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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.13 no.2 Assis dez. 2014

 

Artigo

 

Sentidos sobre o uso de drogas construídos por psicólogos: implicações práticas

 

Meanings about use of drugs by psychologists: practical implications

 

 

Ronaldo Rodrigues PiresI, Verônica Morais XimenesII

I,II Universidade Estadual do Ceará

 

 


RESUMO

Tendo em vista os estudos que apontam um processo de estigmatização dos usuários de drogas nos serviços de saúde.e considerando o número cada vez mais significativo de psicólogos na atenção à saúde desse público, percebemos a necessidade de problematizar essa atuação. Tivemos como objetivo compreender como os sentidos sobre o uso de drogas trazem implicações para o direcionamento das práticas psicológicas. Para tanto, utilizamos a pesquisa de metodologia qualitativa, empregando entrevistas com psicólogos que trabalhavam na assistência à saúde de usuários de álcool e outras drogas. Como técnica de análise, utilizamos a Análise de Conteúdo. Os resultados apontam que a atribuição de sentidos, pelos psicólogos, às substâncias como portadoras de um poder sobre o sujeito implicam práticas que visam à abstinência e ao controle das condutas dos usuários.

Palavras-chave: psicólogo(a); drogas; assistência à saúde.


ABSTRACT

Some studies indicate stigmatization process of drug users in healthcare services. Considering the significant number of psychologists who attend this public, we believe it is necessary inquire in to this process. Our objective was to understand how the senses about drug use influences the direction of psychological practices. To aim this. we use qualitative research methodology and have done interviews with psychologists who work in alcohol and other drugs assisting users field. As a technical analysis, we followed the content analysis. The results indicate that the physiologists attribute attribution of negative substances senses, as having power over the subject, imply practices aimed at abstinence and control of users' behaviors.

Keywords: psychologist; drugs; health care.


 

 

Introdução

A assistência aos usuários de álcool e outras drogas tem ganhado destaque nas políticas públicas como resultado do grande impacto que os problemas decorrentes do uso abusivo e da dependência dessas substâncias têm trazido para o nosso cotidiano. O uso de substâncias em locais públicos, o aumento da demanda por assistência à saúde e os crimes que guardam alguma relação com o uso e/ou comércio de drogas têm tornado esse tema relevante para a sociedade. O crack, por exemplo, tem trazido muitas preocupações para a agenda pública, embora tenha havido investimentos suficientes na compreensão dos determinantes que têm feito com que essa droga tenha encontrado espaço na vida dos brasileiros.

Em todo o mundo, tem aumentado consideravelmente a diversidade de substâncias e, associado a elas, percebe-se também um incremento dos riscos e danos. As substâncias estimulantes, em especial, têm chamado a atenção dos pesquisadores como parte desse universo que se tem expandido com suas repercussões sobre a cultura, trazendo preocupação para os gestores da saúde nos diferentes países (Bastos & Bertoni, 2014).

Somente no ano de 2003, foi criado um marco oficial para orientar as políticas brasileiras, quando o reconhecimento dos problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas ganha uma discussão mais ampliada no campo da saúde. Nesse ano, a saúde pública toma oficialmente essa responsabilidade e reconhece, assim, um “atraso histórico” do governo brasileiro na tomada de responsabilidade dessa situação (Brasil, 2003).

Contudo, sabemos que a inclusão de diretrizes e a simples implementação de serviços não geraram automaticamente uma resposta satisfatória e adequada, pois é preciso considerar também que a condição do uso de álcool e de drogas é permeada por preconceitos e mitos. E isso traz implicações importantes na construção de práticas profissionais e modos de atuação que merecem ser pensadas.

Silveira e Ronzani (2011) têm apresentado estudos que apontam os transtornos mentais e o uso de álcool e outras drogas como condições bastante estigmatizadas, tanto entre a população geral como entre profissionais de saúde. Sendo assim, é comum que as pessoas percebam o usuário de álcool e drogas como possuidor de características negativas e lhe atribuam rótulos depreciativos. Dessa forma, percebe-se que esse estigma social associado a esses usuários causa impacto tanto na definição de políticas públicas quanto nas ações de prevenção e tratamento (Amato, Silveira, Oliveira & Ronzani, 2008).

