Os fatores de riscos psicossociais no trabalho têm sido identificados como um dos grandes desafios contemporâneos para a saúde e segurança dos trabalhadores. A Organização Internacional do Trabalho, por meio da International Labour Office (ILO, 1986), definiu que eles estão relacionados à influência mútua que se dá entre o conteúdo do trabalho, o modo de realização da tarefa, as relações entre as pessoas e a forma como o trabalhador percebe e avalia essas questões. Além disso, existem fatores de vida do trabalhador que irão influenciar nessa percepção. Dessa forma, tais riscos são influenciados pela interação entre elementos internos ao trabalho, do indivíduo (trabalhador) e externos ao trabalho. Os fatores psicossociais têm a capacidade de afetar o desenvolvimento do trabalho e a saúde do trabalhador, por isso quando impactam de forma negativa na saúde são nomeados como fatores de riscos psicossociais no trabalho (Chagas, 2015; Costa & Santos, 2013; Serafim et al., 2012). Conforme Zanelli & Kanan (2018), os fatores psicossociais no trabalho afetam trabalhadores, grupos, organização e sociedade, de modo a potencializar danos à saúde e segurança.
Recentemente, por conta da situação pandêmica, notou-se uma pluralidade no que tange aos riscos psicossociais associados ao trabalho. Diante de uma retrospectiva às questões laborais, já podia se identificar a relação intrínseca entre a saúde mental e o trabalho (Araújo et al., 2017). Tal aproximação se fez ainda mais complexa quando exposta às novas ocorrências trazidas pela COVID-19, que evidenciou fatores de risco laborais pré-existentes e trouxe outros à tona. Desse modo, frente a pandemia, outros arranjos e condições de trabalho se fizeram necessários, o que ocasionou novos riscos e desafios para a saúde dos trabalhadores em diferentes situações (linha de frente, serviços essenciais, teletrabalho ou perda de negócios ou emprego). Dessa forma, são enfatizadas algumas temáticas que tratam dos riscos nomeados como extraordinários, entre os quais: o estresse de trabalho, o risco para a violência/assédio moral e a dificuldade para manter equilíbrio entre interação trabalho e família (ILO, 2020).
O estresse laboral se agravou durante o período pandêmico, especialmente no setor da saúde (Sousa Júnior et al., 2020). Em níveis elevados, isto apresenta uma série de riscos à saúde mental dos profissionais, pois se associa a taxas de depressão, ansiedade, comportamentos sociais negativos, burnout e transtorno de estresse pós-traumático (Bezerra et al., 2020; Borges et al., 2021; Cavalheiro & Tolfo, 2011). Outrossim, o estresse, quando associado à COVID-19, adquire posição de destaque frente aos agravos psíquicos, pois, ao se aliar ao medo (de contágio, morte, danos econômicos e outros), pode levar a sentimentos de abandono e desesperança (Ornell et al., 2020).
Além do estresse, outra variável analisada nesse estudo e que é amplamente discutida na literatura científica, é o assédio moral no trabalho (AMT). O AMT é caracterizado por condutas abusivas, humilhantes e repetitivas, que originam prejuízos significativos que, com frequência, levam à degradação do ambiente de trabalho, do grupo e das pessoas envolvidas. A sua gravidade se acentua quando a pessoa fica mais tempo exposta às humilhações e constrangimentos, podendo gerar diversas psicopatologias. A situação pandêmica potencializou o risco para o AMT no Brasil, algo que já estava em ascensão diante das perdas de direitos trabalhistas, do aumento da informalidade, do desemprego e da precarização no e do trabalho (Heloani et al., 2021).
Por fim, sobre o conflito entre o trabalho e a família, coloca-se que ele engloba a maneira que o trabalho afeta o conjunto familiar e pessoal do sujeito e vice-versa. Dessa forma, os aspectos relacionados à vida pessoal e familiar do sujeito são afetados pelas suas condições de trabalho (sobrecarga, cobranças excessivas, problemas de comunicação, danos psicossociais etc.). Além disso, a família também pode apresentar demandas e cobranças que podem reverberar no trabalho do sujeito (Feijó et al., 2017).
