As tarefas de cuidado, historicamente tratadas como da vida privada, delegadas a mulheres do âmbito familiar e com forte carga geracional (Sorj & Fontes, 2012), ganham, no mundo contemporâneo, importantes contornos de necessidade e urgência, considerando o incremento de demandas sociais relacionadas ao envelhecimento da população e as transformações familiares (Carrasco et al. 2011; Santos et al., 2022).
Apesar da crescente participação e permanência feminina no mercado de trabalho, ou seja, fora do lar, compreende-se que as práticas de cuidado com pessoas seguem primordialmente atinente às mulheres (Guimarães & Hirata, 2020b; Robles Silva, 2001). Nessa direção, dois fenômenos se manifestam concomitantes e desafiadores entre si: uma demanda continuada de cuidados para a população idosa e/ou dependente, e, por outro lado, uma escassez de pessoas da família (mulheres) para lidar com tais demandas.
Para dar conta da situação, no contexto brasileiro, as famílias (em específico de classes médias e abastadas) buscam alocar sua demanda de cuidados e demais tarefas domésticas sob a égide do mercado (Debert & Pulhez, 2019). A profissão de cuidadora de idosos, portanto, apresenta-se em plena expansão1, apesar de sua recente emergência e consagração na linguagem cotidiana (Guimarães, 2020), com uma construção ocupacional que vem tendo como base buscas por reconhecimento dessa categoria e pela delimitação de fronteiras com demais profissões correlatas.
Inserido nessa realidade social, o presente estudo busca se aproximar das trajetórias - de vida e trabalho - de mulheres que atuam profissionalmente como cuidadoras de pessoas de idosas. Tendo como base as narrativas de si trazidas pelas participantes, busca-se refletir sobre as diferentes posições identitárias que elas assumem nas situações que vivenciam, constantemente construindo, reconstruindo e ressignificando sua identidade enquanto “eu-cuidadora”. As diversas posições de si mesmas engendradas pelas cuidadoras (as chamadas I-positions) utilizam como perspectiva de análise o conceito de self dialógico, pressupõe uma constante organização e reorganização subjetiva mediada por interações com outros, pelo ambiente e pela cultura (Lopes de Oliveira, 2013).
A ideia de que esse posicionamentos de si organizam uma noção de si no mundo se afilia à ideia de self dialógico. O conceito de Self Dialógico, de Hubert J. Hermans, é tomado por Valsiner para explorar a relação do sujeito com seu contexto. O self dialógico é formado a partir das interações da pessoa com seu meio, em uma perspectiva dialógica, relacional, dinâmica e plural, e constitui um senso geral para lidar com as diversas experiências de vida. O self dialógico, no entanto, não é uma identidade completamente estável e coerente, ele abarca conflitos e contradições em um equilíbrio dinâmico na medida em que as diferentes relações e ambientes de inserção do sujeito demandam dele modos de ser e de agir distintos. Assim, o <underline>self</underline> dialógico é um self multifacetado e descentralizado, constituído por diversas “partes”, posições ou papéis sociais, que interagem sistemicamente entre si, e que tem como função responder adequadamente às diferentes negociações com o contexto cultural a partir das experiências concretas de vida (Freire & Branco, 2016; Valsiner, 2012). Dessa forma, “eucuidadora” pode ser entendido como um conceito que não se reduz a uma lógica estática e determinista, e sim a uma construção dinâmica e contraditória de repertórios, práticas e interações com outras dimensões e expectativas de vida das participantes (Germano & Bessa, 2010).
Método
O presente estudo possui um delineamento de pesquisa do tipo qualitativo, uma vez que busca explorar, compreender e refletir sobre significados que indivíduos ou coletividades conferem a determinados problemas sociais ou humanos (Creswell, 2021). A pesquisa qualitativa supõe uma concepção de realidade que não é homogênea e objetiva, e sim subjetiva, histórica, carregada de diferenciações (González Rey, 2002). Nessa direção, optou-se pelo uso de entrevistas narrativas de caráter biográfico (Flick, 2012), a serem analisadas posteriormente através de metodologia de análise discursiva, afiliada à análise crítica do discurso (ACD) (Van-Dijk, 2017). Dentre os preceitos de sua utilização, podemos destacar que a ACD se enfoca em estudar questões sociais e políticas, ademais uma análise pura de estruturas discursivas; possui uma abordagem crítica de análises sob problemáticas sociais; faz uso de abordagem multidisciplinar; busca discorrer sobre como as estruturas discursivas representam, legitimam, reproduzem ou desafiam relações pré-estabelecidas de poder ou dominação em nosso contexto social (Van-Dijk, 2017).
Participantes
As participantes do estudo foram oito mulheres cuidadoras de idosos provenientes da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e de sua região metropolitana. As cuidadoras se identificaram enquanto pretas ou pardas (cinco participantes) ou brancas (três participantes). O contrato de trabalho das participantes ocorria, majoritariamente, de maneira informal -acordo verbal -, com exigência para metade das participantes de contratação via Microempreendedor Individual (MEI).
