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Revista de Psicologia da UNESP
versão On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.1 Assis jan./jun. 2018
ARTIGOS
Estudos de casos em psicanálise na literatura on line: uma revisão narrativa
Maria Elizabeth Barreto Tavares dos ReisI; Maria Gabriela Montresol SanchesII; Danielle Cerci MostagiIII
IDoutora. Docente na Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil
IIMestranda do curso de Psicologia na Universidade Estadual de Londrina
IIIMestranda do curso de Psicologia na Universidade Estadual de Londrina
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo realizar uma revisão narrativa sobre os estudos de caso e os relatos de experiências clínicas fundamentadas na psicanálise, disseminados nos últimos cinco anos por meio de artigos científicos publicados na versão on line. Os descritores empregados foram "relato de experiência" and "psicanálise" or "psicoterapia psicanalítica" e "estudo de caso" and "psicanálise" or "psicoterapia psicanalítica", sendo incluídos artigos disponibilizados na íntegra, entre os anos de 2013 e 2018. Foram selecionados e analisados 28 artigos, considerando a descrição dos próprios autores quanto à metodologia utilizada em cada estudo. As metodologias encontradas foram: estudo de caso clínico, narrativa com análise da relação transferencial, método clínico com referencial psicanalítico, relato de caso sem especificação do método utilizado e metodologia narrativa. Conclui-se que as publicações em psicanálise relacionadas diretamente à escrita da clínica não apresentam uma padronização de métodos.
Palavras-chave: Estudo de caso, relato de experiência, psicanálise, revisão narrativa
ABSTRACT
This article aimed to carry out a narrative review of the case studies and the reports of clinical experiences based on psychoanalysis, disseminated over the last 5 years through scientific articles published in the online version. The descriptors employed were "experience report" and "psychoanalysis" or "psychoanalytic psychotherapy" and "case study" and "psychoanalysis" or "psychoanalytic psychotherapy", including articles made available in full between 2013 and 2018. We selected and analyzed 28 articles, considering the authors' own description of the methodology used in each study. The methodologies found were: clinical case study, narrative with analysis of the transferential relation, clinical method with psychoanalytic framework, case report without specification of the method used, and narrative methodology. It is concluded that publications in psychoanalysis, directly related to clinical writing, do not present a standardization of methods.
Keywords: Case study; experience report; psychoanalysis; narrative review
Introdução
A psicanálise foi inaugurada por uma postura investigativa de seu fundador, com base em suas experiências clínicas. De certa forma, no atendimento aos seus pacientes, além do objetivo terapêutico próprio desse enquadre, Freud também estava realizando pesquisa. O exercício clínico de Freud levantou questionamentos às teorias e incentivou mudanças quanto às técnicas até então constituídas (Silva & Macedo, 2016).
Escrever um caso clínico em psicanálise não é um exercício neutro e imparcial; além disso, não é possível dissociar o estudo de caso da teoria psicanalítica (Castro, 2010). O relato de caso em psicanálise é diferente dos relatos em outras teorias, pois, na perspectiva psicanalítica, não há diferença entre a dimensão investigativa e de tratamento em psicanálise. Nesse sentido, cabe o cuidado quanto ao relato de caso, que se encontra no campo da escrita. Ao relatar um caso se escreve sobre um sujeito que disse de si, o sujeito da fala não é o mesmo da escrita; desta forma há preocupação quanto à objetividade e a empiria (Castro, 2010).
A principal função da narrativa de um caso clínico atendido na clínica psicanalítica consiste em expor o saber adquirido. Mediante o relato de um caso clínico, é possível questionar, reformular ou até mesmo refutar o que já foi abordado na teoria psicanalítica. Nesse sentido, é importante indagar em que condições um caso é relatado e discutido; o saber pode ser envolvente quando se encontra em um caso a possibilidade de trazer à tona o que foi anteriormente esquecido (Vorcaro, 2010).
Além de auxiliar o próprio psicoterapeuta a organizar os conteúdos de uma sessão e possibilitar a construção de novos significados, o relato de experiências clínicas em psicanálise, quando disponibilizado em bases científicas, tem a função principal de disseminar os conhecimentos teórico-metodológicos, possibilitando assim que outros tenham acesso a eles de maneira mais ativa.
