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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.2 Assis jul. 2015

 

Artigo

 

Fenomenologia e psicanálise: o inconsciente como estrutura da conduta

 

Phenomenology and psychoanalysis: the unconscious as structure of behavior

 

 

Matheus HidalgoI

I Universidade Federal de Sergipe

 

 


RESUMO

Neste artigo exploramos alguns dos aspectos centrais da posição inicial de Merleau-Ponty acerca da temática do inconsciente, tal como ela se apresenta nas duas primeiras obras do filósofo francês. Para isso, num primeiro momento, procuramos caracterizar os principais aspectos da critica merleau-pontyana ao freudismo. Em seguida, apresentamos sua proposta fenomenológica de dissolução da noção freudiana de inconsciente à ambivalência da consciência imediata, posto que a vida da consciência é muitas vezes fragmentária e raramente integrada ao modo de uma única significação. Por fim, a partir de um caso clínico, procuramos matizar as posições iniciais de Sartre e de Merleau-Ponty sobre o assunto. Na conclusão, indicamos algumas das implicações dessa discussão quanto à continuidade da obra do filósofo.

Palavras-chave: inconsciente; estrutura; comportamento; fenomenologia.


ABSTRACT

In this article we explore some of the central aspects of the initial position of Merleau-Ponty about the theme of the unconscious, as it appears in the first two works of the French philosopher. Thus, at first we tried to characterize the main aspects of Merleau-Ponty’s criticism of Freudianism; then, we present his phenomenological proposal for dissolution of the Freudian notion of the unconscious to the ambivalence of immediate awareness, since the life of consciousness is often fragmented and rarely integrated into a single mode meaning; finally, we try to nuance the initial positions of Sartre and Merleau-Ponty on this subject. To conclude, we indicate some implications of this discussion regarding the continuity of the philosopher’s work.

Keywords: unconscious; structure; behavior; phenomenology


 

 

Este artigo discute alguns dos aspectos centrais da posição inicial de M. Merleau-Ponty – nos livros Estrutura do comportamento (1942/1990)1e Fenomenologia da Percepção (1945/2001a) – quanto à noção freudiana de inconsciente. Trata-se, portanto, menos de aprofundar o(s) sentido(s) específico(s) que a noção de inconsciente acabou por adquirir ao longo da obra de Freud (1980, 2010a, 2010b, 2010c) do que de explorar a fecundidade dessa noção, interpretada num sentido bastante específico, quanto às questões que o filósofo francês se impunha nesse momento específico do seu itinerário filosófico.

Crítica ao freudismo

Comecemos por explicitar, em linhas gerais, os principais pontos críticos, ou negativos, da leitura merleau-pontyana de Freud, a partir da seguinte passagem, que já nos coloca diante do cerne da posição inicial do fenomenólogo:

A ideia de uma consciência que seria transparente para si mesma e cuja existência se remeteria à consciência que ela tem de existir não é tão diferente da noção de inconsciente: é, dos dois lados, a mesma ilusão retrospectiva – introduz-se em mim, a título de objeto explícito, tudo aquilo que eu poderia, na sequência, apreender em mim mesmo. (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.436)

Na esteira da Crítica aos fundamentos da psicologia, de G. Politzer (1929/1975), para Merleau-Ponty, tudo se passa como se a interpretação psicanalítica dos sonhos, tal como Freud a apresenta, implicasse a suposição teórica (metapsicológica) da possibilidade de tradução de duas linguagens independentes – conteúdo latente e conteúdo manifesto – entre as quais não haveria qualquer comunicação possível (Merleau-Ponty, 1942/1990, 1945/2001a).

De acordo com essa interpretação, a metapsicologia freudiana traria consigo, sem se dar conta, as mesmas dificuldades e equívocos das filosofias da consciência tradicionais (segundo as quais a consciência ou a vida psíquica equivale à interioridade), refugiando-se, assim, no campo das representações (ou, se se quiser, do afeto, do desejo, das pulsões), agora denominadas “pensamentos inconscientes”.

