O mundo do trabalho vem sofrendo um processo gradativo de flexibilização, complexificação e heterogeneização. Estruturas e processos lineares, estáveis e contínuos vêm dando espaço para estruturas e processos mais multidimensionais, flexíveis e descontínuos. Isto vem ampliando experiências de mudança, impactando o trabalhar, as organizações de trabalho, e as construções identitárias e de carreira (Antunes, 2022; Baruch & Sullivan, 2022). Este movimento visa atender demandas sociais e do trabalho geradas pela tecnologização e compressão espaço-tempo (Antunes, 2022), a fluidez das organizações e processos de trabalho e a individualização da vida (Currie & Logan, 2020), e o aumento do empreendedorismo (Neneh, 2020). Neste contexto, carreira tem sido definida como sequência evolutiva de experiências de trabalho de uma pessoa ao longo do tempo (Gander, 2021).
Em relação ao campo de estudos sobre as carreiras, as sínteses propostas por Baruch e Sullivan (2022), Gander (2021), Ribeiro (2021) e Vasconcellos, Borges-Andrade, Porto e Fonseca (2016), indicaram que as carreiras contemporâneas seriam flexíveis e plurais, focadas na dimensão mais individualizada da carreira de Proteu, na abertura das carreiras sem fronteiras, no equilíbrio de papéis da carreira caleidoscópica e na construção contínua da carreira portfolio, coexistindo com modelos tradicionais mais lineares e estáveis. São estudos principalmente realizados pela Administração, pela Orientação Profissional e de Carreira (OPC) e pela Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT).
Diante deste panorama, desde os anos 1990 com Baylin (1991), passando pelas primeiras décadas do século XXI (Petroni, 2000; Sullivan & Baruch, 2009) e alcançando o momento atual (Gander, 2021), autores/as vêm assinalando uma tendência emergente que é o processo de hibridização dos modelos de carreiras existentes, sejam lineares, sejam flexíveis, dando origem ao conceito de carreira híbrida - foco do presente estudo. Esta forma das carreiras contém "aspectos tanto de conceitos da carreira tradicional quanto da carreira proteana e sem fronteiras" (Sullivan & Baruch, 2009, p. 1548). Uma consequência desta tendência é a constituição crescente de identidades híbridas de trabalho que podem ser definidas como uma mistura de identidades de trabalho, ampliando e indefinindo seus limites de forma flexível ao engajar as pessoas, simultaneamente e de forma articulada, em múltiplos papéis, tarefas e competências (Currie & Logan 2020; Koch et al., 2021).
A ideia do híbrido, tradicionalmente associada à genética, à linguística e à mitologia (Tassara & Ardans, 2007), tem ganhado força e intensidade nas práticas discursivas contemporâneas e, literalmente, construído o cotidiano nas suas mais variadas dimensões. De bens materiais (p. ex., carros híbridos), passando pelas práticas (p. ex., educação híbrida, metodologias híbridas), e atingindo a esfera do trabalhar. No universo do trabalho, o híbrido emerge através das concepções de trabalho híbrido (Gratton, 2021; Moglia et al., 2021), organização híbrida (Pires et al., 2013), local de trabalho híbrido (Halford, 2005), gestão híbrida (Joldersma & Winter, 2002), profissional híbrido (Pritchard & Symon, 2011), identidades profissionais híbridas (Currie & Logan, 2020) e carreiras híbridas (Baruch & Sullivan, 2022; Gander, 2021).
O mundo híbrido tem determinado discussões nas várias dimensões da vida cotidiana, seja no debate sobre gênero (p. ex.: transgênero), seja no debate das variadas formas de relação afetiva (p. ex.: poliamor), seja na realidade da existência (p. ex.: metaverso) com impactos significativos na vida privada e nas instituições sociais (Santaella, 2021). No campo dos estudos sobre o trabalho e as carreiras, este fenômeno se faz notar quanti e qualitativamente no contexto internacional (p. ex.: Currie & Logan, 2020; Gratton, 2021; Lam, 2020), com significativa produção sobre carreiras híbridas nos últimos 15 anos (p. ex.: Clarke, 2013; Gander, 2021; Gerber et al., 2009). Em síntese, ao "tentar nomear alguns objectos, práticas e processos da nossa contemporaneidade, apenas a palavra 'híbrido' parece servir para dar algum referente à experiência. O híbrido invade os nossos quotidianos" (Madeira, 2010, p. 1).
A contextualização apresentada indicou a emergência de configuração contemporânea da carreira definida como híbrida e da baixa produção nacional sobre a temática. As sínteses de revisões de literatura nacionais sobre carreiras atuais, por exemplo, não citam as carreiras híbridas (Almeida & Socci, 2017; Rizzatti et al., 2017; Vasconcellos et al., 2016), evidenciando a relevância desta proposição para o campo dos estudos sobre o trabalho e as carreiras. Nessa compreensão, objetivei realizar uma revisão integrativa de literatura propondo uma conceituação de carreira híbrida a partir da síntese da literatura já existente, analisando suas potencialidades conceituais e aplicações práticas.