Portanto, um dos desafios das políticas públicas – nessa tentativa de oferecer suporte para pessoas que sofrem com esses problemas – é o de proporcionar cuidados profissionais qualificados e humanizados, uma vez que se constatam despreparo e dificuldade dos diferentes serviços de saúde, em seus diversos níveis, na condução e no acolhimento dessa população. As dificuldades em inserir, durante a formação dos profissionais de saúde, o estudo do fenômeno das drogas em sua complexidade podem indicar a natureza dessa falta de habilidade, forjando espaço para a construção de ações mais próximas da punição e controle em detrimento do cuidado em saúde e do reconhecimento desses usuários como sujeitos de direito.

De acordo com Oliveira, Martins, Richter e Ronzani (2013), esse processo de estigmatização do usuário de substâncias ilícitas é complexo e produzido histórico e culturalmente, tendo em vista que a classificação do que é tido como lícito e ilícito varia ao longo do tempo, de acordo com o que determinadas culturas proíbem ou regulamentam.

A estigmatização pode ser reforçada por valores e ideologias que podem, inclusive, tornarem-se refratários à informação. Dessa maneira, percebe-se que a postura de alguns profissionais de saúde, movida por esses sentidos atribuídos ao uso de álcool e outras drogas, pode gerar discriminação e negligência com relação à assistência que prestam à população, mesmo com a formação que recebem.

No cenário atual, há uma maior inserção do psicólogo nas políticas de saúde e a tendência é de que essa presença se consolide e aumente. Segundo o relatório do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas - CREPOP (2009), o psicólogo é um dos profissionais mais presentes nas equipes de assistência aos usuários de álcool e outras drogas. Por essa razão, sentimos a necessidade de trazer discussões e sistematizar o conhecimento em torno da profissão do psicólogo para o aprimoramento dessa assistência.

Desse modo, o objetivo deste trabalho foi compreender como os sentidos sobre o uso de álcool e outras drogas, construídos por psicólogos que trabalham nos serviços especializados destinados aos usuários de substâncias psicoativas, implicam o direcionamento das práticas de atenção à saúde. Assim, buscamos identificar como esses profissionais pensam o fenômeno do uso de drogas e como esses sentidos se ancoram nas diferentes pressuposições compartilhadas pela cultura. Buscamos, também, compreender o modo como os psicólogos partem desses sentidos e constroem suas práticas de assistência à saúde dos sujeitos.

Para isso, buscamos no conceito de “sentido” uma ferramenta para captar esse fenômeno como constituído na interação social e como expressão da singularidade do sujeito e suas vivências. Entendemos que os sentidos podem ser definidos como a manifestação de nossa maneira singular de assimilar os significados coletivos, que trazem as marcas da realidade histórica e da cultura e que se constroem nessa relação dialética.

O conceito de “sentido”, oriundo da Psicologia Histórico-Cultural, possibilita pensar essa construção sabendo que o homem e sua realidade se fazem numa interação mútua (Vygotsky, 1995). Esse conceito nos ajuda a perceber como a realidade objetiva se converte em realidade subjetiva. Ou seja, como o social se insere na realidade psicológica dos sujeitos e como os sujeitos reproduzem ou transformam essas formas de representar e atuar sobre o mundo (Aguiar, Liebesny, Marchesan & Sanchez, 2009).

Pretendemos, assim, que o conhecimento produzido com este estudo possa iluminar questões que contribuam com o aperfeiçoamento da atuação dos psicólogos nos serviços públicos de saúde, apontando os avanços e recuos que precisam ser avaliados para trazer uma presença da profissão cada vez mais qualificada.

Metodologia

Nossa investigação se dá a partir da perspectiva da pesquisa qualitativa e, por isso, buscamos apoio nas ideias de Bosi (2012), que concebe essa abordagem como um investimento no estudo de processos humanos. Sob essa ótica, o qualitativo é assim percebido como em interface com a subjetividade, pois se interessa por objetos que exigem respostas que não são traduzíveis em números. Ao privilegiarmos as informações obtidas com os sujeitos, buscamos ampliar a compreensão da realidade que estudamos.