A hipótese freudiana do inconsciente implicaria uma espécie de duplo da consciência: existiriam dois conjuntos de representações (as conscientes e as inconscientes) translúcidas, por sua vez, a cada um de seus respectivos sujeitos pensantes2. Concebido ao modo de um eu penso elevado à segunda potência, o inconsciente não passa de um depositário de representações reprimidas (pensamentos inconscientes), que podem ser assumidas ou não, mas das quais é preciso que tenhamos algum tipo de conhecimento – caso contrário nem mesmo poderíamos recusá-las (1945/2001a).

Além disso, para o autor de A estrutura do comportamento, a teoria freudiana do aparelho psíquico seria, ainda, uma extensão ilegítima de certos casos patológicos ao funcionamento normal da vida psíquica. Os conflitos de força e os mecanismos energéticos descritos por Freud, embora até possam caracterizar certos tipos patológicos de funcionamento mental, acabariam, então, por inviabilizar uma compreensão da existência humana em sentido mais amplo. Consequentemente, seria preciso restringir o alcance das “descobertas da psicanálise”, para que ela não se faça “metafísica da existência” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.192), ou seja, generalização indevida, especulação infundada.

Nesse passo, Merleau-Ponty também questiona a necessidade teórica dos conceitos freudianos de inconsciente e de aparelho psíquico, ao se perguntar se “conflitos dos quais ele [Freud] fala, os mecanismos psicológicos que ele descreveu [...] exigem verdadeiramente o sistema de noções causais pelo qual ele os interpreta” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p. 192). Nesse sentido, a doutrina de Freud seria apenas mais uma das variantes do cientificismo naturalista, ou seja, do objetivismo do pensamento causal, que seria preciso superar.

Vale dizer, contudo, que a especificidade da interpretação merleau-pontyana da psicanálise não se esgota nos pontos críticos que acabamos de apontar. Com efeito, ainda que o mérito dessa leitura seja questionável – ao menos quanto ao sentido preciso dos fundamentos conceituais da metapsicologia, tal como Freud os formulou3 – é importante não perdermos de vista o contexto específico no qual ela se insere, no âmbito estrito de uma Fenomenologia da percepção, bem como o horizonte mais amplo dos seus desdobramentos ao longo da obra do filósofo4.

Fenomenologia e psicanálise

Dentre os representantes da tradição fenomenológica, Merleau-Ponty é o filósofo que mais dialogou com a psicanálise. Isso porque, desde o início, o interesse do autor da Fenomenologia da percepção pela psicanálise advém de uma exigência propriamente filosófica: uma vez que se trata de compreender como é possível haver uma subjetividade encarnada5, é inútil partir da oposição estéril entre as diversas disciplinas de pesquisa, de acordo com a representação objetivista que liga, ponto a ponto, cada ciência específica a um objeto de estudo exclusivo. Dessa perspectiva, a tarefa filosófica não pode ser dissociada da linha dos fatos e do seu entrecruzamento com as demais áreas do conhecimento, com destaque às ciências humanas (psicologia, psicanálise, linguística, sociologia, história).

Vale mencionar, sobre a especificidade desse diálogo, a seguinte passagem da nota que encerra o capítulo O corpo como ser sexuado, da Fenomenologia da percepção, que pode ser interpretada como uma chave de leitura para a compreensão das relações entre fenomenologia e psicanálise:

[...] não podemos livrar-nos do materialismo histórico, assim como da psicanálise, condenando as concepções ‘redutoras’ e o pensamento causal em nome de um método descritivo e fenomenológico, pois, assim como a psicanálise, o materialismo histórico não está ligado às ‘formulações causais que dele se puderam oferecer e, assim como ela, ele poderia ser exposto em uma outra linguagem [...]. (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.199)

