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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.spe Assis  2019

 

ARTIGOS

 

Contribuições do Dispositivo Intercessor para o trabalho no campo da Assistência Social1

 

Contributions of the Intercessor Device for work in the field of Social Assistance

 

 

Sara MexkoI; William Azevedo de SouzaII; Silvio José BenelliIII

IPsicóloga pela Universidade Estadual de Maringá, UEM/PR. Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Doutoranda em Psicologia pela FCL/UNESP, Assis, SP. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS). E-mail: saramexko@hotmail.com
IIPsicólogo e mestre em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras/UNESP, Assis, SP. Psicólogo da Secretaria Municipal de Assistência Social do município de Campinas - SP. Atualmente é coordenador da proteção especial de média complexidade na Secretaria Municipal de Assistência Social e Segurança Alimentar da cidade de Campinas - SP. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS). E-mail: williamazevedogta@yahoo.com.br
IIIPsicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis. Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia, USP, São Paulo. Professor assistente doutor no Depto. de Psicologia Clínica e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, SP. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS) E-mail: silvio.benelli@unesp.br

 

 


RESUMO

Este ensaio é resultado de processos de intercessões realizadas em estabelecimentos institucionais da política de Assistência Social brasileira. Neste campo marcado pelos significantes "pobreza" e "falta" e pelo discurso sobre o sujeito de direitos, incluímos o sujeito do desejo. Servimo-nos do Dispositivo Intercessor em seus dois momentos de produção: o momento do trabalho junto aos sujeitos da assistência e da prática institucional junto ao coletivo de trabalho; e o momento da reflexão teórica, produzida a posteriori, sobre os processos de produção de intercessões realizadas no primeiro momento. De natureza transdisciplinar, esse dispositivo tem como pilares epistemológicos principais a Psicanálise do campo de Freud e Lacan e o Materialismo Histórico, bem como a Análise Institucional francesa e a Filosofia da Diferença. Visamos trazer algumas contribuições acerca da práxis na Assistência Social, sem a pretensão de produzir um saber totalizante e sim de instrumentalizar outros trabalhadores que desejem se posicionar como intercessores em suas práticas.

Palavras chave: Dispositivo Intercessor; Assistência Social, Psicanálise, Produção de saber;


ABSTRACT

This essay is the result of intercession processes that have occurred in institutional establishments of the Brazilian Social Assistance policy. In this field marked by the signifiers "poverty" and "lack" and by the discourse about the law subject, we inc lude the subject of the unconscious desire. We serve of the Intercessor Device in its two moments of production: the moment of work with the subjects of the assistance and of the institutional practice with the collective of work; and the moment of the the oretical reflection, produced a posteriori, about the processes of production of intercessions realized in the first moment. Of transdisciplinary nature, this device has as main epistemological pillars the Psychoanalysis of the field of Freud and Lacan and the Historical Materialism, as well as the French Institutional Analysis and the Philosophy of Difference. We aim to bring some contributions about praxis in Social Assistance, without the pretension to produce a totalizing knowledge, but with the purpose rather to instrumentalize other workers who wish to position themselves as intercessors in their practices.

Keywords: Intercessor Device; Social Assistance, Psychoanalysis, Production of knowledge


 

 

Introdução

A implantação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) teve início em 2005, portanto é recente. A Assistência Social conforme é concebida no imaginário social supõe um indivíduo marcado pela violação ou pela falta de direitos (renda, convivência familiar e comunitária, inserção social, etc.) e a resposta do Estado vai no sentido de tentar completá-lo com aquilo que lhe falta (acesso à serviços, programas, benefícios, transferência de renda, oficinas, rodas de conversa, entre outras atividades).

A política social de Assistência Social, enquanto uma resposta do Estado brasileiro ao conjunto das expressões da questão social no Modo Capitalista de Produção (MCP), traz em seu bojo - muito mais enquanto horizonte do que plenamente efetivado - a dimensão do sujeito de direitos. Mas, "[...] a possibilidade de reconhecer um sujeito de direitos vai além da legitimação de um 'indivíduo de direitos'" (Scarparo &Poli, 2010, p. 137), pois precisa incluir a dimensão de sujeito de desejo.

O trabalho nos estabelecimentos assistenciais voltados para o atendimento de sujeitos denominados em situação de vulnerabilidade e risco social é complexo, razão pela qual o SUAS ser dividido em Proteção Social Básica e Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, as quais comportam uma variedade de estabelecimentos e de serviços já tipificados. Esta complexidade inerente a esse campo demanda dos trabalhadores um saber e ferramentas de similar complexidade, além de tempo para a reflexão acerca das suas ações.