A idade médias das participantes foi de 42 anos (entre 28 e 57 anos), com tempo de experiência entre um e dez anos e com média de atuação profissional de 3,5 anos. O grau de formação das participantes foi abrangente, entre nível fundamental incompleto e o superior completo. Dentre as participantes, cinco delas já haviam concluído o curso profissionalizante de cuidado a pessoas idosas. A Tabela 1 apresenta uma tabela-resumo sobre as informações sociodemográficas das participantes.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
Foram realizadas, ao todo, 13 entrevistas abertas ou não-estruturadas, que ocorreram por videochamada ou ligação telefônica (em caso de indisponibilidade de rede)2. Todas as participantes foram convidadas para uma segunda entrevista, com o objetivo de ampliar as narrativas, e o convite foi aceito por cinco delas. As entrevistas tiveram durações singulares, variando entre 30 minutos e duas horas e foram gravadas digitalmente para transcrição posterior. O estudo recebeu aprovação prévia do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e as participantes foram convidadas a participar da pesquisa, consolidando seu aceite mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Tabela 1 Informações sociodemográficas das participantes
Participante* | Idade | Cor/Raça | Escolaridade | Curso | Experiência (meses) | Contrato de Trabalho |
---|---|---|---|---|---|---|
Adriana | 43 | Preta | Fundamental Completo | Sim | 18 | MEI |
Aline | 40 | Preta | Médio Completo | Sim | 120 | MEI |
Antônia | 57 | Branca | Médio Completo | Não | 12 | Informal |
Fernanda | 28 | Preta | Médio Completo | Sim | 12 | Informal |
Francisca | 54 | Parda | Superior Completo | Sim | 60 | Informal ou MEI |
Juliana | 28 | Branca | Fundamental Incompleto | Não | 72 | Informal ou MEI |
Márcia | 45 | Branca | Técnico Completo | Sim | 36 | Informal |
Sandra | 42 | Parda | Fundamental Completo | Não | 15 | CTPS |
Nota. *As participantes receberam nomes fictícios
Resultados e Discussão
O curso da pesquisa e a análise do material dela advindo basearam-se na pergunta norteadora do projeto de pesquisa: “Quais as trajetórias pessoais e ocupacionais de mulheres cuidadoras de idosos e como elas interpretam seus fazeres e trajetórias?”. Partindo da questão, os procedimentos empíricos ou trabalhos de campo, originando as categorias de análise que serão apresentadas e discutidas a seguir: 1) trajetórias e identidades de cuidadoras de pessoas idosas - construções, negociações e ressignificações de si, de suas famílias e de seu meio social; 2) sentidos, precarizações e reconhecimentos na profissão-cuidadora.
Histórias Distintas, Trajetórias Confluentes
As trajetórias profissionais das entrevistadas, ainda que se distanciem e se diferenciem entre si, permitem a extrapolação para um possível fio condutor comum: seus trabalhos anteriores se sustentavam por meio da interação com outros. São funções que podem ser entendidas como trocas e interações com o outro e a prestação de determinado serviço (Soares, 2012). Seja na função de Antônia, que atuou como motorista por 30 anos e que precisava levar alguém a algum lugar; ou para Adriana e Aline, atuando como cabeleireiras; ou mesmo para Fernanda, vendedora, que precisava que alguém comprasse aquilo que ela tinha para vender nos comércios onde atuou.
Soares (2012) aproxima o trabalho de cuidado com os demaistrabalhos em serviços, ou como denomina, “múltiplas formas de trabalho terciário” (p. 44), pois há a criação e manutenção de interações que são específicas e adaptadas ao contexto, principalmente entre a trabalhadora/prestadora do serviço e quem recebe ou para quem se produz determinado serviço. Nessa concepção, ao pensarmos no comércio, a performance acionada e as interações que Fernanda desempenharia ao trabalhar em uma loja de artigos infantis, se diferenciariam de sua atuação em uma loja de moda masculina, por exemplo. Essa especificidade define não somente o caráter relacional destas profissões, mas também suas características enquanto trabalhos emocionais, termo cunhado por Arlie Hochschild (2003). Assim, “nas atividades de serviços, na venda, no turismo etc., as interações que visam “modelar” as emoções passam por prescrições e “scripts comunicacionais” cuidadosamente controlados” (Molinier & Paperman, 2015, p. 52).
Além desse fio condutor dos trabalhos terciários, são destacadas as experiências profissionais pregressas das participantes que se aproximavam, diretamente, do trabalho de cuidado. Juliana, cuidadora há seis anos, relata:
Meu primeiro salário foi 50 reais [...] Eu tinha 12 anos. [...] E eu dava o melhor de mim pra ter aquele dinheirinho, pra ter as minhas coisinhas. E nem sabia fazer as coisas direito... eu deixava de brincar... [... ] E ela [contratante] dizia: “vamos brincar, vai brincando e vai limpando”. [... ] Aí peguei trabalho com uma orientadora da escola, fui cuidar dos filhos. [Ela disse:] “ah, fiquei sabendo que tu cuida”. A mulher era muito braba, as crianças muito danadas. [...] Durei nem um mês, era muita coisa pra fazer e eu era muito criança, não consegui... tinha que fazer comida... eu queimei os negócios lá. Porque é assim, [pra] quem paga, não interessa se é nova ou não. Eles querem chegar e querem o serviço pronto (Juliana, 28 anos).
A fala de Juliana expõe a sua precoce vinculação a trabalhos de cuidado. Inicialmente, cuidava do lar de outra pessoa em troca de uma remuneração que serviria para si mesma e para a sua família. Depois disso, passou a cuidar do lar e de crianças, necessitando dar conta do trabalho independentemente de sua idade ou de seus compromissos com a escola3. Batista e Bandeira (2015) destacam que as mulheres são induzidas desde cedo a interiorizar uma série de características - como feminilidade, afetividade, compaixão, entre outras - sendo incentivadas a pôr em prática técnicas de cuidado com outras pessoas desde a infância. Essas constatações amplificam-se na narração de Juliana, tendo em vista que há um embaralhamento entre o brincar e o trabalho, incentivando uma “maior produtividade”.