Conceituação de Híbrido e Hibridização
A ideia do híbrido e dos hibridismos aparece na língua portuguesa definindo palavras formadas por elementos pertencentes a línguas diferentes, na mitologia como criaturas geradas pela combinação de partes do corpo de mais de uma espécie real, e na genética como resultante do cruzamento entre espécies e raças (Madeira, 2010; Tassara & Ardans, 2007).
Em geral, há uma rejeição da ideia do híbrido. Gramáticos/as condenam o hibridismo pela não uniformidade da origem dos elementos que constituem a nova palavra, geneticistas afirmam que o híbrido animal em geral é infértil por ser mestiço e os principais sinônimos de híbrido seriam monstruoso, mestiço, irregular e antinatural. É originário do termo grego hybris, sendo uma "trama de ligações cujo denominador comum é a mistura de coisas de ordens distintas, da qual resulta algo excessivo (ou, no seu inverso, algo em falta)" (Madeira, 2010, p. 1), o que produz, a priori, a não aceitação da inovação gerada. Podemos, então, afirmar que híbridos são combinações não desejadas pois romperiam a ordem instituída e sua resultante seria algo que não deveria existir, como criaturas mitológicas, por exemplo, que seriam "resultados monstruosos, derivados de metamorfoses de formas de seres não monstruosas em sua origem" (Tassara & Ardans, 2007, p. 4).
Latour (2001) aponta que híbridos são entes que não se resumem à esfera da natureza, da sociedade ou do discurso, mas que existem em uma articulação que perpassa essas esferas, como fenômeno relacional performado. "Na passagem de um meio a outro, de um ponto a outro de uma rede, algo é preservado ao mesmo tempo em que algo se altera" (p. 311), se reconhecendo no cruzamento de dois modos de existência, embora não permitindo a identificação, na nova forma, daquilo que corresponderia a um/uns ou outro/s dos seus geradores, que não seria monstruosa em função das diferenças em sua origem.
A hibridação seria o processo de multiplicação e interpenetração dos modos disponíveis de organização e de existência no mundo em combinações resultantes, sendo o híbrido um terceiro espaço de entremeio, como um sujeito intersticial, marcando a importância das misturas, dos interstícios e das relações para compreender a realidade. Por conta disto, híbridos não se enquadram nas grandes divisões (Santaella, 2021). Assim, podem tanto ser aceitos e incorporados pela aceitação das diversidades humanas, quanto ser recusados em função da hierarquização das formas de interação entre pessoas sustentadas pela dominação e homogeneização da experiência humana, resultando em racismos, fundamentalismos, sexismos (Tassara & Ardans, 2007). São possibilidade de inovação baseada na articulação do existente que pode ser aceita ou recusada, conseguindo explicar a complexidade da experiência, mas sem ser panaceia para solução de todas as questões atuais.
Método
O presente estudo é caracterizado como exploratório e descritivo e realizei uma revisão de literatura integrativa, método que busca sintetizar achados de pesquisas sobre dado tema ou questão, de uma forma sistemática, ordenada e abrangente, considerando tanto estudos quantitativos, quanto qualitativos e combinando pesquisas teóricas e empíricas, constituindo, assim, um corpo de conhecimento (Whittemore & Knafl, 2005). A revisão de literatura foi realizada nas bases de dados nacionais e internacionais nas quais se encontram os principais periódicos científicos que publicam artigos com estudos sobre o trabalho e as carreiras até março de 2022. O levantamento bibliográfico internacional foi realizado nas bases de dados Scopus, Web of Science e Proquest, e o nacional nas bases de dados Pepsic, Scielo, Banco de teses USP e Banco de teses CAPES.
Como complemento da revisão realizada, foram realizados três levantamentos para identificar a existência de discussões sobre carreiras híbridas. No primeiro, foram buscados textos com os mesmos descritores nos Anais dos congressos brasileiros de OPC dos últimos 5 anos (Lassance & Ambiel, 2020; Lassance et al., 2022). No segundo, foram pesquisadas as últimas revisões de literatura sobre a produção científica em OPC (Ambiel et al., 2017), em POT (Oliveira, Silva, & Sticca, 2018) e na Administração (Provenzi & Flach, 2018). E, por último, em publicações com revisões de literatura sobre a temática (Almeida & Socci, 2017; Rizzatti et al., 2017; Vasconcellos et al., 2016).
