disso, acredita-se que lançar luz nos materiais encontrados pode apoiar a construção de análises que auxiliem na reflexão das/os profissionais de Psicologia sobre as ações implementadas, contribuindo para ações futuras que busquem lidar com o alcoolismo no trabalho.
Método
A revisão de escopo é uma modalidade de revisão da literatura que oportuniza uma descrição qualitativa, sistemática e crítica de resultados de pesquisas em torno de um determinado foco (Tricco et al., 2018). Tem um papel fundamental na síntese, na identificação de lacunas, na análise crítica e na disseminação dos conhecimentos produzidos pela comunidade científica acerca de um determinado objeto de estudo.
A escolha metodológica justifica-se pelo caráter inédito do objeto da pesquisa, não tendo sido identificada iniciativa similar na literatura nacional, apesar de sua evidente relevância e aplicabilidade. Foi identificada uma metarrevisão (uma revisão de revisões sistemáticas) sobre intervenções psicológicas relacionadas ao alcoolismo na literatura internacional, no entanto, ela também não ressalta intervenções no contexto de trabalho (Nadkarni et al., 2022).
A revisão de escopo foi conduzida baseando-se no protocolo PRISMA Extension for Scoping Reviews - PRISMA-ScR (Tricco et al., 2018). Conforme discutem estes autores, a revisão de escopo tem diferenças com relação à revisão sistemática, visto que não realiza avaliação da qualidade das intervenções, porém explicita seus modos de identificação e sistematização de dados coletados (viabilizando replicabilidade), e faz uma descrição dos estudos selecionados de maneira qualitativa e crítica. Deve utilizar critérios transparentes, rigorosos e explícitos que proporcionem a identificação e sistematização de todos os estudos relevantes para responder ao problema investigado. Os autores também argumentam que, para aumentar o rigor metodológico, é importante que a revisão de escopo seja conduzida por uma equipe e não apenas por um/a pesquisador/a, visando reduzir vieses implícitos. Na Figura 1 são apresentados os caminhos percorridos para selecionar os estudos a serem analisados em conformidade com as diretrizes da recomendação PRISMA.

Nota. Adaptado de Tricco et al. (2018).
Figura 1 Fluxo da informação com as fases realizadas na revisão sistemática
Na etapa de identificação houve registro e análise da totalidade de estudos encontrados com os descritores e operadores booleanos que foram construídos através do Vocabulário de Termos em Psicologia da Biblioteca Virtual de Saúde: "alcoolismo AND trabalho"; "psicologia AND alcoolismo AND trabalho"; "alcoolismo AND psicologia". A busca foi feita em todos os campos de todos os registros, ou seja, nos títulos, no texto dos resumos e nos descritores de assunto. Nos meses de novembro e dezembro de 2021 efetivaram-se as buscas nas seguintes bases de dados eletrônicas: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), Scientific Electronic Library Online (SciELO), Catálogo de Teses e Dissertações da Capes (CAPES), Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Optou-se por não delimitar os períodos de publicação dos estudos a serem selecionados visando aumentar a eligibilidade para análise.
Na fase de seleção, realizou-se a exclusão de estudos duplicados. Todos os títulos e autores dos textos retornados das consultas a cada base foram transportados em uma planilha e foi feita ordenação alfabética alternada de cada um dos dois campos. Foram excluídos os registros cujos dados consistissem em repetição de dados de registros anteriores.
Na etapa de elegibilidade, se deu a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão para avaliar, mediante a leitura dos resumos, quais seguiriam para a próxima etapa. Os autores do estudo realizaram encontros semanais nesta etapa de coleta de dados para discutir a análise independente que realizaram. Nestes encontros buscaram dirimir eventuais dúvidas sobre o cumprimento ou não de critérios de inclusão ou exclusão pelas publicações, e também para compartilhar análises sobre os estudos incluídos.
Os critérios de inclusão foram delimitados da seguinte maneira: (1) estudos acadêmicos que discorressem sobre a atuação do/a psicólogo/a com trabalhadoras/es com diagnóstico de alcoolismo em contextos de trabalho; (2) estudos acadêmicos que recorressem a metodologias participativas (pesquisaação, pesquisa-intervenção, observação participante etc.), desenvolvidas em contextos de trabalho, com trabalhadoras/es com diagnóstico de alcoolismo, e (3) pesquisas publicadas em português e realizadas no Brasil. Os critérios de exclusão foram definidos da seguinte forma: (1) intervenções ou pesquisas cujo trabalho de campo recorria a contatos muito pontuais com seus participantes e com demais interlocutores, por exemplo, estudos transversais, e (2) estudos que não foram publicados na íntegra ou cujos textos completos fossem inacessíveis.