Assim como exposto por Juliana, parte das entrevistadas também precisaram abdicar dos estudos - temporariamente ou não - para dar conta de demandas profissionais, pessoais ou familiares. Fernanda, por exemplo, conta que trabalhou desde muito cedo. Era incentivada pela família a manter seus estudos, mas em um contexto de grande família e grandes necessidades, precisou optar pelo trabalho. Posteriormente, aos 25 anos, percebeu que “a vida estava passando” e buscou o reingresso na escola. Sua trajetória se aproxima dos estudos sobre trabalho de cuidado, os quais indicam que, assim como o trabalho doméstico, ele se configura como frequente destino de mulheres com baixa escolaridade , normalmente oriundas de contextos periféricos ou de menor nível socioeconômico, com forte aporte de racialização (Brites, 2013; Brites & Picanço, 2014).
A trajetória de Fernanda, que culminou em sua atuação profissional enquanto cuidadora de idosos, também foi atravessada por outro grande ponto de influência: o seu desejo de atuar em profissões da saúde. Ela conta que, quando criança, sonhava em ser médica ou enfermeira; depois de adulta, readequou seu sonho para um curso técnico em enfermagem. As dificuldades em ingressar em um curso técnico que pudesse pagar com o salário que recebia à época, porém, geraram outro ajuste: a Fernanda-técnica precisou se enquadrar no papel de Fernanda-cuidadora.
O desejo de tornar-se parte de algo entendido como “área da saúde” também é relatado por Márcia em sua trajetória. Ela conta que, quando adolescente, planejava: “Um dia eu vou trabalhar no hospital, um dia eu vou ser uma dessas pessoas de branco”. Ela entende ter conseguido realizar este sonho, pois passou anos a fio trabalhando entre as paredes de diversos hospitais, inicialmente como atendente e, posteriormente, como técnica em nutrição. Porém, Márcia percebeu que, apesar do sonho realizado, algo não estava bem.
Ela narra que notou já não se identificar com a função que desempenhava; já não se reconhecia como a Márcia-técnica, pois era responsável por tarefas que lhe causavam mal-estar - por exemplo, coordenar uma equipe e organizar escalas de trabalho -, que a faziam se afastar de características pessoais que ela valorizava em sua atuação. Na sua visão, o real do trabalho enquanto técnica estava submerso em burocracias e procedimentos prescritos, não havia espaço para a criação e para a gama de aspectos relacionais.
Em um momento de esgotamento, já incapaz de lidar com o real da atividade (Lima, 2012), surgiu a Márcia-cuidadora: voltou-se para o que considerava o cerne do trabalho “na área da saúde”, ou seja, o atendimento e o contato direto com pacientes; acionou preferências construídas ao longo de sua vida profissional, resgatando a carga emocional que o cuidado a pessoas idosas carrega em sua trajetória, imbricando sua vida privada e profissional (Molinier & Paperman, 2015):
[Ser cuidadora] é tudo aquilo que eu pude dar muito pouco pra minha avó. Eu não cuidei tão bem dela quanto ela deveria. [... ] Eu era bem nova, mas todo mundo diz que às vezes eu respondia, eu era um pouco rebelde, [eu dizia:] “ah, eu não quero ir agora”. [...] Então eu posso tentar acertar, entendeu? Por isso que eu gosto muito de pessoas de idade e trabalho com eles. (Márcia, 45 anos)
Márcia reflete sobre o cuidado familiar que lhe era designado na adolescência, algo recorrentemente entendido como uma atividade direcionada às mulheres da família, com forte componente geracional e que pressupõe uma dedicação de caráter sacrificial (Araújo, 2019). À época, as responsabilidades de cuidado atreladas a ela foram aceitas à revelia, sem a dedicação que hoje ela compreende como inerente ao cuidado enquanto trabalho. Ao buscar ressignificar seu passado, ela tentar acertar onde pensa ter errado. A postura de Márcia nos aproxima do conceito de reciprocidade indireta, trazido por Araújo (2019). A autora reflete sobre os impulsos de dedicação para com o outro que são acionados no trabalho de cuidado, gerando vínculos emocionais e sentimentos de obrigação baseados em relações prévias (cuidar como se cuidaria de um familiar) ou de como relações devem ou deveriam se suceder (por exemplo, uma cuidadora que cuida como gostaria de ser cuidada na velhice).
A concepção do cuidado - seja profissional ou familiar - enquanto algo que pertence intrinsicamente a mulheres é algo que também atravessa a trajetória de Aline. Ela narra que apreendeu o seu primeiro ofício, como cabeleireira, junto à mãe e às irmãs, afinal, era “algo de família”. Já adulta, seguiu cuidando de cabelos - e das clientes, como ela conta - e passou a ser acionada para outro tipo de cuidado: se algum familiar ou amigo estivesse precisando de cuidados, era ela quem assumia este papel. Conta ter acompanhado diversas internações hospitalares, sempre “na parceria”.