Quer dizer que a crítica fenomenológica ao naturalismo científico e ao pensamento causal não invalida inteiramente a perspectiva científica, posto que esta última sempre pode, inversamente, “recusar como aparentes” os “caracteres descritivos da ação humana” fenomenologicamente considerados (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.191). Por isso, a crítica merleau-pontyana à “linguagem freudiana” virá sempre acompanhada de reflexões propositivas, no sentido de incorporar as intenções que animam os conceitos forjados por Freud ao seu próprio movimento de pensamento. Donde a necessidade prévia de uma revisão da linguagem e dos conceitos psicanalíticos forjados por Freud, uma revisão que torne possível melhor apreender a intuição viva que os anima.

Mais do que denunciar o objetivismo do pensamento causal, ao qual Freud teria sucumbido, Merleau-Ponty se propõe a reencontrar o sentido existencial das operações psicológicas mostradas pelo autor da Interpretação dos sonhos. Assim, feita a crítica ao pensamento causal, supostamente implicado nas “metáforas energéticas” freudianas, o filósofo francês procurará, no mesmo passo, integrar as descobertas psicanalíticas – i.e., “a formação de complexos, o recalcamento, a regressão, a resistência, a transferência, a compensação, a sublimação” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.191-192) – ao seu próprio projeto filosófico, de uma fenomenologia da percepção, a partir do momento em que o psiquismo, em sentido amplo, passa a ser pensado como estrutura de conduta.

O que é exigido pelos fatos que Freud descreve sob o nome de recalcamento [refoulement], complexo, regressão ou resistência é apenas a possibilidade de uma vida de consciência fragmentada, que não possui em todos os seus momentos uma significação única [...] A pretensa inconsciência do complexo se reduz à ambivalência da consciência imediata” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.193, grifos nossos).

Trata-se, portanto, de propor uma alternativa à linguagem causal identificada por Merleau-Ponty nos textos freudianos, a partir de um manejo particular da noção de inconsciente, que passa a ser pensada, agora, de modo estrutural, ou existencial, como “ambivalência da consciência imediata” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.193).

O inconsciente como (des)estrutura(ção) do comportamento

Desse modo, Merleau-Ponty se propõe a pensar a noção de inconsciente à luz da forma perceptiva (Gestalt), pois, assim como esta última, os fenômenos interpretados por Freud como “inconscientes” sempre ultrapassam a relação entre consciência cognitiva e objeto:

Todo conhecimento, diz a psicologia da forma, é a percepção de uma figura sobre um fundo. Ela deve se envolver por um halo de não conhecido ou ao menos conhecido sobre uma margem de desatenção e que não é um suplemento, mas um elemento essencial. Do fato de o objeto ser uma figura, errou-se na análise do conhecimento, por considerá-lo desprovido de um fundo. É necessário envolver o conhecimento de uma mancha na consciência que não põe o objeto enquanto objeto. Eis o vivido não denominado, o que Freud chama erroneamente de inconsciente (Merleau-Ponty, 1997, p.117).

Desse modo, para Merleau-Ponty (1945/2001a), “eu não ignoro os sentimentos que recalco e, nesse sentido, não existe inconsciente” (p. 343). Pois é certo que “posso viver mais coisas do que me represento” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p. 343), e “meu ser não se reduz àquilo que, de mim mesmo, expressamente me aparece” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p. 343). Consequentemente,

[...] o que chamam de inconsciente [...] é somente uma significação desapercebida: acontece que nós mesmos não apreendemos o verdadeiro sentido de nossa vida, não que uma personalidade inconsciente esteja no fundo de nós e reja nossas ações, mas porque nós não compreendemos nossos estados vividos sob uma ideia que lhes é adequada. (Merleau-Ponty, 1942/1990, p. 237)

Do ponto de vista da fenomenologia genética que Merleau-Ponty se propõe a elaborar, o sujeito perceptivo designa, em vez de uma pura consciência translúcida (ao modo do Para si sartreano), “o exemplo de uma consciência não-tética, quer dizer, de uma consciência que não possui a plena determinação de seus objetos” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p. 61).