Foram selecionadas e combinadas as palavras híbrido, híbrida, hibridismo e hibridação com carreira ou carreiras (constando nas palavras-chave, título ou resumo). Estes descritores foram escolhidos por se relacionarem diretamente à temática estudada, o que possibilitou o acesso a uma amostra significativa de publicações para a presente pesquisa. Defini o período final "março de 2022" e foram compreendidas todas as publicações encontradas, em função da contemporaneidade do fenômeno pesquisado. Como propõe a revisão integrativa de literatura, foram incluídas todas as publicações que utilizassem o termo híbrido/a para designar a caracterização de um tipo específico de carreira, trajetória de trabalho ou profissional. Não foi definido nenhum critério de exclusão.
Organizei a apresentação dos resultados da seguinte maneira: na seção "Possíveis definições de carreiras híbridas", apresento as Etapas 1 e 2, com suas respectivas análises e interpretações. Na terceira etapa, por sua vez, apresento na seção de discussão, intitulada "Uma proposta de conceituação de carreira híbrida". Foi realizada uma análise dos textos que discutiam as carreiras híbridas nas publicações consultadas, por meio das quais foram elaboradas duas tabelas para sistematizar os dados, organizados em termos da definição proposta de carreira híbrida, da modalidade da publicação (ensaio teórico, pesquisa de campo ou revisão de literatura) e do público estudado (incluímos também os/as autores/as e o campo do saber de base do estudo realizado). Na Etapa 1, foi elaborada a Tabela 1 com a sistematização dos dados internacionais. Na Etapa 2, a Tabela 2 com a sistematização dos dados nacionais. E, na Etapa 3, foi realizada uma síntese das principais características comuns apontadas nas concepções de carreira híbrida das publicações selecionadas que resultaram na proposição de conceituação a partir de revisão integrativa de literatura. A última etapa foi um desdobramento das duas anteriores.
Tabela 1 Principais Definições Propostas de Carreira Híbrida — Literatura Internacional
Autores/as | Campo de base do estudo realizado | Definição proposta de carreira híbrida | Modalidade da publicação | Público estudado na pesquisa de campo |
---|---|---|---|---|
Baylin (1991) | Estudos organizacionais | Engloba aspectos dos vários caminhos de carreira preexistentes, sendo uma estrutura temporária e mutante, na qual haveria uma atividade predominante e outra(s) atividade(s) secundária(s) | Pesquisa de campo | Empregados/as em laboratórios de pesquisa e desenvolvimento |
Biron e Eshed (2017) | Estudos organizacionais | Combinação das carreiras técnicas e de gestão | Pesquisa de campo | Profissionais Empregados/as em empresas de alta tecnologia |
Brousseau et al. (1996) | Estudos organizacionais | Carreiras híbridas podem ser formadas pelas combinações dos quatro modelos de carreira (linear, especialista, espiral e transitória) | Ensaio teórico | |
Cardador e Hill (2018) | Estudos organizacionais | "O caminho 'híbrido' combina funções técnicas e gerenciais, normalmente na forma de funções de gerenciamento de projetos ou produtos" (p. 96) | Pesquisa de campo | Engenheiros/as industriais |
Clarke (2013) | Estudos organizacionais | Combinação de aspectos da antiga carreira organizacional com aspectos mais comumente associados às carreiras contemporâneas | Ensaio teórico | |
Folta et al. (2010) | Estudos organizacionais | "Indivíduos que se dedicam à atividade de autoemprego enquanto ocupam, ao mesmo tempo, um emprego primário no trabalho assalariado" (p. 254) | Ensaio teórico | |
Gander (2021) | Estudos organizacionais | Tipo específico de carreira, "que é diferente da carreira tradicional, proteana ou sem fronteiras, mas que inclui aspectos das três" (p. 864) | Pesquisa de campo | Profissionais de universidades nãoacadêmicos/as |
Gander et al. (2019) | Estudos organizacionais | Por meio do qual elementos tanto das necessidades tradicionais como das carreiras contemporâneas são atendidos | Revisão sistemática de literatura | |
Gerber et al. (2009) | Estudos organizacionais | "Orientações híbridas de carreira existem, contendo elementos do que têm sido caracterizados tanto como 'antigos' (por exemplo, segurança no emprego) quanto como 'novos' (por exemplo, autogestão de carreira) tipos de carreira. Pode ser que não haja uma dicotomia clara entre as orientações de carreira 'antigas' e 'novas' e um processo de mistura tenha ocorrido" (p. 795) | Pesquisa de campo | Empregados/as em empresas |
Granrose e Baccili (2006) | Estudos organizacionais | Busca de aspectos da carreira organizacional tradicional (p. ex., segurança e mobilidade vertical), mas também aspectos da carreira sem fronteiras (p. ex., treinamento para atuação fora do contexto organizacional) e da carreira proteana (p. ex., um local de trabalho aberto, confiante e respeitoso) | Pesquisa de campo | Empregados/as em empresas (gestores/as e não-gestores/as) |