Apesar de não declarar um ou outro motivo que possam ter influenciado a sua atuação, é possível inferir que, por ter uma rotina de trabalho mais flexível como cabeleireira e, principalmente, por ser a única das irmãs que não possuía filhos, passou a ser percebida como a mais disponível para cuidar de outros. Seu direcionamento ao cuidado, portanto, pode ser entendido sob a luz das reflexões de Robles Silva (2001): ainda que as mulheres sejam ‘preferidas’ como cuidadoras, há uma seleção entre as várias ‘opções disponíveis’. Essa preferência é acompanhada por circunstâncias - aspectos contextuais que permitem ou exoneram alguns membros da família para assumir a responsabilidade. Questões como rotina ou local de trabalho, local de residência, estado civil, grau de responsabilidade demonstrada e, principalmente, não ter filhos pequenos: estes seriam elementos do meio social que intervêm na dita designação enquanto cuidadora (Robles Silva, 2001). Aline, portanto, ao assumir o papel não-remunerado de cuidadora a ela delegado, passa a ressignificá-lo, transformando-o em uma profissão e em uma carreira. Em 10 anos de trajetória, Aline-cuidadora, agora profissional e remunerada, orgulha-se de sua agenda cheia, sua notável rede de indicações e de sua atuação pautada em técnicas. Ela transmutou uma obrigação generificada (Araújo et al., 2021) em profissão.
A estreita ligação entre trabalhos “de família”, portanto, também faz parte da trajetória de Adriana. Irmã mais velha de Aline, começou sua trajetória profissional da mesma forma, como cabeleireira. Porém, sua vivência com cuidados a idosos começou mais cedo: no fim da adolescência, passou a morar - e cuidar - de seu avô. Foi nessa época em que começou a lidar com práticas que agora fazem parte de seu dia a dia.
Ainda que seu avô a incentivasse - “Ele dizia: guria, tu tem o dom, tu tem a paciência” - Adriana não seguiu uma trajetória de trabalhos de cuidado propriamente ditos. Ao ter seu primeiro filho, conta que decidiu que trabalharia como cabeleireira, pois era algo que poderia fazer em sua própria casa, afinal, não desejava que seu filho fosse cuidado por outra pessoa. A identidade Adriana-cuidadora, portanto, só surgiu recentemente, com uma crise financeira familiar. Incentivada pelas irmãs - uma cuidadora e outra técnica em enfermagem - formou-se em curso profissionalizante e passou a atuar diariamente na casa de um paciente fixo. Ser cuidadora profissional lhe permite uma prerrogativa que outros trabalhos fora de casa talvez não comportassem: Adriana leva seu filho mais novo para lhe acompanhar no trabalho. Assim, cuida do idoso e cuida de seu filho, garantindo que ele não precise ser cuidado por outras pessoas, em um arranjo (Hochschild, 2019) encontrado para a complementação de papéis e a manutenção de sua posição de cuidado na família.
Para Antônia, o cuidado profissional atravessou a sua trajetória de forma inesperada e por meio de um convite. Com orgulho, ela narra sua trajetória como motorista: “Eu era um passarinho, andava com um, com outro... passava o dia na rua”. Ela conta que seu pai, já idoso, é cuidado integralmente por sua irmã, visto que ela não teria como incluir tal demanda em sua rotina de trabalho como motorista ou, como citado anteriormente, não se encaixaria como a mulher ‘mais disponível’ da família (Robles Silva, 2001). Apesar disso, a oportunidade lhe chamou a atenção:
[Pensei] acho que eu vou largar essa vida [de motorista]. Tá muito perigosa. [...] Consegui 4 hérnias de disco. Ficava muito tempo dentro do carro esperando. [...] E essa minha amiga foi quem me disse: “Antônia, aproveita a oportunidade, quem sabe tu larga o trânsito? Tu tá quase se aposentando.” Pensando por esse lado, assim... minha saúde, perigoso do jeito que tá... então eu vou parar por aqui mesmo (Antônia, 57 anos).
Presente no discurso de Antônia, a voz de sua amiga lhe indica tanto a nova profissão quanto o novo local de trabalho, ou seja, a possibilidade de uma nova construção de si. A identidade cuidadora, portanto, surge como uma forma de proteger a si mesma e cuidar da sua saúde. Conforme trazido por Lima (2012), nos aportes teóricos da Psicodinâmica do Trabalho: o trabalho é capaz de transformar (ou em uma terminologia mais apropriada às narrativas das entrevistadas, organizar e reorganizar as experiências subjetivas) do indivíduo e, citando Molinier, Laugier e Paperman (2009), conclui: “nós não nascemos cuidadores, nós nos tornamos. E nós nos tornamos pelo trabalho” (Lima, 2012, p. 210).
Eu Sou Cuidadora
Conforme citado anteriormente, as cuidadoras entrevistadas relacionam o trabalho de cuidado profissional com uma série de traços ou características que possuem ou que devem possuir. Essas particularidades podem ser traços de personalidade, aptidões ou capacidades; apreendidas no decorrer de sua trajetória ou até mesmo inatas. Esta seção busca, portanto, discorrer sobre as características ou atributos que, na concepção das participantes, definem o que é ser uma cuidadora de pessoas idosas. Ainda, buscamos explorar como esse agrupamento de atributos pode simbolizar o que é necessário para ser uma “boa cuidadora”.
Isso é uma coisa que vem de ti. De tu gostar do próximo, de gostar de interagir. De tu ser humana, de tu se colocar no lugar das pessoas [...] Tu tem que ter empatia (Márcia, 45 anos).
A fala de Márcia ilustra uma habilidade social que esteve presente de forma massiva no discurso das participantes. Francisca, por exemplo, ao me encaminhar via mensagem do aplicativo WhatsApp uma série de atributos que ela relaciona como imprescindíveis para uma cuidadora, ela enfatiza: “O principal é a empatia”. A empatia, ou a capacidade de ser empático, é apontada pela literatura especializada como uma resposta emocional, que implica a capacidade de perceber a situação/estado de outra pessoa, experenciando sentimentos de compaixão e de atenção para com o bem-estar de outras pessoas (Cecconello & Koller, 2000).