Quanto à nossa discussão, isso significa que, por exemplo, se o lapso é um ato, e não um puro efeito de ações causais em terceira pessoa, a resistência supõe uma relação intencional àquilo a que se resiste. Tal relação intencional, por sua vez, não diz respeito a uma pura consciência constituinte diante de seu puro objeto de conhecimento, mas à generalidade mesma do corpo.

Ao conceber o inconsciente como certo tipo de estrutura comportamental, em que a integração simbólica caracteristicamente humana, em maior ou menor grau, fracassa, Merleau-Ponty se recusa a conceber o inconsciente em termos mentalistas, como um conjunto de “coisas” psíquicas depositadas no subsolo da consciência.

A consciência pode viver nas coisas existentes sem reflexão, abandonada à estrutura concreta das situações nas quais está inserida, antes de ser convertida em significação exprimível. Nesse sentido, certos episódios de uma vida, antes de serem trazidos à condição de lembranças disponíveis, podem, por sua inércia própria, aprisionar a liberdade, restringindo nossa percepção do mundo, impondo estereotipias ao comportamento: “mesmo antes de haver pensado nossa classe ou nosso meio, nós somos essa classe e esse meio” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.239).

Posto que todo homem adulto, saudável, razoável etc. pode eventualmente se comportar de maneira “menos integrada” (na neurose, no sonho, ou mesmo na distração, na fome, na sede etc.), “regredindo” em direção a comportamentos mais simples e imediatos, outrora talvez até eficazes, a patologia se deixa caracterizar pelo fenômeno da regressão. Com efeito, uma vez que a pretensa inconsciência do complexo pode ser reduzida à ambivalência da consciência imediata, a eficácia relativa de um complexo adquirido no passado atesta apenas um “retorno a uma maneira primitiva de organizar a conduta, uma degradação (fléchissement) das estruturas mais complexas e um recuo em direção às mais fáceis” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.134).

O inconsciente se expressa, então, em termos de estrutura do comportamento, quando a união da alma com o corpo fracassa – ou seja, quando as estruturas inferiores passam a preponderar na conduta humana. Tais efeitos de superfície, que nada são senão fragmentos de conduta mal articulados entre si, atestariam, segundo o filósofo francês, a verdade do dualismo, que sempre reaparece em algum nível:

[...] a fome ou a sede impedem o pensamento ou os sentimentos, a dialética propriamente sexual transparece ordinariamente através de uma paixão, a integração jamais é absoluta, e sempre fracassa, mais alto no escritor mais baixo no afásico. Chega sempre o momento em que nos esquivamos de uma paixão, por fadiga ou amor próprio. (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.226-227)

Nesse sentido, a desintegração de uma conduta (como na regressão a um comportamento infantil, por exemplo) não deixa de ser “condicionada pela atitude de conjunto da consciência, que evita pensar nisso para não ter que integrá-lo e responsabilizar-se por ele” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.277). Tal “atitude de conjunto da consciência”, por sua vez, não diz respeito ao sujeito constituinte, a uma consciência translúcida em plena posse das suas representações mentais, mas a um sujeito perceptivo, cuja opacidade é diretamente proporcional à sua inerência mundana.

A explicação da conservação dos complexos remete, portanto, à dialética das relações entre as estruturas superiores e inferiores: de um lado, como estrutura sem significação (dialética não integrada, inferior, representada pelo determinismo corporal, psíquico ou social), o inconsciente pode ser interpretado ao modo do naturalismo; de outro, como “significação não percebida”, ideia inadequada aos vividos da experiência, o inconsciente se apresenta, ao modo intelectualista, como uma significação sem estrutura. Em ambos os casos, contudo, o inconsciente se define pela cisão entre estrutura e significação (Ayouch, 2012). Será preciso, então, evitar essas duas rotas antitéticas, a naturalista e a intelectualista, posto que ambas, e cada uma ao seu próprio modo, reduzem a noção de inconsciente à separação entre estrutura ou existência e pensamento ou significação.

