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Revista de Psicologia da UNESP
versión On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.15 no.1 Assis enero/jun. 2016
ARTIGOS
Infância: dizeres e experiências
Childhood: Sayings and Experiences
Anaísa Ribeiro Amorim; Eliane Regina Pereira
Universidade Federal de Uberlândia
RESUMO
Este trabalho apresentará reflexões sobre a infância contemporânea, com base na interface entre a perspectiva histórico-cultural e os recortes de quatro rodas de conversa realizadas na sala de espera de uma UBS (Unidade Básica de Saúde) na cidade de Uberlândia-MG. As rodas acontecem semanalmente, têm 1 hora e 30 minutos de duração e os usuários são convidados a conversar sobre algum tema. As rodas analisadas neste trabalho tiveram como tema a infância. Por meio do contato e análise dos relatos consubstanciados com a teoria, foi possível pensarmos sobre a dinâmica das relações entre adultos e crianças, o impacto da mídia e tecnologia na constituição das crianças, a importância e a riqueza do brincar, as reverberações nos adultos ao refletirem e (re) viverem alguns sentimentos de sua própria infância, bem como as múltiplas formas nas quais a infância se apresenta a nós. Os desafios de pensar e falar da infância estão ligados diretamente à complexidade e à diversidade dos modos de se experienciar a infância.
Palavras-chave: Infância. Sala de espera. Criança. Rodas de conversa.
ABSTRACT
This research aims to present reflections on contemporary childhood, from the interface between the cultural-historical perspective and clippings of four groups of conversation, held in a waiting room of an Elementary Health Unity in Uberlândia. These events took place weekly, lasting one hour and thirty minutes, in which users were invited to talk about some topic. Those groups analysed as their theme childhood. Through the contact and analysis of reports substantiated the theory, it was possible to think about dynamics of relationships between adults and children, the impact of media and technology on its constitution, the importance and fullness of playing, the reverberations in adults to reflect and (re) live some feelings of their own childhood, as well as the multiple ways in which childhood is presented to us. The challenges of thinking and speaking of childhood is linked directly to the complexity and diversity of manners of experiencing childhood.
Keywords: Childhood. Waiting room. Child. Conversation groups.
Introdução
Para falarmos da infância atual é importante nos atermos à multiplicidade de infâncias que existem. Essa diversidade é sustentada no princípio de que essa fase seja fruto de uma construção social afetada por fatores culturais, históricos e sociais, em consonância com o momento histórico em questão. Assim, foram desenvolvidos estudos investigativos de caráter sociológico que detinham a infância como uma fase construída socialmente, desmistificando a teoria naturalizante sobre a criança.
Phillipe Aries, consagrado historiador, traça em seu livro História Social da Criança e da Família uma análise para infância, considerando aparatos familiar, social, político, econômico, religioso e educacional. (ARIES, 1981). Essa trajetória se faz importante para compreendermos os devaneios e a configuração da infância contemporânea, em que são abarcadas questões de estudo, trabalho, hábitos, direitos, deveres e o papel social das crianças em diferentes momentos históricos.
Falar sobre infância pode remeter a lembranças, dificuldades, prazeres, possibilidades e um início. Início da constituição do sujeito. Para adentrarmos nesse assunto é importante nos atermos à multiplicidade de infâncias que nos toca. Afinal, o que é ser criança na contemporaneidade? Ser criança é o mesmo que ter infância? Como podemos pensar a infância contemporânea? Como se dá o encontro dos adultos com as crianças ou dos adultos com as múltiplas infâncias?
À medida que reconhecemos o fato de que a infância é atravessada por componentes sociais e culturais, o olhar para as crianças é modificado, pois elas passam a ser vistas como sujeitos em devir, o que as torna protagonistas de suas vidas, quando são ricamente valorizadas as suas intersecções relacionais, suas potencialidades de imaginar, criar e modificar sua história (SIROTA, 2001).
O reconhecimento da criança como sujeito ativo de sua história, bem como a valorização de suas características subjetivas, propõe que a infância seja tomada como condição de experiência, promovendo seu enriquecimento como ser humano que tem oportunidade de acrescentar, construir e criar em sociedade, e não somente reproduzir ou reagir a normatizações previamente estabelecidas que tendam ao empobrecimento, limitação de suas potencialidades e capacidades inovadoras (KRAMER, 2000). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) defende a ideia de que a criança e o adolescente tenham liberdade de participar da vida familiar e política, liberdade de opinar, brincar, preservar sua imagem e autonomia.
É importante refletirmos sobre nossas atitudes para com as crianças, pois, quando questionamos alguns de seus comportamentos ou relutamos em aceita-los, talvez estejamos reafirmando, com esses questionamentos e relutâncias, o modo passivo de elas serem e estarem no mundo. Os adultos não podem se esquecer de que os conceitos socialmente alicerçados sobre a infância refletem na condição de existência das crianças, adolescentes e adultos (SOUZA, 2000).