Tais aspectos afetivos da empatia se relacionam diretamente a pressupostos atrelados ao cuidado, seja ele profissional ou familiar. De maneira semelhante à definição de empatia, Araújo (2019) compreende que o trabalho de cuidado implica em uma inevitável responsabilidade com a vida e o bem-estar do outro. A empatia e o senso de responsabilidade, entretanto, por vezes podem se confundir com ideais de abnegação ao trabalho ou senso de sacrifício, aproximando o trabalho de cuidado de uma “moral de bons sentimentos” (Molinier, 2012) ou de um espaço de criação de noções de si e do outro que são conflitantes e ambíguas (Lopes de Oliveira, 2013).
As participantes também trazem em suas narrativas apontamentos sobre um suposto dom ou instinto. Essas habilidades inatas, portanto, seriam capazes de separar aquelas que “servem” para ser cuidadoras daquelas que não servem? Discussões sobre as ambivalências entre o “dom” e a “profissionalização” do trabalho de cuidado foram temas centrais da tese de Amanda Marques de Oliveira (2015). Em seu estudo, compreendeu que as crescentes tentativas de maior profissionalização da profissão cuidadora buscam desacoplar o cuidado de seu componente de gênero, afastando-o de uma compreensão de uma práxis naturalmente desempenhada por mulheres, baseada em amor e vocação inata (Guimarães & Hirata, 2020a).
Já com relação às características pessoais imprescindíveis que afastariam o trabalho de cuidado do “dom”, aproximando-o da profissão, as participantes narram uma série de atributos que já foram acionados ou que precisam ser mais bem lapidados em sua prática profissional.
Ser cuidadora de idoso é que nem quando tu trabalhas numa empresa, se tu tá trabalhando com uma máquina, tu tem que aprender a usar aquela máquina. Tu tá trabalhando com o idoso, tu tem que aprender como lidar com ele. Aprender a doença que ele tem, ler bastante, pesquisar... pra saber como lidar com ele. Se é pra fazer, tu tem que fazer bem feito. Não fazer “à moda louca”. (Aline, 40 anos).
A fala de Aline ressalta os aspectos profissionais de atuação. Ela nos coloca que seu trabalho não se baseia em fazer “à moda louca”, ou seja, para que o trabalho de cuidado seja bem-feito, é necessário preparação, estudo e dedicação. A postura de Aline pode ser compreendida sob o “dogma da especialização profissional” (Debert & Pulhez, 2019), buscando um afastamento dos modelos familiares de cuidado, repelindo parte da carga afetiva e relacional da sua atuação e associando-se à aplicação e técnicas e saberes, o que pode ser entendida como uma forma de resistência a explorações no trabalho (Araújo, 2019).
Com relação às ambiguidades entre o familiar e o profissional, o afetivo e o técnico, é essencial citar os dilemas de Adriana. Ela narra que seu paciente fixo - e consequentemente a família deste - possuem modos de agir e conceitos sobre o mundo muito distintos dos seus. Ela conta ter optado por forjar uma nova postura no ambiente de trabalho, ou uma nova posição de si mesma, calcada no profissionalismo:
Eu escolhi que eu estou lá durante a semana, eu não uso maquiagem, eu não uso esmalte. Claro, eu uso creme, eu uso um pouquinho de perfume, né? Porque isso eles não têm como ver. Mas tudo que vai agredir a cultura deles, eu evito. Aí uma amiga minha disse assim: “ah, mas é o teu direito se arrumar”. E eu disse: “exatamente, só que às vezes pra não arrumar uma complicação, tu tem que abrir mão do teu direito”. Eu não vou deixar de fazer isso no final de semana, quando eu tô em casa, né. Mas lá? Que é o meu local de trabalho? [...] Então eu pensei: é melhor eu me abster, abrir mão do meu direito. (Adriana, 43 anos, grifo nosso)
O trabalho de cuidado, carregado de aspectos relacionais e de atravessamentos entre o pessoal e o profissional (Molinier, 2012), nos invoca a refletir o quanto um suposto profissionalismo ou neutralidade são, de fato, alcançáveis. Ainda, quais as consequências de renunciar a seus gostos, preferências e modos de ser? Cabe refletir também se gostos pessoais ou a aparência física de uma cuidadora podem, de fato, denotar uma “má cuidadora”. Suzana Lima (2012), em uma análise baseada na Psicodinâmica do Trabalho sobre o cuidado remunerado, apreendeu o uso de estratégias defensivas (coletivas e individuais) empregadas por cuidadoras. Essas estratégias buscavam dar conta do real do trabalho e, entre elas, destaca-se o uso do silêncio. Assim como para Adriana, silenciar-se pode ser visto como uma proteção a si mesma, mas também como uma forma imobilização frente ao real da atividade. De maneira semelhante, ao versar sobre “direitos”, Adriana nos relembra que o trabalho de cuidado - semelhante ao que ocorre com o trabalho doméstico - não diz respeito somente a (ausência) direitos trabalhistas ou jurídicos; versa sobre modos de ser e papéis sociais que estão sujeitos a padronizações e normalizações baseadas em relações de poder sob uma lógica de colonialidade (Cordenonsi Bonez & Brites, 2020).
Precarizações Próprias e Reconhecimentos Possíveis?