Paralelamente, uma vez que o fenômeno da regressão, dito inconsciente, não passa de uma integração fracassada, será preciso fazer a pergunta inversa, e tentar compreender o sentido da resistência e da inércia das dialéticas inferiores. Ou seja:

Se a consciência não é apenas e nem sempre consciência de verdade, como compreender a inércia, a resistência, das dialéticas inferiores [...]? Como compreender a aderência ao vivido de uma significação falaciosa que é constitutiva de uma ilusão? Já rejeitamos as categorias causais de Freud e substituímos suas metáforas energéticas por metáforas estruturais. Mas se o complexo não é uma coisa fora da consciência que aí produziria seus efeitos, se ele não passa de uma estrutura de consciência, menos essa estrutura tende, por assim dizer, a se conservar (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.237).

Desse modo, embora afirme, ao modo de Sartre, que o inconsciente não passa de “uma significação não percebida” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.237), o autor da Fenomenologia da percepção não se furta à tarefa de tentar compreender como é possível que uma “significação verdadeira de nossa vida” nos escape, que uma liberação ideal possa não ser real. Se o inconsciente se apresenta como uma integração incompleta, quando da “emergência de dialéticas imperfeitas, de estruturas parciais” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.237), uma “liberação real” permanece sempre possível, mas ela, contudo, sempre “está por fazer”, assim como “a conversão do olhar [...] que reduz [...] a reminiscência traumática a uma lembrança indiferente” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.237).

Portanto, deve haver um certo tipo de ignorância, ou de não-saber, entre aquilo que se pensa, diz ou faz, sem que nisso esteja implicado qualquer hipocrisia. Ou, ainda, se ainda se insiste, como Sartre, em “falar [...] de hipocrisia ou má-fé [...] será preciso distinguir então entre uma hipocrisia psicológica e uma hipocrisia metafísica” (Merleau-Ponty, 1945/1996, p.225).

Enquanto a “hipocrisia psicológica” é um “acidente facilmente evitável”, pois não passa de uma dissimulação, em relação aos outros, daquilo que o sujeito não esconde de si mesmo, a “hipocrisia metafísica”, por sua vez, “engana-se a si mesma por meio da generalidade, e chega assim a uma situação que não é uma fatalidade, mas que não é posta e desejada; ela se encontra até mesmo no homem ‘sincero’ ou ‘autêntico’ a cada vez que ele pretende ser sem reservas o que quer que seja. Ela faz parte da condição humana” (Merleau-Ponty, 1945/1996, p.225). Tal distinção anula decisivamente a perspectiva sartreana da má-fé, pois distingue uma operação não correspondente ao sentido preciso da expressão Verleugnung usada por Freud (Ayouch, 2012).

Caso clínico

Embora não seja o caso de aprofundar esse tema aqui, talvez possamos esclarecer um pouco melhor o sentido da noção de inconsciente, no contexto da Fenomenologia da percepção, a partir de um caso clínico mencionado por Merleau-Ponty. Trata-se de uma jovem que, impedida de rever o rapaz que amava, torna-se afônica, ao mesmo tempo que rompe as relações com a família (Merleau-Ponty, 1945/2001a). Em vez de interpretar tal sintoma segundo um esquema pré-determinado do funcionamento psíquico – que poderia enfatizar a permanência da fase oral do desenvolvimento da sexualidade como condicionante da afonia, por exemplo – é preciso explicitar o sentido que ele apresenta, para além da mera circunscrição a uma certa fase do desenvolvimento infantil: “por meio da significação sexual dos sintomas, descobre-se, desenhado em filigrana, o que eles significam [...] geralmente em relação ao passado e ao futuro, ao eu e a outrem, quer dizer, por relação às dimensões fundamentais da existência” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.188).

