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Revista de Psicologia da UNESP
versão On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.2 Assis dez. 2013
Artigo
O leitor da europa dançando no escuro: acerca da experiência da atividade como política
The reader of zentropa as a dancer in the dark: approaching of the experience of the activity as politics
Jésio ZamboniI
I Universidade Federal do Espírito Santo
RESUMO
A partir de fragmentos de vidas construídas pelo cinema em Europa, O Leitor e Dançando no escuro, desenvolve-se um ensaio crítico acerca da dimensão política da experiência na atividade. Torna-se foco de debate a produção da experiência em meio a calamidades humanas. As relações entre política e arte, história e afetividade, são discutidas por situações de vida e trabalho, nas quais a atividade pode aparecer como experiência política. As proposições sobre psicopatia e dessimbolização, utilizadas para explicar individualmente situações nefastas da experiência humana, são contestadas retomando o pensamento de Hannah Arendt, confrontado com as produções filosóficas de Gilles Deleuze e Michel Foucault.
Palavras-chave: experiência; política; atividade.
ABSTRACT
From fragments of lives builted by the films Zentropa, The Reader and Dancing in the Dark, this critical essay develops an approaching of the political dimension of the experience in the activity. Becomes focus of debate the production of the experience in states of human calamity. The relationships between politics and art, history and affection, are discussed by situations of life and work, in which the activity may appear as political experience. The propositions about psychopathy and desymbolization, used to explain individually nefarious situations of the human experience, are impeached retaking the thought of Hannah Arendt, confronted with the philosophical productions of Gilles Deleuze and Michel Foucault.
Keywords: experience; politics; activity.
– Sabe, dizem que o lobisomem só é lobisomem à noite. À luz do dia, é um ser humano. Não poderei fazê-lo compreender o que faz um homem tornar-se um animal porque você não admite que isto aconteça. (...) Mas, a culpa é sua também. A ponte seria fácil para você. – Fácil? – Nada lhe aconteceria. – E as pessoas no trem? – Quem? Todos neste trem passaram pela guerra como eu. Você não pode se comparar conosco. Todos aqui já mataram ou traíram, direta ou indiretamente, muitas vezes, só para sobreviver. Olhe nos olhos delas e verá. – Kate, está falando de um crime terrível. – Mas você é o único criminoso. – Eu não fiz nada. Não estou colaborando com ninguém. – Exatamente. (Jensen, Christensen, & Trier, 1991).
Ao encontrar sua amada esposa, Katharina (Kate) Hartmann, presa algemada no vagão, Leopold (Leo) Kessler, condutor de carro-leito – responsável pelo atendimento dos passageiros no trem –, procura entender o que está acontecendo, aquilo que lhe é difícil perceber para além do espaço de trabalho, já que abrir as cortinas e parar para olhar através das janelas o que se passa lá fora não é autorizado em seu serviço. Leo, no filme Europa (Jensen et al., 1991), retorna dos Estados Unidos da América para um continente devastado pela Segunda Grande Guerra Mundial, alimentando o sonho de reconstruí-lo com seu trabalho comum. A partir disto, produz-se uma situação em que é pressionado por um grupo nazista a explodir uma bomba no trem em que trabalha para poder salvar Kate, ameaçando suas perspectivas de vida. Ora, o que se tem a aprender de uma conjuntura tão devastadora da experiência humana quanto o nazismo em sua produção nefasta, por meio de uma arte de governar totalitária, produtora do sacrifício das minorias?
– Todos me perguntam o que aprendi nos campos de concentração. Só que os campos não eram terapia. O que acha que eram? Universidades? Não íamos lá para aprender. Isto ficou muito claro para mim. O que está pedindo? Que a perdoe? Ou quer simplesmente tirar um peso da consciência? Um conselho: se está atrás de catarse, vá ao teatro. Por favor, recorra à literatura. Não vá aos campos. Não vai adiantar nada. Nada. (Minghella, Pollack, Gigliotti, Morris, & Daldry, 2008).
Esta é a resposta que Ilana Mather, judia sobrevivente dos campos de concentração nazistas no filme O Leitor (Minghella et al., 2008), oferece a Michael Berg, advogado alemão. Este havia se envolvido amorosamente com uma mulher, Hanna Schmitz, que trabalhou como guarda dos prisioneiros em Auschwitz. Michael é atravessado, nisso que lhe parece mais íntimo e familiar – assim como Leo –, pela história, pela política, pela sociedade em suas diversas questões. Ora, estas dimensões da vida não se apartam, embora historicamente possamos inventar-lhes disjunções exclusivas entre si.