Neste ensaio temos como objetivo tecer breves apontamentos sobre o trabalho na política de Assistência Social e apresentar o Dispositivo Intercessor (DI) como um conceito-ferramenta, inicialmente formulado por Costa-Rosa, que vem sendo construído pelos participantes do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e Subjetividadessaúde (LATIPPSS), cujo horizonte é trabalhar a produção de conhecimento de estatuto epistemológico, rompendo com o modo tradicional de trabalhar e de fazer pesquisa da Ciência Moderna.

Partimos da hipótese marxiana de que todos os trabalhadores - mesmo que, às vezes, não se deem conta disso - possuem um saber sobre suas práticas, ou seja, sobre as ações que realizam. Mas este saber, no Modo Capitalista de Produção (MCP), devido à divisão social do trabalho, é estratificado e desvalorizado. Diferentemente, nos estabelecimentos que funcionam sob a lógica do Modo Cooperado de produção (Marx, 2011), no qual pretende-se uma integração saber-fazer que ocupa uma posição central na estrutura de produção, o trabalho ganha contornos de práxis propriamente dita e o produto, isto é, as possíveis respostas ao problema e seus encaminhamentos, sempre depende da implicação e das demandas2 dos sujeitos que buscam ajuda.

No DI existem dois momentos: o de trabalho junto aos sujeitos e aos trabalhadores no campo, e o momento da reflexão teórica acerca dos processos de produção e intercessões, realizado sempre a posteriori. Esse dispositivo opera com os saberes advindos de um conjunto de referenciais teórico-práticos básicos, a saber: a Psicanálise do campo de Freud (1996) e Lacan (1992, 1998), o Materialismo Histórico de Marx (2011), a Análise Institucional (AI) de René Lourau (2014) e Georges Lapassade (1983), a Filosofia da Diferença (de Nietzsche a Deleuze, passando por Foucault e Guattari) e o conceito de intercessores de Deleuze (1992), bem como outros referenciais ou autores que possam ser necessários para pensar ou operar sobre a realidade. Distante de ser este apenas um aglutinamento eclético de autores e teorias, essas referências teóricas têm como eixo o fato de constituírem campos de conhecimento e de ação transdisciplinares, isto é, o fato de fundarem-se na meta política e ética de seguir outra via que não a da cisão sujeito-objeto. O DI leva em consideração que o objeto é, na verdade, um sujeito que também produz o seu próprio saber e fornece a possibilidade de olhar a realidade a partir de sua complexidade, permitindo a formação de diversos planos analíticos suplementares. Segundo Costa-Rosa (2013)

Ora, qualquer dialética marxiana partiria da supressão do princípio disciplinar, dado o princípio de que sempre há sujeito no objeto, e objeto no sujeito. Além disso, quando se trata do homem fica absolutamente desfeita a díade sujeito-objeto. Não é possível "conhecê-lo" fora da complexidade, caso em que o princípio dialético de que o todo está na parte assim como esta está no todo precisa ser levado ao estremo radical: em se tratando do homem só há produtores de conhecimento, portanto não pode haver conhecimento do outro como objeto que não seja colonização aviltante (p. 123).

 

O DI como práxis do intercessor no campo: o trabalhador-intercessor

No primeiro momento, o do DI como o momento do trabalho junto aos sujeitos da Assistência e da prática institucional junto ao "coletivo de trabalho" ou da "intercessão propriamente dita" (Souza, 2015), o trabalhador-intercessor não realiza pesquisa. Ele se situa enquanto trabalhador no campo, isto é, sua inserção se dá no mesmo plano dos demais trabalhadores do estabelecimento institucional. O saber produzido nesse momento é designado pela psicanálise como um "saber em intensão" (Julien, 2002), saber na práxis.

A diferença do trabalhador-intercessor em relação aos demais trabalhadores é que ele se posiciona em relação à prática de modo especificamente planejado, resgatando o conceito de práxis, e está instrumentalizado pelos referenciais teóricos que embasam o DI. Esse dispositivo propõe instrumentar possibilidades de um trabalhador comum posicionar-se de modo específico em relação ao seu fazer. Tensões entre o instituído3 e o instituinte4 (até certo ponto homólogos àquela entre o consciente e o inconsciente), entre o sabido e o não-sabido, o sujeito e o objeto, o suprido e o carente, o fazer e o saber5, são a matéria prima que o trabalhador-intercessor nunca poderá deixar de considerar nos processos de produção dos impasses que o trabalhador é chamado a resolver, e, por consequência, em sua reflexão sobre eles nos diferentes planos em que é necessário fazê-la.