Será preciso, então, desdobrar as várias articulações das diversas camadas existenciais (sedimentadas pelo hábito, via esquema corporal – aí inclusa a fala como gesto do corpo) para que se possa compreender – além ou aquém da cisão freudiana entre as duas dimensões do psiquismo, pensadas como representações conscientes e inconscientes, entre as quais não haveria comunicação possível – a significação existencial do “sintoma”. Assim interpretado, o que está “fixado” na boca da jovem, o que a impede de falar, é aquilo que perpassa “as relações com outrem das quais a palavra é o veículo” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.187). “A afonia representa, então, uma recusa da coexistência, assim como, em outros sujeitos, a crise de nervos é o meio de fugir da situação” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.187).

Por não se tratar de um fingimento, uma dissimulação, e tampouco poder ser explicada pela ação causal de representações infantis reprimidas, trata-se de um fenômeno cuja gênese está aquém do “saber e da ignorância, da afirmação e da negação voluntárias” e que, como tal, está ligado à “adesão geral à zona de nosso corpo e de nossa vida” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.189). No plano fenomenal, vale frisar, o paciente só ignora essa carência sob a condição de conhecê-la, e vice-versa. Aqui, toda dificuldade consiste em compreender uma certa “ambiguidade do saber” corporal, ambiguidade que se exprime em “duas camadas distintas” de nosso corpo: corpo atual e corpo habitual.

O fenômeno do “recalque” mostra bem o caráter desse ser (o corpo, enquanto sujeito de experiência) que é, a um só tempo, pessoal e anônimo, singular e geral. Por exemplo, um sujeito que se empenha em uma determinada tarefa – relação amorosa, carreira, obra – e que, ao se deparar com um obstáculo, não tem força nem para renunciar ao empreendimento nem para abandoná-lo, permanecendo bloqueado nessa tentativa. Por algum motivo, esse sujeito se lança sempre ao mesmo “objeto impossível”, que o tempo que passa não leva consigo, como se “um presente entre todos os presentes” tivesse adquirido um “valor de exceção”, deslocando todos os outros, e os destituindo de seu “valor de presentes autênticos”. Ele continua, assim, a ser aquele que se empenhou em um amor de adolescente ou a viver em um universo parental, se não em suas decisões deliberadas, ao menos em seu ser efetivo. Ou seja: “o tempo impessoal continua a se escoar, mas o tempo pessoal está preso” (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.189). Ora, uma vez que a experiência traumática assim como a recusa do membro paralisado ou a do membro fantasma não são “representações”, como um momento datado da consciência objetiva, só lhes resta sobreviver como “um estilo de ser”, comportando, portanto, “um certo grau de generalidade” (Merleau-Ponty, 1945/1996, p.124). Ocorre, assim, uma alienação de nosso poder perpétuo de nos dar “mundos”, em benefício de apenas um deles, cuja substância se desfragmenta pelo mesmo motivo pelo qual ele foi eleito, como que “inconscientemente”, acabando por se transformar, enfim, “apenas em uma certa angústia. Portanto, todo recalque é a passagem da existência em primeira pessoa a um tipo de escolástica dessa existência, que vive para uma experiência antiga ou antes para a recordação de tê-la tido, depois para a recordação de ter tido essa recordação e assim por diante, a ponto de que finalmente ela só retenha sua forma típica” (Merleau-Ponty, 1945/1996, p.95, grifos do autor).