Guo et al. (2019) | Estudos organizacionais | Carregar múltiplas identidades profissionais que estão embutidas em sua carreira híbrida | Pesquisa de campo | Empreendedores/as acadêmicos/as |
Hölzle (2010) | Estudos organizacionais | Mudança flexível dos planos e caminhos de carreira visando atender demandas pessoais e necessidades organizacionais | Pesquisa de campo | Gerentes de projetos em empresas |
Lam (2020) | Estudos organizacionais | Combinação de recursos de campos de trabalho distintos para gerar a atuação profissional (p. ex., acadêmicos/as híbridos/as que desenvolvem suas carreiras e identidades profissionais combinando recursos tanto do campo acadêmico como do não-acadêmico). | Pesquisa de campo | Artistas-acadêmicos/as |
McDermott e Keating (2014) | Estudos organizacionais | Desempenho, simultâneo, de funções técnicas e profissionais | Ensaio teórico | |
Mulhall (2014) | Estudos organizacionais | Mistura de aspectos das carreiras tradicionais, sem fronteiras e proteanas | Ensaio teórico | |
Neneh (2020) | Estudos organizacionais | Envolvimento simultâneo em trabalho assalariado e empreendedorismo | Pesquisa de campo | Graduandos/as em economia e administração |
Petroni (2000) | Estudos organizacionais | "Permitiria que as pessoas se movessem facilmente entre as várias rotas de carreira, tanto sequencial como concomitantemente" (p. 54) | Pesquisa de campo | Engenheiros/as e pesquisadores/as de uma instituição pública de pesquisa |
Sofikitis, Manolopoulos e Dimitratos (2016) | Estudos organizacionais | Representa uma escolha pretendida para seguir múltiplas alternativas (por exemplo, um caminho técnico seguido por um avanço no caminho gerencial) | Pesquisa de campo | Empregados/as em laboratórios de pesquisa e desenvolvimento |
Tremblay, Wils e Proulx (2002) | Estudos organizacionais | Caminhos de carreira variados sem optar por um caminho de carreira definitivo ou uma direção de carreira irreversível | Pesquisa de campo | Engenheiros/as |
Tabela 2 Principais Definições Propostas de Carreira Híbrida — Literatura Nacional
Autores/as | Campo de base do estudo realizado | Definição proposta de carreira híbrida | Modalidade da publicação | Público estudado na pesquisa de campo |
---|---|---|---|---|
Carvalho (2018) | Estudos organizacionais | "É um modelo que utiliza elementos dos conceitos tradicionais e não tradicionais de carreira" (p. 37) | Pesquisa de campo | Mulheres executivas |
Greve (2019) | Orientação Profissional e de Carreira | Combinação de dois ou três padrões narrativos de construção de carreira | Pesquisa de campo | Enfermeiros/as e profissionais de Tecnologia da Informação (TI) |
Mélo (2020) | Educação e Arte | Profissional que exerce duas atividades distintas de trabalho articuladas (p. ex., educadora e atriz) | Pesquisa de campo | Contadoras de história |
Ribeiro (2010) | Estudos organizacionais | "Carreira que contêm aspectos tanto de conceitos da carreira tradicional quanto da carreira proteana e sem fronteiras" (P. 25) | Pesquisa de campo | Gestores/as governamentais federais |
Ribeiro (2015) | Orientação Profissional e de Carreira | Não é um padrão narrativo específico, mas define a articulação entre outros padrões narrativos existentes. É constituído por elementos de um padrão narrativo predominante atravessado ou apoiado por outro padrão narrativo, gerando como resultado dois padrões estruturalmente articulados | Pesquisa de campo | Trabalhadores/as urbanos/as |
Rodrigues (2021) | Educação e Arte | Fazer profissional produzido na relação entre dois campos distintos de atuação | Pesquisa de campo | Professores/as-artistas |
Steil (2011) | Estudos organizacionais | "Agregam características das carreiras sem fronteira e proteanas" (p. 8) | Ensaio teórico | |
Voltan (2020) | Estudos organizacionais | "Engloba elementos de outros modelos e é composta de estruturas das carreiras tradicional e não-tradicional" (p. 22-23) | Pesquisa de campo | Profissionais da educação física |
Wilkoszynski (2012) | Estudos organizacionais | "Contêm aspectos tanto da carreira tradicional, quanto dos conceitos de carreira proteana ou sem fronteira" (p. 38) | Pesquisa de campo | Alunos/as de cursos de pós-graduação em engenharia |
Resultados - Possíveis Definições de Carreiras Híbridas
No que se refere à primeira etapa, foram encontradas nas bases de dados internacionais 19 publicações que propunham algum tipo de definição de carreira híbrida com base em uma revisão de literatura, 5 ensaios teóricos e 13 pesquisas de campo (Tabela 1).