O trabalhador-intercessor não é um intelectual (nos moldes cartesianos) que vai a campo para ensinar aos trabalhadores como estes devem operar. Ele é, essencialmente, um trabalhador que já está inserido no estabelecimento institucional. Sendo assim, pode atuar nas mais diversas áreas e nas mais variadas instituições (Saúde, Educação, Cultura, Esporte, Meio Ambiente, entre outros), inclusos aí os estabelecimentos institucionais que fazem parte das políticas públicas, como as Unidades Básicas de Saúde (UBS), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as escolas municipais e estaduais, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), as Casas de Acolhimento institucional, entre outros.

De acordo com Souza (2015), o trabalhador-intercessor pode ser compreendido como um coadjuvante nos processos em que participa, pois compreende que todos os sujeitos que compõem a instituição (trabalhadores e sujeitos nomeados usuários) são os verdadeiros protagonistas, cabendo ao intercessor também ser aquele que, aproveitando-se das brechas e potencialidades do campo, impulsiona o movimento. Em determinados contextos ou momentos ele pode assumir a frente da ação (protagonismo), uma vez que também é um trabalhador.

A intercessão propriamente dita consiste no posicionamento de um trabalhador e numa série de ações específicas decorrentes dele e da conjuntura institucional. A posição intercessora pode ser realizada de modo planejado ou não, uma vez que conta com a dimensão real da práxis.

O trabalhador-intercessor se distingue dos outros por ser alguém o qual possui suas próprias interrogações, que muitas vezes os trabalhadores da equipe ainda não tiveram a oportunidade de formular. Ele tem a possibilidade de fazer essas interrogações operarem possíveis avanços, por sua instrumentação teórica-técnica e por ser minimamente precavido por referencias que tratam do não-dito da instituição e dos impasses sociais e subjetivos dos sujeitos, mas sobretudo na medida em que puder operar num campo cuja natureza pode ser abordada a partir do próprio conceito de transferência6 elaborado pela psicanálise (Costa-Rosa; Pereira, 2011).

A inserção do trabalhador-intercessor no campo pode ser dividida em dois tempos: o do Um-a-mais e o do Mais-um7. No primeiro tempo, o trabalhador intercessor é um trabalhador como os demais que compõem o estabelecimento institucional. O que caracteriza o Um-a-mais é o fato de ele ser parte da equipe de trabalhadores do estabelecimento institucional e de colocar-se como tal, implicando-se nessa causa, e de possuir clareza quanto aos objetivos da instituição - ainda que se contraponha ao paradigma de trabalho que baliza as práticas desta. Nesse tempo, seu trabalho junto à equipe é essencial para o estabelecimento da transferência, uma vez que no começo está a transferência (Lacan, 1998) e a suposição de saber-fazer que recaí sobre o trabalhador-intercessor (Souza, 2015) é imprescindível para a potência transformadora de suas ações. Esse tempo inicial para se integrar à equipe e ocorrer o estabelecimento da transferência não é algo predefinido, mas depende do campo, da representatividade que a instituição tem no território e do modo como o trabalhador-intercessor posicionar-se e maneja as relações e os acontecimentos.

O segundo tempo, do trabalhador-intercessor como Mais-um, inicia-se quando o trabalhador já está situado sob um campo transferencial, recaindo sobre ele uma suposição de saber. O Mais-um é um conceito inspirado na estrutura de Cartel da Psicanálise lacaniana e delineia a posição do intercessor no coletivo de trabalhadores. Segundo Pamponet (2013) a função do Mais-um no Cartel não é ocupar a posição de líder, de analista e nem de Sujeito Suposto Saber - posição esta depositada imaginariamente pelos cartelizantes -, mas limitar o lugar do líder e, utilizando-se da fantasia imaginária dos componentes do grupo referente à sua posição, deslocar os participantes ao lugar de trabalho.