Assim compreendido, o recalque será “um fenômeno universal” e não um sintoma passível de cura, posto que torna compreensível “nossa condição de seres encarnados” (1945/2001a, p.225). Afinal, a vida humana comporta ritmos que não encontram sua razão naquilo que escolhemos ser, mas que têm sua condição no meio incondicional que nos circunda e perpassa. A sexualidade, nesse sentido, “não é nem transcendida na vida humana, nem figurada em seu centro por representações inconscientes. Ela está constantemente ali, como uma atmosfera” (1945/2001a, p.196).

Conclusão

Embora a fertilidade do diálogo com a psicanálise se intensifique apenas no período dito intermediário do pensamento merleau-pontyano (sobretudo a partir do início dos anos 50), procuramos mostrar, ao longo deste artigo, que a teoria psicanalítica freudiana já comparecia, embora de maneira ambivalente, nas obras iniciais do filósofo, quando tanto era criticada e contraposta à fenomenologia quanto reconhecida como fonte de conhecimento complementar desta última. Não apenas a crítica fenomenológica ao naturalismo não é razão suficiente para descartar a psicanálise, mas, ao contrário, é a própria psicanálise, devidamente interpretada, que possibilita o desenvolvimento de certos aspectos importantes da fenomenologia.

Nesse sentido, parece-nos que a observação de Pontalis (1965), segundo a qual “a inspiração do freudismo não é, em seu princípio, estrangeira ao método fenomenológico”, já que ambos fazem “do advento do sentido um problema” (p.43), se aplica de maneira exemplar à filosofia de Merleau-Ponty:

Mesmo em Freud estaríamos enganados de crer que a psicanálise exclui a descrição de motivos psicológicos e se opõe ao método fenomenológico: ao contrário, ela (sem o saber) contribuiu para desenvolvê-lo, afirmando, segundo a expressão de Freud, que todo ato humano “tem um sentido”. (Merleau-Ponty, 1945/2001a, p.184)

Nessa mesma direção, anos mais tarde, no prefácio que escreveu para o livro de A. Hesnard, o filósofo lembrará, fazendo alusão às suas primeiras obras, que “as razões para se reformular certos conceitos freudianos, em termos de uma filosofia melhor, ainda têm sua verdade aos nossos olhos”. Nesse sentido, com efeito, “a fenomenologia fornece à psicanálise as categorias, os meios de expressão dos quais ela carece para se realizar plenamente” (Merleau-Ponty, 2001b, p.276). No entanto, ao especificar a natureza dessa relação, entre fenomenologia e psicanálise, Merleau-Ponty recusa explicitamente qualquer tipo de subordinação, ou hierarquia, entre ambas:

[...] o acordo da fenomenologia e da psicanálise não deve ser compreendido como se o ‘fenômeno’ dissesse mais claramente aquilo que a psicanálise havia dito confusamente. É, ao contrário, por aquilo que ela subentende ou desvela, no seu limite – por seu conteúdo latente ou seu inconsciente – que a fenomenologia está em consonância com a psicanálise. (Merleau-Ponty, 2001b, p.283).

O interesse pelo mundo pré-objetivo, pela linguagem muda da percepção, anterior às significações linguageiras, será radicalizado nas últimas obras do filósofo, quando psicanálise e fenomenologia voltam-se ao mesmo enigma, visam à mesma “latência”, caminham juntas, sem que se possa dizer qual delas melhor se aproxima dele.

Cumpriria, então, examinar, à luz da temática do inconsciente, os motivos da passagem do projeto da Fenomenologia da percepção para o do Visível e o Invisível, em que a consciência perceptiva, notável protagonista nos primeiros textos, desaparece definitivamente do cenário filosófico merleau-pontyano e a noção de inconsciente passa a ser pensada como indivisão do sentir, entre dois (empiètement) quiasmas (Coelho Jr., 1990), operando positivamente na ontologia da carne esboçada nas obras finais de Merleau-Ponty.

 

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Recebido: 04 de outubro de 2015.
Aprovado: 20 de novembro de 2015.

 

 

Notas

1 Ao longo do artigo, certas citações da Fenomenologia da percepção são referidas à versão brasileira da obra, publicada pela editora Martins Fontes.

2 Nessa mesma direção, J. P. Sartre (1943) argumenta que a hipótese freudiana do inconsciente pressupõe implicitamente a tese segundo a qual “a censura deve escolher e, para escolher, deve representar-se”, pois “não basta que [o inconsciente] distinga as tendências malignas; é necessário, além disso, que as apreenda como algo que deve ser reprimido, o que subentende, ao menos, uma representação da própria atividade. Em suma, como a censura poderia discernir impulsos reprimíveis sem ter consciência de discerni-los?” (1943/2000, p.98-9). Para Sartre, o inconsciente seria o processo pelo qual a consciência nega seu caráter mais fundamental, que é a própria negação. Tratar-se-ia de um ato de pura má-fé, no sentido existencial (não vulgar) da palavra, pois nele se afirma “a facticidade como transcendência e a transcendência como facticidade” (Sartre, 1943, p.91), o que equivale a dizer “que não sou o que eu sou” (Sartre, 1943, p.92). Nesse sentido, a assunção da hipótese do inconsciente não passaria de um gesto (que não deixa de ser livre, ao seu próprio modo) de negação da liberdade a que estamos condenados. Ou seja, a assunção do inconsciente é o protótipo de uma escolha inautêntica, em que se faz – em nome de uma essência qualquer – no caso, o inconsciente – algo que precede e regula a existência. Paralelamente, vale notar: a despeito da sua crítica à metapsicologia freudiana, Sartre não deixou, por sua vez, de apresentar sua própria interpretação do conceito de inconsciente, agora reduzido à noção fenomenológica de irrefletido, uma vez que “o vivido oblitera uma parte do inconsciente ou, sobretudo, de inconsciência (d´inconscience) que se confunde com sua opacidade relativa” (Cabestan, 2012, p.102).

3 Sobre a correção e pertinência da interpretação merleau-pontyana do conceito de inconsciente, por contraste com o sentido que Freud lhe atribuiu no contexto da sua metapsicologia, ver Caropreso (2009).

4 Esse tipo de investigação não apenas não se opõe necessariamente à psicanálise, como, ainda, pode vir a complementar aspectos importantes da metapsicologia freudiana, uma vez que a temática da consciência permanece em aberto na obra de Freud, como afirma Caropreso (2009): “a partir do momento em que Freud desvincula os conceitos de mente e de consciência e faz da hipótese do inconsciente peça chave de sua teoria, a consciência transforma-se em um problema para a metapsicologia freudiana que perdurará ao longo de todo o desenvolvimento da obra” (p. 135). Nesse mesmo sentido, segundo Freud, “A questão relativa à natureza desse inconsciente não é [...] nem mais judiciosa nem mais rica de perspectivas do que aquela relativa à natureza da consciência” (Freud, 1925/1950, p. 57).

5 O objetivo declarado das duas primeiras obras de Merleau-Ponty era o de “compreender as relações da consciência e da natureza – orgânica, psicológica, ou mesmo social” (1942/1990, p.1). Nesse contexto, a compreensão da temática da encarnação exige a superação do antagonismo entre “uma filosofia que faz de toda natureza uma unidade objetiva constituída diante da consciência”, de um lado, e, de outro, a perspectiva das ciências “que tratam o organismo e a consciência como duas ordens de realidades, e, na sua relação recíproca, como ‘efeitos’ e como ‘causas’” (Merleau-Ponty, 1942/1990, p.3). Ou seja: será preciso superar a oposição entre o pensamento reflexivo idealista, que subordina os objetos de conhecimento (aí incluso o “psiquismo”) a uma suposta consciência soberana, de acordo com o modelo do criticismo neo-kantiano, por exemplo, e o pensamento científico, que substancializa a consciência ao tratá-la como mero “efeito” de um determinado conjunto de relações causais que atuam na natureza.

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