As mudanças organizacionais e da configuração do mundo do trabalho geradoras de atividades de trabalho mais complexas com diversificação e ampliação de papéis, tarefas e funcionamentos organizacionais, propiciaram que Baylin (1991) publicasse um dos primeiros textos a descrever uma emergente carreira híbrida a partir da observação dos planos organizacionais de carreira do final do século XX. Neste texto, a autora propunha a resolução desta situação com três potenciais configurações de carreira: 1) múltiplas carreiras paralelas com transição de uma carreira para outra (p. ex., da carreira técnica para a carreira gerencial), 2) plano de carreira baseada em projetos consecutivos e 3) carreira híbrida. A autora diz que a carreira híbrida englobaria aspectos das configurações de carreira preexistentes e seria uma estrutura temporária e mutante, na qual haveria uma atividade predominante e outra(s) atividade(s) secundária(s), o que, "portanto, permitiria que as pessoas se deslocassem facilmente entre os vários caminhos de carreira, tanto sequencialmente como concomitantemente" (p. 13).
Baylin (1991) descreveu três caminhos organizacionais possíveis de carreira (gerencial, técnica e de projeto em projeto) que, combinadas, resultariam na carreira híbrida. Agregando esta proposta, Tremblay, Wils e Proulx (2002) propuseram cinco caminhos de carreira: gerencial, técnico, baseado em projetos, empreendedor e híbrido. Sullivan e Baruch (2009), em sua sistematização sobre os estudos de carreira no início do século XXI, sintetizaram cinco principais modelos das carreiras contemporâneas (tradicional, proteana, sem fronteiras, caleidoscópica e híbrida) ou, de maneira resumida, tradicional, contemporâneas e híbridas. Esses/as autores/as sublinham que as carreiras híbridas seriam achados recorrentes de pesquisas recentes e a definem como a "carreira que contêm aspectos tanto de conceitos da carreira tradicional quanto da carreira proteana e sem fronteiras" (Sullivan & Baruch, 2009, p. 1548).
A partir das conclusões das publicações apresentadas no parágrafo anterior, o termo "carreira híbrida" tem sido utilizado para descrever um caminho híbrido de carreira (Hölzle, 2010), uma identidade de carreira híbrida (Currie & Logan, 2020) ou uma orientação de carreira híbrida (Clarke, 2013; Gerber et al., 2009; Granrose & Baccili, 2006). Os achados também indicam que os estudos sobre carreiras híbridas crescem gradativamente, embora ainda seja área relativamente pouco estudada (Gander, 2021), basicamente focados nos estudos organizacionais - POT e Administração (Tabela 1).
A partir das proposições da literatura internacional, pode-se sintetizar a definição de carreira híbrida como a articulação entre cinco ordens de configuração: (a) entre aspectos dos vários caminhos de carreira preexistentes, principalmente entre a carreira tradicional (p. ex., segurança e mobilidade vertical) e as carreiras contemporâneas (p. ex., treinamento para atuação fora do contexto organizacional e local de trabalho aberto, confiante e respeitoso), como apontam Baylin (1991), Brousseau et al. (1996), Clarke (2013), Gander (2021), Gander et al. (2019), Gerber et al. (2009), Granrose e Baccili (2006), Guo et al. (2019), Mulhall (2014), Petroni (2000) e Tremblay et al. (2002); (b) entre carreiras técnicas e de gestão (Biron & Eshed, 2017; Cardador & Hill, 2018; McDermott & Keating, 2014; Sofikitis et al., 2016); (c) entre emprego e empreendedorismo (Folta et al., 2010; Neneh, 2020); (d) entre demandas pessoais e necessidades organizacionais (Hölzle, 2010); e (e) entre campos de atuação distintos (Lam, 2020), nos quais haveria, geralmente, uma atividade predominante e outra(s) atividade(s) secundária(s) (Baylin, 1991, Folta et al., 2010), sendo uma estrutura temporária e mutante, por não haver a opção por um caminho de carreira definitivo ou uma direção de carreira irreversível (Tremblay et al., 2002), baseando-se em sua mobilidade através das fronteiras ocupacionais/institucionais (Lam, 2020).
A maioria dos/as autores/as postulam as carreiras híbridas como a combinação de estruturas e processos preexistentes, no entanto Gander (2021), Gander et al. (2019), Gerber et al. (2009), Guo et al. (2019) e Lam (2020) afirmam que elas seriam um tipo específico de carreira, diferente da carreira tradicional ou das carreiras contemporâneas, mas que incluiria aspectos das duas e nas quais tanto necessidades tradicionais como contemporâneas seriam atendidas, seguindo um terceiro caminho de carreira, ou seja, um caminho híbrido. Alguns achados exemplificam como as carreiras híbridas impactam as várias dimensões da vida.