Dando prosseguimento às reflexões sobre as especificidades do trabalho de cuidado, é preciso discutir a precarização histórica e atual desta profissão, assim como os caminhos para um possível reconhecimento profissional -seja ele interno ou externo. A “profissão cuidadora” pode ser entendida como pertencente a um nicho perpassado por altos níveis de precariedade, desproteção no âmbito de garantias trabalhistas e permeado por desvalorização social atrelada ao trabalho (Araújo et al., 2021). Lopes (2021, p. 25), por sua vez, postula: “a precarização pode ser definida como um processo de avanço da instabilidade, com perda de direitos trabalhistas, baixo assalariamento, fragmentação, intermitência e insegurança (Ramalho & Santos, 2016). No caso das mulheres, um traço marcante da precarização é a informalidade”. Para Hirata (2020a), o trabalho de cuidado se caracteriza como largamente precário, sob baixa remuneração e atrelado a pouco reconhecimento e valorização.
Nós cuidadoras, a maioria, estamos numa situação que a gente não pode escolher. Mas também, não vamos trabalhar por mixaria. Isso tem gerado até muitas discussões entre cuidadoras. [...] Porque muita cuidadora não quer tá fazendo aquilo ali, mas ela precisa. Ela tem uma família em casa que ela precisa sustentar, então ela acaba fazendo (Fernanda, 28 anos).
Fernanda narra em sua fala a percepção de uma crescente precarização do seu trabalho e a inexistência de uma posição de escolha de determinados contextos, dando lugar à necessidade de submissão a atividades que não gostaria de realizar, visando garantir o seu sustento. Inicialmente, ela se coloca no discurso (nós-cuidadoras) e, em seguida, assume uma posição de distanciamento daquela realidade posta (ela-cuidadora). Essa alternância de posições pode ser compreendida sob o viés da dialogicidade: “ao se expressar, o sujeito coloca-se simultaneamente em relação com o outro, com o contexto e consigo mesmo, em um processo que favorece sua compreensão dos eventos vividos e a construção de conhecimentos e significados acerca de suas experiências pessoais” (de Araújo et al., 2017, p. 04); se colocando e se retirando de cena. Ao narrar a si mesma e a sua história, Fernanda agrega sentido, organiza sua subjetividade e constrói sensos de identidade (Lopes de Oliveira, 2006).
Por sua vez, precarização a qual Fernanda se refere traz importantes reflexos nas narrativas das participantes. As participantes trazem pontos consoantes com a literatura da temática (Araújo et al, 2021; Guimarães & Hirata, 2020c), como a ausência de contratos formais de trabalho (por exemplo, carteira de trabalho assinada), a sobressalência de contratos em formato de plantões (por conjunto de horas trabalhadas, sem respaldo), longas jornadas de trabalho (sem definição de limite de horas ou horários de descanso) e, principalmente, a percepção de diminuição do valor ofertado aos serviços que desempenham - conforme apontam Guimarães e Hirata (2020c), em contexto de retração econômica ou ‘crises’, as oportunidades de emprego de cuidado seguem existindo, o que se transforma é a condição de trabalho das cuidadoras e os “abusos” (p. 253) por parte dos contratantes. Fernanda, ao concluir sua reflexão anterior coloca:
Aí chega uma outra cuidadora, que tá numa situação pior do que a tua, que aceita fazer aquele plantão por, literalmente, uma mixaria. Aí dentro da área, tem essa desvalorização. E como que tu vai manejar isso? Como que tu vai fazer? (Fernanda, 28 anos).
Essas crescentes precarizações afetam primordialmente aquelas em situação mais vulnerável, podendo ser entendidas como uma maneira adicional de desvalorização do trabalho, minando as oportunidades de construção de um coletivo em uma profissão marcada pelo isolamento, sobretudo no contexto domiciliar, e de fragilidade de vínculos, de forma semelhante ao que ocorre com as empregadas domésticas e diaristas (Brites, 2013). Indo ao encontro dessa discussão, Aline coloca: “Como hoje em dia a situação tá tão difícil, as pessoas se submetem...”.
Uma pista para enfrentar a desvalorização e a precarização do trabalho de cuidado estaria implicada ao reconhecimento da profissão. Esse reconhecimento será discutido, inicialmente como um reconhecimento no âmbito formal e regulatório, que é legitimado por meio de instituições e diz respeito à formalização da profissão cuidadora de idosos em termos legislativos. Porém, é de suma importância uma análise do reconhecimento que ocorre no próprio ambiente de atuação, que valoriza o desempenho da atividade de cuidar e as competências acionadas por aquela cuidadora em questão.
O reconhecimento profissional por meio de uma regulação da profissão cuidadora tramitou no Congresso Nacional por cerca de 10 anos. Recentemente, no ano de 2019, o projeto recebeu veto integral do então Presidente da República, sob a justificativa que limitaria o livre exercício profissional. Ainda, o reconhecimento da profissão já esbarrava em nebulosas disputas entre profissionais, contratantes, sindicatos, associações e outros. Por um lado, há a valorização e o incentivo à regulamentação, principalmente por parte de cuidadoras e associações específicas da profissão: reconhecer o trabalho de cuidado enquanto uma profissão regulamentada (a) afastaria a ideia de naturalização da feminilidade e da gratuidade (Guimarães & Hirata, 2020b), (b) demarcaria fronteiras entre as demais profissões de áreas correlatas (Debert & Oliveira, 2015) e (c) valorizaria as profissionais, ‘estimulando a formalização de contratos em vigor’ e instigando à capacitação profissional (Senado Federal, 2018).Por outro lado, as críticas à regulamentação se baseiam em históricas disputas de fronteiras entre campos profissionais: com o Conselho Federal de Enfermagem, que afirma que pessoas idosas devem ser atendidas “por profissionais de saúde qualificados” (Guimarães, 2020, p. 87); com sindicatos e associações de empregadas domésticas, que compreendem que o reconhecimento da profissão enfraqueceria lutas identitárias do grupo como um todo (Araújo et al., 2021); e sobre a própria concepção do trabalho de cuidado, na qual se concebe que a valorização da formação como um critério para qualificar o cuidado estaria acima da experiência prática (Debert & Oliveira, 2015)?