Com intuito de ampliar o número de estudos a serem incluídos na revisão, foram realizadas reiteradas tentativas de contato com autores/as cujas publicações atendiam aos critérios de elegibilidade, mas o texto completo estava indisponível nas bases de dados eletrônicas. Duas autoras contatadas retornaram e enviaram seus trabalhos na íntegra.
Na fase inicial da identificação dos estudos, foi possível localizar uma grande quantidade de estudos que abordam a temática, mais precisamente, 1.019 publicações. Porém, poucos dentre eles tinham como objetivo a atuação do/a psicólogo/a no contexto de trabalho. A fim de ampliar o número potencial de estudos elegíveis, recorreu-se ao Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, à Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e às publicações do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas2.
Na fase de inclusão ocorreu a análise qualitativa dos estudos. As publicações selecionadas foram lidas integralmente e organizadas em uma tabela contendo sete grandes áreas de registro e análise: (1) identificação do estudo, (2) caracterização da instituição-sede do estudo, (3) metodologia, (4) análise, (5) resultados e discussão, (6) limitações e (7) avaliação teóricometodológica da pesquisa. A tabela não foi incluída no presente trabalho devido à sua extensão, no entanto, serviu de base para a sistematização dos resultados, apresentados e discutidos a seguir, por meio de uma análise descritiva crítica.
Resultados e Discussão
Após percorrer o caminho de análise para elegibilidade, os 11 estudos sumarizados na Tabela 1 foram incluídos. Foram analisados aspectos metodológicos (desenho dos estudos, tipo de publicação, ano de publicação, local da pesquisa e a amostragem) e relacionados às intervenções realizadas (origem da demanda, participação do/a trabalhador/a, objetivo das intervenções, concepção de trabalho e estruturação das intervenções) destes estudos.
Tabela 1 Título dos estudos, autores, local de publicação, ano de publicação e tipo de intervenção realizada no local de trabalho
Título do estudo | Autores | Local de publicação | Ano | Tipos de intervenção |
---|---|---|---|---|
Avaliação da Efetividade da Intervenção Breve para a Prevenção do Uso de Álcool no Trabalho | Ferreira, Albertoni, Silva e Sartes | Revista Psicologia em Pesquisa | 2016 | Intervenção Breve |
Etilismo na jornada laboral: peculiaridades da vida naval | Halpern e Leite | Revista Saúde e Sociedade | 2013a | Tratamento através de grupoterapia e observação participante |
Oportunidades de beber a bordo: características do labor naval | Halpern e Leite | Physis Revista de Saúde Coletiva | 2013b | Tratamento através de grupoterapia e observação participante |
A interseção entre os trabalhos marinheiros e o alcoolismo | Halpern e Leite | Revista Psicologia: Organizações e Trabalho | 2013c | Tratamento através de grupoterapia e observação participante |
Oportunidades de beber a bordo: características do labor naval | Halpern e Leite | Physis Revista de Saúde Coletiva | 2013b | Tratamento através de grupoterapia e observação participante |
A farda siri cozido e a branquinha: narrativas de vida de um paciente militar alcoolista | Halpern e Leite | Cadernos de Psicologia Social do Trabalho | 2012a | Estudo de caso com os participantes de grupoterapia |
Representações de adoecimento e cura de pacientes do Centro de Dependência Química do Hospital Central da Marinha | Halpern e Leite | Ciência & Saúde Coletiva | 2012b | Tratamento através de grupoterapia e observação participante |
Lei Seca no Mar: desafios preventivos na Marinha do Brasil | Halpern e Leite | Arquivos Brasileiros de Psicologia | 2010 | Tratamento através de grupoterapia e observação participante |
Os efeitos das situações de trabalho na construção do alcoolismo de pacientes militares da Marinha do Brasil | Halpern, Ferreira e Silva Filho | Cadernos de Psicologia Social do Trabalho | 2008 | Observação participante |
Estratégias de rastreamento e intervenções breves para problemas relacionados ao abuso de álcool entre bombeiros | Ronzani, Rodrigues, Batista; Lourenço e Formigoni | Estudos de Psicologia | 2007 | Triagem e Intervenção breve |