Entretanto, talvez haja algum equívoco em Ilana desconsiderar os campos de concentração como lugares onde se pode aprender algo, onde alguma experiência possa se afirmar, como se houvesse “salvação apenas através da arte. (...) Mas a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas de vida (...), essas desterritorializações positivas, que não irão se reterritorializar na arte, mas que irão, sobretudo, arrastá-la consigo” (Deleuze & Guattari, 1980/1996, pp. 56.57). Afinal, não é a partir desse desastre que, paradoxalmente, Ilana aprende que nada dali se pode aprender? Pode-se aprender algo, construir alguma experiência, em meio ao caos totalitário? Será preciso acompanhar Nietzsche (1886/2005) em sua crítica à crença na oposição de valores para poder afirmar a experiência do mundo, mesmo em suas mais terríveis forças e formas.
De algum modo, é o que Leo se dispõe a viver como problema, voltando à sua terra natal logo após a queda do governo nazista no país; e o que Michael precisa fazer para sair da claudicância em que se encontra encerrado por contradições em seu passado: havia deixado de lado a oportunidade de interferir, durante o julgamento de Hanna, em favor de sua paixão de juventude – o que lhe perseguia por anos a fio como um impasse cuja solução não se avistava. Ao reencontrar Hanna no tribunal como uma criminosa desumana, Michael é tomado pelo silêncio da vida frente à morte e pela angústia de não saber como agir, contrastados com a convicção de Hanna em seu trabalho e a decisão de não revelar-se iletrada às custas de sua condenação. Os sentidos da experiência se desarrumam quando as funções da ação entram em questão. Diante do horror que é o desmantelamento da experiência, resta o incômodo que força a pensar. Aliás, só pensamos porque somos forçados (Deleuze, 1968/2006). Se é isto mesmo, se pensamos ao sermos arrancados do nosso solo habitual, parece ser preciso ainda que se construa algum chão para que se possa saltar para além do que se pode ver, dizer e sentir como sujeito da experiência.
Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pára, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu. (Deleuze & Guattari, 1980/1997a, p. 116).
Selma Ježková, no musical Dançando no escuro (Windeløv, Jensen, & Trier, 2000), corta consecutivamente a sequência do filme que protagoniza a cada vez com uma canção nos momentos mais desesperadores de sua vida. Insistindo em trabalhar mesmo ficando cada vez mais cega e correndo risco de acidentar-se, Selma afirma a vontade de conseguir a cirurgia para que seu filho não fique cego também. Paradoxalmente, quando se vê à beira do caos, sem vislumbre de saída, Selma aterroriza a todos que acompanham o desenrolar de sua história com os cantos pelos quais afirma a força superior da vida em meio às suas desgraças todas. A maneira de afetar-se é crucial ao desenvolvimento do que acontece. Por isto, não nos parece que, ao tratarmos da experiência em termos de superfície afetiva, estejamos negando a profundidade do que se vive em favor de uma volatilidade total do que existe; mas, situando a experiência nessa superfície, que é seu próprio coração, ou antes, sua pele. Tem-se, assim, “a descoberta de que a profundidade não passava de um jogo e de uma dobra da superfície” (Foucault, 1967/2000, p. 44).
E, embora Hannah Arendt denuncie nesta superficialidade o “fim da tradição e o perigo que está em nos tornarmos verdadeiros habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa” (Arendt, 2005/2009, p. 267), há que não se totalizar individualizando esse deserto, já que “precisamente porque sofremos nas condições do deserto é que ainda somos humanos e ainda estamos intactos” (Arendt, 2005/2009, pp. 266-267). Contudo, este paradoxo da integridade pelo sofrimento não nos conduz inevitável e primordialmente a uma compaixão vil e mesquinha, redutora do sofrer a um estímulo de aprendizagem, como a presente na virilidade dos mundos do trabalho exposta por Dejours (1998/2007). Inventa-se a vida no deserto, transformando-o, de maneira a fazê-lo crescer, povoando-o de intensidades, abrindo-o para que tribos diversas nele se cruzem e existam insistindo. “O deserto, a experimentação sobre si mesmo é nossa única identidade, nossa única chance para todas as combinações que nos habitam.” (Deleuze & Parnet, 1977-1996/1998, p. 19).