Considerando o interesse em verificar o estado da arte em relação à comunicação das atividades realizadas pelos profissionais na clínica psicanalítica atual, realizou-se o presente estudo com o objetivo de revisar os estudos de caso e os relatos de experiências clínicas fundamentadas na psicanálise, disseminados nos últimos cinco anos por meio de artigos científicos publicados na versão on line.
Método
Foi realizada uma revisão narrativa da literatura que, de acordo com Ribeiro (2014, p. 676), consiste em: "... estudos apropriados para descrever e discutir o desenvolvimento ou o 'estado da arte' de um determinado assunto". Logo, parte de um tópico abrangente de pesquisa, que possibilita a revisão de literatura de informações publicadas anteriormente, realizando uma síntese qualitativa dos estudos encontrados.
Foi realizado um levantamento de publicações, abrangendo o período de junho de 2013 a junho de 2018, nas bases de dados Scientific Eletronic Library Online (Scielo), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Portal de Periódicos Eletrônicos de Psicologia (Pepsic), com as palavras-chave "relato de experiência" and "psicanálise" or "psicoterapia psicanalítica", "estudo de caso" and "psicanálise" or "psicoterapia psicanalítica".
Os critérios de inclusão utilizados foram: artigos científicos disponibilizados integralmente nas bases de dados e estudos decorrentes de atendimento individual em psicanálise ou psicoterapia de base psicanalítica disponibilizados on line. Os critérios de exclusão foram: artigos teóricos, estudos sobre eficácia de atendimentos clínicos mediante aplicação de instrumentos e estudos decorrentes de atendimento realizados em contexto não clínico. Inicialmente, a seleção dos artigos foi conduzida a partir dos títulos e resumos e, em caso de dúvidas, procedeu-se à leitura completa. Assim, foram selecionados artigos fundamentados na teoria psicanalítica que tiveram como objetivo principal discutir atendimentos clínicos e sua interface com a teoria, tendo em vista a importância da discussão de casos clínicos, a fim de organizar os elementos passíveis de análise no contexto clínico.
A análise dos artigos foi realizada com base na leitura pormenorizada, seguida de construção de categorias a respeito dos tipos de estudos realizados em cada artigo.
Resultados
Na primeira seleção foram encontrados 160 artigos publicados a partir de 2013. Após a leitura dos resumos, foram excluídos 134 artigos, que não atendiam aos critérios de inclusão propostos. A base de dados com maior número de artigos indexados foi a Lilacs, seguida por Scielo e, por fim, a base de dados Pepsic. Embora se tenha encontrado um número expressivo de artigos referentes ao tema proposto, houve muitos estudos repetidos nas diferentes bases. Além disso, foram encontrados estudos que se utilizam de entrevistas como instrumento de coleta de dados, outros relativos a atendimentos grupais e artigos essencialmente teóricos, que foram descartados por não atenderem aos objetivos do presente estudo. Desse modo, foram selecionados apenas 26 trabalhos, listados na Tabela 1.
Verificou-se que dois artigos científicos foram publicados em 2013, cinco em 2014, quatro artigos em 2015 e sete em 2016. Em 2017 foram encontrados cinco artigos e, em 2018, apenas um artigo. Convém ressaltar que, nos anos de 2013 e 2018, foi analisado apenas um semestre, a fim de abranger o período de cinco anos, conforme os critérios propostos para a revisão narrativa. Constatou-se que houve aumento de publicações sobre o assunto nos anos de 2015 e 2016, o que leva a compreender que a pesquisa tem sido considerada importante na atualidade, considerando que os relatos de caso são estratégias importantes na construção do método e pesquisa psicanalítica (Zaneti & Kupfer, 2006).
Após a leitura completa e análise dos 24 artigos selecionados para a confecção desta revisão, eles foram separados em 4 categorias: Estudo de caso clínico, Relato de caso sem método específico, Método clínico com referencial psicanalítico e Metodologia Narrativa. As divisões em categorias se basearam na descrição dos métodos utilizados e nomeados pelos respectivos autores de cada estudo realizado.
Discussão
As categorias construídas para análise foram: estudos de caso clínico, relato de caso sem método específico, método clínico com referencial psicanalítico e narrativa. Elas serão analisadas a seguir.
Estudo de caso clínico
Por meio da análise dos textos percebeu-se que, embora os textos apresentem alguma forma de organização dos elementos trabalhados, na seleção da temática e análise de conteúdos não se segue um mesmo padrão científico a fim de eliminar possíveis vieses.