Tais discussões, além de alcançar os mais diversos espaços institucionais e acadêmicos, também fazem parte das trajetórias das participantes; ou seja, se configuram como uma discussão em um contexto macro que afeta o micro (Lopes de Oliveira, 2006), influenciando sua rotina e suas percepções sobre si e sobre o seu trabalho.
O que eu gostaria mesmo é que fosse reconhecida. Sabe? A profissão. Reconhecida mesmo. Às vezes [nós falamos]: “Ah, a gente é cuidadora”, mas não é reconhecida no Brasil a profissão. (Aline, 40 anos, grifo nosso)
Eu acho que falta reconhecimento. O técnico [de enfermagem], ele tem o Conselho, ele tem um retorno. A cuidadora não [tem]. É confundida com empregada. Eu acho que falta um pouco disso por parte das autoridades, não sei quem gerencia isso. [... ] Não somos invisíveis, não estamos aqui só pra limpar (Adriana, 43 anos, grifo nosso).
As falas das participantes destacadas ressaltam a valorização deste reconhecimento formal. A ausência da regulamentação se associa a um apagamento da identidade, evidenciando a luta contra a invisibilidade de si e da profissão, que necessita de respaldo e de uma regulamentação para reforçar a sua existência enquanto cuidadora, com respeito às fronteiras entre o cuidado as demais profissões do lar. De maneira semelhante, as Precarias a la Deriva (2004) discorrem sobre as invisibilidades associadas trabalho de cuidado e ao trabalho doméstico: há a invisibilidade perante um reconhecimento social (socialmente desvalorizados, ou “um emprego de segunda categoria”); a invisibilidade com relação às ausências de direitos e proteções trabalhistas; ou ainda perante à interconexão da invisibilidade do trabalho com a invisibilidade da pessoa que o realiza. Sobre essa última, concluem: “distintas formas de organizar os cuidados denotam diferentes combinações de invisibilidade” (Precarias a la Deriva, 2004, p. 225, tradução nossa). O trabalho de cuidado, na literatura, é associado à presença (Hirata, 2020b). Portanto, é de suma importância elucidar a invisibilidade das trabalhadoras como uma ausência. Para Lopes (2021), a invisibilidade se relaciona diretamente a uma ausência que não necessariamente é física, mas com relação a um sentido social; invisibilizar um indivíduo pode ser entendido como um “olhar através”: “o olhar perpassa o outro, atravessa-o sem o reconhecer” (Lopes, 2021, p. 78).
O reconhecimento profissional que não está ligado a um acordo legal ou legislativo, por sua vez, implica em uma visibilidade ou em uma valorização do trabalho realizado em um nível mais pessoal, ou do micro (Lopes de Oliveira, 2006), podendo ser acionado por múltiplos atores: o paciente, seus familiares, colegas cuidadoras, demais profissionais envolvidos na rotina de cuidado, entre outros.
Eu me sinto bem feliz quando sou reconhecida. Assim, tu sabes que é o teu trabalho, é a tua obrigação... mas é bom receber um elogio, um carinho, uma lembrança (Juliana, 28 anos).
Um dia a irmã dela [paciente] veio aqui passear e viu como ela estava diferente, me agradeceu muito (Sandra, 42 anos).
As falas das participantes ressaltam o apreço ao reconhecimento por parte das instâncias citadas: a valorização se associa ao entendimento de ter desempenhado bem o seu trabalho ou, em outras palavras, estar “cuidando bem”. Conforme discutido anteriormente sobre características que “formam” uma boa cuidadora, também é imprescindível tensionar quais são as características acopladas a um trabalho de cuidado bem-feito, passíveis de valorização por pessoas envolvidas diretamente ou não naquela relação profissional.
Nas falas, podemos apreender um forte componente da afetividade associada ao trabalho de cuidar, associada à dimensão invisível ou imaterial (Batista & Araújo, 2011). Essa forma de reconhecimento pode ser entendida como um “propulsor do cuidado”, em que todo o esforço (visível e principalmente invisível) exercido pela cuidadora é reconhecido por meio do afeto e da admiração (Araújo, 2019). Para Molinier (2012), isso simboliza a face inestimável do trabalho de cuidado: um reconhecimento que não se baseia em construções sociais, mas que opera por meio da gratidão, do encorajamento e da parabenização. Assim, o valor e o sentido do trabalho são conferidos de dentro para fora, sem se inscrever necessariamente nas materialidades do trabalho.