O abismo totalitário revela-se assim como uma série de contradições que não se podem resolver ignorando-as simplesmente, exterminando-as de uma vez por todas. É preciso encarar, então, que a “história não é experimentação; é apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à história” (Deleuze, 1986/1992, p. 132). É esta tensão entre a vida e a história o que atravessa a relação entre Hanna e Michael, o que Leo procura através das janelas para além dos vagões do trem e o que Selma sustenta por meio das suas danças. Mergulhados em suas atividades de trabalho, Leopold, Hanna e Selma investem aí suas forças e vontades de construir meios de vida e experiência em terras devastadas pelo desmanchamento dos sentidos. O tio de Leo também procurava lhe fazer entender isto.
– Normalmente, não sou de adormecer fácil. Mas, quando ouço o som das rodas sobre os trilhos, fico sonolento e durmo por alguns instantes. E, quando acordo, estou gelado. É assustador. E então vem uma sensação de perder a noção da direção em que vai o trem. Não sei se está indo para frente ou para trás. Ou penso que é para frente e, de repente, parece para trás. Sabe como é? Vou lhe dizer, é muito assustador. – Meu querido tio, o que aconteceu não foi nada demais. O senhor perdeu a noção das coisas por um instante. E foi justamente quando o trem retornou. É fácil explicar. – Jovem Kessler, você é um idiota! (Jensen et al., 1991).
O tio de Leopold sabe que não é possível entender completamente, que o retorno da história não consegue explicar totalmente o que se sente. É que esta vontade de compreender é mesmo inútil e tola. A experiência não se pode reduzir a uma empiria medíocre do vivido. O que está em questão, o que se tem a aprender é vívido e não meramente vivido, e este acento diferenciante é a experimentação que ultrapassa a história. As vidas de Selma, Hanna e Leopold não são redutíveis a qualquer história que se possa contar a respeito deles, sobretudo àquelas que dominam as imagens que lhes são atribuídas socialmente: assassinos frios e crueis.
Vidas como estas são continuamente reduzidas e apagadas em sua multiplicidade por conta de um diagnóstico significante de psicopatia ou ausência de afetividade e sociabilidade congênitos, o que explicaria de uma vez por todas a origem do mal a ser combatido no indivíduo mau. Os crimes considerados mais nefastos, como o nazismo na Alemanha do século XX, bem como aqueles mais isolados e cotidianizados, como o assassinato de um amigo anfitrião – este é o caso de Selma –, são ainda explicados hegemonicamente por uma visada individualizante, que reduz a dimensão coletiva dos processos a meros efeitos de uma consciência mal intencionada, deformada. A ignorância da conjuntura social que cria condições para regimes totalitários, tal qual a apresentada por Arendt (1949-1973/1998), é efeito desse movimento individualizante.
Mas, mesmo que se reconheça a primazia das relações sociais, econômicas e políticas, pode-se insistir na dicotomia entre social e individual, ignorando que o fascismo é um modo de desejo coletivo e não uma mera ideologia enganadora dos bons cidadãos (Reich, 1933-1942/1988; Deleuze & Guattari, 1972-1973/2010). Paradoxalmente, buscar “o fascismo que está em todos nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (Foucault, 1977/2010c) em indivíduos – ou em grupos ou sociedades individualizadas –, naturalizados e destinados de uma vez por todas, é prosseguir a perspectiva eugenista e genocída que se tem a ilusão de ter sido eliminada com o governo nazista. Os arautos de uma sociedade ordeira e pacífica são os agentes efeitos desse desejo de poder, lutando para que a vida não seja luta, política, mas atividade amputada de si própria – eles povoam os filmes que discutimos aqui.
Mas, o que resta de Selma, de Hanna e de Leopold após suas trágicas mortes, o fim de su’A vida dos homens infames (Foucault, 1977/2003)? Não se pode delas extrair lições de moral, infantilizando – no sentido de calar as múltiplas vozes – nossa capacidade de julgar, ou antes, de avaliar. Não se deve cair na tolice de buscar
"o que o autor quis dizer" e qual o significado moral de cada herói em particular (...), imaginando que a única coisa séria que a criança pode aurir do convívio com a arte é uma ilustração mais ou menos viva dessa ou daquela regra moral. (...) O resultado é um amortecimento sistemático do sentimento estético, sua substituição por um momento moral estranho à estética e daí a natural repugnância que noventa e nove por cento dos alunos que passaram pela escola secundária experimentaram pela literatura clássica (Vygotski, 1926/2010, pp. 324.327.328).