Foram encontrados nove (Barroso, 2015; Gonçalves, 2017; Leitão, 2017; Medeiros, 2013; Oishi, 2014; Osti & Sei, 2016; Risk & Santos, 2015; Silveira, Feitosa, & Palácio, 2014; Zanetti & Cianca, 2017) artigos referentes a estudos de casos clínicos. Eles iniciam com a descrição do referencial teórico utilizado e a temática, que geralmente é apresentada de forma minuciosa e densa, a fim de informar o leitor sobre os objetivos pretendidos. Percebe-se que, de forma geral, os objetivos são delineados ao final da parte introdutória do artigo. Posteriormente, apresentam a descrição e análise do caso com base nos conceitos teóricos da psicanálise.
Medeiros (2013), antes de inserir em seu artigo o relato de caso, explorou a temática do abuso sexual infantil de forma detalhada. A autora trouxe a caracterização da violência sexual infantil e as consequências para o comportamento da criança, justificando assim a importância do tratamento psicoterápico a fim de ressignificar as experiências traumáticas. Nesse sentido, o detalhamento do caso em forma de relato possibilitou a ilustração do momento terapêutico e os manejos por parte do analista, a partir dos sentimentos evocados durante as sessões.
Nessa mesma perspectiva, Risk & Santos (2015) abordaram a importância das experiências emocionais vividas pelo analista por meio da comunicação inconsciente de uma paciente em constante desintegração, de forma que as dificuldades vivenciadas no setting terapêutico pelos pares comunicavam os conflitos psíquicos e a necessidade de manejar cuidadosamente as interpretações, a fim de não provocar a desestruturação da paciente. A importância de conduzir o manejo na relação analítica foi explorada também por Zanetti & Cianca (2017). Por meio de relato descritivo e de inserção de vinhetas clínicas, as autoras exploraram a importância de sustentar um ambiente suficientemente bom com uma paciente marcada por falhas no cuidado, que resultaram em uma organização psíquica comprometida.
Considerando a importância da relação transferencial, Leitão (2017) traz um relato de caso sintetizado e objetivo sobre as dificuldades de um paciente com relação a seus sintomas de constipação. Por meio da relação transferencial, o analista seleciona palavras com o intuito de analisá-las e traçar um sentido. Também Silveira, Feitosa e Palácio (2014), na mesma modalidade de análise, buscaram compreender o sintoma corporal de uma paciente como sofrimento real. Diante de cadeias associativas, compreendem-se os sintomas como portadores de uma face de satisfação para ambos os sujeitos, cada qual com sua função.
A sintomatologia é explorada por Barroso (2015) dentro de outra perspectiva, ao trazer vinhetas clínicas para ilustração do caso; o autor aborda a vivência de um paciente que faz uso de drogas como objeto para aliviar a agitação corporal. A relação do paciente com esse objeto artificial é compreendida pela função de tamponar os sintomas, sendo assim uma resposta singular para quem dela faz uso.
Sob outra temática, Oishi (2014) traz, por meio de relato e vinhetas clínicas, o processo de luto vivido por uma mãe de um bebê recém-nascido. A autora busca explorar os aspectos fundamentais de um acompanhamento psicológico para esse tipo de caso e ainda o lugar de acolhimento e escuta, no intuito de possibilitar à mãe a elaboração de um luto saudável. Tratando-se ainda do setting como lugar de elaboração, Gonçalves (2017) desenvolve, em seu estudo de caso clínico, o processo de subjetivação de uma criança autista a partir da relação terapêutica e de um lugar proporcionado no setting. Ao desenhar, a paciente ilustra seu processo elaborativo e de constituição como sujeito.
Por fim, Osti e Sei (2016) exploram o setting terapêutico como facilitador das expressões da criança, após o estabelecimento da transferência. Os relatos de sessão enfatizam a importância da família no atendimento infantil, já que a criança era a portadora do sintoma familiar - as manifestações sintomáticas da criança estavam relacionadas às falhas constitucionais. Nesse sentido, foi necessário acolher não apenas a demanda da criança, mas também as angústias do grupo familiar.
Conforme análise dos estudos de casos clínicos, percebeu-se que não foram utilizadas estratégias específicas para aumentar a confiabilidade dos estudos, pois, por se tratar do método psicanalítico na construção de casos clínicos, não se objetiva mensuração e provas empíricas, e sim possibilitar reflexões sobre investigação teórica e prática clínica, em profundidade, justificando assim a escolha dos autores por estudar casos únicos em profundidade.