Cabe-se pensar que entre profissionais da saúde, atuantes na linha de frente da pandemia, grande parte são mulheres na área da enfermagem, o que se relaciona a altas jornadas de trabalho, pois, além do espaço laboral, realizam afazeres domésticos, algo que contribui com o esgotamento físico e mental dessas trabalhadoras e no modo como se relacionam com suas famílias (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2018; Prado et.al 2020; Vanalli, 2012). As mulheres desempenham três vezes mais tarefas domésticas, cuidados com os filhos e com a educação e cuidados com os idosos da família, desse modo, estima-se que, devido à pandemia, essa sobrecarga tenha triplicado (Guerin et al., 2020).
Assim, refletir acerca das modificações sociais, familiares, econômicas e psíquicas impostas pela COVID-19 se faz de suma importância, sendo essencial a compreensão sobre como os fatores de riscos psicossociais no trabalho mencionados podem afetar no desfecho de sofrimento psicológico em trabalhadores da saúde pública (Duarte et al., 2020; Kavoor, 2020; Kelvin & Rubino, 2020; Klokner et al., 2021). Tal fato se justifica diante do potencial cenário de calamidade em saúde mental que se formou, no qual há indicativos de que o número de indivíduos com impacto negativo na saúde mental é mais elevado ainda que o número de acometidos pelo próprio transtorno e suas sequelas (Faro et al., 2020). Logo, fica evidente a necessidade de pesquisas e publicações científicas que debatam sobre o sofrimento mental nessa emergência sanitária, assim como esse estudo, pois subsidiarão intervenções biopsicossociais a curto, médio e longo prazo.
Esclarece-se que, dentre um dos grupos de trabalhadores mais afetados pela COVID-19, encontram-se profissionais que atuam na área da saúde (A. P. Ribeiro et al., 2020). Impactos biológicos e psíquicos aliados estão entre as principais causas de afastamento laboral de trabalhadores na área, situação que pode ficar ainda mais agravada em decorrência da precarização do trabalho nessa instância (Dantas, 2021; Teixeira et al., 2020). Percebe-se, no contexto brasileiro, um quadro de constante desvalorização dos profissionais que fazem parte desses serviços, situação que não foi diferente na pandemia, a exemplo de remunerações inadequadas, sobrecarga laboral pelo aumento no fluxo de atendimentos, insuficiência de insumos básicos e equipamentos de proteção individual, falta de preparação na assistência a esses profissionais por parte dos sistemas governamentais, a incoerência de recomendações oficiais, entre outros (Bitencourt & Andrade, 2021; Brust-Renck et al., 2021; Dantas, 2021; Teixeira et al., 2020).
Desse modo, o sofrimento psicológico é algo preocupante em pesquisas com esses sujeitos durante a pandemia. Relata-se que, entre os principais sintomas relacionadas ao sofrimento percebido, estão: humor deprimido, pensamentos de morte, medo do contágio a si ou familiares, ansiedade, estresse, distúrbios do sono, somatizações, uso de substâncias psicoativas etc. Destaca-se a necessidade de uma adequada rede de apoio (emocional, social, material e afetiva) para suporte desses sujeitos e a criação de estratégias de acolhimento e tratamento psíquico. Ademais, enfatiza-se o maior risco de desenvolvimento de transtornos de ordem mental/psiquiátrica àqueles que possuíam histórico prévio (Brust-Renck et al., 2021; Dantas, 2021; Jantara et al., 2021; P. C. C. Ribeiro et al., 2021; Teixeira et al., 2020). Realça-se a importância de se pensar sobre quais serão os efeitos psíquicos da pandemia a longo prazo nos profissionais da saúde, e de se compreender os principais aspectos que promovem o sofrimento psicológico como desfecho, visto haver indícios de agravos longitudinais relacionados ao estresse e à desesperança (P. C. C. Ribeiro et al., 2021).
Portanto, esse estudo se justifica diante dos dados apontados e da emergência em se debater sobre os fatores de risco psicossociais no trabalho com o advento da pandemia. Além disso, pode auxiliar na compreensão de aspectos de risco que podem ser trabalhados em futuras emergências sanitárias. Objetivou-se identificar o poder preditivo de fatores psicossociais no trabalho (conflito trabalho família, assédio moral no trabalho, estresse laboral) e variáveis sociodemográficas (gênero, idade, situação conjugal, número de filhos, número de moradores na residência) e de saúde (diagnóstico de COVID-19, diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou psicológico anterior à pandemia), durante a pandemia da COVID-19, para o sofrimento psicológico em profissionais que atuam na saúde pública.