Em relação às questões de gênero, Cardador e Hill (2018) relatam que este seria um caminho mais escolhido por mulheres engenheiras e Sofikitis et al. (2016) afirmam que empregados/as de laboratório de pesquisa e desenvolvimento não casados/as seguiriam mais provavelmente uma rota híbrida. Isto parece demonstrar que o tipo de ocupação, o estado civil e o gênero influem na construção das carreiras e que o híbrido emerge como alternativa para mulheres com múltiplos papeis sociais e para pessoas sem compromisso familiar, numa forma de rearranjo das organizações de trabalho para incluir jovens e mulheres (Gander et al., 2019).
No tocante às questões profissionais, Cardador e Hill (2018) dizem que engenheiros/as em carreira híbrida tendem a deixar a profissão de formação mais facilmente e seriam uma rota de fuga nas empresas para Tremblay et al. (2002). McDermott e Keating (2014) apontam que, cada vez mais, gerentes híbridos - que desempenham tanto funções clínicas quanto gerenciais (p. ex., diretor/a clínico/a), são vistos como uma característica forte dos hospitais. A carreira em W, na qual a pessoa articula gestão com funções técnicas, parece ser um exemplo prático desta tendência (Santos, 2023).
Em termos de tipos de trabalho, Neneh (2020), em seu estudo com empreendedores/as, afirma que empreendedores/as híbridos/as, simultaneamente envolvidos/as em trabalho assalariado e empreendedorismo, têm aumentado recentemente em função da complementação da renda, de ser um momento transitório de experimentação para ser empreendedor/a de tempo total e uma oportunidade de explorar interesses múltiplos. Complementado pelas questões geracionais, Biron e Eshed (2017) indicam que a carreira híbrida parece atender as demandas da Geração Y ao oferecer oportunidades de escolhas diversificadas.
A produção incipiente parece indicar uma tendência das carreiras híbridas entre engenheiros/as, profissionais de desenvolvimento de tecnologia e acadêmicos/as. No entanto este é um dado que deve ser relativizado por conta da pouca quantidade de estudos realizados.
No que diz respeito a segunda etapa do presente estudo, foram encontrados nas bases de dados nacionais 9 publicações que citavam carreiras híbridas como resultado de pesquisa (Carvalho, 2018; Greve, 2019; Mélo, 2020; Ribeiro, 2010, 2015; Rodrigues, 2021; Steil, 2011; Voltan, 2020; Wilkoszynski, 2012) com base em um ensaio teórico e 8 pesquisas de campo (Tabela 2).
A partir de levantamento complementar realizado, nada foi encontrado nos Anais dos congressos brasileiros de OPC dos últimos 5 anos (Lassance & Ambiel, 2020; Lassance et al., 2022), tampouco nas publicações de revisões de literatura sobre a temática das carreiras (Almeida & Socci, 2017; Rizzatti et al., 2017; Vasconcellos et al., 2016). No entanto, foi encontrada apenas uma citação sobre carreiras híbridas nas últimas revisões de literatura sobre a produção científica em OPC (Ambiel et al., 2017), em POT (Oliveira et al., 2018) e na Administração (Provenzi & Flach, 2018).
A incipiente literatura nacional sobre carreiras híbridas segue três caminhos distintos, ao contrário da literatura internacional focada apenas nos estudos organizacionais. Um primeiro caminho reproduz os achados dos estudos internacionais focados no campo organizacional (Administração e POT), principalmente baseados em Sullivan e Baruch (2009), definindo carreira híbrida como carreira que contêm aspectos tanto da carreira tradicional, quanto não-tradicionais ou contemporâneas - proteana e sem fronteiras (Carvalho, 2018; Ribeiro, 2010; Steil, 2011, Voltan, 2020; Wilkoszynski, 2012). A partir dos estudos da relação entre educação e arte, um segundo caminho, descreve a realidade de educadores/as que são artistas ao mesmo tempo, ou seja, um/a profissional que exerce duas atividades distintas de trabalho articuladas em um fazer profissional produzido na relação entre dois campos distintos de atuação (Mélo, 2020; Rodrigues, 2021). E, no terceiro caminho identificado, há uma única produção própria vinculada ao campo da OPC, proposta por Ribeiro (2015) e utilizada em Greve (2019), que define a carreira híbrida como a articulação entre outros padrões narrativos existentes, não se constituindo em um padrão específico.