Além disso, é válido que busquemos alternativas para minimizar o distanciamento criado nas relações entre os adultos, entre adultos e crianças e entre as próprias crianças. Esse distanciamento é sustentado pelos veículos da mídia, do consumo, do cotidiano, das relações frágeis, resultando no estranhamento e até mesmo na não legitimidade da infância atual, visto que o contato com as crianças é atravessado por elementos terceiros, como os citados anteriormente. (CASTRO, 2002). Discorreremos sobre esses apontamentos ao longo do presente texto.
Neste trabalho serão abordados recortes de uma experiência de extensão e pesquisa realizada na sala de espera de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), em um bairro periférico na zona oeste da cidade de Uberlândia. Trata-se de uma experiência de roda de conversa semanal, em que tecemos diálogos acolhedores, a fim de propiciar um espaço de compartilhamento de experiências, para refletir sobre elas e ressignificá-las, com a finalidade de promover saúde.
Como atividade de extensão, o trabalho é baseado em intervenções realizadas também semanalmente, em rodas de conversa no mesmo espaço da sala de espera da UBS, onde os estagiários convidam os sujeitos envolvidos a refletirem, discorrem e trocarem opiniões e experiências, contribuindo, à luz de uma perspectiva crítica em Psicologia, para a construção de saberes que os empoderam para um cuidado consigo e com os indivíduos com quem se relacionam. Assim, esses encontros proporcionam ao sujeito ampliar seu repertório dos modos de ser, estar e experenciar o mundo, bem como atentar para a sua saúde.
Como atividade de pesquisa, o trabalho objetivou compreender os sentidos sobre a infância produzidos pelos sujeitos que participaram das rodas de conversa. Essa temática foi eleita pelas estagiárias da atividade de extensão, em parceria com a professora e supervisora do projeto, no contexto de supervisão. A eleição do tema contemplou o interesse de todos em adentrar no território da infância e, especificadamente, a infância contemporânea, um tema que ainda não explorado pelas alunas. As rodas de conversa aconteceram em semanas consecutivas, totalizando quatro encontros. Inicialmente foi apresentada a todos a proposta da roda, foi lido e assinado o termo de consentimento livre e esclarecido e, posteriormente, fizemos circular entre os sujeitos os recursos disparadores da conversa do dia.
Nas supervisões, além de compartilhar o que vivemos nas rodas e as reverberações em nós, elegíamos o recurso a ser utilizado na roda seguinte, além de compartilhar o que possivelmente poderia emergir. A seguir, apresentamos um quadro ilustrativo dos recursos estéticos utilizados e participantes das rodas, atendendo a ordem como aconteceram os encontros.
Na primeira roda de conversa, utilizamos imagens com crianças em contextos e atividades diferentes. As imagens despertaram muitas lembranças, sentimentos e questionamentos. Assim, conversamos sobre os reflexos da dificuldade financeira na rotina de suas famílias, das brincadeiras com as quais se envolveram, de como sentem a infância atual e, com uma escuta cuidadosa, acolhemos e problematizamos o que surgia no grupo. Na segunda roda, levamos como recurso um trecho da história infantil Pinóquio, que propiciou tecermos diálogos voltados para a criança que há dentro de cada adulto, a multiplicidade de brincadeiras que existem e o que elas têm ou não de saudável para as crianças.
Na roda de conversa da semana seguinte, optamos por levar as mesmas imagens utilizadas no primeiro grupo, com a finalidade de termos contato com novas reverberações, visto que o grupo na sala de espera é rotativo, enriquecendo nossa prática e pesquisa. As repercussões permearam o campo da influência da mídia e da tecnologia na vida das crianças, das dificuldades encontradas pelos pais em conciliar a rotina de trabalho com a educação dos filhos e das possibilidades em ser feliz em meio às dificuldades.
No último encontro, levamos o poema de Casimiro de Abreu, intitulado Meus oito anos, o qual desencadeou a conversa em que surgiram reflexões quanto às diferenças que existem quando comparamos a infância antiga e a atual. Falou-se, ainda, dos reflexos de componentes contemporâneos na constituição da criança como sujeito e das relações entre pais e filhos e entre as próprias crianças.
Nossas rodas de conversa tinham um tempo estimado de uma hora e meia, período de tempo que variava de acordo com os sentimentos, os relatos de experiência, comentários e questionamentos que emergiam, conforme o grupo acontecia.
Em cada roda de conversa tínhamos um diário de campo, onde registrávamos a dinâmica que aconteceu no grupo, as falas que provocaram as reverberações em nós quanto ao que nos tocou e as dificuldades e colaborações, com a finalidade de explorá-las nas conversas e análises, no momento da supervisão.