Relato de caso sem método específico
Os relatos de casos são instrumentos imprescindíveis para realizar pesquisa em psicanálise. Nessa modalidade, considera-se importante manter um foco para possível teorização posterior. Verificou-se que as dez produções teóricas colocadas nessa categoria (Bernardino, 2015; Cordeiro & Ortiz, 2015; Costa, 2017; Höfig & Zanetti 2016; Leitão & Cacciari, 2017; Malki, Oliveira, Rosa & Tardivo, 2016; Michels & Holst, 2016; Reis, 2014; Salvador, 2016; Ventura & Nicolau, 2014) apresentam uma mesma estrutura, centrando-se na análise do caso clínico, ao mesmo tempo que discutem e ampliam o corpo teórico psicanalítico. São, portanto, reflexões teóricas motivadas pela clínica, sem se ater, por exemplo, à descrição do método utilizado. Fazem uma breve apresentação do caso clínico, situando o leitor sobre o motivo da busca por tratamento, e centram-se nos relatos das sessões.
As autoras Zanetti e Kupfer (2006) afirmam a existência de uma relação indissociável entre investigação e tratamento, o que os autores analisados nessa categoria buscaram estabelecer na construção de seus relatos de casos. Percebeu-se, entre os artigos em que não houve rigor metodológico quanto à seleção e ilustração do material, que os casos foram expostos conforme a organização dos próprios autores, e as análises de dados foram realizadas de acordo com a teoria psicanalítica, incluindo a influência do psiquismo dos próprios autores (Safra, 1993).
O relato de caso é o ato de escrever a clínica, transformando-a em teoria. Assim, são construções baseadas no setting terapêutico, na situação de tratamento. Nesse grupo estão, por exemplo, os artigos de Cordeiro e Ortiz (2015), que realizaram uma análise teórica prática, centrada nos atendimentos clínicos de clínica-escola, especificamente em como eles foram conduzidos pela psicoterapeuta; de Michels e Holst (2016), que utilizaram vinhetas clínicas de um paciente atendido em psicoterapia psicanalítica, para discutir o tema da morte e o sofrimento psicossomático; o artigo de Salvador (2016), que discutiu a angústia de separação por meio da apresentação de um caso clínico, atendido em psicoterapia de base psicanalítica. Nesta última publicação, o caso clínico é apresentado desde o primeiro momento; com base nos recortes clínicos é que a discussão é realizada. E, ainda, o artigo de Reis (2014), que buscou compreender, utilizando o referencial psicanalítico e vinhetas clínicas do atendimento de uma criança, como ela vivenciou o processo de adoção. Após discorrer teoricamente sobre a adoção, é apresentado o caso e feita sua discussão, sempre com referência aos atendimentos realizados.
Seguindo o mesmo perfil de publicação, centrado no relato de um caso clínico, está o artigo das autoras Höfig e Zanetti (2016), que trouxe alguns conceitos da teoria winnicottiana sobre o desenvolvimento infantil e sobre a ampliação da técnica, além da técnica interpretativa clássica. Assim, discutiu-se a condução e manejo clínico de um atendimento infantil realizado em uma clínica-escola, descrevendo a atuação do psicoterapeuta e a relação estabelecida no setting. De acordo com Silva (2013), essa construção psicanalítica baseia-se na experiência única de psicoterapeuta e paciente, que privilegia a singularidade do caso e coloca em destaque aspectos transferenciais. A relação estabelecida por esse par, desse modo, demonstra a particularidade própria da escrita analítica, na qual o psicoterapeuta - como pesquisador - está vinculado ao seu objeto de estudo, o paciente.
A produção de Ventura e Nicolau (2014) também abordou a questão do manejo na clínica psicanalítica, resultado de uma pesquisa de mestrado sobre a transferência, na clínica, dos fenômenos psicossomáticos. Já Leitão e Cacciari (2017) discorreram sobre a clínica psicanalítica com crianças para, em um segundo momento, apresentar uma vinheta de um caso clínico realizado em uma clínica-escola. Percebe-se, nessas publicações, que, após a introdução de caráter teórico, com o referencial que será utilizado na discussão, são apresentados os casos clínicos, seguidos da discussão utilizando vinhetas dos atendimentos realizados. Esses artigos possuem uma estratégia metodológica própria da pesquisa clínica, na qual o psicoterapeuta, ao comunicar uma experiência, escolhe uma situação de tratamento para desenvolver seu estudo. Há alguns apontamentos anamnésicos que compõem a história clínica, com a apresentação de sessões realizadas em um determinado período. De acordo com Moura e Nikos (2000, p. 70): "(...) o estudo de caso, após realizado, servirá como parâmetro para discussão de uma teoria subjacente à técnica utilizada na condução desta experiência de tratamento."