A produção ainda pouco representativa e difusa entre vários campos do saber indica uma tendência das carreiras híbridas entre profissionais de áreas variadas (p. ex., engenharia, enfermagem, educação) e contextos de trabalho diversos (p. ex., empresas, hospitais, escolas). No entanto, de modo semelhante à literatura internacional, este é um dado que deve ser relativizado por conta da pouca quantidade de estudos realizados.
A literatura nacional apresenta contribuições significativas para a definição de carreira híbrida, principalmente de Rodrigues (2021) e de Ribeiro (2015). Rodrigues (2021) aponta que as escolhas subjetivas e a abertura do campo de atuação para a inovação são dimensões importantes para a constituição de uma carreira híbrida que, em geral, seria uma carreira provisória e em constante mudança em função das relações sucessivas com os contextos. E Ribeiro (2015) identifica quatro padrões narrativos de construção das carreiras: organizacional (tradicional), profissional (especialista), proteana e sem fronteiras (contemporânea) e transitória (trajetória de passagem), sendo o híbrido um padrão narrativo ligando as características dos outros padrões narrativos [p. ex., "Eu gosto de combinar empregos permanentes com projetos temporários" (p. 24)], ou seja, articular o tradicional com o contemporâneo, representando 35% da amostra. Destaca que, na contemporaneidade, as carreiras "são afetadas, em maior ou menor grau e com diferentes níveis de intensidade, por um ou mais dos outros" (p. 24) padrões narrativos de construção da carreira, definindo o híbrido como a característica das carreiras contemporâneas, sempre com base em padrões coletivos.
Discussão - Uma Proposta de Conceituação de Carreira Híbrida
A discussão compreende a terceira etapa do estudo e foi um desdobramento das duas anteriores por meio de uma síntese das principais características comuns apontadas das concepções de carreira híbrida das publicações selecionadas que resultaram na proposição de conceituação a partir de revisão integrativa de literatura.
Um dos aspectos analisados na literatura especializada consultada refere-se aos antecedentes para uma proposta de conceituação do que seja uma carreira híbrida. Baylin (1991), por exemplo, fez uma primeira descrição da noção de carreira híbrida. Sullivan e Baruch (2009) apontaram que as carreiras híbridas já eram, naquele momento, um achado de pesquisa recorrente nos estudos organizacionais de carreira, como a revisão de literatura aqui realizada também demonstrou. E, por último, Baruck e Sullivan (2022), Gander (2021) e Gander et al. (2019) colocaram a tarefa premente de conceituar carreiras híbridas.
Gander (2021) diz que "a carreira híbrida tem sido discutida na literatura há algum tempo, mas ainda é um conceito emergente" (p. 853), no entanto "um conceito de carreira subteorizada e subutilizada, que poderia ser usado para ajudar na compreensão das carreiras organizacionais contemporâneas" (p. 863), pois ele é um tipo específico de carreira contemporânea que refletiria o panorama complexo do mundo do trabalho atual.
Assim, segundo Baruck e Sullivan (2022) e Gander (2021), o percurso do conceito de carreira teve início com a carreira organizacional (modelo tradicional), avançou para os modelos da carreira proteana e sem fronteiras (modelos contemporâneos) e agora deveria ser complementado com o modelo das carreiras híbridas.
Por que conceber uma carreira híbrida? Biron e Eshed (2017) apontam que a importância conceitual e prática das carreiras híbridas seria a necessidade de "ir além das abordagens tradicionais que consideram diferentes níveis de adequação de carreira e para uma avaliação mais precisa dos diferentes tipos de lacuna na carreira e como estas devem ser abordadas" (p. 234). Lam (2020) diz que haveria um mundo do trabalho intermediário na prática onde estariam trabalhadores/as intersticiais que atuam em espaços organizacionais semiautônomos entre os campos de trabalho existentes, ainda não legitimado social e organizacionalmente, o que os/as deixaria em um limbo profissional e ocupacional, principalmente porque carreiras híbridas provocam rupturas no instituído, sendo muito disruptivas e promotoras de mudanças nas normas estabelecidas, nas práticas de trabalho e nos limites do conhecimento. Baylin (1991) já apontava a necessidade de flexibilizar e combinar possibilidades ao invés de criar planos e caminhos mais rígidos ou totalmente abertos (proposta intermediária para a rigidez e a homogeneidade da carreira organizacional tradicional e para a abertura e amplitude das carreiras contemporâneas proteanas e sem fronteiras). Hölzle (2010) diz que a necessidade crescente de qualificação diversificada demanda a proposição de carreiras híbridas com possibilidade de mudança flexível entre caminhos existentes de carreira. Clarke (2013), Gander et al. (2019) e Petroni (2000) destacam que a carreira híbrida, ao articular elementos das carreiras tradicionais e contemporâneas, conseguiria realizar melhor a demanda atual de construir carreiras e atividades de trabalho através de interesses conciliados entre trabalhadores/as e organizações, pois o conceito de hibridismo nas carreiras atenderia "a exigência de uma carreira organizacional tradicional e os benefícios da carreira contemporânea" (Gander et al., 2019, p. 614), podendo ser uma estratégia muito útil e eficaz para a gestão de carreiras, melhorando o engajamento, a retenção e a motivação (Biron & Eshed, 2017).