A pesquisa foi realizada com psicólogos de dois Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas - CAPS ad e uma Comunidade Terapêutica, credenciada pela rede pública de atenção à saúde de Fortaleza. A escolha desses dois serviços se deu pela posição estratégica que ocupam na Rede de Atenção Psicossocial – RAPS de Fortaleza. O CAPS ad, por ser o equipamento especializado de referência que pretende ofertar cuidados multiprofissionais aos usuários, e as Comunidades Terapêuticas, por terem sido incluídas como um suporte para a demanda de internações, não supridas pelos equipamentos disponíveis.

Foram entrevistadas duas psicólogas que trabalhavam nos CAPS ad e um psicólogo que trabalhava em uma das Comunidades Terapêuticas credenciadas. Os critérios de seleção dos entrevistados foram: sstar trabalhando há mais de um ano nessas instituições e fazer parte das equipes de assistência desses estabelecimentos.

Os participantes foram convidados pessoalmente e/ou por meio dos gestores responsáveis pelo serviço onde trabalhavam. Foram contatadas seis Comunidades Terapêuticas e todas informaram que havia pelo menos um psicólogo trabalhando nelas. Apenas uma das seis CTs disponibilizou o contato com o psicólogo que, por sua vez, se dispôs a participar das entrevistas. Nos seis CAPS ad de Fortaleza, no período de realização da pesquisa, muitos profissionais estavam com seus contratos temporários terminados e estavam sendo desligados por causa da mudança da gestão em Fortaleza. Dos convidados, apenas duas psicólogas encontravam-se presentes e se dispuseram a participar.

Como instrumento de produção das informações, utilizamos a “entrevista individual de profundidade” (Gaskell, 2002), que consiste em um meio capaz de fornecer os dados para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. Ela possibilita uma compreensão mais aprofundada das crenças, atitudes, valores e motivações em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos, o que está condizente que o objetivo deste trabalho. Como técnica de análise das informações produzidas nas entrevistas, utilizamos a proposta da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011). Esse método consiste em uma forma de sistematizar as informações com o objetivo de produzir inferências e interpretações sobre o material analisado.

As entrevistas foram realizadas com os psicólogos em seus locais de trabalho e seguiram um roteiro pré-estabelecido com cinco perguntas que versavam sobre sua trajetória profissional, compreensão sobre o uso de drogas e suas práticas. Elegemos como categorias de análise: substâncias psicoativas, visão sobre o uso de drogas, o usuário e práticas psicológicas desenvolvidas. O estudo foi submetido e aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital São José – CE, com o CAAE: 05716712.9.0000.5044.

Resultados e discussão

Durante o processo de entrevistas, chamou nossa atenção, nas falas dos entrevistados, o destaque dado ao álcool, à maconha, ao crack e ao cigarro. Essas foram as principais substâncias mencionadas, demonstrando o espaço que essas substâncias possuem em suas práticas. Foi realçado o caráter negativo desse uso, embora o cigarro tenha sido destacado como tendo uma “função psíquica” na vida do sujeito. Essa avaliação aparece na fala de uma das entrevistadas, com um tratamento diferenciado, sem grandes preocupações com seu poder de atuação sobre o sujeito:

Eles (os usuários) têm o cigarro como um amigo, um companheiro. Então como é que eles vão deixar aquele companheiro de repente? É uma separação, um processo de luto, eles estão perdendo algo. Então a gente diz assim... Olha vamos diminuir, vamos reduzir (Entrevistada 2).

Essa “função psicológica” atribuída ao cigarro não foi vista na exposição das ideias sobre o álcool e o crack. No que se refere ao álcool, houve destaque no seu potencial danoso e no seu poder sobre os sujeitos, como afirma o Entrevistado 3: “ Eu sempre costumo dizer que o grande problema não são diretamente as outras drogas. O problema é o álcool, é a porta de entrada, é a divulgação em massa que a gente tem” (Entrevistado 3).

Outra entrevistada também corrobora essa compreensão, afirmando uma atribuição negativa à substância e conferindo a ela um poder de despertar no sujeito o desejo por outras drogas: “Eu vejo que o álcool é uma das piores drogas que tem. O álcool ele é, geralmente, o que puxa, pelos atendimentos que eu faço... Ele é o que puxa as outras” (Entrevistada 2).