Ainda nessa categoria, o estudo dos autores Malki, Oliveira, Rosa e Tardivo (2016) teve como objetivo avaliar os sintomas álgicos sob a visão psicanalítica e segue a mesma estrutura dos outros artigos dessa categoria, com uma breve introdução, com a diferença de apresentar o relato de dois casos. Já em Costa (2017), foi abordado um grupo de pacientes que apresentaram algumas características em comum, para discorrer sobre mudanças na prática clínica do autor nos últimos 15 anos. Esses dois artigos diferem dos demais colocados nessa categoria por apresentarem a discussão de mais de um caso.
Já o artigo de Bernardino (2015), mesmo sem apresentar um campo específico para a descrição do método de pesquisa utilizado, apresenta um fato clínico, que é um ponto que gera uma questão, e que motivou, segundo a autora, a escrita do artigo. O fato clínico consiste em uma produção textual do psicoterapeuta que, após o fato, isto é, após o atendimento, empreende uma reflexão documental do relato. Logo, o material pesquisado e analisado não se refere às sessões, mas à produção do analista em forma de narrativa.
Portanto, os artigos, nessa categoria, são construídos, essencialmente, por meio das falas de pacientes, e as características clínicas relatadas pelos sujeitos analisados são utilizadas para discutir a teoria psicanalítica. Constata-se que o relato de caso traz um recorte do material clínico feito pelo analista, que se utiliza de vinhetas clínicas, fragmentos do que realmente acontece em um tratamento. Por meio desses momentos escolhidos e privilegiados, são realizadas as construções dos casos, que possibilitam aos psicoterapeutas refletirem sobre a prática clínica de acordo com a fundamentação teórica em que se baseiam.
Metodologia narrativa
A metodologia narrativa em psicanálise foi utilizada em três artigos analisados (Costa, Ribeiro, Volpato & Abrão, 2013; Oliveira & Froemming, 2016; Silva, 2014). A estratégia metodológica em questão não apresenta rigor e é empregada a fim de possibilitar discussões e a emergência de novos conceitos e manejos. Percebe-se que não há uma forma instituída para se apresentarem os relatos de casos em forma de narrativa; a estratégia utilizada coincide com as bases teóricas e objetivos dos autores dos artigos.
Oliveira & Froemming (2016) e Silva (2014) iniciam seus artigos com uma breve introdução, em que são descritos intrinsecamente os objetivos propostos pelos autores ao construir o caso clínico em formato de narrativa, trazendo fragmentos de sessões que consistem em tornar acessível ao leitor a complexidade dos casos analisados. Desse modo, se percebe que a estratégia utilizada coincide com as bases teóricas e objetivos dos autores dos artigos, mas não há rigor quanto à estrutura textual.
O discurso em formato de narrativa possibilita transmitir ao leitor as dúvidas suscitadas no analista quanto à experiência do manejo transferencial, ao passo que a comunicação no setting não se restringe a relatos verbais, mas inclui também gestos e silêncios, que podem gerar angústia no analista por adentrar o desconhecido. O silêncio tem sido compreendido com base em novas perspectivas e não mais como sinônimo de resistência. Dessa forma, os avanços teóricos e investigativos têm levantado a discussão de um novo lugar da escuta analítica, que busca conhecer as necessidades do paciente não apenas como teoria, mas também mediante reações transferenciais e contratransferenciais, as quais exigem do terapeuta disponibilidade (Costa, Ribeiro, Volpato & Abrão, 2013).