O modo como o sujeito ia sendo afetado pelo recurso escolhido, pelos encontros ali experenciados e pelos diálogos sobre a infância, possibilitou construir sentidos múltiplos acerca da realidade em que ele está inserido, ampliando assim seu repertório de vida e seus olhares para a sociedade.
Após a leitura exaustiva do diário e a seleção das falas mais marcantes, percebemos alguns assuntos que foram relevantes e frequentes nas rodas de conversa e elegemos as temáticas que contemplavam: as comparações entre a infância antiga e a contemporânea, os impactos do aspecto financeiro na vida das crianças e adultos, as brincadeiras e o sentido de brincar e, por fim, os ecos provocados pelos recursos midiáticos, tecnológicos e pela cultura do consumo no desenvolvimento da criança e na sua rotina de vida. Esses itens foram eleitos como nosso caminho de análise. A análise se deu por meio de diálogos entre a teoria que sustenta o presente trabalho e os recortes das falas extraídos do diário de campo.
O menino de ontem me plange: comparações entre a infância antiga e infância atual
Em todas as rodas de conversa, escutamos discursos nostálgicos dos adultos sobre a infância que experienciaram, além de queixas relacionadas à infância atual e à forma como ela é vivida pelas crianças. Nessas falas, percebemos haver uma idealização da infância. Pode ser que isso aconteça pelo fato de as pessoas não considerarem a infância como uma fase do ser em desenvolvimento, com base no contexto e no momento em que a criança vive, isto é, compreender a infância como construção social.
Considerando essa situação, entendemos que o mal estar gerado quando se pensa a(s) infância(s) contemporânea(s) pode estar relacionado ao apego às noções imaginadas e naturalizadas acerca dessa fase (CASTRO, 2002). Em linhas gerais, esse modo um tanto inflexível de compreendê-la sustenta a ideia de que uma infância feliz é estar em contato com brincadeiras, estudos e aprendizagem, privando-a de quaisquer atividades de adulto, desmerecendo e problematizando quaisquer outras configurações de infância que fogem a esse modelo. Podemos perceber melhor essa ideia no discurso a seguir, de Marta:
Antes, na infância do meu pai, as coisas eram diferentes, mais duras, por exemplo, ele teve seu primeiro sapato aos 18 anos. A minha infância foi mais tranquila porque eu estudava e brincava, foi melhor que a de meu pai; foi saudável, mas hoje em dia não é assim, porque a inteligência demais faz com que as crianças façam coisas ruins. Eu brincava muito na rua e hoje a tecnologia, jogos online, computadores, álcool e drogas prejudicam as crianças. (relato pessoal, novembro de 2013).
A fala de Marta nos remete a uma ideia de sofrimento. Esse sofrimento advém das diferenças temporais que resultam no impacto com a realidade presente, gerando dificuldade em entender e legitimar a configuração atual da realidade material contemporânea da infância. Esse pensamento desqualifica essa fase, visto que os sujeitos queixam-se de algo que não necessariamente é um problema e pensam a infância atual como uma não infância.
Os aspectos que qualificam a infância contemporânea são recentes ou compõem a existência humana desde outros momentos históricos? Estudar e brincar garante a vivência de uma infância boa? Boa para quem? A tecnologia em si só traz consequências negativas? Refletir sobre essas questões implica responsabilizar os adultos e os aspectos sociais, culturais e históricos diretamente ligados à infância das crianças, visto que esses componentes são referências primárias na dinâmica desse ciclo da vida e de sua constituição como sujeito.
Vale considerar que o tempo contemporâneo nos impõe modos de vida calcados no sistema capitalista, na tentativa de que nos adequemos a ele. Isso envolve, por exemplo, ser sujeitos trabalhadores, que constroem uma família e são bons exemplos de pai/mãe, dedicados e responsáveis com suas obrigações, que educam bem a seus filhos e que não falham. Fazemos essa observação para atentar para o fato de que muitos podem estar compactuando com tal modelo e reproduzindo essa lógica de vida com nossas crianças, quando esperamos que elas atendam a um modo de vida idealizado por nós.
Estamos construindo ideias e padrões que exigem das crianças que se adequem ao modelo de infância idealizado pelo adulto, não respeitando o desejo dela de ser criança, em coerência com o que ela sente e deseja. Esse desrespeito acarreta a desqualificação da pluralidade de sujeitos e infâncias atuais, que, na maioria das vezes, encontra-se enclausurada pela realidade material que a envolve e condicionada a ela.