A preocupação e a importância dadas ao álcool nas intervenções dos psicólogos têm base na magnitude dos problemas provocados por essa substância que, conforme apontam Medina, Santos, Almeida-Filho e Barqueiro (2010), de fato, não podem ser negligenciados. Ao mesmo tempo, ao atribuir ao álcool o poder de “puxar” outras drogas e se configurar como uma “porta de entrada”, conferimos a uma substância inanimada uma força que ignora as complexas motivações que envolvem seus usos pelas pessoas.

Num outro exemplo, o crack apareceu como uma substância que traz maior preocupação. Mesmo reconhecendo que não existem suficientes dados que comprovem a “epidemia do crack”, ele é mencionado com certo tom de alarme. “Num sei se você já percebeu isso, as pesquisas de crack são muito vagas. A gente sabe que a coisa tá muito alarmante”. (Entrevistado 3).

Sabemos que os problemas evidenciados pelo uso de crack merecem a atenção do campo da saúde pública. No entanto, percebemos que existe uma aproximação dos discursos escandalizados da epidemia do crack sendo traduzidos nas concepções dos profissionais sobre o problema. Isso aponta a necessidade de mais informações que embasem a atuação e a reflexão sobre essa situação.

As recorrentes atribuições negativas, aqui destacadas, para algumas substâncias, parecem confirmar que, como afirmam Martins e Mac Rae (2010), existe um discurso dominante que tende a naturalizar os usos como essencialmente negativos, atribuindo às drogas a responsabilidade por doenças, mortes, crimes etc. Esse sentido atribuído produz uma concepção limitada do fenômeno, pois não consegue responder à questão do “como” e do “porquê” as pessoas continuam fazendo uso de drogas, mesmo com toda a suposta negatividade. Essas interrogações, a nosso ver, deveriam orientar o trabalho do psicólogo com esse segmento da população, buscando identificar e problematizar a função das drogas na vida do sujeito.

Além dessas considerações sobre a essência negativa das substâncias, também foi apresentada a percepção sobre o uso de drogas como um “sintoma social”. Desse modo, uma das entrevistadas reconhece que a existência de problemas decorrentes do consumo de substâncias faz parte do contexto social e da cultura contemporânea.

Eu imagino que seja um sintoma mesmo. Assim, até baseado no que eu leio. De um tipo de sociedade fluida, pautada no consumismo, no ter. E aí eu penso que a adicção, ela acaba sendo um campo fértil dentro dessa sociedade (Entrevistada1).

Como afirma Nogueira Filho (1999), o meio em que vivemos hoje se sustenta numa superestrutura cultural que tem como promessa o alívio da dor de existir. Sendo assim, há um campo propício para uma produção social do consumo de drogas. Essa constatação, no entanto, não parece ter ampliado os objetivos das práticas dos psicólogos para considerar as conexões dessas repercussões na subjetividade dos usuários.

Embora tenha havido o destaque do fenômeno droga, como uma questão de ordem sociocultural, percebemos que a abstinência ganha importante relevo por alguns e tem sido uma das principais alternativas para o cuidado nas instituições. De acordo com Schneider (2010), é muito comum, nos serviços, a visão da dependência de substâncias como uma “doença”, sendo a abstinência e o controle dela os objetivos das práticas. Ilustrando essa percepção, um dos entrevistados reafirma esse sentido de uma “doença que não tem cura”:

A dependência química é uma doença que não tem cura. A gente sabe que a cura dela não existe, mas nas casas de recuperação a gente é um pouco inibido de falar isso. Então a gente trabalha de uma outra maneira (...). Psicoeducação, mais a questão do prejuízo, das perdas cognitivas ( Entrevistado 3).

A ideia de incurabilidade, construída a partir do modelo biomédico, introduz a ideia de uma irreversibilidade do estado de dependência, cronificando o estado do sujeito e o lançando num estado de passividade. Desse modo, caberia a ele aceitar a imposição de um tratamento ofertado pelos especialistas (Quinderé & Jorge, 2013).

Concordamos com Torossian (2004) que é possível falar de cura desde que sejam revistas as compreensões sobre o tratamento oferecido. Compreendendo a dependência de substâncias como tendo uma multiplicidade de relações possíveis do sujeito com a droga, a cura pode ser entendida como um resgate do sujeito e, nesse caso, o foco da cura estaria colocado na sua mudança subjetiva.