Os anseios de reconhecimento e valorização profissional trazidos pelas participantes em nossos encontros também se fizeram presentes em uma narrativa onírica compartilhada por Adriana. Esse tipo de narração é definida por Imbrizi e Domingues (2021) como “fragmentos de experiências extra(ordinárias) que podem produzir interpelações sobre o lugar social ocupado pelo sonhante e por aquelas pessoas que exercitam a escuta, construindo espaços de partilha sobre imaginários, impressões e afetos” (p. 02). No dia seguinte à nossa primeira entrevista, Adriana compartilhou, por meio de mensagem no aplicativo WhatsApp, a experiência que teve na noite anterior:
Aconteceu algo bem estranho... Essa madrugada sonhei que de alguma forma o pediatra que tratou o meu filho mais velho durante um tempo, o Dr. João Carlos, o Sr. Joca. Leu a tua pesquisa e ficou comovido com os depoimentos, daí ele me chamou para conversar, fomos jantar [...] Daí ele pediu pra contar pra ele também toda minha adaptação e experiência, quando eu comecei a falar, comecei a chorar. Daí ele puxou de dentro do casaco um ramo com lírios e falou que lamentava a situação da maioria das cuidadoras, que não tem reconhecimento e respaldo. Do nada acordei. Que coisa mais estranha (Transcrição de mensagem enviada por Adriana por meio do aplicativo de troca de mensagens WhatsApp).
O sonho de Adriana carrega consigo valiosos pontos de análise dentro de temas já discutidos sobre o trabalho de cuidado e reconhecimento profissional. Em oposição à invisibilidade que ela narra em suas falas, em seu sonho ela é convidada a ser vista e valorizada. A figura responsável por esse reconhecimento, por sua vez, é um médico - uma profissão da saúde com largo legado de reconhecimento - com quem ela possui uma admiração inominável: posteriormente, ela narrou que esse médico foi responsável por salvar a vida de seu filho mais velho em momento de grave adoecimento. Assim, o médico por quem ela nutre profunda estima não somente se encontra disponível para escutá-la; ele a acolhe e a presenteia (reconhece) com flores, acedendo ao seu sofrimento, tornando-se solidário à ausência de reconhecimento e respaldo de sua profissão.
O reconhecimento em formato de sonho por parte de Adriana é simbólico, pois se contrapõe diretamente ao apagamento de si que ela percebe em sua rotina de trabalho. Para Molinier (2012), essa ambivalência de posições pode ser entendida como um “care travado” (p. 37), que ocorre quando o sentido e a qualidade do trabalho desempenhado são colocados em xeque por ausência de valorização (de dentro para fora e de fora para dentro) e por condições insatisfatórias para realização do trabalho (seja o material ou imaterial). O “care travado” de Adriana se desprende em seu sonho, devaneando sobre valorização e reconhecimento - tanto do “eu” cuidadora, quanto do “nós” cuidadoras.
Considerações Finais
O presente estudo buscou discorrer sobre as distintas trajetórias de vida e de trabalho de mulheres cuidadoras de pessoas idosas. Ainda que suas trajetórias sejam perpassadas por uma diversidade de experiências, podemos atribuir um fio condutor comum: os trabalhos de prestação de serviços ou de/com cuidado (Tronto, 1997). Em suas trajetórias, o “eu-cuidadora” pode ter ganhado forma desde a infância ou adolescência; pode ter se moldado por aspirações profissionais voltadas a profissões de cuidado à saúde; pode ter se transformado ou ressignificado após vivências em outras profissões; entre outros.
Independentemente do caminho percorrido, apreendeu-se no discurso das participantes o constante engajamento de características pessoais, acionadas para e pelo trabalho de cuidado. Dentre as características, foi possível perceber a importância da empatia enquanto uma capacidade indispensável para uma consecução adequada do trabalho, semelhante ao apontado pela literatura (Hirata, 2020b). Além disso, discutiu-se as concepções distintas e, muitas vezes, ambíguas sobre o trabalho de cuidado: seria calcado no dom e no instinto? Ou na técnica, neutralidade e profissionalismo? Apesar de não almejarmos alcançar uma resposta a estas perguntas, que se inscrevem em contextos sociais, históricos e pessoais, podemos discorrer que, de maneira semelhante aos achados de Araújo (2019), as cuidadoras com maior nível de formação trazem, em seus relatos, uma maior aproximação com os aspectos técnicos e especializados do trabalho de cuidado. Já para cuidadoras com menos formação, principalmente no que diz respeito à conclusão do curso de cuidadora, narrações atreladas a laços, afetos e um savoir-faire discreto, como define Molinier (2012).
Com relação ao desejo por reconhecimento(s) trazido pelas participantes da pesquisa, discutiu-se a sua aplicação em um nível macro, associado à precarização do trabalho, à necessidade de um reconhecimento formal e regulatório da profissão, assim como às invisibilidades e ausências; por outro lado, refletiu-se sobre o reconhecimento micro, associado à face inestimável (Molinier, 2012) do trabalho, ao “cuidar bem” e que é acreditado por diversos atores engajados nas relações ali estabelecidas.
Apesar da diversidade de experiências e vivências das participantes, compreende-se a presença frequente de ambivalências, contradições e ressignificações associadas ao trabalho de cuidado e a suas identidades enquanto “eucuidadora”. Conforme discutido nesse artigo, o cuidado remunerado encontra-se inscrito em um circuito de presenças e de ausências, atravessado por disposições e características pessoais, emparelhado a uma crescente precarização do trabalho.
Compreende-se a importância da realização de estudos posteriores, mantendo em evidência a presença das profissionais cuidadoras inscritas nas relações de trabalho e de cuidado, que se inserem em um contexto de precarização, desigualdade e ausência de reconhecimento. Ainda, como reflete Molinier (2012), ressalta-se o imperativo constante de tensionarmos os estereótipos sociais e de gênero historicamente atrelados ao trabalho de cuidado, escapando de possíveis homogeneizações de sentimentos e de atitudes prescritas e, outrossim, evitar silenciamentos.