Todas essas histórias – seja na Europa (Jensen et al., 1991) de Leo, seja como O Leitor (Minghella et al., 2008) de Hanna, seja ainda Dançando no Escuro (Windeløv et al., 2000) com Selma –, que tratamos em ensaio por meio de fragmentos, nos auxiliam a pensar o problema da atividade como experiência política. A ausência aqui de sinopses dos filmes abordados visa tanto provocar o leitor deste texto a vê-los fustigado pelos trechos que delineamos quanto sustentar a impossibilidade de uma síntese geral compreensiva das obras de arte em consideração. Com estes pedaços de vida escritos aqui de vidas em pedaços filmografadas, o que se pode ensinar, no sentido de fazer signo para nós – o que não implica necessariamente uma significância ou simbolização ordenantes e fundadoras –, é a construção da experiência. Este processo empírico não se esgota nas coisas dadas ou no vivido, mas insiste como incômodo, deslocamento necessário à invenção e sustentação do deserto, passível de subversão pelo cruzamento das tribos e raças, pelos povos de intensidades à flor da pele.
Neste sentido, tudo se complica quando se evoca o milagre e o perdão como meio de sustentação das políticas da vida, o que acontece em Arendt (2005/2009). Seria mais interessante destacar desses elementos suas dimensões de invenção e esquecimento, como se pode pensar com Deleuze: invenção que não é criação a partir do nada, mas trabalho com restos, pedaços de vida, fragmentos de experiência para deles fazer outra coisa, para construir um meio de ação, um agenciamento coletivo; esquecimento que não é negação do passado e da história, mas a própria traição como fonte de vitalidade da tradição, que se incorpora e esquece para tonificar o corpo para o agir. Desse jeito, o “comportamento não é, em nenhum momento, uma luta que se acalma. Quer dizer que a atividade é uma luta, um conflito.” (Clot, 2006, p. 20). Nossa interpretação e, consequentemente, nossa valoração estão, portanto, em jogo, em luta e, no fundo ou na superfície disso tudo, estão as afecções mundanas com suas variações que não nos deixam ser os mesmos sempre. O paradoxo da tradição se sustenta quando se é lançado a fazer do legado histórico alguma coisa, uma coisa que nunca pode ser, primeiramente, o mesmo, já que
Não é o mesmo que retorna, não é o semelhante que retorna, mas o Mesmo é o retorno daquilo que retorna, isto é, do Diferente (...) [Temos assim] o mesmo ou o semelhante expostos como segunda potência, e por isso mesmo mais potentes, girando, então, em torno da diferença em si mesma. Então, tudo muda efetivamente. (Deleuze, 1968/2006, p. 413).
A tradição oscila, assim, entre religião e pluralidade, entre autoridade e liberdade. A tradição só pode se afirmar e prosseguir, paradoxalmente, como traição – o que se nota quando se observam as transformações no corpo cultural em função das reviravoltas históricas de uma coletividade, das lutas que a fazem derivar e dos sentidos que daí se desenvolvem (Geertz, 1973/2008). Este fio que nos liga e religa, numa repetição incessante, se se torna repetição do mesmo – religação com um transcendente eterno e imutável, com a autoridade da verdade ideal – arrisca sufocar a traição que é necessária ao milagre, à criação e à possibilidade da experiência. Michael pergunta a Hanna, após esta cumprir sua pena na prisão pelo trabalho nos campos de concentração:
– Você pensou muito no passado? – No passado com você? – Não. Eu não quis dizer comigo. – Antes do julgamento, eu não pensava no passado. Nunca tive que pensar. – E agora? O que sente agora? – Não importa o que eu sinto. Não importa o que eu sinto. Os mortos continuam mortos. – Eu não sabia se tinha aprendido alguma coisa. – Pois eu aprendi, menino. Eu aprendi a ler. (Minghella et al., 2008).
Não se trata, aqui, de complacência em relação à Hanna – o que sufocaria o tensionamento que toda experiência encerra em si sendo força sempre plural – como criminosa que aprende a ler; menos ainda da fria constatação totalizante do utilitarismo que nos dessimbolizaria e, pelo qual, tudo o que temos a aprender são técnicas. Todo o drama de Hanna em O Leitor se constrói salientando-se a problemática da leitura como o fio com o qual se tece toda uma vida: amor, crime, vergonha, felicidade, justiça... se tornam questões pela vida por um fio. Prender-se a este diálogo, perdendo de vista o horizonte de experiências em que se situa, é cair na incompreensão, que se atribui ao outro, do mundo que perpassa a própria visão de quem lê. A desimportância do que se sente diante da morte se (des)mente diante da leitura como pretexto que liga Hanna a Michael. Ora, é preciso considerar que uma vida é sempre múltipla e inacabável, que há sempre uma infinidade de problemas e caminhos que nela se entrecruzam.
Quem acompanha alguns trechos da vida de Leopold sabe que não se pode reduzir sua existência – explicando, interpretando ou compreendendo (Deleuze & Guattari, 1972-1973/2010) – à ação terrorista de explodir a bomba no trem de passageiros, já que esta atitude se desenrola num contexto que, embora não o determine nunca completamente, sempre pode lhe sufocar o pensamento. Quem acompanha alguns trechos da vida de Hanna sabe que é o afeto que, antes de sentimento cristalizado na memória, impulsiona a agir e constitui a base sobre a qual se tem que lidar com a problemática política e histórica. Quem acompanha alguns trechos da vida de Selma, sabe que o assassinato do seu amigo por ela própria é muito mais complexo do que se imagina e do que o aparelho jurídico pode compreender, quando ela mesma sustenta a existência do segredo como aliança e amizade, mesmo sendo condenada à morte pelo tribunal que lhe atribui uma história que ela não pode desmentir sem sacrificar a amizade em seu segredo. Seria preciso que tudo se confessasse para exterminar a dicotomia entre público e privado? Esta dicotomia se quebra quando se pode notar a função do segredo na construção coletiva (Deleuze & Guattari, 1980/1996, 1980/1997b). Não é aí o segredo como ordem do íntimo, mas como dobra na superfície que engendra modos de vida próprios, espaços de resistência (Deleuze, 1986/2005).
Todas essas vidas, atravessadas pelo trabalho moderno, nos ensinam que este não é jamais apartado da vitalidade do labor e da ação política. As dimensões do labor, do trabalho e da ação, embora possam se distinguir (Arendt, 1958/2007), constituem dimensões inextrincáveis de uma vida íntegra. Ao se apartarem estas dimensões umas das outras, é justamente aí que reside o adoecer do pensamento e da vitalidade, do trabalho e da ação, da experiência e do saber. A ação política está intrinsecamente conectada ao trabalho e às normas de vida em Hanna Schmitz, seja como guarda de campos de concentração, seja como cobradora de passagens, seja ainda como amante do jovem Michael: isto fica explícito quando se tem a vida em sua integridade diante de nós. O mesmo se passa com Leopold, quando decide ativar a bomba do trem onde trabalha, mesmo após se ver desembaraçado das coerções que lhe obrigariam a tal ato: todas as questões que atravessam sua vida, especialmente pelo trabalho, compõem sua decisão política no momento do trabalho em que suas normas de vida se colocam em questão. E, ainda, Selma, com sua ética fascinante – o segredo que sustenta a pedido do amigo morto pelo revólver em sua mão, apesar da possibilidade de que, corrompendo-o, pudesse salvar-se da condenação à morte; isto em meio ao propósito de salvar seu filho da doença, que a decisão de dar-lhe nascimento necessariamente implicava –, conduz-nos a pensar que seu ato de continuar a trabalhar mesmo arriscando a vida com a progressiva perda da visão e não explicar as razões porque haveria atirado em seu amigo são muito mais que meras tolices, mas a resistência e sustentação de valores quando todas as condições históricas nos conduzem a mediocrizá-los: a amizade e o amor não figuram aí como sentimentos puros a contemplar, mas como ações e valores a produzir e afirmar em jogo numa vida situada. Mais do que diferenciar as dimensões do labor, do trabalho e da ação, o que importa é traçar-lhes as disjunções e seus efeitos de (des)integração da vida.
A vitória do animal laborans jamais teria sido completa se o processo de secularização, a moderna perda da fé como decorrência inevitável da dúvida cartesiana, não houvesse despojado a vida individual da sua imortalidade, ou pelo menos da certeza da imortalidade. A vida individual voltou a ser mortal, tão mortal quanto o fora na antiguidade, e o mundo passou a ser menos estável, menos permanente e, portanto, menos confiável do que o fora na era cristã. (Arendt, 1958/2007, p. 333).
Nesse sentido, a experiência religiosa, atrelada que seria às dimensões da autoridade e da tradição na civilização ocidental (Arendt, 1961-1968/2001; 2005/2009) precisa ser considerada como uma problemática, em vez de se cair nas lamúrias de lamentar seu declínio. Ao nos desvencilharmos de uma ideia de eternidade relativa às formações sociais é que podemos assumir a criação institucional como uma função da multiplicidade coletiva; e, nesse sentido ainda, cabe notar que a discussão sobre a política surge exatamente de sua crise na invenção da democracia na antiguidade grega (Castoriadis, 1986/1987). Mas, é desde o aparecimento da filosofia, possibilitada pelas condições democráticas (Arendt, 2005/2009; Castoriadis, 1986/1987; Deleuze, 1970-1981/2002; Deleuze & Guattari, 1991/1997c), que esta surge como possibilidade de desenvolver a sociedade por um questionamento incessante, uma crítica radical que conecte a maneira de viver ao modo de exercer o poder (Foucault, 2001/2010a, 2008/2010b). É, por aí, que a dimensão de contemplação sempre se apresenta, em relação à dimensão de invenção de conceitos, como um inimigo interno desta, perigo imanente à filosofia como potência de criação (Deleuze & Guattari, 1991/1997c).
Sendo assim, não nos deve escandalizar a imagem do filósofo como um operário dos conceitos (Barros & Zamboni, 2012), nem nos vislumbrar a idealização de um ultrapassamento final da transcendência. Justamente, a transcendência se faz pelos obstáculos, pelas questões e limites que encontramos em nossas práticas, exigindo ultrapassá-las pelas próprias situações. Logo, religar é ligar-se novamente a esse mundo do qual somos incessantemente despojados pelos ideais, sustentar a tradição é promover a traição – não como medíocre trapaça dos que buscam a verdade em tribunais de julgamento, mas como potente traição que consiste em (re)criar as normas de vida (Deleuze, 1985/2007) – e, por fim, a autoridade é a própria autoria, função de invenção coletiva dos meios de existência.
Se não é isto, procede-se à crítica da dessimbolização do mundo, que, na prática, não é nada além de um discurso moralizante que se pretende fundar em verdades incontornáveis do sujeito individualizado – por exemplo, as diferenças geracional e sexual sustentadas por Dufour (2003/2005). E o que se tem como efeito desse tipo de análise, ou antes, de julgamento, já que o a priori segue aí inconteste? Por exemplo, a situação dos transexuais, em seu questionamento das identidades estabelecidas socialmente, é tomada como “um gesto sacrificial que permite ao sujeito se fundar, amputando-se de uma parte dele mesmo.” (Dufour, 2003/2005, p. 101). Ou seja, toda a luta de uma minoria, que não passa sem impasses, é tomada como uma histeria coletiva, num tipo de interpretação psicanalizante totalitária, que pretende compreender, generalizando e homogeneizando, a experiência de outrem a partir de uma visada global explicativa.
Por essa via, se anulam as lutas de Selma – que mesmo condenada à morte, sustenta seu ímpeto ético como valor de cuidado da vida – com explicações que a tomam por uma infeliz figura esquizofrênica dessimbolizada pelo regime capitalista e conduzida à perversão ou à psicotização: nada mais degradante da vida que esta visão. Anula-se ainda a experiência de Hanna, todas as suas revoluções que visam transtornar as contradições em que se encontra em outros paradoxos a viver, tomando-a como envergonhada por não saber ler em eixo explicativo da sua impossibilidade de avaliar o que fez, em vez de se notar que é pelo afeto que se cria em relação que se pode sair disso – ou antes, já se saiu, deixando os juízes emaranhados no próprio problema que inventaram para viver à caça dos culpados em função da expiação das consciências pela culpa. Anula-se, por fim, a experiência de Leopold, significando todas as suas questões, conflitos e tentativas em função da catastrófica decisão final. Ora, é de vida que estamos falando, e nenhuma razão poderá reduzi-las por completo à culpa.
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Recebido: 22 de fevereiro de 2013.
Aprovado: 11 de novembro de 2013.