A narrativa se torna real por meio dos personagens abordados e da trama criada pelo próprio analista; é um exercício quando se pretende comunicar o impacto emocional experienciado em sessão. Oliveira e Froemming (2016) conduziram estudo de dois casos de esquizofrenia com base nessa perspectiva, e os fragmentos da narrativa tornam clara a realidade própria da psicose, caracterizada pela fragmentação psíquica. A seleção de material ilustrado também é resultante da relação transferencial e, a partir dela, é estabelecido o diagnóstico psicanalítico, que é diferente quando se fala em estrutura psicótica. A descrição das cenas em vigília em pouco se diferenciava dos relatos oníricos das pacientes; dessa forma, a partir da relação transferencial estabelecida entre analista e pacientes, foi possível identificar a narrativa diferenciada com relação à estrutura neurótica.
Método clínico com referencial psicanalítico
O método clínico com referencial psicanalítico não é rigoroso quanto à estrutura textual. Nos dois artigos categorizados aqui (Matsuo & Carreira, 2015; Mesquita & Martins, 2018), os relatos de caso são descritivos e também se utilizam de vinhetas, a fim de ilustrar a temática. Um dos estudos aborda o processo de alienação subjetiva que faz que a subjetividade seja identificada com o discurso familiar, confundindo-se com o outro e emprestando dele o desejo; já o outro emprega a temática de não alienação no outro. Os processos estruturais trabalhados nos artigos são opostos.
A escolha do material clínico em forma de relato e vinhetas clínicas possibilitou compreender o manejo do analista e o favorecimento de condições que demarcam o limite subjetivo como uma demanda do próprio sujeito analisado, que se encontra alienado ao desejo de sua mãe. Essa necessidade do sujeito tornou-se decifrável através do sintoma e das manifestações deste na relação clínica. Nesse sentido, os fragmentos de sessões asseguraram a compreensão do momento analítico e a necessidade da intervenção, no intuito de instaurar um novo lugar ao sujeito (Matsuo & Carreira, 2015).
Nessa mesma perspectiva, Mesquita & Martins (2018) abordam o autismo e a necessidade de subjetivação que o jovem demanda, ressaltando aspectos relativos ao manejo na condução do processo terapêutico. Compreende-se que, na estrutura autística, houve falhas que implicaram a não existência em relação ao outro; nesse sentido, o autista busca se proteger em seu próprio mundo, evitando imprevistos. Não há no autista a alienação no outro, ao contrário do vivenciado por crianças psicóticas, conforme abordado por Matsuo & Carreira (2015).
Os autores analisados nessa categoria descreveram a metodologia, nos dois artigos, da mesma maneira, porém percebeu-se que os estudos foram abordados, em termos de organização estrutural, de acordo com os objetivos de cada um. Dessa forma, compreende-se que não há rigor metodológico quanto à metodologia clínica com referencial psicanalítico. O intuito, ao utilizar essa estratégia, foi desenvolver a temática a partir do referencial psicanalítico.
Considerações Finais
Historicamente, o relato de casos clínicos tem sido a base de pesquisa da psicanálise e psicoterapia psicanalítica. A maioria dos trabalhos selecionados para análise, no presente estudo, opta por focalizar apenas uma história clínica, e apenas alguns abordam casos múltiplos. Diversos temas são discutidos, tais como: atendimentos infantis relativos a abuso sexual, adoção, autismo, psicossomática, esquizofrenia, anorexia nervosa, entre outros. Nota-se, entretanto, que, independente do tema abordado, a relação terapêutica, o manejo do psicoterapeuta e a transferência, conceitos importantes para a clínica psicanalítica, estão presentes.
A partir de 2015, houve um aumento das publicações referentes à clínica psicanalítica, utilizando a teoria como suporte para discussões e elaborações dessa prática. Contudo, o número ainda é restrito e, de maneira geral, não houve um padrão único quanto à metodologia utilizada pelos autores na condução dos estudos apresentados nos diversos artigos. Percebe-se também que houve diferentes estratégias para a condução dos estudos, conforme critérios dos próprios autores, não havendo um padrão único para apresentação de estudos sobre casos clínicos atendidos em psicanálise e psicoterapia psicanalítica.
O presente estudo convoca a refletir sobre o montante de publicações encontradas, considerando as possíveis dificuldades dos terapeutas para a difusão dessa modalidade de pesquisa em psicanálise. Contudo, deve-se considerar as limitações desta pesquisa, já que foram utilizados apenas três bases de dados para a realização da revisão narrativa da literatura. Logo, é importante a continuação de pesquisas sobre o tema, essencial para a divulgação da clínica psicanalítica.
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Instituição: Departamento de Psicologia e Psicanálise. Centro de Ciências Biológicas. Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil.