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Revista de Psicologia da UNESP
versão On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.1 Assis jan./jun. 2019
ARTIGOS
Desnaturalizando a saúde mental na atenção básica: a percepção de médicos cubanos e brasileiros
Gustavo ZambenedettiI; Bruna Leticia ZarpelonII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIUniversidade Estadual do Centro-Oeste
RESUMO
Esta pesquisa buscou compreender as perspectivas de médicos cubanos inseridos no Programa Mais Médicos e de médicos brasileiros vinculados às equipes de Estratégia Saúde da Família-ESF acerca da saúde mental na atenção básica em um município do sudeste do Paraná. Foi utilizada a abordagem qualitativa, com referencial da análise institucional, sendo realizadas entrevistas com cinco médicos (três cubanos e dois brasileiros). Trabalhamos com a noção de espelho invertido, segundo a qual, contrariando-se a expectativa de que as práticas de cubanos e brasileiros sejam reflexo uma da outra, ocorre um efeito de diferenciação entre elas, produzindo efeitos de desnaturalização. Desse modo, evidencia-se diferentes modos de compreensão acerca da saúde mental, das formas de tratamento e do papel atribuído ao uso de medicamentos, discutindo-se aspectos que atravessam esse cenário. Espera-se contribuir para a construção de uma atuação articulada à dimensão psicossocial de atenção.
Palavras-chave: Atenção Básica, Saúde Mental, Saúde Coletiva, Análise Institucional, Atenção Psicossocial.
ABSTRACT
This research sought to understand the perspectives of Cuban physicians included in the Mais Médicos Program and of Brazilian physicians linked to the Family Health Strategy - ESF teams about mental health in primary care in a municipality in the southeast of Paraná. The qualitative approach was used, with reference to the institutional analysis, and interviews were conducted with five physicians (three Cubans and two Brazilians). We work with the notion of mirror inverted, according to which, contrary to the expectation that the practices of Cubans and Brazilians are reflex of each other, an effect of differentiation between them o ccurs, producing effects of denaturation. In this way, different ways of understanding about mental health, the forms of treatment and the role attributed to the use of medicines are revealed, discussing aspects that cross this scenario. It is hoped to con tribute to the construction of an articulated action to the psychosocial dimension of attention.
Key words: Primary care, Mental health, Collective Health, Institutional Analysis, psychosocial attention.
Introdução
A atenção básica constituiu-se como um importante eixo de estruturação do Sistema Único de Saúde-SUS, com vistas a ampliação do acesso à saúde pela população. Um dos marcos históricos foi a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) em 1991 e do Programa Saúde da Família (PSF) em 1994, os quais passaram por processos de reformulação e expansão ao longo dos anos 2000. Pinto e Giovanella (2018) afirmam que desde o seu surgimento o PSF foi "se tornando a principal estratégia para a ampliação do acesso de primeiro contato e de mudança do modelo assistencial" (p. 1905), sendo a transição para a Estratégia Saúde da Família (ESF) a afirmação de sua constituição enquanto eixo norteador do SUS.
Apesar disso, o processo de expansão da atenção básica não ocorre sem tensionamentos, relativos ao (sub)financiamento, a desproporção entre oferta, capacidade de atendimento e demanda (Souza e Cols, 2008), aos desafios inerentes à mudança de modelo tecnoassistencial e dos processo de formação profissional, entre outros. Diante destes problemas e, em especial, daquele relacionado a insuficiência de cobertura populacional, em julho de 2013 surge o Programa Mais Médicos, primeiro como uma medida provisória e que, em outubro do mesmo ano, tornou-se a lei n° 12.871 (Brasil, 2013a). Segundo Brasil (2015), trata-se de um Projeto do Governo Federal, juntamente com os estados e munícipios, para a melhoria do SUS, com grande investimento nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). O Programa também oferta mais cursos e vagas na graduação de medicina, assim como Residências na área, com o intuito de qualificar a formação médica. O objetivo principal é humanizar o atendimento médico, fazendo com que esses profissionais atuem diretamente nas comunidades, criando vínculos com os sujeitos que são atendidos. O programa se estrutura em 3 eixos: provimento emergencial, qualificação da infraestrutura e mudança da formação, estabelecendo metas a serem atingidas a curto, médio e longo prazo.
Desde seu surgimento em 2013, houve um maior suporte de atendimento à demanda do país, já que os médicos contratados foram distribuídos especialmente em periferias das grandes cidades, em munícipios pequenos, comunidades quilombolas e indígenas, em áreas com populações ribeirinhas, entre outras que não contavam com atendimento médico nas unidades de saúde. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde dimensionam o programa e seu alcance: com três anos de Programa já haviam sido contratados 18.240 mil novos médicos em 4.058 municípios, com incremento de 33% de consultas mensais na atenção básica, chegando a 73% de cobertura do Programa nos munícipios (Brasil, 2015).
Segundo Brasil (2015), a maioria das vagas ofertadas são preenchidas por médicos intercambistas, ou seja, brasileiros que se formaram fora do país, ou mesmo médicos oriundos de outros países. Essas vagas são remanescentes e dão aos médicos estrangeiros visto temporário para o aperfeiçoamento por três anos. Esses médicos fazem avaliações para testar seus conhecimentos em língua Portuguesa nas situações cotidianas da prática médica no Brasil. Em relação as vagas abertas para médicos intercambistas, em sua grande maioria, foram preenchidas por médicos cubanos (Brasil, 2015).
Estudos indicaram avanços atingidos como o Programa, como a ampliação de cobertura e acesso da população à Atenção Básica, o aumento no ritmo de redução das internações sensíveis à atenção básica, a boa avaliação por parte dos usuários, médicos e gestores acerca do atendimento prestado (Pinto e Cols, 2017). E, também, desafios e limites, como a ampliação da atuação de médicos brasileiros e a fixação destes no programa (Pinto e Cols, 2017) assim como a pouca interferência do programa sobre problemas estruturais da atenção básica (Campos, Pereira Jr, 2016). Nessa mesma linha, estudo realizado por Comes e Cols (2016a) com usuários atendidos pelo Programa Mais Médicos em 32 municípios concluiu que os mesmos avaliam com satisfação o atendimento recebido, destacando positivamente as informações recebidas sobre a doença e o tratamento, assim como a clareza e compreensão das orientações, designando bom desempenho técnico e humanização da atenção médica recebida. Estudo realizado com profissionais não médicos das equipes de ESF que receberam o Programa Mais Médicos indicaram que o Programa contribui na presença de traços de integralidade nas práticas de saúde, com o incremento de dispositivos como as visitas domiciliares, o acolhimento humanizado, a escuta atenta, o exame físico minucioso e a continuidade dos cuidados (Comes e cols, 2016b). Silva e Cols (2016) concluíram que há indicadores de que o Programa ampliou o acesso à saúde da população e Girardi e Cols (2016) encontraram dados que indicam que o Programa reduziu o déficit de atendimento médico, apesar de problemas relativos a insegurança gerada pela dependência federal do programa estarem presentes.
Apesar dos estudos já realizados, a interface do Programa Mais Médicos com a saúde mental é ainda pouco explorada, justificando a realização de pesquisas dentro deste escopo.
Lancetti e Amarante (2012) indicam que a atenção básica tem um entrelaçamento com a Reforma Psiquiátrica, pois esta preconiza um tratamento em liberdade e próximo ao território de vida das pessoas como um elemento terapêutico, o que é facilitado pela proximidade territorial e vínculo possibilitados na atuação da atenção básica. Brasil (2013b) enfatiza que a atenção básica deve possibilitar o primeiro acesso da população aos serviços de saúde,
[...] inclusive daquelas que demandam um cuidado em saúde mental. Neste ponto de atenção, as ações são desenvolvidas em um território geograficamente conhecido, possibilitando aos profissionais de Saúde uma proximidade para conhecer a história de vida das pessoas e de seus vínculos com a comunidade/território onde moram, bem como com outros elementos dos seus contextos de vida. Podemos dizer que o cuidado em saúde mental na Atenção Básica é bastante estratégico pela facilidade de acesso das equipes aos usuários e vice-versa (p. 19).
Apesar das potencialidades indicadas, nem sempre há o reconhecimento da saúde mental no âmbito da atenção básica. Estudo de revisão de literatura demonstrou a existência de heterogeneidade de ações de saúde mental na atenção básica, estando o seu desenvolvimento muitas vezes na dependência do profissional se sentir identificado ou preparado para atuar na área, ou de ações de gestores (Correia, Barros & Colvero, 2011). Brasil (2013b) também indica que é comum o profissional da atenção básica sentir insegurança para a realização de ações em saúde mental.
Diante disso, esta pesquisa buscou compreender a percepção de médicos brasileiros e médicos cubanos vinculados à equipes de ESF de um município do interior do Paraná sobre a saúde mental na atenção básica.
A escolha pela abordagem de médicos cubanos e brasileiros visou à criação de um mecanismo comparativo, compreendido enquanto um dispositivo de desnaturalização. Nardi (2008), ao realizar um estudo sobre o estatuto da diversidade sexual nas políticas de educação no Brasil e na França, menciona que a análise de realidades diferentes em relação a um mesmo tema possibilita o efeito de 'espelhamento invertido'1, compreendido como uma distorção do reflexo que se espera com uma pratica, suspendendo verdades que estão naturalizadas na cultura e práticas sociais de um determinado lugar. Em nosso estudo, trata-se de compreender como profissionais provenientes de diferentes países atuam em um mesmo contexto assistencial. Compreendemos que os médicos provenientes de Cuba podem trazer outros referenciais para a compreensão da saúde mental na atenção básica, disparando um efeito de "espelho invertido" em relação as percepções de médicos brasileiros.
Método
Essa pesquisa está constituída através de uma abordagem qualitativa, sob o viés analítico institucional (Baremblitt, 1998; Lourau, 1993 & Aguiar & Rocha, 2007). A Análise
Institucional tem como finalidade produzir dispositivos que auxiliem na desnaturalização de práticas e saberes, produzindo mecanismos para compreender o cotidiano, as relações, as instituições de um modo diferente, buscando pensar através de analisadores que surgem na contradição e nos tensionamentos de práticas e saberes cotidianos.
Para a produção de dados foi utilizada a técnica da entrevista-semiestruturada, que se caracteriza por um roteiro flexível de questões direcionadas a um entrevistado. O projeto de pesquisa previa como participantes os três médicos cubanos vinculados ao Programa Mais Médicos atuantes em uma cidade da região sudeste do Paraná e três médicos brasileiros, não participantes do Programa Mais Médicos, vinculados a equipes de ESF no mesmo município, o que corresponderia a 100% dos médicos atuantes em ESF no município. Porém, um dos médicos brasileiros não aceitou participar, totalizando ao final 5 (cinco) participantes. As entrevistas foram realizadas entre os meses de junho e agosto de 2016.
A pesquisa somente teve início após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Centro-Oeste, sob o parecer número 1.530.418/2016.
Em relação ao processo de análise, procedeu-se a organização dos dados (transcrições das entrevistas) e a leitura do conjunto do material, emergindo três linhas de análise:1) Saúde Mental é igual a doença mental?; 2) Medicalização e medicamentalização; 3) Formação. Cada uma das linhas coloca em evidência controvérsias e tensionamentos relativos ao conceito de saúde mental, ao uso de medicações psiquiátricas e aos modelos de formação. Para a análise dos dados também consideramos a emergência dos analisadores, que segundo Baremblitt (1998), são práticas ou acontecimentos que evidenciam contradições da realidade social.
Na apresentação de trechos das entrevistas os Médicos Cubanos serão identificados como MC e os Médicos Brasileiros como MB, seguidos dos números 1, 2 ou 3.
Resultados e discussões
Saúde mental é igual a transtorno mental ?
Em relação a compreensão sobre a saúde mental, houve diferença na percepção dos médicos cubanos e brasileiros. Os médicos brasileiros identificam a saúde mental com os transtornos mentais, conforme o trecho a seguir:
A saúde mental na verdade é uma questão, um ponto bem fraco assim de toda Unidade básica, na maioria dos serviços. Na verdade, têm muitas pessoas que são assim é, viciadas em remédios né, tanto em ansiolíticos, calmantes é que são assim, principalmente na parte de saúde mental. Em relação assim, as pessoas com problemas mentais mais graves, acho que não seria o problema né porque faz o tratamento, vai para o CRAS, pra APAE né, outros centros que também auxiliam (Relato MB2).
Já os médicos cubanos abordam a saúde mental como uma dimensão da vida das pessoas, relacionada aos aspectos emocionais produzidos no cotidiano e que interferem sobre o bem-estar e saúde dos sujeitos.
[...] não é o mesmo falar de saúde mental que falar de transtornos mentais. Saúde mental é o equilíbrio, você olhar aquele equilíbrio né entre as coisas externas e o interior da pessoa né e que pode estar influído por vivências, por, as vezes por religião, por cultura, um monte de coisas, mas tudo tem né, é a saúde mental (Relato MC2).
A identificação entre transtorno mental e saúde mental realizada entre os médicos brasileiros pode ser proveniente de uma origem histórica. Amarante (2007) comenta que, no Brasil, "na prática assistencial, até muito pouco tempo atrás, trabalhar 'na saúde mental' significava dizer que se trabalhava com doenças mentais, com hospícios, com manicômios"(p. 15). Nesse sentido, apesar da reforma psiquiátrica propiciar uma atenção em saúde mental dispersa em diversos serviços com caráter substitutivo e comunitário, mantem-se no imaginário a ideia da pessoa com um transtorno mental como alvo de cuidados. Entretanto, a área da saúde mental passou por um processo de complexificação, principalmente por extrapolar a área disciplinar da psiquiatria para constituir-se enquanto área inter/transdisciplinar. Segundo Amarante (2007), "quando nos referimos à saúde mental, ampliamos o espectro dos conhecimentos envolvidos, de uma forma tão rica e polissêmica que encontramos dificuldades de delimitar suas fronteiras" (pp. 15-16).
Em relação aos médicos brasileiros, o trabalho com a saúde mental é identificado no momento em que atendem algum sujeito diagnosticado ou passível de ser diagnosticado com um transtorno mental. No caso dos médicos cubanos, a saúde mental é interpretada sob a ótica da integralidade, tornando-se indissociável da atenção em saúde, visto que todo processo de adoecimento possui dimensões e/ou repercussões subjetivas. Essa compreensão vislumbrada entre os médicos cubanos, apesar de não estar presente entre os médicos brasileiros entrevistados, está presente nas políticas de saúde brasileiras (Brasil, 2008, 2013). Ou seja, do ponto de vista discursivo há uma aproximação entre princípios expressos na prática dos médicos cubanos e no texto de políticas brasileiras, assim como uma disjunção destes em relação à prática dos médicos brasileiros entrevistados.
Segundo Ribeiro e Ferla (2016, p. 297) "o modelo de atenção à saúde ainda vigente é centrado na figura do médico, como "portador" de um conhecimento tornado legítimo e predominante, na doença como foco das intervenções, no consumo de procedimentos de alta tecnologia e no uso excessivo de medicamentos". Desta forma, compreendemos que a fala dos médicos brasileiros entrevistados expressa um modelo de formação ainda hegemônico no Brasil, não sendo expressões que possam ser tomadas como individuais. Ou seja, os participantes não são compreendidos como origem das práticas enunciativas, mas sim, constituídos em meio a estas práticas.
Medicalização e medicamentalização
A fala do MB1 insere também a discussão sobre o uso de medicação no contexto da saúde mental: "Na verdade têm muitas pessoas que são assim é, viciadas em remédios né, tanto em ansiolíticos, calmantes é que são assim, principalmente na parte de saúde mental" (MB2)
Moyses e Collares (2010) afirmam que a medicalização corresponde ao crescente "deslocamento de problemas inerentes a vida para o campo médico, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas" (p. 72). Como desdobramento do processo de medicalização, existe o processo de medicamentalização, que consiste na centralidade do uso de medicamentos como resposta a determinados problemas apreendidos sob a ótica biomédica. Nesse sentido, diferencia-se o processo de medicalização e medicamentalização daquilo que seria considerado um uso apropriado da medicação.
Guarido (2007) pontua a tendência à codificação dos sofrimentos em psicofármaco. Através de um discurso médico, passa-se a nomear e regular que toda patologia precisa ser tratada com medicamentos, naturalizando e individualizando as formas de sofrimento.
Enquanto o MB1 relata a existência de "pessoas viciadas em remédios", vislumbrando aí um problema, o MB2 relata acreditar que o uso de medicações psiquiátricas no Brasil estaria dentro do que é esperado.
[...] não sei se você já ouviu falar, que nós só usamos 6%, mundialmente falando isso, não é eu que tô dizendo, está descrito em vários é.... em vários folders de estudo que falam sobre isso, dizendo que nós usamos muito poucos analgésicos. Então, teria que ser usado muito mais, não os antidepressivos, não tô falando sobre eles, eles eu acho que tá dentro de um normal, não tem nada de fora do normal não. Tem muitas pessoas que te exigem, são os viciados em an ... em soníferos né (Relato MB1).
Essa percepção contrasta com a dos médicos cubanos, que consideram a existência de um uso exacerbado e arraigado de medicação psiquiátrica no contexto brasileiro, conforme explicita o trecho a seguir: "E aqui a diferença principal, é assim na saúde mental, é a facilidade como que a gente toma remédio, qualquer coisinha o médico indica né" (Relato MC3).
Em relação ao uso de medicações psicotrópicas, outro médico cubano afirma que: "olha quando eu cheguei de Cuba já tinham me falado, esse professor que é brasileiro, tinha me falado que o Brasil tem um problema bem alto que é a saúde mental, todo mundo, quase todo mundo toma medicamento (...)" (Relato MC2).
Os médicos cubanos relatam que ficaram surpresos ao serem inseridos nas unidades de saúde e se depararem com a 'cultura de renovação de medicações psicotrópicas', ou seja, a demanda de usuários pela renovação de receita médica, desvinculada de reavaliações e outras formas de acompanhamento como psicoterapia, participação em grupos de saúde mental ou promoção da saúde na comunidade. Dessa forma, apesar da atenção psicossocial preconizar a diversificação de recursos terapêuticos, encontraram um grande contingente de pessoas que tinham a terapêutica centrada exclusivamente no uso de medicação. Diante desta realidade, um dos médicos também relatou que passou a fazer reavaliações junto aos usuários e buscar outras formas de acompanhamento: "Então, as pessoas quando vinham aqui eu falava, "olha vamos diminuir, vamos tirar, eu não vou te fazer a receita, vamos, prove". Daí daqui um tempinho voltava com a receita, feita por outra pessoa" (Relato MC2).
Entretanto, relata dificuldades nesse processo, visto que a desmedicalização constituiu-se como uma ação individual e não um projeto institucional, com amparo da rede de saúde. Ou seja, sua ação constitui-se como um tensionador do modelo, mas outros pontos da rede seguiam sustentando o processo de medicalização. Esse relato evidencia a incorporação do discurso medicamentalizante junto à população, que passa a demandar o uso de medicação e a compreender que esta seria a única resposta aos seus sofrimentos. Em estudo realizado por Bezerra, Gondim, Lima & Vasconcelos, (2014), constatou-se que os usuários de equipes de saúde da família consideram que "o acesso ao remédio, de forma gratuita, representa o indicador de resolubilidade do cuidado, satisfação com o tratamento recebido e única alternativa para 'ficar bem'" (Bezerra et.al, 2014, p. 65). A medicalização, conforme pontuam Gaudenzi e Ortega (2012), apesar de estar amparada na prática médica, não se resume a ela, perpassando todo o tecido social, conformando uma rede que a produz e a mantém.
Em estudo realizado por Bezerra et.al. (2014), no qual foram entrevistados profissionais de equipes de saúde da família acerca da atenção em saúde mental, constatou-se que
[...] o atendimento de saúde mental na Unidade de Saúde da Família está restrito à consulta médica e à prescrição de medicamentos, correspondendo à manutenção da conduta terapêutica para o transtorno mental diagnosticado. Essa prática objetiva os problemas de saúde demandados pelos usuários, evidenciando a doença, e não a experiência da pessoa, em todas as suas singularidades, justificada como uma dimensão mais complexa de atuação (Bezerra et. al., 2014, p. 65).
Bezerra et.al. (2014) analisam o distanciamento entre o modelo vigente e o modelo preconizado pela Reforma Psiquiátrica, visando uma ampliação do objeto de intervenção e das modalidades terapêuticas.
Campos (2003) traz importantes contribuições ao distinguir três facetas da clínica, por ele designadas de "clinica oficial", "clínica degradada" e "clínica ampliada/do sujeito". Percebemos que as práticas medicalizantes tendem a estar atreladas à chamada clínica oficial e/ou à clínica degradada. A primeira, também chamada de clínica tradicional, tem a doença como único objeto de trabalho, desresponsabilizando-se pela integralidade do sujeito. Já a segunda consiste em uma redução da primeira, tendo como uma de suas expressões "o sistema queixa-conduta, comum em Pronto-Atendimentos. Nesse caso, o interesse restringe-se tão somente aos sintomas e sinais, sem prosseguir até o diagnóstico da doença. Corresponde a degradação ou redução da clínica oficial" (Bedrikov & Campos, 2015, p. 13-14). Em decorrência das limitações dessas concepções, Campos (2003) propôs a clínica ampliada ou clínica do sujeito, que busca incluir o sujeito singular e o contexto ao olhar sobre a doença.
A clínica ampliada, em consonância com a perspectiva da atenção psicossocial (Amarante, 2007), é proposta também como um dispositivo da Política Nacional de Humanização (PNH) (Brasil, 2008; 2009), sendo que os dados analisados demonstram que ela constitui-se ainda como um desafio, especialmente entre os médicos brasileiros entrevistados.
Formação
Existem alguns atravessamentos na constituição dessa diferença de atuação entre médicos brasileiros e cubanos e uma delas é a formação. A formação em medicina no Brasil é influenciada por um modelo curativista, focado na doença e não no sujeito, sob influência do modelo flexneriano. Existente desde 1910, mas implantada e reformulada no Brasil em 1968, no contexto da ditadura militar, esse modelo tem enfoque cientificista e pouco humanista, isto é, não contempla a subjetividade e é direcionado ao enfoque hospilalocêntrico (Neves, Neves & Bitencourt, 2005).
Este modelo de formação passa a ser tensionado pela criação do SUS, em 1990, que estabelece entre seus princípios doutrinários a integralidade, que preconiza ações e serviços que garantam a saúde de todos de forma integral, com uma maior abrangência na forma de prestar os serviços de saúde e com enfoque preventivo. Essa perspectiva vem de encontro ao modelo Flexneriano, buscando focar na saúde e não na patologia, olhando o sujeito de maneira mais humanizada (Neves, Neves & Bitencourt, 2005).
Já em Cuba, segundo Estrada (1999), a formação médica tem como eixos éticos na medicina a solidariedade e o humanismo, expostos tanto em suas formações como também nos hábitos, costumes e tradições culturais do país. Desde o início da formação os estudantes têm contato com a comunidade, trabalhando e conhecendo a realidade de cada lugar, o que foi ressaltado nas entrevistas com os médicos cubanos:
uma formação mais preventiva, em respeito as doenças, mas se você fica só na faculdade, no hospital , você só vê a asma bronquial como uma doença onde a pessoa tem falta de ar, tem contrição dos brônquios, e precisa inalador, precisa é, mas quando você tem uma formação da comunidade, você vê que a asma bronquial não é só a doença biológica, mas também uma doença psicológica, pode ser que tenha uma família com problemas, em crise, tem um problema de onde o ambiente não é adequado, então daí a visão da asma é muito maior do mesmo jeito, uma hipertensão arterial, uma diabete, todas essas doenças tem um componente biológico, mas é, componente psicológico também, componente social, e se você desde o primeiro ano da carreira você vai tendo uma ideia dessa, desse conceito das doenças, no final você pode tratar melhor essa doença (Relato MC1).
Desse modo, a proximidade com o território possibilita uma ampliação daquilo que Ceccim e Feuerwerker (2004) denominam de fator de exposição a novas aprendizagem, em conexão com os territórios de vida e a produção de sentidos em torno dos processos de saúde e adoecimento.
Outro ponto importante em suas formações diz respeito ao contato com a saúde mental. Segundo os médicos cubanos, a saúde mental é estudada desde o primeiro ano do curso, no contexto comunitário, compreendendo-se que a saúde mental compõe uma das dimensões do ser humano. Em contraste, os médicos brasileiros relataram pouco contato com a saúde mental e dentro de um modelo centrado na experiência hospitalar-manicomial, o que fica evidente neste relato: "Bem da verdade, nós tivemos pouca coisa sobre saúde mental [na formação], que o que, a gente passou foi um bom tempo em, é... Na nossa época existia ainda os nosocômios né. Tinha os hospícios ainda né" (Relato MB1). Identifica-se dois problemas nesse modelo formativo: primeiramente, ele reduz a saúde mental à doença mental, vinculada ao modelo manicomial; e, além disso, exclui a compreensão de que qualquer processo saúde-doença possui uma dimensão subjetiva, tal qual afirmado na política nacional de humanização (Brasil, 2008).
É necessário indicar a existência de diversos programas com vistas à reorientação da formação profissional em saúde no Brasil. Em 2003 foi criada a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) no Ministério da Saúde, sendo propostas diversas políticas e ações com vistas ao fomento da aproximação da formação com a realidade e as demandas do sistema de saúde brasileiro. Foram criados Programas como o PRO-Saúde e o PET-Saúde, houve a expansão de programas de residência médica e multiprofissional, entre outros. A criação do Programa Mais Médicos, em 2013, segue nesse movimento que busca fomentar a aproximação entre a atuação profissional e os locais do sistema de saúde que apresentam maior necessidade. Apesar disso, autores como Gomes, Costa, Junqueira, Arcuri; & Batista (2012) indicam a complexidade da operação da mudança na formação médica, visto que não deve ser buscada apenas como uma mudança metodológica, mas como uma mudança de natureza social, ético-política, "entendida como uma transformação radical da cultura de formação médica" (p. 542).
Além disso, o Programa Mais Médicos, tem como objetivo também auxiliar e dar suporte na formação de um profissional que esteja apto a cuidar dos sujeitos para além de suas patologias, levando em conta seu contexto e as coletividades que está incluído, "(...) responsabilizar-se, com o usuário, pela produção e gestão do cuidado dele e não só pela identificação de um diagnóstico e prescrição de uma conduta" (Brasil, 2015, p.53).
Conforme De La Osa (2011), em Cuba a relação de poder entre o médico e os demais profissionais de saúde é mais flexível e horizontalizada, pois toda equipe é compreendida como parte importante na saúde. Esse aspecto foi evidenciado nas entrevistas realizadas com os médicos cubanos, onde destacam o trabalho da equipe interdisciplinar. Desse modo, podemos pensar em relações com maior grau de transversalidade (Baremblitt, 1998), ou seja, com maior proximidade de status entre os diversos profissionais, desconstruindo hierarquias e formas autoritárias de relação.
A humanização, perpassada por lógicas da formação e cultura cubana enfatizados por Estrada (1999), é um instituinte, pois rompe com um modelo biologiscita e patologizante, buscando instaurar a integralidade e acolhimento.
nós gostamos que o paciente fale, falar com o paciente, entrevistar o paciente, nós gostamos muito de falar com o paciente, acho que a diferença daqui é que o paciente... nunca que a gente já consultou com um médico brasileiro, mas eles reclamam muito, "Eu cheguei lá na consulta e o médico nem me olhou na cara, daí fez a receita e fui embora", então eles reclamam muito disso né (Relato MC3)
Cuba constituiu a atenção primária como organizadora do sistema de saúde há mais tempo do que o Brasil. Segundo De La Osa (2011), desde a Revolução Cubana em 1959 houve maior investimento em saúde e formação médica, resultando no aumento no número de profissionais de medicina e uma maior aproximação e melhoria dos serviços básicos e preventivos.
Sendo assim, é necessário apontar que os sistemas de saúde de Cuba e Brasil, apresentam diferenças significativas quanto ao modo de estruturação da atenção básica. Os médicos cubanos destacam que, dentro da experiência do município em que atuam, consideram que a atenção básica tem algumas defasagens em relação ao modo de estruturação do sistema cubano. Destacam a ausência de profissionais nas equipes e a falta de suporte especializado para a atenção básica - papel que seria atribuído ao Núcleo de Apoio a Saúde da Família - NASF, por exemplo, o qual não está implantado no município em análise.