E, por último, os modelos de customização da carreira (Straub et al., 2020) e de crafting colaborativo (Kossek & Ollier-Malaterre, 2020) são exemplos de carreiras híbridas que apontam o desenvolvimento sustentável como princípio central para a construção das carreiras, visando trabalho decente, crescimento econômico e bem-estar.
Uma questão central para a construção conceitual proposta é definir se carreira híbrida seria um conceito que mistura outras modalidades existentes ou se seria um conceito específico que, ao misturar outras modalidades existentes, gera um novo conceito. Baruch et al. (2015) chamam a atenção para o fato de que "a profusão de conceitos traz consigo a necessidade de clareza no desenvolvimento do campo (p. 3)", por isso o presente texto será concluído visando apresentar uma versão de conceituação para carreira híbrida a partir da síntese das principais características comuns apontadas nas concepções de carreira híbrida publicadas na literatura especializada pesquisada, indicando suas potencialidades e limites.
Uma carreira híbrida seria aquela que articula configurações de carreiras existentes, gerando uma nova configuração potencialmente capaz de lidar com a heterogeneidade e complexidade dos múltiplos papéis, tarefas e competências demandadas pelo trabalhar na contemporaneidade. Como configuração intersticial, consegue reconhecer caminhos novos de carreira que surgem a partir do existente, nomeando-os e legitimando-os como configurações coletivas emergentes a fim de evitar o risco de individualizar cada caminho de carreira, o que impediria sua aplicação prática que requer algum nível de generalidade e homogeneidade.
Por um lado, esta configuração de carreira evita forçar o ajustamento das pessoas aos modelos preexistentes e cria caminhos diferenciados de carreira a partir destes modelos, possibilitando uma maior e melhor conciliação entre interesses dos/as trabalhadores/as (carreiras mais individualizadas) e da organização (planos gerais de carreira), ampliando os modos de existir e trabalhar e impactando positivamente desempenho, engajamento e comprometimento organizacional. No entanto, por outro lado, carreiras híbridas são um fator complicante dos procedimentos de gestão das carreiras pela desagregação entre status/salário e a tarefa, por uma avaliação de desempenho fragmentada e variável no tempo, e pelo desafio de criar planos híbridos de carreira e oportunidades de desenvolvimento de carreira a médio e longo prazo.
Em um mundo que busca articular o singular e o geral, o global e o local, as carreiras híbridas são uma alternativa no mundo do trabalho para cumprir tal objetivo e garantir minimamente a diversidade como prática de gestão e de construção de si no mundo e das relações sociais associadas (Baruch & Sullivan, 2022; Gander, 2021; Santaella, 2021).
Conclusões
O mundo do trabalho vem sofrendo um processo gradativo de flexibilização, complexificação e heterogeneização, impactando positiva e negativamente as organizações de trabalho e as carreiras. A literatura vem apontando uma mudança contemporânea do modelo tradicional linear e homogêneo da carreira organizacional para os modelos mais individualizados da carreira proteana e sem fronteiras. Uma terceira possibilidade emergente para as construções de carreira seria o processo de hibridização dos modelos de carreiras existentes, sejam lineares, sejam flexíveis, dando origem ao conceito de carreira híbrida que articularia elementos e dimensões tanto da carreira tradicional quanto das carreiras contemporâneas.
As carreiras híbridas seriam uma alternativa a homogeneidade das carreiras tradicionais e a heterogeneidade das carreiras contemporâneas, pois, ao articular elementos das carreiras tradicionais e contemporâneas, conseguiria atender melhor a demanda atual de planejamento das carreiras através de interesses conciliados entre trabalhadores/as e organizações, se configurando em uma estratégia interessante e potencialmente eficaz para a gestão de carreiras, e incluindo princípios de sustentabilidade nas suas proposições.
Apesar deste potencial, o estudo, a pesquisa e a conceituação das carreiras híbridas são campo emergente, principalmente no contexto nacional que pouco produziu sobre a temática, como demonstrou a revisão de literatura integrativa apresentada. No presente estudo, então, busquei introduzir o conceito de carreiras híbridas ainda incipiente no Brasil e incentivar acadêmicos/as e profissionais a entrarem em contato com este fenômeno contemporâneo para analisar sua potência conceitual e prática no campo da gestão das carreiras, considerando a demanda de definição clara para evitar a criação de infinitas modalidades híbridas de carreira.