O discurso de Marta nos convida a ressignificar o olhar, a sensibilidade e a concepção de infância e de construção da identidade da criança, contextualizando as histórias de vida que são atravessadas por diferentes aspectos sociais, históricos, culturais, políticos e econômicos que afetam o modo de viver tanto do adulto quanto da criança. Essas ressignificações podem nos despertar para a pluralidade e singularidade de histórias de vidas que existem.
Isso pode ser identificado na fala de Roberta: "Tudo influencia na criação dos filhos e na infância: o lugar onde se vive, a época em que se vive, a violência [...] hoje as pessoas valorizam muito o dinheiro mas que o mais importante é o amor e educação" ( relato pessoal, novembro de 2013).
O lócus em que a criança vive nos diz um pouco da rotina, dos costumes, das crenças e hábitos gerais que caracterizam essa comunidade, nos auxiliando minimamente na compreensão da dinâmica de famílias que compõem esse lugar. Luana, uma adolescente que participava do grupo, nos incita a conhecer um pouco do medo que sente e da comunidade em que está inserida, quando diz: "Não tem como deixar uma criança brincar livremente na rua nos dias de hoje, pois há muitos perigos como carros e sequestros e temos que pensar no contexto, que vivemos em épocas diferentes" (relato pessoal, novembro de 2013).
Luana é uma jovem de 17 anos e seu discurso é calcado no medo, na preocupação com a liberdade e segurança das crianças. De fato, não podemos desconsiderar esses fatores de risco, visto que eles existem e qualquer um de nós pode ser atingido por eles. Mas, de qual lugar Luana pauta sua preocupação e crença na ameaça desses fatos para com as crianças? Será que o que ela diz está embasado nela ou em discursos de outros adultos para com a realidade atual?
Na fala de Luana, vemos que uma possível solução pensada foi a constante vigilância para com as crianças: quando e aonde vão, com quem vão. Marta diz que: "é difícil conviver com isso porque não dá pra vigiar as crianças 24 horas por dia, até porque elas têm muito que fazer durante o dia (relato pessoal, novembro de 2013)." Contrapondo essa ideia, Cláudia fala que "não é preciso vigiar. Deixar os filhos sozinhos exige educação e valores" (relato pessoal, novembro de 2013). Quais alternativas podemos pensar para termos um cuidado libertador para com essas crianças?
O recorte do diálogo citado nos mostra que muitas pessoas valorizam a relação que estabelecem com os filhos, sustentada em valores e educação, acreditando e potencializando aspectos da criança que possibilitam a ela aprender estar e se desenvolver no mundo, em consonância com a concepção do adulto. Um dos pilares para se atingir isso é a educação. Para muitos, essa postura, bem como a rotina escolar e o brincar, são pilares da infância, e essa afirmação está diretamente ligada à ideia universalizada da infância moderna. Podemos observar isso na fala de João: "Às vezes queremos sobrecarregar nossos filhos com atividades e esquecemos que são apenas crianças, mas que devemos deixar claro, desde pequenos, que existem momentos de brincar e de se preocupar" (relato pessoal, novembro de 2013).
Essa crença não estaria ligada também a uma possível adulteração da infância? Relativizar e ressignificar a infância, o modo de ser criança (se é que existe um "modo de") é muito importante para ampliar o olhar e compreensão para como as crianças sentem e vivem sua infância.
Problematizar de forma cuidadosa as instâncias sociais, dentre elas a infância, é importante para que compreendamos e desconstruamos preceitos que generalizam os indivíduos, marginalizam sua alteridade e autonomia, promovendo uma massificação de existência em meio à singularidade dos sujeitos.
O mundo é de quem tem dinheiro: quem pode tem infância
Para compreender e problematizar as questões sociais contemporâneas é preciso ter em vista que elas foram se constituindo num processo histórico. Conhecer o passado é necessário para problematizar e transformar o momento contemporâneo.
A constituição da subjetividade, os projetos de vida, os papéis e as relações sociais constituídas no sistema capitalista que rege o modelo de funcionamento social origina inúmeras consequências, sendo uma delas a desigualdade social (NARDI, 2003). Assim, a desigualdade social passa a ser condição e consequência para o capitalismo.
A discrepância no padrão de vida dos sujeitos é avassaladora. O acesso a condições consideradas básicas, como saúde, alimentação, educação, trabalho e lazer, é bastante restrito, dependendo da classe a que o sujeito pertence (SAWAIA, 2009).
Pensamos que a consciência material está diretamente ligada à consciência individual e humana. Assim, inúmeras famílias, cujo acesso a direitos é limitado, se constituem como sujeitos de acordo com a condição social em que está imerso. Isso pode ser visto na fala de Sheila quando ela diz: "o mundo é de quem tem dinheiro mesmo (...) quem pode tem infância boa." Ao dizer isso, Sheila relata a opressão e o lugar de exclusão que ocupa na sociedade.