No DI o trabalhador assume uma função parecida com a ocupada pelo Mais-um8 dentro do Cartel, pois continua a fazer parte do coletivo de trabalhadores, sustenta-se por uma posição de Sujeito Suposto Saber que é colocada nele, mas em vez de identificar-se com a posição daquele que tem as respostas para as questões que surgem, posiciona-se de modo a deslocar tanto a equipe de trabalhadores (da qual faz parte) quanto os sujeitos atendidos pelo estabelecimento institucional - a depender de cada situação - ao lugar de trabalho para que estes produzam suas próprias respostas e soluções para seus problemas. Essa suposição de saber encarnada pelo intercessor - homóloga à do analista -, e que é posta em suspenso, é denominada por Lacan "ignorância douta" (Lacan, 1992). A ignorância douta diz respeito ao saber que percebe seus limites, reconhece não poder saber pelo outro. Isso não significa que em sua práxis o trabalhador-intercessor ocupa uma posição passiva, ele possui uma posição estratégia de fazer girar os discursos, sua atividade encontra-se justamente nos questionamentos, assinalamentos e pontuações que ele poderá fazer, somando ao conjunto de ações que os trabalhadores realizam dentro de suas atribuições.

Assim como o psicanalista no Dispositivo Analítico, o trabalhador-intercessor ocupa uma posição evanescente, ele somente é intercessor quando é capaz de fato de ocupar uma posição intercessora no conjunto de acontecimentos daquele campo. Só é possível dizer que houve uma intercessão a partir da verificação de seus efeitos, isto é, em um momento posterior e que foi produzido a partir da intercessão. A intercessão consiste em uma ação que tem potência de produzir certas rupturas no instituído, no qual se pode observar uma mudança entre o antes e o depois, sendo similar à intervenção do analista. Ademais, o trabalhador-intercessor tem claro a diferença entre saber e conhecimento enciclopédico e visa à produção do primeiro tanto pela equipe quanto pelos sujeitos.

O intercessor não busca uma verdade preexistente e absoluta, como faz a Ciência Cartesiana. Ele sabe que a verdade é singular e não-toda, tal qual a produção dos intercessores. Ainda que, conforme assinalou Deleuze (1992), os intercessores possam ser uma diversidade de coisas (um encontro, um acontecimento, uma planta, um artista, etc.) que produzam uma diferença ou um movimento instituinte, o trabalhador-intercessor traz um diferencial: ele tem o "[...] propósito de produzir uma alteração na estrutura social dominante (re)colocando os sujeitos no lugar de agentes do laço social" (Miranda, 2011, p. 29), respaldando-se ética e teoricamente por referenciais que embasam as suas ações e reflexões. No horizonte está a perspectiva de que todos os trabalhadores que operam em instituições públicas que prestam serviços para a população possam ser intercessores; outro modo de dizer que teriam abolido a principal contradição da divisão social do trabalho: a separação entre os que fazem e os que pensam, e por isso lhes têm sido designado socialmente a função de produtores específicos e especializados de saber.

Durante esse primeiro momento do DI, o intercessor constrói o diário de intercessão, ferramenta que guarda certa similaridade com o diário de campo, com a diferença de que ali não são anotados apenas dados e relatos de acontecimentos. Enquanto escreve, o trabalhador-intercessor produz reflexões sobre sua práxis e a repensa. Nesse primeiro momento, o diário de campo é empregado para "[...] ajudar a pensar a práxis e a delinear o posicionamento de intercessor" (Galiego, 2013, p. 71) no campo da ação cotidiana. Após um processo de escrita, dependendo das reflexões que pôde fazer sobre o campo e suas ações, ao voltar à práxis, o trabalhador-intercessor pode reposicionar-se e modificar seu fazer e mesmo sua posição no coletivo de trabalhadores. Ressaltamos que a reflexão do trabalhador-intercessor acerca do campo e de suas ações é um exercício cotidiano, independentemente de haver ou não a pretensão de uma reflexão no campo da Universidade.

 

O Dispositivo Intercessor como Meio de Produção de Conhecimento (DIMPC) na Universidade: o intercessor-pesquisador

A Universidade, enquanto campo privilegiado de produção de conhecimento, tem realizado uma vasta gama de pesquisas cujos resultados versam sobre os mais diversos temas e especialmente na última década do ano de 2010 o campo das políticas sociais tem recebido especial destaque. Esta produção, embora seja rica em conteúdo, acaba ficando bastante restrita ao meio acadêmico, pois muitas vezes é vista pelos trabalhadores como um conhecimento distante de sua realidade e/ou sem ressonância com a prática, não servindo, portanto, como um dispositivo de diálogo entre ambos. Uma frase muito ouvido nos estabelecimentos de assistência social e de outras políticas exemplifica bem esse ponto: "Na prática a teoria é outra". Isso, de certo modo, reflete a própria dicotomia saber-fazer, característica da divisão social do trabalho no MCP. A própria ciência, sobretudo como tecnociência, é originária dessa divisão. Esta, por ser orientada pelo Paradigma da Ciência Moderna ou Paradigma Dominante (Santos, 2002), pauta-se em um conjunto de dicotomias: ciências naturais/ciências sociais, natureza/cultura, homem/mulher, individual/coletivo, observador/observado, vivo/inanimado, saber/fazer e sujeito/objeto.

O DI como meio de produção de conhecimento (DIMPC) traz como proposta romper com o modelo tradicional de se produzir ciência. Poderíamos situar o DI no que Santos (2002) denominou Paradigma Emergente, cuja característica essencial é a busca da superação da dicotomia sujeito/objeto. Diferente do modelo de pesquisa tradicional (da ciência moderna), no DI o caráter autobiográfico da ciência é plenamente assumido e não se almeja "a neutralidade, pois não é considerada possível" (Stringueta & Costa-Rosa, 2007, p. 146). Uma particularidade do DI é que ele vai além da crítica as dicotomias clássicas da ciência, ele também faz a crítica à divisão social do trabalho que se expressa na dicotomia saber-fazer e interroga o próprio campo onde atua. O intercessor-pesquisador não toma os sujeitos (trabalhadores e pessoas atendidas) como objeto.

O que em tese constituiria o "objeto" de pesquisa do intercessor é sua própria práxis com seu saber, isto é, o que ele pode vivenciar e experimentar, suas intercessões no campo e, inclusive, os sucessos e os insucessos de suas ações durante a intercessão. Sabemos que cada campo, território, sujeito possuem sua singularidade e, do mesmo modo, cada trabalhador-intercessor vai construindo seu caminho, portanto o conhecimento que produz no momento do DIMPC é sempre singular, ainda que o texto seja circunstancialmente voltado para a Universidade e para os trabalhadores que desejam se aventurar em tal campo, mesmo refletido por um outro olhar e abordado por determinados referenciais. Quanto a refletir e escrever sobre seus insucessos, a importância disso está na oportunidade de buscar entender os seus motivos e em pensar quais os outros caminhos que poderiam ser construídos naquela proposta de intercessão (Martini, 2010).

No DIMPC a produção de conhecimento não é sobre a instituição, seus estabelecimentos, o trabalhador, os sujeitos atendidos, mas sim para e com estes. A preposição para, aqui, indica relação de fim. Trata-se de produzir conhecimento a respeito do processo de produção desse saber na ação e para a ação, de modo a poder instrumentar outros intercessores para que estes possam produzir outras intercessões. Cabe salientar que não se trata de ensiná-los como operar no campo, mas de instrumentalizá-los, ajudá-los a saber-fazer. O intercessor sabe que a realidade está sempre em movimento e o conhecimento também, por isso não pretende uma produção de conhecimento universal. Sabe que tanto a produção de saber na práxis quanto a produção de conhecimento na Universidade são produções locais e datadas, portanto jamais universalizáveis, mas com potencial de produzir novos devires e novos intercessores.

A Universidade, segundo o DI, pode ser uma práxis de trabalhadores de outro plano da práxis. Na produção científica comum, baseada no modelo cartesiano, a produção de conhecimento exclui a subjetividade e a ciência produz uma única verdade (Costa-Rosa; Pereira, 2011). A questão que se coloca é: como construir outro tipo de conhecimento diferente do que já tem sido produzido? Eis o que move o pesquisador-intercessor no trabalho de escrita. Com o DIMPC, pretendemos fazer a crítica da divisão social do trabalho e produzir reflexões teóricas a partir da posição de trabalhador que pensa sobre seu fazer e sobre seu campo. Nesse sentido, podemos considerar como um conhecimento outro ("saber segundo") que questiona o modo comum de fazer ciência e possa se inscrever nas brechas de uma modalidade discursiva que Lacan (1992) nomeou como Discurso Universitário (DU).

O pesquisador-intercessor, ao inserir-se nas brechas do DU, realiza sua produção a partir de uma outra modalidade de discurso, o "Discurso da Histeria" - DH (Lacan, 1992) ou Discurso do Sujeito. A estrutura do DH é a função de enigma enquanto tal. Nesse discurso, o agente é um sujeito dividido que, movido por uma inquietação, possui uma interrogação. Do mesmo modo que a histérica, o pesquisador-intercessor detém uma questão. Isso significa que ele se coloca como sujeito (na posição de agente) e, na sua produção (trabalho) de um conhecimento sobre sua práxis, "coloca em discussão os saberes estabelecidos que, a partir da experiência da práxis, poderão ser discutidos, questionados, complementados ou até mesmo redirecionados" (Miranda, 2011, p. 35). Ao pesquisador-intercessor cabe realizar a reflexão no campo epistemológico porque, no primeiro momento (o do DI enquanto práxis do intercessor), ele era o agente da práxis junto aos os demais trabalhadores.

Para realizar a reflexão no campo epistemológico, o pesquisador-intercessor retoma seu Diário de intercessão. Os escritos que, no primeiro momento do DI serviam para, a partir da reflexão, reposicioná-lo na práxis, no segundo momento adquirem uma nova função, a de servir de ponto de apoio para uma reflexão de cunho epistemológico. No que se refere à pertinência e à validação dos registros no formato de Diário, entendemos que, assim como as anotações ou escritas posteriores do psicanalista são cabalmente legítimas, conforme destacou Mezan (2002), também são autênticos os relatos do pesquisador-intercessor. Destacamos, ainda, que o material mais precioso é a experiência vivida por ele, material este que está em sua memória, mas que não pode ser totalmente transposta para um escrito. Ao servir-se do Diário, recuperando parte experiência vivida, o pesquisador-intercessor precisa ter claro que esse material deve ser confrontado com os referenciais teórico e ético que subsidiaram sua práxis, visando a "[...] abrir campos de discussão" (Galiego, 2013, p. 72).

Nesse momento de elaboração de conhecimento no campo da Universidade, o pesquisador-intercessor tem duas funções: 1) a de analista, quando observa os efeitos dos analisadores no campo; e 2) de analisador, capaz de disparar problematizações em relação aos saberes instituídos, tendo por consequência a promoção da elaboração de novos saberes, de novas possibilidades de intercessões. Enquanto agente questionador do saber instituído, o pesquisador-intercessor procura fazer movimentar a rede não somente de conceitos como também de significantes instituídos, resultando na produção de um saber dinâmico e de uma verdade não-toda, pois como disse Lacan (1992, p. 36) "[...] a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade". O saber produzido nesse momento é nomeado pela psicanálise "saber em extensão" (Julien, 2002), que não é um saber sobre os sujeitos, mas um saber sobre os processos de produção de saber na práxis, processos nos quais os trabalhadores são produtores de saber.

Poder-se-ia perguntar sobre a finalidade da produção textual no DIMPC. Partimos do reconhecimento de que a Universidade também pode ser um campo de intercessão com suas brechas e pulsações. Por isso, interessa ao pesquisador-intercessor produzir um saber segundo, com a particularidade de não pretender ensinar aos estudantes e aos trabalhadores como devem fazer as coisas ou produzir uma metodologia ou manual de como operar no campo.

No DIMPC, quando escrevemos um texto - dissertação, tese, artigo ou capítulo de livro - temos como um ponto de diálogo o que Deleuze e Guattari (1995) chamam de livro-rizoma. Procuramos nos aproximarmos daquilo que a psicanálise do campo de Freud e Lacan e o Materialismo Histórico já têm claro: há o saber dos livros, saber transformado em conhecimento e de grande importância, mas esse não pode ocupar o lugar do saber propriamente dito. Esse, homólogo de um saber que não se escreve por ter que ser sempre outro, é não-todo e está sempre em movimento. Essa produção de um "saber segundo" é dirigida conjunturalmente à Universidade, mas não obrigatoriamente apenas a ela. Ela se dirige, principalmente, aos trabalhadores do campo, mas, na relação com estes, tem vistas apenas a instrumentalizar/formar outros trabalhadores-intercessores para atuar nos mais variados campos.

 

O campo, seus movimentos e algumas intercessões

No DI, não se trata de ensinar e nem de prescrever uma fórmula de como os trabalhadores devem operar, mas de ofertar ferramentas para que possam realizar uma leitura crítica das questões que atravessam ele e o campo, de modo a possibilitar um posicionamento singular. Cada trabalhador-intercessor precisa construir paulatinamente sua práxis. Mostraremos uma parte da realidade vivenciada enquanto trabalhadores-intercessores na Assistência Social.

