O presente e o futuro do trabalho, assim como dos processos produtivos e das interações entre as pessoas, assinalam, cada vez mais, uma vida mediada por tecnologias digitais - computadores, redes de internet, dispositivos móveis e aplicativos -, que permitem a conectividade, o acesso à informação, o armazenamento, o processamento e a transmissão de dados em tempo real. À medida que a internet e a dispositivos digitais mostram-se cada vez mais onipresentes, cresce a expectativa de uma transformação significativa nos ambientes de trabalho e nos processos organizacionais.
A transformação digital, sinteticamente definida como a incorporação massiva de tecnologias digitais em todos os aspectos de uma organização, tem a pretensão instalar e aperfeiçoar processos e procedimentos de gestão do trabalho baseados em algoritmos e fluxos de decisórios alinhados às estratégias organizacionais (Gong & Ribiere, 2021). Esse processo implica em dispor de tecnologias digitais avançadas, tais como a automação e a inteligência artificial (Vial, 2021)
No século XXI, a transformação digital, impulsionada pela internet e pelos avanços tecnológicos, têm desempenhado um papel fundamental na redefinição de oportunidades e modalidades de trabalho. A interconexão global, proporcionada pela internet, permite uma comunicação instantânea e facilita o acesso a uma variedade de recursos técnicos e soluções, gerando, ao mesmo tempo, inovações e desequilíbrios na forma como as organizações operam e como os profissionais desempenham suas funções (Hanelt et al., 2021). A ascensão das redes sociais, transcenderam o seu papel inicial de conectividade entre as pessoas, e emergiram como plataformas catalisadoras à geração de trabalho e renda, à expansão de negócios, à ampliação da circulação de bens e serviços e ao empreendimento individual (Cruz et al., 2022).
A automação e robótica, cada vez mais presentes nos processos de produção, na logística e distribuição de materiais, assim como na gestão de pessoas, promovem inovações na natureza e nos meios de execução do trabalho. A perspectiva é promover eficiência nos fluxos operacionais, induzir velocidade nos processos decisórios, e reduzir a realização de tarefas perigosas e repetitivas. Por outro lado, os processos de automação e robótica têm impactado na redefinição de funções profissionais e na busca por habilidades técnicas específicas no mercado de trabalho (Vrontis et al., 2022).
A inteligência artificial (AI), empregada em diferentes contextos, tem intensificado a geração de informações, a pesquisa científica, a análise de dados e a assistência ao trabalho profissional, consolidando-se, cada vez mais, como uma força motriz no desenvolvimento de sistemas automatizados. É importante considerar, contudo, que um dos principais características da AI reside em seu potencial adaptativo e na sua capacidade de processar e analisar grandes volumes de informações, assim como produzir informações especializadas, diagnósticos e soluções. Ou seja, aprender e realizar tipicamente tarefas cognitivas e tomar decisões (Wisskirchen, 2017).
Os avanços das tecnologias de comunicação e o surgimento de infraestruturas mais robustas de digitalização do trabalho possibilitaram o aumento da aceitação do teletrabalho, que finalmente começou a ganhar mais aceitação e implementação efetiva. Essa mudança é evidenciada pelo crescente número de organizações que adotam modelos flexíveis de trabalho, permitindo aos trabalhadores desempenharem suas funções de maneira remota.
O teletrabalho, modalidade de trabalho realizada à distância, surgiu no contexto da recessão econômica e da crise do petróleo, na década de 1970, em resposta à necessidade de contenção de custos operacionais, de redução do consumo de energia e de uso de transportes (Figueiredo et al., 2021). A expressão teletrabalho (telework ou telecommuting) foi disseminada, no meio científico e técnico, por Nilles et al. (1974), baseada na ideia de que os empregados podem desempenhar as suas atividades profissionais em local físico diferente do escritório central do empregador, com a mesma produtividade ou até melhor (Nilles et al., 1974; Pratt, 1984).
Na década de 1980, a discussão sobre flexibilidade no trabalho ganhou terreno nas organizações, nas propostas sindicais e no mundo acadêmico, especialmente nos países mais desenvolvidos economicamente (Lindén & Oljemark, 2018). A noção de trabalho flexível passou a ser diretamente associada aos avanços tecnológicos, ao processo de globalização e à mobilidade humana. Toffler (1980), em um discurso futurista, sustentou a tese de que o trabalho, a partir daquele momento, não seria mais realizado necessariamente em escritórios ou fábricas.
A previsão de um cenário de crescimento substancial na adoção do teletrabalho, ainda no século XX, não se concretizou. Alguns argumentos podem explicar esse cenário, dentre os principais: a infraestrutura tecnológica disponível à época poderia não ter sido suficiente para sustentar efetivamente a implementação generalizada do teletrabalho (Bailey & Kurland, 2002); preocupações gerenciais com possível falta de controle sobre as atividades realizadas remotamente por parte dos empregados; cultura organizacional e práticas de trabalho sustentadas no modelo presencial, oferecendo resistências à adoção do teletrabalho (Golden, 2009; Lindén & Oljemark, 2018).
Ao longo das décadas seguintes, houve um processo de ampliação do teletrabalho. Os avanços das telecomunicações e seus dispositivos eletrônicos possibilitaram a intensificação dos centros de teletrabalho (call centers), impulsionada pela capacidade de realizar tarefas remotamente, conectando-se a sistemas e clientes por meio de redes de comunicação avançadas. Esses avanços também permitiram uma maior flexibilidade para os trabalhadores, por meio do trabalho itinerante e do trabalho móvel, em profissionais se deslocam regularmente entre diferentes locais, como clientes, escritórios remotos ou diferentes filiais da organização e as tarefas profissionais são realizadas por meio de dispositivos móveis, como laptops, tablets e smartphones (Athanasiadou & Theriou 2021; Figueiredo et al., 2021).
A pandemia de COVID-19, disseminada acentuadamente entre os anos de 2020 e 2022, acelerou significativamente a adoção do trabalho flexível nas organizações e nos empreendimentos individuais. Com as medidas de isolamento e distanciamento social, trabalho remoto (em qualquer lugar, à distância) e o home office (no ambiente doméstico) passaram a representar uma necessidade de sobrevivência e adaptação à nova realidade do mundo do trabalho. Além disso, o cenário da pandemia acelerou a aceitação do trabalho flexível em diversos setores e a necessidade de aperfeiçoamento de habilidades técnicas para lidar com processos informatizados e linguagem digital (Rymaniak et al., 2021).
Nesse contexto, observam-se novas formas de produção e comercialização de produtos e serviços diretamente de ambientes computadorizados para o ciberespaço, com reflexos importante sobre o tempo e os esforços dispendidos pelas pessoas. Alguns processos de trabalho, denominados de “trabalho coletivo”, “colaborativos” ou, ainda “microtrabalhos”, envolvem atividades fragmentadas, mas interconectadas (por dispositivos eletrônicos, plataformas e aplicativos), que mobilizam trabalhadores com diferentes perfis profissionais e remunerados das mais diferentes formas.
Há que se avaliar, contudo, se essas mudanças incluem uma tendência cada vez maior a trabalhos precarizados, com menor capacidade para gerar laços culturais significativos entre os trabalhadores e deles com as empresas (Cherry, 2016; Strunk & Strich, 2023). Cherry (2016) salienta a necessidade de prestar a atenção a esses processos de mudança, seja do ponto de vista social ou jurídico, no sentido identificar se não estão sendo gerados novos “padrões trabalhistas tayloristas online”.
A possibilidade de acessar informações e realizar tarefas, em qualquer lugar e momento, revolucionou os conceitos tradicionais de local e desenho do trabalho, impulsionando o trabalho na modalidade remota, seja ele realizado de forma ocasional, parcial ou integral, com base nas necessidades das organizações ou nas características do empreendimento econômico (Athanasiadou & Theriou 2021). Nesse cenário, trabalhadores autônomos ou independentes se beneficiam da flexibilidade e da digitalização do trabalho e, de certa, maneira, ganharam uma certa autonomia na autogestão do processo de trabalho (Li et al., 2020). Por outro lado, avalia-se que, as mudanças nos arranjos de trabalho fora do contexto organizacional ou locais de trabalho têm contribuído negativamente na dinâmica do desenvolvimento profissional, nas trocas de experiências e no acesso às estruturas e serviços de apoio das organizações (Stefano, 2016; Taylor & Joshi, 2019).
As relações entre a transformação digital e flexibilidade no trabalho e suas repercussões no comportamento humano nos ambientes de trabalho permanecem em pauta. No contexto da Psicologia das Organizações e do Trabalho, a avaliação e interpretação dessas relações impactos são recentes, ainda que permeada de contribuições sobre os impactos das mudanças tecnológicas no desenvolvimento de competências técnicas e na saúde mental dos trabalhadores, na gestão de equipes remotas e nas estratégias para lidar com mudanças organizacionais.