Aqui, agora tá começando a criar suas equipes NASF. Que é uma equipe de profissionais, onde inclui o pediatra, é, cardiologistas, é, psicólogos, também trabalhadores sociais, então todos esses profissionais junto com a equipe de saúde da família, fazem um trabalho. Lá em Cuba isso tá um pouquinho mais adiantado, até porque já tem outro nome mais, já tá criado e trabalham junto com os clínicos gerais, dentro da comunidade, os... as especialidades médicas estão junto com o clínico geral e eles vão nas comunidades (Relato MC1).
Outro importante atravessamento diz respeito ao tensionamento entre a concepção de saúde como direito, tal qual preconizado na Constituição Federal, e da saúde como mercadoria. Segundo o MC1 "a medicina cubana é pública, lá não tem medicina privada. Aqui no Brasil tem a medicina pública e tem a privada, é uma diferença" (relato MC1). Já o MC3 refere que "lá em Cuba a medicina não é comercializada, entendeu? A medicina é mais humana, vê a parte mais humana do paciente" (Relato MC3). Um dos entrevistados indica a repercussão desse tensionamento no contexto brasileiro:
[...] o médico que tá fazendo um atendimento público, ele terminou de fazer o diagnóstico e ele falou: eu posso resolver seu problema e você tem que ir lá na minha clínica. Se você vai, eu posso resolver isso, mas desse problema tem a parte econômica, que ele vai ter que pagar a consulta para que esse médico faça esse atendimento. Então isso é uma grande diferença que tem na medicina de Cuba e na medicina brasileira, a parte privada que lá não existe (Relato MC1)
Esse relato pode ser tomado como um analisador que coloca em evidencia o tensionamento entre a saúde como valor de troca e a saúde como valor de uso (Campos, 2003). No primeiro caso, a saúde configura-se como um bem a ser negociado, comprado, conforme o status econômico e a possibilidade de aquisição de um produto, dentro da lógica neoliberal. No segundo caso, a saúde deve ser acessível a qualquer um independentemente do status sócio-econômico, pois é assegurada enquanto direito de cidadania. Enquanto em Cuba existe uma condição de expressão da saúde como valor de uso, no Brasil emerge um sistema híbrido, com a coexistência das duas lógicas, impactando na fragmentação da atenção e na possibilidade de capitalização do sofrimento do outro.
Considerações Finais
A análise produzida neste artigo buscou evidenciar o efeito de espelhamento invertido, no qual, por um efeito de distorção do reflexo, têm-se a produção de duas imagens distintas (Nardi, 2008). Os médicos cubanos destacaram a preocupação com uso exacerbado de medicamentos e com a centralidade das terapêuticas psicofarmacológicas, indicando desafios para mudanças nessa área. Apesar de um dos médicos brasileiros identificar o problema relacionado à dependência de medicamentos psicotrópicos, não vincula tal problema às práticas médicas hegemônicas no campo da saúde mental.
O efeito de espelhamento invertido também foi produzido em relação ao conceito de saúde mental, no confronto entre a compreensão que a circunscreve aos transtornos mentais e, por outro lado, a sua compreensão ampliada, como uma dimensão de todo processo de saúde e adoecimento.
É importante pontuar que não temos a intenção de generalizar os dados encontrados, nem de afirmar uma dicotomia entre médicos cubanos e brasileiros. Apesar disso, é possível considerar que os achados desta pesquisa encontram ressonância na realidade de muitos municípios brasileiros e indica desafios para a formação dos profissionais da saúde na interface entre atenção básica e saúde mental. As falas destacadas nos resultados da pesquisa expressam modelos e paradigmas de atuação em disputa no cenário da atenção em saúde.
Compreendemos que existem forças em nosso tecido social que convergem para a naturalização dos processos, conformando a percepção de que um determinado fenômeno existiu desde sempre, não sendo possível modifica-lo. Ao colocar em paralelo a atuação de médicos cubanos e brasileiros, buscamos desnaturalizar aspectos instituídos do encontro entre saúde mental e atenção básica, buscando ampliar as possibilidades em direção a constituição da integralidade e humanização da atenção em saúde.
Referências
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Recebido em: 12/02/2019
Aprovado em: 06/12/2019
1 O conceito de espelho invertido utilizado por Nardi (2008) tem como referência: Fassin, E. (2001). Same sex diferente politics: Gay Marriage Debates in France and the United States. Public Culture, pp.215-132.