Método
O presente estudo possui delineamento quantitativo, transversal e explicativo. Estudos quantitativos permitem o estudo de como as variáveis de pesquisa se relacionam, possibilitando que afirmações sejam feitas sobre a população selecionada. Quando coletada em somente um tempo, como no caso dessa pesquisa, chama-se transversal. Ainda, a escolha do delineamento explicativo se dá por compreender que, no momento de realização do estudo, existiam poucas informações sobre a temática, o que requer aprofundamento (Gil, 2010).
Participantes
Participaram da pesquisa 478 servidores públicos que atuavam presencialmente na área de saúde pública durante a pandemia de COVID-19. A amostra foi não-probabilística e intencional. Para definição do tamanho da amostra, realizou-se o cálculo amostral conforme Field (2009), em que se sugere o número de 50 participantes acrescido de mais oito para cada variável independente do modelo de predição, sendo presentes, nesse estudo, a quantia de 12 preditores (demográficos: gênero, idade, número de filhos, situação conjugal; laborais: vínculo empregatício; de saúde: diagnóstico de COVID-19, diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou psicológico anterior à pandemia e fatores psicossociais no trabalho: estresse, assédio moral, conflito trabalho-família e conflito família-trabalho). Assim, totalizou-se o mínimo de 160 participantes, considerando uma perda amostral de aproximadamente 10% (n = 146 cálculo original; n = 14 de perda amostral).
Foi adotado como critérios de inclusão: profissionais vinculados de diferentes formas à secretaria de saúde de seus municípios, que atuavam direta ou indiretamente no enfrentamento da pandemia, em três cidades localizadas no estado do Rio Grande do Sul, e que concordaram voluntariamente em participar do levantamento. Já o critério de exclusão empregado foi o de estar afastado de suas funções no momento da pesquisa, por razões como licença saúde e licença maternidade. Como contato inicial disparador, a pesquisa foi divulgada junto ao e-mail institucional para os potenciais participantes, também foi divulgado convite através das redes sociais das prefeituras. Aqueles que responderam afirmativamente, foram convidados a acessar o link para responder aos instrumentos. Dessa forma, ocorreu a amostragem não probabilística de conveniência, a partir dos respondentes que se disponibilizaram. A escolha das cidades se deu devido ao fato da procura das prefeituras dos três municípios pela universidade dos pesquisadores, para apresentar o interesse pelo levantamento da saúde (durante a pandemia) dos seus servidores, e posterior estabelecimento de uma parceria para o estudo. Destaca-se que elas representarem duas regiões distintas, permitindo ampliar a abrangência dos dados.
Instrumentos
O instrumento consistiu em um formulário eletrônico, disponibilizado no Microsoft Forms, que continha o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); uma Ficha sociodemográfica, laboral e de saúde (elaborada pelos pesquisadores para investigar questões como: gênero, idade, situação conjugal, ocupação, número de filhos, profissão, tipo de vínculo de trabalho, diagnóstico de COVID-19, pertencimento ou não ao grupo de risco, acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, diagnóstico psicológico ou psiquiátrico, etc.); um questionário sobre fatores de risco psicossociais no trabalho (elaborado pelos pesquisadores) com oito questões objetivas em forma de escala likert, variando de “nunca” (1) a “quase sempre” (5). Três questões (Recebi informações claras no meu trabalho sobre os cuidados para evitar a contaminação da COVID-19; Os equipamentos de proteção individuais (EPIs) são adequados para a realização das tarefas; Recebi informações de como minimizar medidas de exposição à COVID-19 no trabalho) foram relativas ao protocolo frente ao risco de contaminação da COVID-19 no trabalho (α de Cronbach = 0,59), três (O seu trabalho requisitou que trabalhasse depressa; O seu trabalho requereu que trabalhasse muito; O seu trabalho requereu muito esforço) sobre estresse laboral (α de Cronbach = 0,84) e duas (Fui ameaçado ou fui alvo de algum tipo de violência; Fui humilhado ou ridicularizado em relação ao trabalho) sobre situações de violência/assédio moral (α de Cronbach = 0,70) durante a pandemia; a escala de Conflito Trabalho-Família (Carlson et al., 2000); e o Clinical Outcome Routine Evaluation-Outcome Measures (CORE-OM- Evans et al., 2002).
A escala de Conflito Trabalho-Família (Carlson et al., 2000) contém 12 itens, respondidos em uma escala likert de cinco pontos que varia de “quase nunca” (1) a “quase sempre” (5). Ela é dividida em um modelo bifatorial, 6 itens avaliam o conflito trabalho-família (CTF) e 6 itens o conflito família-trabalho (CFT). A escala coloca que as variáveis “trabalho” e “família”, ainda que sejam domínios distintos, influenciam-se (positiva ou negativamente). A interferência que pode acarretar prejuízo se denomina conflito (trabalho-família ou família-trabalho) e se apresenta quando as demandas originadas no trabalho e na família são, de algum modo, incompatíveis. Assim, o entendimento dos constructos são de que: 1) o CTF é aquele no qual as demandas laborais, o tempo despendido e a tensão gerada pelo trabalho repercutem no desempenho das funções familiares, e 2) o CFT é quando as demandas familiares interferem no desempenho das atividades laborais (Aguiar & Bastos, 2013).
O CORE-OM é uma escala de autorrelato com 34 itens que avaliam quatro domínios: bem-estar subjetivo (4 itens); problemas e sintomas (12 itens); funcionalidade de vida (12 itens) e risco para si e para os outros (6 itens). Esses itens são assinalados em uma escala de cinco pontos, e variam de nunca (0) a sempre ou quase sempre (4). Nesse estudo, foi utilizada a escala geral que consiste numa medida global relacionada ao sofrimento psicológico (Evans et al., 2002) e tem demonstrado boas propriedades psicométricas. Foi utilizada a adaptação conduzida por Santana et al. (2015) e o alfa (α) do instrumento no presente estudo foi de 0,953.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
A partir da aprovação para o desenvolvimento da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade vinculada aos pesquisadores, os respondentes foram convidados a participar da pesquisa, após anuência dos dirigentes das organizações participantes. A coleta de dados ocorreu por meio de um questionário on-line, que continha na primeira parte o TCLE, no qual se explicitou os objetivos da pesquisa, os riscos e cuidados protetivos. A aplicação do instrumento foi realizada em diferentes fases da pandemia, no período de novembro de 2020 até agosto de 2021.
Procedimentos de Análise de Dados
O banco de dados foi analisado por meio do software SPSS 20 (Statistical Package for the Social Sciences). Inicialmente, realizou-se análises descritivas exploratórias, a fim de avaliar a distribuição dos itens. Na sequência, foram calculadas frequência, média, desvio-padrão e a correlação de Pearson das variáveis em estudo.
Por último, foi realizada Análise de Regressão Linear Múltipla (método Stepwise), com a variável dependente “sofrimento psicológico” (escore geral do CORE-OM), e com variáveis independentes relacionadas aos fatores de risco psicossociais no trabalho (conflito trabalho-família e conflito família-trabalho, assédio moral no trabalho, estresse laboral); as variáveis sociodemográficas (gênero, idade, situação conjugal e número de filhos) e de saúde (diagnóstico de COVID-19, diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou psicológico anterior à pandemia). Os pressupostos da regressão linear múltipla foram testados e não foram encontradas violações que contraindicassem o seu uso, a partir das orientações de Field (2009).
Resultados
A amostra foi composta por 478 trabalhadores que atuavam na área da saúde, a maior parte formada por profissionais (78,7 %; n = 378) que realizavam assistência direta aos usuários, e o restante deles (21,3%; n = 102) pertencentes a gestão da saúde municipal. As profissões registradas foram diversificadas, podendo-se colocar como exemplos: agentes comunitários de saúde, assistentes sociais, dentistas, enfermeiros, farmacêuticos, médicos, nutricionistas, psicólogos, técnicos de enfermagem ou radiologia, assistentes administrativos e financeiros, e outras. As profissões de maior prevalência foram: enfermeiros (18,4%); médicos (14,6%) e técnicos de enfermagem (10%).
Desses profissionais, 87,2% (n = 417) trabalhavam na região metropolitana de Porto Alegre e outros 12,8% (n = 61) na região do Vale do Taquari. Quanto ao vínculo, 55,2% eram estatutários, 15,7% servidores públicos concursados, 11,1% terceirizados, 6,5% contratados via CLT, e 11,5% apontaram outras formas de vinculação.
Desses trabalhadores, 386 (80,8%) eram mulheres e 92 (19,2%) homens, tendo idade média de 43,4 anos (DP = 10,5, amplitude = 19 - 69). Quanto ao número de moradores na residência, 13,4% (n = 64) dos trabalhadores declararam que moram sozinho, 31,4% (n = 150) com ao menos duas pessoas, 30,1% (n= 144) residem com ao menos uma pessoa na mesma residência e 24,9% (n = 119) com três pessoas ou mais (amplitude = 3-15) e 0,2% (n = 1) não respondeu. Coloca-se que 69,4% (n = 331) têm filhos, desses, quase a metade (49,5%; n = 164) declara ter apenas um filho. Quanto à situação conjugal, 29,7% (n = 142) são solteiros e 56,7% (n = 271) casados e 13,6°% (n = 65) viúvos ou divorciados. Ainda, 24,9% (n = 119) apontaram que fazem parte do grupo de risco à COVID-19 (idade superior a 60 anos, portador de diabetes e/ou pressão alta, entre outros).
Quando questionados sobre a realização de acompanhamento psiquiátrico ou psicológico, 57,5% (n = 275) afirmaram não ter feito em nenhum momento prévio ou durante a pandemia. Entretanto, outros 11,8% (n = 56) realizavam acompanhamento antes desse período, mas precisaram interromper por questões diversas. Outros 20,9% (n = 100) iniciaram o acompanhamento antes da pandemia e seguiram, ao menos até o momento de aplicação dos instrumentos, e 9,8% (n = 47) iniciaram durante a pandemia. Da porcentagem válida, ou seja, daqueles que responderam ao questionário, 36% (n = 122) dos participantes afirmaram ter diagnóstico psiquiátrico ou psicológico antes da pandemia, sendo 29,1% (n = 139) a quantia de pessoas que optaram por não responder a isto, assim, para fins de análise, as ausências foram enquadradas como resposta negativa para que se pudesse levar em conta tal variável.
Referente ao adoecimento pelo vírus SARS-CoV 2, a porcentagem válida indica que 71% (n = 339) não foram diagnosticados com a doença até o momento da pesquisa, enquanto outros 28% (n = 134) foram, com missing de 1% (n = 5). Destaca-se que, daqueles que referiram diagnóstico positivo, 25,6% (n = 121) sinalizaram o aparecimento de sintomas mesmo que leves. Ainda, quanto à possibilidade de contágio, 6,6% (n = 31) indicaram que possivelmente desenvolveram a patologia, pois houve a ocorrência de sintomas, mas não foram testados.
A Tabela 1 apresenta os resultados da análise descritiva das variáveis analisadas nos instrumentos de pesquisa. Em relação à consistência interna, todas as dimensões dos índices avaliados apresentaram resultados aceitáveis quanto ao alfa de Cronbach.
Tabela 1 Análise descritiva (média e desvio padrão) e confiabilidade alfa das variáveis
Variável | n | Média | DP | α |
---|---|---|---|---|
CTF | 465 | 19,28 | 5,872 | 0,900 |
AMT | 466 | 3,48 | 1,857 | 0,692 |
CFT | 460 | 11,98 | 4,401 | 0,843 |
SP | 417 | 2,26 | 0, 647 | 0,953 |
Nota. Fonte dados da pesquisa. Legendas: n = Número de participantes / DP = Desvio-padrão / α = Alpha de Cronbach / CTF = Conflito Trabalho-Família / AMT = Assédio Moral no Trabalho / CFT= Conflito Família- Trabalho / SP = Sofrimento psicológico.
O resultado obtido da Regressão Linear Múltipla Stepwise (Tabela 2) revelou um modelo preditor constituído pelas variáveis conflito trabalho-família, assédio moral no trabalho, conflito família-trabalho e diagnóstico psiquiátrico/psicológico prévio que, em conjunto, explicaram 37,8% da variância do desfecho.
Tabela 2 Análise de regressão linear múltipla para os preditores de sofrimento psicológico
Modelo | R2 | R2 | B | SE | β | t | p |
---|---|---|---|---|---|---|---|
ITF | 0,256 | 0,254 | 0,221 | 0,035 | 0,325 | 6,401 | 0,000 |
AMT | 0,310 | 0,306 | 0,167 | 0,034 | 0,243 | 4,917 | 0,000 |
IFT | 0,359 | 0,353 | 0,206 | 0,041 | 0,231 | 5,038 | 0,000 |
DPA | 0,386 | 0,378 | -0,230 | 0,063 | -0,167 | -3,628 | 0,000 |
Nota. Fonte dados da pesquisa. Legendas: R2 = R-quadrado / R2 ajustado = R-quadra-do ajustado / B = coeficiente beta / SE = Erro padrão/ β = Coeficiente beta padronizado / t = teste t / p = valor da significância / ITF = Interação Trabalho Família /AMT= Assédio Moral no Trabalho / IFT = Interação Família Trabalho / DPA= Diagnóstico psicológico ou psiquiátrico antes da pandemia.
A variável conflito trabalho-família se constituiu no principal preditor do sofrimento mental, com 25,4% de explicação. Em seguida, foram retidas pelo modelo as variáveis assédio moral no trabalho, conflito família-trabalho e diagnóstico psiquiátrico/psicológico prévio, que explicaram 5,2%, 4,7% e 2,5%, respectivamente. A relação entre as variáveis diagnóstico psiquiátrico/psicológico prévio e sofrimento mental é uma relação inversa (β negativo), ou seja, na medida em que se tem um diagnóstico psiquiátrico/ psicológico prévio, aumenta a probabilidade para o desfecho do sofrimento psicológico, essa interpretação segue a atribuição no banco de dados dos valores para a variável diagnóstico psiquiátrico/psicológico prévio (1 = ter diagnóstico prévio e 2 = não ter diagnóstico prévio). Esses resultados podem ser visualizados na Tabela 2.
Discussão
A regressão linear múltipla demonstrou capacidade explicativa do sofrimento psicológico em trabalhadores da saúde pública. Respectivamente, as variáveis que influenciaram isto foram: conflito trabalho-família, assédio moral no trabalho, conflito família-trabalho e diagnóstico psiquiátrico/psicológico prévio. Os dados estão na direção esperada e confirmam a expectativa de que múltiplas condições combinadas (laborais e de saúde pessoal) explicam o sofrimento psicológico como desfecho nesse grupo de trabalhadores.
Entende-se que a relação entre o trabalho e a família, e a dinâmica que daí decorre, são aspectos fundamentais na compreensão sobre como se dá o impacto psíquico nos sujeitos (Lawson et al., 2019), algo que se comprovou nesse estudo. O conflito trabalho-família foi a variável que mais apresentou poder explicativo (25%) para o desfecho de sofrimento psicológico na amostra. Há uma relação próxima entre a forma como o trabalho se dá, suas características e a repercussão que tem na família dos trabalhadores, podendo gerar situações estressoras ou insatisfação (Andrade et al., 2017; Koura et al., 2017).
Para os trabalhadores da área da saúde, o trabalho está intrinsecamente relacionado com longas jornadas laborais e grande quantidade de atendimentos, sendo reconhecido como um contexto estressor (Monteiro & Carlotto, 2016). Segundo estudo realizado por Luiz De Andrade et al. (2020), constatou-se que 25% dos conflitos vivenciados no ambiente profissional por trabalhadores da área hospitalar têm impacto no contexto familiar. Uma revisão sistemática de estudos qualitativos sobre as experiências dos profissionais de saúde durante a pandemia mostrou que, independentemente do lugar, os participantes estavam preocupados tanto com a saúde física sua e de familiares, com a carga de trabalho, equipamentos de proteção e pouco descanso. Além disso, aspectos interpessoais como a relação com a família poderiam ser, a depender da maneira como ocorriam, protetivos ou potencializadores do estresse experienciado (Billings et al., 2021).
O assédio moral no trabalho também apresentou significativa relevância na regressão linear múltipla, com capacidade explicativa de 6%. Destaca-se que a violência e o assédio moral no trabalho são fenômenos que já se perpetuam há bastante tempo no trabalho de profissionais de saúde e que aumentaram na crise pandêmica. No decorrer da sua prática assistencial, em muitos momentos, esses trabalhadores sofreram assédios, foram agredidos verbal, física e psicologicamente, o que impacta negativamente na sua saúde mental (Robazzi et al, 2020).
Além disso, o conflito família-trabalho também surge como fator que provoca o desfecho do sofrimento psicológico (Besouchet & Freitas, 2022), respondendo a 5% da análise. A literatura evidencia a pertinência do gênero para a análise dessa interação. Cabe aqui fazer a ressalva de que, nesse estudo, os resultados não indicaram associação entre o gênero e o sofrimento psíquico, mas o público foi predominantemente feminino. Allen e Finkelstein (2014) identificaram que mulheres tendem a perceber maior influência da família no trabalho.
Ainda, Fujimura et al. (2014) reforçam que mulheres casadas e com filhos seriam mais propensas a desenvolverem um conflito família-trabalho, especialmente quando mais maduras, com uma ocupação que exige carga horária excessiva e redução nas horas de sono. Tais particularidades também se fizeram presentes majoritariamente na amostra desse estudo, tanto em termos de características sociodemográficas, quanto em termos de sobrecarga laboral e exaustão em decorrência da pandemia que enfrentaram durante momentos de colapso do sistema de saúde brasileiro (Soares et al., 2022; Teixeira et al., 2020)
Coloca-se a possibilidade de que a pandemia tenha contribuído para o sofrimento psíquico e o agravamento de sintomas existentes por conta do cotidiano que ela impôs aos sujeitos, permeado por sentimentos de medo, ansiedade e maior isolamento social, sabidamente riscos que agudizam quadros de adoecimento mental, inclusive em carreiras cuja responsabilidade é voltada ao cuidado dos sujeitos (Duarte et al., 2020; Kavoor, 2020; Leach et al., 2021; Parrish, 2020).
Considerações Finais
Os resultados obtidos por esse estudo revelaram que ter maior conflito (trabalho-família ou família-trabalho), ter experienciado assédio moral no trabalho e ter tido diagnóstico psiquiátrico ou psicológico anterior à pandemia explicaram quase 38% da variância (aumento) do sofrimento psicológico em profissionais que atuaram na saúde pública durante a pandemia. Portanto, esses fatores de riscos psicossociais no trabalho devem ser considerados no planejamento de intervenções voltadas para a promoção da saúde mental no grupo em foco.
A variável de maior impacto e, portanto, de maior contribuição para a explicação do aumento do sofrimento psicológico foi o conflito trabalho família. Esse fator está presente quando as pressões laborais e familiares são incompatíveis, e é um fenômeno complexo e influenciado pelo tempo dedicado ao trabalho, pela tensão das necessidades e expectativas comportamentais demandadas pela família. Nesse sentido, destaca-se que fornecer um suporte à família desse grupo de trabalhadores se fez uma questão premente na pandemia, sobretudo no período inicial, já que antes do desenvolvimento das vacinas, muitos desses profissionais tiveram que se afastar das suas famílias pelo medo de contaminação.
Como limitações do estudo, salienta-se que ele foi desenvolvido durante diferentes momentos da pandemia (contemplado período anterior e posterior ao início da vacinação) e com diferentes atividades laborais, o que pode ter influenciado nos seus resultados devido a inclusão de variáveis de confusão. Além disso, a proposta do estudo previu a identificação de múltiplos conjuntos de variáveis, inclusive de diferentes ordens e níveis, mas por outro lado pode ter deixado de considerar possíveis interações entre algumas variáveis no modelo apresentado. Como agenda de pesquisa, sugere-se a realização de estudos qualitativos e longitudinais sobre as experiências vivenciadas na linha de frente, que possam aprofundar mais sobre os fatores de riscos psicossociais identificados na pandemia e os seus impactos ao longo do tempo.