O discurso universal de que o lugar a ser ocupado por quem não tem acesso a padrões sociais abastados é um lugar periférico, marginalizado, perante outras classes sociais, é vivido pelas pessoas que experienciam esse sofrimento, restringindo seu repertório de vida, mantendo-se às margens de si mesma.
O individualismo, a competitividade e o consumismo são outros atributos que sustentam a sociedade contemporânea capitalista. Consumimos aparências, pessoas e mercadorias, submetendo a vida ao valor de troca e uso. Por essa lógica de sistema, podemos compreender que as pessoas em situação de pobreza não têm acesso a um padrão de vida que lhes permita o mínimo de condições necessárias a uma vida digna, por isso se sentem invisíveis perante a sociedade. É importante que problematizemos e critiquemos essa sociedade consumista, desumana, para que não aceitemos e naturalizemos a desigualdade social e a pobreza. Em sua fala carregada de sentimentos de revolta e injustiça, que nos mobiliza, Luiz conta: "Os pobres são desprezados. Quando vou ao shopping as pessoas ficam me encarando e os vendedores nem me atendem. Isso é por conta da desigualdade" (relato pessoal, novembro de 2013).
A fala desse homem nos toca para a mercantilização do humano, isto é, o sentido de existir tem dado lugar para o sentido do consumir. O consumo tem perpassado o sentido de sobreviver. Em nossa cultura, não se consomem apenas objetos, mas também sentimentos, ideais e valores, promulgando o consumo do humano.
Eduardo, a seguir, em seu discurso, nos aciona para as justificativas e conformismos de uma sociedade desigual. No momento em que Luiz encerra o que dizia sobre a desigualdade, Eduardo diz: "O pobre usa droga e depois reclama que a sociedade não lhe abre as portas" (relato pessoal, novembro de 2013).
É recorrente acusar o pobre de usar drogas e manter-se no lugar em que está, reforçando o estereótipo: pobre, culpado, incompetente. A compreensão de tal uso é múltipla. Quando ampliamos esses pensamentos para como se dá o modo de funcionamento social, a cultura em que estamos imersos, a forma como lidamos com questões pessoais e universais, passamos a problematizar a realidade que nos cerca, responsabilizando também outras entidades pela situação atual. Em um momento da roda de conversa, Marília fala:
Quem possui uma situação financeira melhor não tem tempo para os filhos, se preocupando mais em ir ao salão, academia e em querer mais, deixando os filhos soltos, pode dar para os filhos o de melhor, mas eles não têm a presença. É a babá que cria os filhos (relato pessoal, dezembro de 2013).
Logo depois, Marlene complementa dizendo: "Foi o que aconteceu, meu filho foi para o mundo das drogas, ele ficava muito sozinho" (relato pessoal, dezembro de 2013). Com base nesses relatos, podemos problematizar como tem sido a relação entre os pais e seus filhos perante as obrigações e responsabilidades cotidianas e o lugar e atenção dada a eles.
Cada sujeito é composto por um universo de histórias e vivências que atravessam seu modo de pensar e estar no mundo. Ter um olhar cuidadoso e crítico para a realidade que se apresenta, antes de fazermos julgamentos à luz do desconhecido, é importante para construirmos espaços de reflexões e transformações. (SAWAIA, 2009)
A desigualdade social ameaça a existência e cerceia a experiência, a mobilidade, a vontade, além de impor diferentes formas de humilhação e de bloquear o poder do corpo de afetar e ser afetado, rompendo até mesmo com a conexão e sintonia entre mente e corpo.
Neste trabalho, em parceria com fragmentos de muitas vozes e de algumas reflexões teóricas que dialogam e pensam as relações entre a infância e a desigualdade social, incitamos compreender melhor o reflexo do funcionamento e da dinâmica social na constituição da subjetividade e do modo de viver dos sujeitos na contemporaneidade. A partir dessa compreensão, é possível transformar o pensamento crítico em ação, levando em conta a responsabilidade que temos nesse processo bem como a potencialidade para modificá-lo.
Brincadeiras e os sentidos do brincar
A brincadeira é uma das atividades que permitem à criança desbravar o contexto que a cerca e conhecer a si própria. Conforme Vygotsky (1998), em um de seus trabalhos citado por Rolim, Guerra e Tassigny (2008), a brincadeira promove o desenvolvimento da criança por proporcionar saltos qualitativos na formação dos processos psicológicos complexos. Segundo o autor, "a brincadeira com situação imaginária é algo essencialmente novo [...] é um novo tipo de comportamento, cuja essência encontra-se no fato de que a atividade, na situação imaginária, liberta a criança das amarras situacionais" (VYGOTSKY, 1998. p.7).
Compreendemos que o brincar revela o modo como a criança se relaciona com diversas instâncias, como o próprio objeto com que brinca, com outras crianças, com os adultos e com o mundo, sendo uma atividade mediada pela cultura. Somados a essa ideia, aspectos peculiares como idade, sexo e classe social também dizem sobre o ato de brincar, já que enunciam a realidade e o momento histórico vivido pela(s) criança(s), permitindo-nos compreender melhor o universo desse sujeito.
Todavia, o contexto histórico, os aspectos culturais e sociais estão sujeitos a mudanças constantes, fazendo que a infância sofra mudanças, apresentando-se como uma construção do grupo social e não uma essência universal em si (CASTRO, 2002). Assim, o estranhamento ou recusa dos adultos diante da infância atual pode decorrer da "morte" da infância que ele experenciou e não necessariamente da infância de hoje em dia. Isso pode ser visto nas falas a seguir de Maria e Cláudia:
"Falar de infância me faz lembrar muitas brincadeiras. Eu, por exemplo, gostava muito da brincadeira de 'passar anel' e hoje em dia ninguém mais brinca disso" (Maria - relato pessoal, dez. 2013).
"Minha infância foi muito boa, não me esqueço dela. Mas acho que muitas crianças brincam para esquecer coisas ruins" (Cláudia - relato pessoal, dez. 2013).
Em sua fala, Maria se recorda da infância que viveu. Entretanto, tal sentimento é acompanhado pela comparação entre a infância de gerações diferentes; logo, de olhares, sensibilidades, experiências, brincadeiras e jeitos diferentes de ser criança. Essas diferenças geram sofrimento para muitos adultos que por vezes enunciam que "ninguém mais brinca"(Maria) ou que a "infância morreu", não compreendendo ou dialogando de forma flexível com a infância atual.
Castro (2002) nos incita a pensar quando apresenta algumas perguntas: "Como e por que somente a infância acabou? Quem matou a infância? O que nos mobiliza quando cogitamos que a infância morreu? O que parece é que as crianças não estão preocupadas com isso; esse julgamento advém dos adultos." A autora nos diz que esse sofrimento está sustentado na ideia de que a única infância possível e positiva é a que o adulto viveu. Não há um cuidado ou versatilidade desse adulto em entender que a infância pode reverberar de outras formas em cada geração, havendo julgamentos e comparações entre a sua infância com a infância contemporânea. Vale lembrar que quando se comparma dois aspectos, um deles se sobressai, deixando o outro lado em menos valia. Portanto, a comparação deveria ser substituída por uma compreensão das diferenças nos modos de ser e viver a infância.
O olhar do adulto pode repercutir no olhar e sensibilidade da criança para o mundo, já que ela aprende na interação e relação com o que lhe é externo. Assim, essa concepção de uma infância prejudicada [itálicos nossos] que o adulto enuncia reflete na concepção de infância que a criança está construindo.
O olhar e a compreensão da criança sobre o mundo, e as experiências que ela vivencia, portanto, são atravessados por outras afetações que vão além do olhar do adulto. Entrelaçado a valores, aspectos culturais e sociais, deparamo-nos novamente com a instância material, que dita os hábitos e estilo de vida dos sujeitos. No contexto contemporâneo, sentimos que o ser dá lugar ao ter, isto é, a natureza humana dá lugar ao consumo, ao culto à beleza e à normatização da vida. E isso é recorrente desde a infância, como será abordado a seguir.
Mãe, me compra um vídeo game? : relação entre infância e mídia
Quando a criança nasce, ela é inserida em uma cultura anterior a ela. Pensando nos dias atuais, a contemporaneidade tem-se caracterizado pela cultura da produção e do consumo que atravessa e sustenta o modo de ser dos sujeitos e as suas relações sociais (CAMPOS; SOUZA, 2003). Assim, podemos entender que um dos fatores que participam da constituição dos sujeitos são os aspectos materiais presentes na cultura que os circundam. Logo, a criança não conhece um mundo sem a presença de aspectos como o consumo e veículos midiáticos que, muitas vezes, estão entrelaçados à cultura do consumo.
O hábito de consumir está presente e move a sociedade contemporânea em que estamos inseridos. Os desejos humanos, geralmente, têm sido convertidos em bens materiais e no consumo, havendo uma padronização no modo de ser dos sujeitos, que buscam a satisfação e felicidade por meio da obtenção de bens (SOUZA, 2000).
Apesar do prazer e da alegria das pessoas por estarem ligadas ao consumo e ao acesso a recursos midiáticos, como podemos pensar no usufruto desses elementos de forma benéfica e saudável? Por que tantos adultos questionam e refutam a infância atual imersa em recursos tecnológicos, se eles mesmos a sustentam nessa configuração? (SOUZA, 2000)
A relação entre os filhos e seus pais passa por constantes momentos de ressignificação. As novas configurações de família, a rotina de trabalho dos adultos e o papel da escola na vida das crianças são alguns dos fatores que movem essas ressignificações, podendo aproximar a criança das artimanhas contemporâneas que participam do movimento de tecer uma identidade parcial e volátil, mediatizadas por identificações da ordem do virtual na cultura do consumo.
Diante desse quadro, percebemos que os ensinamentos ditados pela mídia exercem grande poder sobre nós, estando à frente até mesmo da relação entre pais e filhos, e isso pode acarretar muitas consequências. Reginaldo nos alerta para isso quando diz: "para que as minhas filhas sejam melhores do que eu, depende dos valores que passamos para elas, e devemos peneirar o que vemos na mídia" (relato pessoal, nov. 2013).
Uma das consequências mais radicais dentre os sentimentos contemporâneo é o de que crianças e adultos não mais se misturam, pois tendem a construir suas vidas separadamente, estando enclausurados em suas atividades, dando espaço para que outros recursos ocupem o vazio entre as partes - nesse caso, a mídia - ainda que não seja o mais saudável para a criança.
Quando Reginaldo nos diz que devemos peneirar o que vemos na mídia, compreendemos que ela pode oferecer diversos conteúdos para todos, mas, ainda assim, muitos pais os deixam conectados à TV, vídeo game e em outros recursos midiáticos, deixando de alguma forma em débito a relação entre eles, pais, e seus filhos. Vale ressaltar que nos recursos da mídia encontramos programas que engrandecem e colaboram de forma positiva para o desenvolvimento e lazer das crianças; é importante refletirmos sobre a finalidade e o modo como tais recursos têm sido utilizados.
A deficiência no diálogo e no contato entre adultos e crianças pode ser um dos precursores nas dificuldades encontradas, que acalentam o sofrimento e os desejos das crianças, fazendo que tais satisfações sejam atendidas em outros lugares. Essa busca, que acaba por gerar sofrimento nos pais, pode ser visualizada na fala de Edna, quando ela nos diz: "Hoje está tudo diferente. Menino não gosta de brincar, gosta de vídeo game e de namorar" (relato pessoal, nov. 2013).
Não devemos desconsiderar as mudanças contextuais que ocorrem ao longo do tempo. Entretanto, o distanciamento em relação à criança e ao adulto contribui para que ela busque um novo jeito de estar no mundo cultural, havendo uma inserção mediada por identificações da ordem do virtual (SOUZA, 2000). Além do mais, atentar para o lugar de onde esse sofrimento advém (dos pais ou dos filhos) também é importante para compreendermos e lidarmos com ele.
Em um momento da roda de conversa, Rogéria fala que "quando se tem diálogo, a criança, mesmo pequena, entende" (relato pessoal, nov. 2013). A ausência do diálogo é também sentida pelos pais que reconhecem o valor do diálogo e acreditam que seja a melhor ferramenta para estar com/educar seus filhos.
A infância está transitando a todo o tempo de um lugar social em que é considerada passiva, inacabada, para um lugar ativo, consumista de valores e produtos, transformando sua maneira de inserir-se na sociedade.
Solange esclarece esse fato quando conta brevemente de sua infância: "Quando eu era criança fazia somente o que meus pais desejavam" (relato pessoal, nov. 2013).
Luiza complementa dizendo que "hoje é tudo diferente, pois muitas crianças brincam muito e só nos computadores." (relato pessoal, nov. 2013).
Com base nessa fala, podemos perceber que a infância era compreendida por ela com uma visão universalizante, a qual compreende a infância como uma fase em que os sujeitos são passivos, inaptos a terem voz perante a família e o Estado, pois são frágeis e submissos.
A fala de Solange nos faz pensar no papel ideal e universalizador da criança relatada; e tomar consciência disso transforma nosso olhar generalizador e (des)potencializador para a criança, possibilitando inclusive diferenciar e conhecer os aspectos que diferenciam a infância antiga da infância contemporânea.
Ressalvo novamente que os veículos midiáticos são compostos também por aspectos positivos e saudáveis. Portanto, atentar para a escolha de quais programas disponibilizar para a criança e para o modo como esses recursos são utilizados é importante para usufruto saudável de tais veículos. Assim, em alguns momentos se faz necessário colocar limites, regular o que as crianças acessam nos veículos midiáticos.
A propagação de estudos que viabilizem compreender o diálogo entre a mídia, a cultura do consumo e o processo reflexivo e crítico de constituição da subjetividade da criança na contemporaneidade pode ser um caminho de possibilidades saudáveis para os adultos perante uso desses meios.
Considerações Finais
Estudar, viver e sentir a Psicologia faz que aflorem teias de sentimentos e reflexões em nós. Nomeamos de teias, pois é uma mistura de impressões e pensamentos que se cruzam, ampliando nosso repertório de vida e desalinhando saberes e verdades previamente constituídos.
A experiência na sala de espera exemplifica isso. Passamos a compreendê-la como um espaço de pensar e transformar, construindo reflexões que possam ressignificar as experiências vividas e a nós próprios, por meio do diálogo e da troca.
O cenário da sala de espera é recheado de ruídos, inquietações e outros desafios, tanto para as estagiárias que conduziram as atividades, quanto para os usuários do serviço, que se envolveram nas mesmas. Ultrapassar esses desafios e propiciar diálogos reflexivos foi uma conquista. Falando do lugar de estagiária, tais desafios nos sensibilizam para o cuidado e firmeza que devem existir em nossa prática como psicólogas.
Nos encontros em que conversamos sobre a infância, muitas reflexões foram construídas, assim como verdades foram problematizadas por nós e pelos próprios usuários. Falas regadas de sofrimento, nostalgia, indignação, alegria e lembranças marcantes foram compartilhadas, construindo assim um lugar de escuta generosa por todos os envolvidos na atividade.
As rodas de conversa foram momentos em que muitos universos existenciais se encontraram e se apropriaram do papel de protagonistas diante de suas dores, alegrias, fracassos e dificuldades, e isso é um importante passo na desconstrução de verdades que dificultam relações mais próximas e sensíveis. Falarmos sobre a infância contemporânea contribuiu para que as pessoas olhassem com cuidado para uma fase de sua vida, na vivência de sua infância ou na vivência da maternidade/paternidade. O ato de compartilhar vivências uniu os sujeitos que ali estavam, promovendo troca de experiências e aprendizados para cada um, devido a identificações, ou não, do que era relatado.
Nessa experiência, pudemos compreender que o sofrimento presente na fala de muitos sujeitos que participaram das rodas de conversa se sustenta na dificuldade em lidar com a "configuração" da infância atual, visto que seu modelo de referência é a infância que ele teve ou imagina ter tido, tendo como possível consequência a desqualificação e até a não aceitação infância contemporânea.
Fatores culturais, políticos, afetivos, econômicos e sociais atravessam a existência dos sujeitos, afetando seu modo de ser e de sentir o mundo. Tais elementos são dinâmicos e estão diretamente ligados ao momento histórico em que cada sujeito vive, sendo singular a forma como eles o afeta. Somado a esses fatores, vale lembrar que os sujeitos se constituem pelas relações que ele estabelece ao longo de sua vida. Os adultos e seu modo de viver são alguns dos referenciais de vida para as crianças.
Assim, é pertinente pensarmos sobre o olhar e a postura da relação do adulto diante dos elementos de seu cotidiano, tais como a mídia, recursos tecnológicos, profissão, lazer e com os demais, pois isso forma a teia de constituição da criança. Desse modo, afirmar o fim da infância, por si só, sem responsabilizar-se e refletir sobre a sua participação como adulto na sustentação da infância, em seus moldes atuais, é algo vazio e um tanto quanto perverso.
O discurso massificador de que "a infância acabou" ou que "as crianças de hoje não sabem o que é ter uma infância" tende a ser apropriado e reproduzido pelas pessoas. A angústia em pensar e entrar em contato com a infância atual dificulta o modo de lidar com as crianças. Desse modo, problematizar e construir significados acerca da infância e seu possível término e/ou dinamismo é importante, pois a infância existe em sua pluralidade e nos cerca a todo o momento.
Diante das falas destacadas nesta pesquisa, nos sensibilizamos para as ressonâncias que o contexto social, material e a dinâmica das relações entre pais e filhos /adultos e crianças exercem na constituição dos sujeitos e na vivência da infância. No caso das relações entre pais e filhos, conciliar as obrigações cotidianas e o estar com /educar os filhos têm sido desafiador para os pais.
Como dissemos anteriormente, nossa ação, sustentada em diálogos em rodas de conversa na sala de espera de uma UBS, buscou colaborar com a construção de um espaço para reflexões e debates que contemplem o momento contemporâneo, em especial a infância. Para tanto, foi preciso que os participantes voltassem o olhar para si e também para a comunidade a que pertencem, buscando atentar para o cuidado com esse olhar e com as concepções feitas sobre o assunto.
Essa experiência também viabiliza e legitima outros lugares e formatos para atuação do psicólogo, em especial na atenção primária em saúde. Estar nesse lugar ousado e possível nos remete à superação de desafios, nos exigindo flexibilidade, cautela e respeito com o outro e com a comunidade da qual ele advém, além de uma escuta e intervenções que sejam cuidadosas e promovam ressignificações cotidianas.
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