Sobre as atividades destinadas à assistência desses usuários, os entrevistados relataram que desenvolvem: atendimentos individuais, atendimentos grupais, grupos de prevenção à recaída, e atividades de colaboração na formação de recursos humanos das equipes onde trabalham.

Um problema apresentado pelos entrevistados diz respeito à incapacidade de atendimento dos serviços às demandas da população, tanto nos CAPS ad quanto nas Comunidades Terapêuticas. Nos CAPS ad, especificamente em Fortaleza, poucos funcionam com capacidade para acolhimento em casos de desintoxicação. Dos 06 CAPS ad existentes, apenas dois funcionam 24 horas. Para oferecer uma retaguarda, a Prefeitura incluiu, seguindo as diretrizes do Governo Federal, o financiamento público de seis Comunidades Terapêuticas.

Nas Comunidades Terapêuticas, as práticas de grupo, desenvolvidas pelo psicólogo, aparecem como uma resposta à grande demanda de atendimento, que nem sempre pode ser suprida. É comum que os psicólogos trabalhem apenas uma vez por semana nessas instituições, como informou nosso entrevistado. A oferta de atividades de grupo torna-se uma tentativa de oferecer uma maior atenção possível às demandas dos usuários.

Sobre a finalidade dos grupos, percebemos também que os grupos realizados se mostram como espaços para a produção e manutenção da abstinência. A escuta das histórias individuais parece estar voltada para a preocupação em manter os usuários abstinentes.

A gente faz tipo um, “preparando eles para o fim de semana”, entendeu? [...] Porque assim, tem o fim de semana, então geralmente a gente tem muito índice de recaídas, então eu trabalho com isso, na questão da autoestima, na questão de fortalecer, trabalhar “estratégias”. Estratégias assim, como que eu posso evitar, o que me leva a usar. (Entrevistada 2).

Convém também observar que, com relação aos atendimentos individuais, persiste a transposição de um modelo tradicional de organização do setting do consultório particular para os espaços institucionais (Ferreira Neto, 2010). Esse modelo se configura como estruturado por um tempo determinado para a sessão, um contrato sobre número e frequência das sessões, próprios do fazer clássico da clínica psicológica tradicional. Um dos exemplos é o modo como é conduzido o tratamento dos usuários por uma das entrevistadas:

É pra estar vindo todos os dias e você não vem... Eu faço contrato com eles no primeiro atendimento. Porque se ele falta duas vezes, né? Sem justificativa... Você tem que passar pelo acolhimento novamente e no acolhimento eles vão lhe direcionar. Porque às vezes eu já posso estar cheia novamente (com a agenda cheia). (Entrevistada 1).

Esse tipo de enquadre não recebe nenhum questionamento sobre sua adequação ao construir os processos de trabalho na instituição pública e para as peculiaridades desses usuários. Além disso, a burocracia do atendimento revela um funcionamento do serviço que degrada o trabalho do psicólogo mediante o alto número de pessoas em listas de espera.

Dentre outas práticas dos psicólogos, além da proposição da abstinência como meta, se destaca o papel da reinserção social dos usuários. O sentido dado à reinserção é tomado por um dos entrevistados como “readaptação social”.

O que pode acontecer depois disso né [refere-se à internação] é a readaptação social. Não é a questão de voltar para o trabalho, é a questão de facilitar as habilidades sociais do paciente pra que ele consiga se enquadrar na sociedade de novo, tirar os trejeitos de uso, o modo de andar, o modo de falar, postura, o olhar. (Entrevistado 3).

A concepção de inserção social como “readaptação social” sugere uma visão a-histórica do contexto social, desconsiderando a dimensão estrutural das desigualdades sociais. Esse tipo de ação parece trabalhar numa perspectiva de reposição de uma identidade do drogadito, em que este não é autor de sua história e é atribuído um sentido a priori para a vida dele (Lima, 2008).

Sendo assim, a identidade do usuário é percebida como uma identidade desviante perante as identidades hegemônicas (Castrillon, 2008). Isso implicaria ao psicólogo um papel de legitimador de identidades fetichizadas e não de promotor de novas formas de ser e estar no mundo (Martins et al, 2012).

Outra questão levantada refere-se à influência religiosa das CTs. A maioria das CTs credenciadas pela Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza é de orientação religiosa evangélica ou católica. Um dos entrevistados relata como tenta adequar essa dimensão em sua prática:

Quê que a gente trabalha nos grupos: primeiro a questão da religiosidade, que não é religião. É como eles se olham, como eles se acreditam, fortalecer essa crença que eles trabalham lá, que é uma casa evangélica, então isso é muito forte. (Entrevistado 3).

Evidenciamos, conforme afirma Castrillon (2008), a convivência de diferentes modelos nas Comunidades Terapêuticas onde se mesclam práticas psicoterapêuticas e práticas religiosas para os sujeitos em tratamento. Embora a religiosidade possa ser um elemento a ser trabalhado pelo psicólogo para potencializar o cuidado durante o processo saúde-doença, percebemos que existe uma forte influência dos princípios religiosos particulares da instituição sobre o seu funcionamento.

Por fim, vemos que os estereótipos e preconceitos que amparam a construção de sentidos negativos sobre o uso de drogas acabam por trazer uma série de influências sobre as práticas dos psicólogos entrevistados. O cotidiano desse trabalho é também dificultado pela precarização das condições de trabalho oferecidas e pela insuficiente quantidade de profissionais necessários para a realização do seu trabalho. A ausência ou insuficiência de uma política de educação permanente para os serviços do SUS, pela sua descontinuidade, também colabora para a manutenção dessas contradições nos serviços onde os psicólogos atuam.

Considerações finais

Como percebemos, o uso de drogas, por sua condição de marginalização e estigmatização, acaba por influenciar ações e práticas que reproduzem, por meio de seus objetivos, a ideia da abstinência como um ideal de normalidade. Embora saibamos que todo uso de drogas produz algum dano, a ênfase sobre a substância tende a produzir um abandono da importância da experiência singular de cada usuário e suas motivações.

As implicações para as práticas do cuidado dispensado pelos entrevistados indicam uma tendência para o controle da substância e das condutas do usuário. A dimensão subjetiva foi pouco explorada pelos entrevistados, constituindo uma lacuna sobre esse aspecto. Ao não dar relevo à singularidade do uso de substâncias, não se favorece a compreensão das diferentes funções que as substâncias podem ter para cada sujeito.

O estudo não conseguiu abarcar um maior número de entrevistados pelas dificuldades impostas, por algumas Comunidades Terapêuticas, em disponibilizar, para a pesquisa, informações sobre seu funcionamento. Além disso, a dificuldade de acesso a essas instituições, por se localizarem em sítios na zona rural de municípios da região metropolitana, traz dificuldades adicionais. Outro elemento que limitou o estudo foi o desligamento de psicólogos, em decorrência da mudança na Gestão Municipal, visto que possuíam contratos temporários de trabalho nos CAPS ad.

A partir desses achados, sentimos a necessidade de que as profissionais de psicologia discutam sua inserção nessas políticas e questionem suas práticas, para que possam, com clareza, pensar sobre o projeto de profissão que assumiram e o seu compromisso com o enfrentamento do estigma que os usuários de álcool e outras drogas sofrem.

Vemos que há ainda muito o que desenvolver, avaliar e compreender nesse campo complexo que é o campo da assistência à saúde dos usuários de drogas em nossa sociedade. Reconhecemos esse hiato como um reflexo do atraso histórico na resposta inadequada que a saúde pública de nosso país ofereceu para essa problemática.

Desse modo, acreditamos ser necessário ampliar o olhar da Psicologia e de suas práticas para além da preocupação exclusiva com os tipos de substâncias psicoativas utilizadas e seus efeitos. Assim, desenvolveremos mais possibilidades de práticas que deem conta da complexidade do uso de drogas e das necessidades singulares dos sujeitos no contexto em que vivem, trazendo contribuições sobre a dimensão subjetiva para o debate do tema.

Agradecimentos

À CAPES/PROPAG, pela bolsa de estudos disponibilizada ao primeiro autor deste trabalho.

 

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Recebido: 01 de setembro de 2014.
Aprovado: 12 de dezembro de 2014.