A relação entre a atividade de coleta de lixo domiciliar de Belo Horizonte e o alcoolismo nos coletores: um estudo de caso | Murta | Dissertação (Portal CAPES) | 2007 | Estudo de caso |
Álcool e trabalho: uma experiência de tratamento de trabalhadores de uma universidade pública no Rio de Janeiro | Castro | Dissertação (LILACS) | 2002 | Grupo de tratamento cognitivo comportamental |
Aspectos Metodológicos
Desenho dos Estudos
Apenas o estudo conduzido por Ferreira et al. (2016) não era de natureza qualitativa, consistindo em um ensaio clínico randomizado não controlado. Três artigos desenvolveram pesquisa etnográfica recorrendo à observação participante em dois grupos terapêuticos (Halpern & Leite, 2012a, 2013a). Dois estudos de casos múltiplos conduziram entrevistas individuais semidirigidas (Halpern & Leite, 2012b, 2013b). Um estudo realizou pesquisa exploratória, analisando o consumo de álcool através de arquivos administrativos e realizando observação participante mediante pesquisa etnográfica (Halpern & Leite, 2010). Um estudo empreendeu pesquisa bibliográfica e observação participante (Halpern et al., 2008) e outro apresenta o relato de uma experiência (Ronzani et al., 2007). Um artigo realizou entrevistas individuais e análise de prontuários (Castro, 2002). Finalmente, um dos estudos identificados implementou observações de campo de cunho ergonômico e entrevistas em profundidade em estudos de casos individuais (Murta, 2007). Isso evidencia, de pronto, a diversidade e a singularidade dos desenhos de estudo adotados.
Tipo de Publicação
Nota-se na Tabela 1 que apenas dois dentre os estudos incluídos foram publicados em formato de dissertação (Castro, 2002; Murta, 2007). Todos os demais foram publicados em artigos científicos e em revistas que abordam temáticas relacionadas à Psicologia ou Saúde Pública/Coletiva. Oito dentre os 11 estudos incluídos foram desenvolvidos por psicólogos/as em parceria com autores que possuem formações distintas: Pedagogia, Medicina ou Biologia. Isso evidencia o caráter multidisciplinar do fenômeno estudado e a importância da construção de diálogos e práticas intersetoriais para lidar com o alcoolismo no trabalho.
Ano de Publicação
As investigações elegíveis para análise foram publicadas de 2002 a 2016, um período no qual ocorreram modificações substanciais nas relações trabalhistas. Krein e Oliveira (2019) apontam que, principalmente entre os anos de 2004 a 2014, o mercado de trabalho brasileiro passou por uma reestruturação, com ampliação no número de contratações formais e consequentemente um aumento na renda e na proteção social para os/as trabalhadores/as. Entretanto, a execução de políticas públicas mais inclusivas não impediu que a flexibilização das relações de trabalho, iniciada na década de 1990, fosse completamente cessada. Ao contrário, essas práticas ganharam destaque na crise econômica iniciada em 2015 e influenciaram, de forma significativa, a construção das Reformas Trabalhistas promulgadas em 2017 e em 2019.
Local da Pesquisa
A pesquisa que desenvolveu a aplicação da metodologia Screening, Brief Intervention, and Referral to Treatment (SBIRT) foi realizada em uma empresa de médio porte do setor de metalurgia, em Juiz de Fora, Minas Gerais (Ferreira et al., 2016). No mesmo município foi desenvolvido um Programa de Triagem e Intervenção Breve junto do 4° Batalhão de Bombeiro Militar de corpo de bombeiros militares (Ronzani, 2007). Estes dois estudos foram desenvolvidos por pesquisadores ligados ao Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA/UFJF).
O Centro de Dependência Química (CEDEQ) da Marinha do Brasil atende em seu ambulatório, ligado ao Hospital Central da Marinha, militares diagnosticados com alcoolismo (Halpern & Leite, 2013). O Programa de Apoio ao Trabalhador Alcoolista, por sua vez, era ligado à Divisão de Saúde do Trabalhador da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (Castro, 2002). O Programa de Prevenção ao Uso de Álcool, finalmente, foi desenvolvido pela Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) de Belo Horizonte, Minas Gerais, e oferecido aos funcionários da coleta de lixo domiciliar (Murta, 2007).
Quanto à natureza das instituições, observa-se, assim, que apenas uma era de natureza privada (Ferreira et al., 2016), sendo as demais públicas. O desenvolvimento de pesquisas, na maioria dos contextos de trabalho, é dificultado pelo fato de o alcoolismo ser um tabu social, gerando obstáculos tanto para os/as pesquisadores/as quanto para os/as eventuais participantes. Isso se agrava se o vínculo trabalhista não proporcionar estabilidade e segurança na função, situação que ocorre, por exemplo, com os/as trabalhadores/as celetistas. A situação pode ser ainda mais delicada se o/a trabalhador/a ainda não possuir o diagnóstico de alcoolismo o que, em tese, proporcionaria mais segurança no trabalho, com respaldo na legislação trabalhista.
Amostragem
O estudo que desenvolveu a aplicação da Metodologia Screening, Brief Intervention, and Referral to Treatment (SBIRT) com trabalhadores do setor de produção e da área administrativa de uma empresa de médio porte do setor de metalurgia foi o único estudo revisado que envolveu trabalhadores/as de empresa privada (Ferreira et al., 2016). Militares foram os participantes de dois dentre os artigos revisados: um deles com o corpo de bombeiros de um Batalhão de Bombeiros Militar (Ronzani et al., 2017) e outro com marinheiros (Helpern & Leite, 2013a). Servidores públicos civis foram participantes de duas experiências: servidores de diferentes setores da UFRJ no Programa de Apoio ao Trabalhador Alcoolista (Castro, 2007) e funcionários da coleta de lixo domiciliar do município de Belo Horizonte no Programa de Prevenção ao Uso de Álcool (Murta, 2002).
Verificou-se, dessa forma, marcante diversidade quanto ao tamanho das amostras, tendo sido identificado estudo desenvolvido com sujeito único (Halpern & Leite, 2012a) e outro com 303 pessoas (Ronzani et al., 2007), com média de 13 indivíduos. Quanto ao gênero dos/as participantes, 90% das amostras era composta por homens. Os cargos desempenhados pelos/as trabalhadores/as também eram muito diversificados, perfazendo funções operacionais, administrativas, técnicas e gerenciais. Vale assinalar a invisibilidade da questão racial na descrição da amostragem, ou seja, não foi verificada a prática de autodeclaração de identificação racial pelos participantes. Em um país marcado por preconceito e processos concretos de exclusão social racista, essas informações adquirem especial relevância pela discussão que oportunizam.
Tipo de Vínculo entre Autores/as e Local de Pesquisa
No que se refere à relação dos/as autores/as com o local de pesquisa verificou-se que, em 10 dos 11 estudos analisados, pelo menos um/a pesquisador/a pertencia ao quadro de funcionários/ servidores/as da instituição pesquisada. Essa condição pode ter direcionado a escolha pela instituição e facilitado o contato com os/as responsáveis por autorizar o desenvolvimento das intervenções das pesquisas realizadas.
De acordo com Ribeiro et al. (2017), a maioria das atividades realizadas nos contextos de trabalho acontecem em condições em que há assimetria de poder, ou seja, os/as trabalhadores/as estão inseridos/as em uma estrutura hierárquica burocratizada. Posto isso, há de se considerar ainda a possível existência de tais assimetrias entre os/as participantes e o/a pesquisador/a, pois os/as envolvidos/as nas ações de pesquisa podem estar subordinados/as hierarquicamente ao/à pesquisador/a e, com isso, temer que sua participação lhe traga prejuízos no trabalho, dificultando o estabelecimento de vínculos.
Intervenções Realizadas
Origem da Demanda
Observou-se que a demanda pelas intervenções realizadas se deu, predominantemente, a partir de determinações gerenciais e institucionais, sem respaldo de estudo situacional prévio ou de rastreamento do fenômeno. Destaca-se que apenas uma investigação se deu por iniciativa das pesquisadoras: o estudo desenvolvido em empresa metalúrgica de Ferreira et al. (2016). No caso do estudo realizado junto do Corpo de Bombeiros por Ronzani et al. (2007), a demanda foi apresentada por trabalhadoras/es do setor de saúde, após mobilização por convite da Universidade. Nos demais casos, parece não ter havido, ou ao menos não foi mencionada, a participação dos/as trabalhadores/as na construção da demanda, incluindo-se aqui, também, os/as próprios/as profissionais de Psicologia.
De acordo com Ribeiro et al. (2017), a pesquisa e a intervenção realizada pelos/as psicólogos/as sociais do trabalho devem evitar a intermediação da gestão da organização, preferindo-se as aproximações realizadas com os/as próprios trabalhadores/as, de modo que ocorram intervenções e pesquisas "com" os/as trabalhadores/as e não "sobre" eles/as. O/A trabalhador/a é um sujeito político, no sentido de deter poder e conhecimento sobre sua própria atividade e, com base nisso, junto do/a psicólogo/a, é capaz de engajamento na proposição, elaboração e participação em ações que transformem seu contexto de trabalho.
Participação do/a Trabalhador/a
Parece não ter havido a participação dos/as trabalhadores/ as na elaboração das intervenções. Essa ação pode ter ignorado grande parte do conhecimento institucional e grupal que os/as trabalhadores/as possuem. Informações relevantes e adicionais poderiam ter sido obtidas com sua participação no planejamento e na execução, com construção conjunta de conhecimentos e práticas. Essas ações seriam pertinentes por consistirem em apreensões do cotidiano dos/das trabalhadores/ as feitas por eles/as enquanto visões do fenômeno pela sua ótica e não dos/as especialistas. Essa participação poderia facilitar o estabelecimento do vínculo da equipe de saúde com os/as trabalhadores/as e ajudar na mobilização para a inserção e permanência nos programas e na construção de ações mais adaptadas à sua realidade.
A forma de ingresso para participar das intervenções se deu por meio de convite direto em duas pesquisas (Ferreira et al., 2016; Ronzani et al., 2007). Na intervenção realizada na Marinha do Brasil, a participação poderia partir de iniciativa individual, de encaminhamento de um/a profissional da área da saúde, de imposição do comando militar ou de determinação judicial (Halpern et al., 2013a). A iniciativa própria ou o encaminhamento da chefia foi adotado em uma intervenção (Castro, 2002). Em outro caso, o/a participante deveria ser encaminhado/a pela chefia imediata com base em comunicação interna dirigida ao setor de Psicologia (Murta, 2007). Além disso, em todas as intervenções os/as trabalhadores/ as foram avaliados/as pela equipe de saúde das instituições, para identificar a existência de critérios diagnósticos para alcoolismo, previamente à sua efetiva inclusão nos programas de tratamento.
Vale salientar que, segundo o Ministério da Saúde (2015), a atuação judiciária no âmbito da saúde mental pode exercer um papel de controle da liberdade dos indivíduos, gerando interferências indesejáveis na linha de cuidado na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). São recorrentes determinações judiciais que impõem tratamentos de saúde mental, inclusive com medidas extremas como a internação psiquiátrica compulsória, tendo como justificativa a proteção do indivíduo e da sociedade. É preciso ponderar quais são os reais objetivos dos operadores da justiça e dos/as demais profissionais envolvidos ao ignorarem o direito das pessoas de autonomia sobre seu próprio tratamento, em um processo no qual elas mesmas devem e podem optar por participar voluntariamente, ou mesmo por não participarem, das ofertas realizadas pelos serviços de saúde.
De acordo com Dalla Vecchia et al. (2017) permanecem recorrentes, como parte das práticas de saúde mental, a institucionalização de pessoas que fazem consumo prejudicial de álcool e outras drogas, objetivando eliminar comportamentos tomados como disfuncionais. Os autores ressaltam, no entanto, que tais práticas de cuidado criam obstáculos, e eventualmente até mesmo impossibilitam, uma mudança no padrão de consumo e uma reflexão crítica e autônoma sobre as questões sociais ligadas ao consumo e dependência de psicoativos.
Objetivo das Intervenções
Os objetivos das intervenções realizadas nos estudos revisados foram explicitados de diferentes maneiras. No entanto, em nove dos 11 estudos analisados as intervenções visaram o estabelecimento e a manutenção do comportamento de abstinência do consumo de álcool para os/as trabalhadores/ as. Dois estudos desenvolvem uma modalidade de entrevista denominada Intervenção Breve (Pereira et al., 2013), que pode ser considerada uma estratégia de redução de danos enquanto técnica de informação e aconselhamento a pessoas que fazem consumo prejudicial de álcool. Gomes e Dalla Vecchia (2018) argumentam que a redução de danos preconiza a singularidade e a garantia dos direitos de cidadania nos cuidados à saúde de pessoas que fazem consumo prejudicial de álcool e outras drogas. Incentiva-se o desenvolvimento de recursos para identificar e alterar, de forma satisfatória, sua saúde e suas condições de vida. A redução de danos também visa acolher indivíduos discriminados por realizar consumo de álcool e outras drogas, que possuem dificuldades em aderir à abstinência ou a outros tratamentos.
As ações implementadas pelos/as profissionais de Psicologia, ainda que tivessem predominantemente a finalidade de promover a abstinência do consumo de álcool, ofertaram atendimentos em modalidades distintas ao/à trabalhador/a com diagnóstico de alcoolismo. Os/As psicólogos/as privilegiaram práticas grupais para promover ações de cuidado nos contextos de trabalho. Identificou-se a influência de pressupostos teóricos da teoria cognitivo-comportamental (Castro, 2002; Ferreira et al., 2016), da perspectiva interacionista e da antropologia médica (Halpern et al., 2008, 2010, 2012a), da ergonomia (Murta, 2007) e da psicodinâmica do trabalho (Castro, 2002; Murta, 2007). Destaca-se um predomínio das concepções da teoria cognitivo-comportamental nas intervenções desenvolvidas
Concepção de Trabalho
Ainda que as intervenções tenham sido realizadas com trabalhadores/as em seus ambientes laborais, de modo geral o trabalho não figurou como categoria de análise central para nortear a construção e o funcionamento das ações, sendo que isso foi identificado apenas na intervenção realizada com os/ as servidores/as de uma Universidade pública (Castro, 2002). Observou-se que em duas práticas foi salientada a relação entre alcoolismo e processos, organização e condições de trabalho, trazida pelos/as próprios/as trabalhadores/as atendidos/as (Halpern & Leite, 2013; Murta, 2007). Mesmo que a problematização do trabalho e seu contexto não estivesse prescrita nas atividades a serem realizadas pelos/as psicólogos/ as, de alguma forma eles/as precisaram lidar com o real emergente. Isso ratifica o distanciamento entre o trabalho prescrito, ou seja, o modo como ele é planejado e previsto, e o trabalho real, quer dizer, como ele efetivamente ocorre (Guérin et al., 2001).
Dadas essas circunstâncias, os/as profissionais de Psicologia podem ter encontrado na produção de conhecimento divulgada no formato de artigos e dissertações uma espécie de "porto seguro" para aprofundamento e reflexão sobre o alcoolismo no trabalho, tanto para a comunidade científica, quanto para a própria instituição. Mesmo na ausência de estudos de avaliação das intervenções realizadas, possibilitar a criação de espaços protegidos para que trabalhadoras/es dialoguem com seus pares e com o/a pesquisador/a sobre a relação entre o consumo de álcool e o trabalho pode ter viabilizado reflexão e modificação em sua forma de pensar e agir sobre sua atividade e, consequentemente, sobre sua relação com o consumo de álcool.
Considerando mais especificamente a intervenção realizada com trabalhadores/as de uma universidade pública, que enfocou o trabalho enquanto uma categoria de análise (Castro, 2002), o programa de tratamento se fundamentou em dois fatores relacionados ao padrão de consumo de álcool: os fatores interpessoais, abrangendo relações de trabalho, apoio social, relações familiares e conjugais, e os fatores intrapessoais, abarcando expectativas, humor, cognições e percepções. O objetivo da intervenção grupal consistiu em criar condições para o desenvolvimento da capacidade de identificar estes fatores e lidar com as adversidades. Ainda de acordo com Castro (2002), na descrição e análise dos discursos dos/as trabalhadores/as nas sessões realizadas, percebeu-se que o consumo de bebidas alcoólicas se vinculava a situações vivenciadas no contexto de trabalho. O consumo de bebida alcoólica ocupava um lugar primordial na socialização e no relaxamento das/os trabalhadoras/es. Observou-se ainda a importância em desenvolver práticas de conscientização envolvendo familiares e chefias.
Estruturação das Intervenções
Percebeu-se que a maior parte das ações foram organizadas de forma estruturada e pouco flexível, com as sessões ocorrendo em etapas pré-determinadas e com atividades e objetivos distintos uma a uma. Na intervenção realizada na Marinha do Brasil (Halpern & Leite, 2013a), por exemplo, o/a participante assinava um contrato no momento do ingresso que estabelecia o número mínimo de sessões e atividades das quais deveria participar em cada fase do programa, sendo prédeterminada a frequência exigida e as atividades componentes do programa. Caso a equipe de saúde identificasse que o indivíduo se encontrava abstinente do consumo de álcool, ou seja, que o objetivo havia sido atingido, o/a participante era encaminhado para um grupo de prevenção à recaída para manutenção da abstinência ou era desligado. Nestes grupos não havia uma frequência mínima exigida. Nas intervenções breves (Ferreira et al., 2016; Ronzani et al., 2007) os/as trabalhadores/as diagnosticados/as com dependência de álcool foram encaminhados/as para tratamento especializado.
Não obstante o mérito de assegurar que um fluxo de acolhimento e acompanhamento dos/as trabalhadores/as seja garantido, um funcionamento pouco flexível das intervenções pode dificultar tanto a realização do trabalho dos/as profissionais de Psicologia quanto a participação dos/as trabalhadores/ as. No planejamento e no desenvolvimento das intervenções é importante considerar a diversidade subjetiva e identitária dos sujeitos atendidos e a existência de elementos singulares da história de vida do/a trabalhador/a que contra-indicam a padronização das ações. Além disso, existem aspectos psicossociais que precisam ser considerados: a diversidade dos modos de relações estabelecidas no trabalho, os grupos de pertencimento do/a trabalhador/a, as diferentes organizações e condições do trabalho, e as experiências construídas pelo sujeito no consumo de bebidas alcoólicas. Tudo isso dificulta a generalização de ações e demanda flexibilidade e criatividade por parte dos/as profissionais de saúde.
Coutinho e Oliveira (2017) argumentam que, ao conhecermos o trabalho de perto, com olhar atento às práticas cotidianas, observamos que detalhes e sutilezas tais quais a cultura de classe e o conhecimentos do ofício podem passar despercebidos, não se tornando objetos de análise. Verificase uma tendência por propor intervenções homogeneizantes, com ênfase no trabalho prescrito a despeito do trabalho real. Evidentemente que o cotidiano dos/as trabalhadores/as é permeado por regularidades, mas também se constitui enquanto um espaço incontrolável, no qual situações imprevisíveis e aleatórias atualizam a atividade.
Considerações Finais
Ao longo da produção e análise de dados do presente estudo identificou-se um número reduzido de publicações científicas que enfocam pesquisas e intervenções sobre o alcoolismo no contexto do trabalho realizado por profissionais de Psicologia. O último levantamento realizado pelo CFP indica que mais de 425 mil psicólogos/as encontram-se em atuação3. Entretanto, estudos publicados acerca do trabalho do/a psicólogo/a sobre o alcoolismo no contexto do trabalho são pouco frequentes. O que levaria a esta realidade? Um cenário possível, otimista, poderia sugerir que as ações estão sendo realizadas, mas as/os psicólogas/os não as estão publicando, por motivos diversos. Um cenário pessimista, por sua vez, consideraria que elas não estão sendo efetivamente desenvolvidas. Alguns motivos podem estar relacionados a ambos cenários: (a) obstáculos advindos da gestão e do ambiente laboral, (b) inexistência de vinculação com universidades e/ou grupos de pesquisas, (c) ausência de estímulo à produção científica, (d) dificuldade de disseminação de conhecimento científico produzido nas universidades para as/os profissionais em atuação, (e) estigmatização do alcoolismo nas práticas profissionais por psicólogos/as que atuam em contextos de trabalho, e (f) carência de formação para atuar diante do alcoolismo no trabalho. Recomenda-se que estudos futuros se dediquem a explorar essas questões, dada sua relevância científica e social.
A maioria das ações foi realizada em instituições públicas, o que, em tese, proporcionaria um contexto mais protegido para as/os trabalhadoras/es participarem das intervenções. Ainda que este direito possa vir a ser revogado, esses/as trabalhadores/as estão amparadas/os por contratos de tipo estatutário com estabilidade na função. Mesmo assim, para além da estigmatização acerca do alcoolismo pelos próprios colegas de trabalho, suas famílias e grupos de pertencimento, normas institucionais frequentemente punem de modo adicional o/a trabalhador/a dependente de álcool. Mesmo nas instituições públicas, a demanda por intervenção diante do alcoolismo não emerge dos/as trabalhadores/as, mas sim da gestão, sugerindo certa falta de autonomia diante do próprio trabalho, inclusive por parte de psicólogos/as e demais profissionais de saúde que atendem a estas instituições. Os estudos que enfocam intervenções não abordam as condições que oportunizaram a proposição das intervenções, e nem as mudanças ocorridas no decurso das intervenções realizadas. Nesse sentido, a indisponibilidade de estudos de aceitabilidade e de acompanhamento (follow-up) também é digna de nota.
Acredita-se que o percurso metodológico da presente investigação proporcionou a identificação, sistematização e análise de estudos relevantes disponíveis acerca da questão. Recomenda-se que estudos futuros adotem descritores que abarquem publicações produzidas em outros idiomas, oportunizando a análise de intervenções realizadas por psicólogas/os em outros países.
O detalhamento das intervenções componentes dos programas não foi incluído, por exceder os objetivos do estudo realizado, que enfoca a análise qualitativa do escopo da atuação profissional e da pesquisa realizada por psicólogos/as acerca do alcoolismo no contexto do trabalho. Porém, há fortes indícios de que não houve a participação dos/as trabalhadores/as ou de seus representantes na elaboração e no desenvolvimento dos programas. A maioria das instituições não considerou o trabalho enquanto categoria de análise para nortear a construção e funcionamento das intervenções, mesmo que elas tenham sido direcionadas aos/as trabalhadores/as em seu contexto de trabalho. Os contextos laborais parecem não terem se constituído enquanto espaços privilegiados de ações para lidar com o alcoolismo entre trabalhadores/as, com desconsideração dos distanciamentos entre trabalho real e trabalho prescrito, das práticas cotidianas e principalmente das relações entre o alcoolismo e as condições e organização do trabalho. Entretanto, em duas intervenções os/as trabalhadores/as trouxeram esses fenômenos para análise, ainda que o programa não as tivesse previsto ou estimulado, e os/as psicólogos/as parecem ter encontrado na produção de conhecimento um modo de aprofundar estas questões.
As intervenções identificadas focaram em promover comportamentos de abstinência, que acabam por concentrar no/na trabalhador/a a responsabilidade pelo processo de privar-se do consumo de bebida alcoólica, o que se daria simultaneamente ao processo de conscientizá-lo/a sobre sua condição psicopatológica. Os dois estudos que utilizam Intervenção Breve (Ferreira et al., 2016; Ronzani et al., 2007) recorrem a uma estratégia mais afim à redução de danos, ainda que se possa discutir que a Intervenção Breve, por si mesma, é um recurso que compõe tanto estratégias mais atinentes ao modelo médico, individualizante e psicologizante, quanto ao modelo psicossocial, mais relacional e contextual (Schneider, 2010).
Os estudos revisados contemplam, em sua maioria, intervenções de tipo assistencial, ou seja, que desenvolvem práticas legitimadas, no âmbito científico e profissional pela Psicologia, de diagnóstico e tratamento em nível individual, grupal ou institucional, no caso, voltadas para pessoas diagnosticadas com alcoolismo. Entretanto, ainda que os descritores utilizados tenham levado a um foco no fenômeno do alcoolismo, é digno de nota que ações institucionais de promoção da saúde e prevenção do alcoolismo tenham sido tão escassas. Isso ratifica a observação de Dalla Vecchia et al. (2017), sugerindo que as práticas realizadas diante do consumo de álcool e outras drogas continuem sendo construídas sob um paradigma individualizante, responsabilizando os indivíduos e ignorando o contexto sociocultural.
Observa-se tais aspectos principalmente nas ações tradicionais que utilizam a abstinência como o único recurso possível para o sujeito e que acabam por responsabilizá-lo individualmente pelas recaídas ou pela interrupção do consumo de álcool. É fundamental promover, entre profissionais de Psicologia, estratégias que ampliem a compreensão social e política do alcoolismo, para que seja considerado o lugar das iniquidades e das vulnerabilidades socioeconômicas no padrão de consumo de álcool e outras drogas, bem como a realidade subjetiva e objetiva do indivíduo na sua inserção no mundo do trabalho. Em síntese, trata-se de promover a adoção de estratégias de redução de danos.
As intervenções analisadas enfatizam aspectos funcionais e disfuncionais do alcoolismo para a instituição. Vale registrar, porém, que generalizar distintos padrões de consumo de álcool adotando o alcoolismo como "o fiel da balança" pode estreitar a compreensão acerca das diversas experiências do sujeito na sua relação com esta substância psicoativa. É tênue a linha que separa o consumo de álcool que permite executar o trabalho, suportar as pressões, promover a socialização e o relaxamento -por exemplo, o famoso happy hour - daquela em que se produz ônus para a organização quando o/a trabalhador/a se ausenta, sofre acidente de trabalho e/ou diminui sua performance.
Bernardo et al. (2015) atentam para a relevância do/a psicólogo/a que atua no contexto do trabalho direcionar o olhar para seu ofício e questionar para quem se destina a atividade que desempenha, em quais condições ela é realizada e quais são os seus pressupostos teóricos, metodológicos e éticos. O presente estudo buscou trazer argumentos que oportunizem aos/às psicólogos/as, que em grande parte do tempo estudam o trabalho de outras profissões, se dediquem a analisar e pensar sobre seu próprio ofício no que tange à atuação diante do alcoolismo no contexto do trabalho.