O trabalhador-intercessor, para operar, necessita sustentar a inclusão dos sujeitos e de suas singularidades, o que requer que ele abdique da posição ortopédica, pedagógica e colonizadora de quem detém o saber de mestre. Cabe ao intercessor, na relação com o coletivo de trabalho, contribuir de modo que os próprios sujeitos produzam o saber necessário para o equacionamento dos problemas institucionais cotidianos. Sua função é ser alguém que interroga os sentidos prévios, promove fissuras e rupturas no conhecimento hegemônico, ocupa brechas do saber instituído para, a partir disso, possibilitar que os sujeitos da práxis construam um novo saber e além disso também possam dar ou encontrar o sentido de ações que fazem sem saber o porquê fazem. Um trabalho criativo e que faça sentido para quem o executa.

Um dos estabelecimentos onde realizamos uma intercessão foi em uma Casa de Acolhimento na qual havia um conjunto de trabalhadores9 que não possuía uma clara compreensão sobre a função e a organização da Assistência Social, inclusive não sabiam a diferença entre os estabelecimentos institucionais desta política, o que, certamente, tinha implicações para o trabalho. Por outro lado, havia, por parte de alguns deles, a solicitação de uma formação para atuar com as crianças e os adolescentes. Essa demanda foi vista por nós como uma brecha que poderia ser ocupada. Na tentativa de driblar a divisão de trabalho entre especialistas e trabalhadores braçais, propusemos que todos (inclusive a coordenadora) participassem de uma atividade e combinamos que essa teria um formato mais horizontal possível. Disso surgiu a Roda de Conversa10 com toda a equipe, em que, a partir de temas relacionados ao trabalho e da posição ocupada por nós, o coletivo de trabalho pôde problematizar, refletir e começar a construir um novo saber. Em diversos momentos foi endereçada a nós alguma questão, por exemplo, "como trabalhar com aquela família?" e "como ajudar as crianças nas tarefas?", questões formuladas individualmente por cada trabalhador que foram acolhidas, problematizadas e devolvidas ao grupo de modo que as respostas fossem construídas pelo conjunto de trabalhadores. Em outros momentos, diante de uma questão, a equipe se colocava a trabalho e passava a produzir saber sem sequer demandar uma resposta do trabalhador-intercessor.

Não se almeja grandes revoluções (ao menos não de início) a partir das intercessões e sim mudanças micropolíticas. Aspira-se a que, a partir das brechas que são já presentes e visualizadas, ou outras por nós criadas, seja possível contribuir para que se produzam pequenos deslocamentos no modo de produção institucional e no saber daquele coletivo a fim de que o instituído (enquanto verdade) seja questionado e possibilite o surgimento de novos saberes potencialmente singulares (Galiego, 2013). Como esclarece Lacan (1992), não é a demanda de saber que interessa, mas, sobretudo, a postura questionadora que conduz ao saber. Essa postura dá acesso ao não-sabido, ao recalcado, do sujeito e também ao grupo, além de produzir um saber novo, ou seja, que não foi pensado até aquele momento, mas que ao ser produzido possibilita repensar as ações e até mesmo o campo.

O trabalhador-intercessor não intercede apenas no coletivo de trabalhadores. Sua intercessão se dá também com os sujeitos ditos usuários. E em se tratando da construção da escuta na instituição Assistência Social, implica abarcar a dimensão imaginária, simbólica e real da fala tendo como motor a transferência do sujeito com os estabelecimentos assistenciais, com o coletivo de trabalho e principalmente com o trabalhador-intercessor. Sem a construção dessa relação o trabalho não passa da fase inicial, a da demanda manifesta.

Durante um período em que trabalhamos no CRAS realizamos uma Roda de Conversa com mulheres. A senhora O., vamos chama-la assim, foi convidada a participar após chegar ao estabelecimento solicitando ajuda para conseguir a aposentadoria que lhe havia sido negada. Por escolha das participantes, os primeiros encontros tiveram como tema família e trabalho. Quando chegou, a senhora O. queixava-se da relação com o filho, da dificuldade de conseguir a aposentadoria e da perda de um lugar de responsabilidade na igreja - em termos fantasmáticos: da sua condição de objeto do Outro. Nos primeiros encontros, pôde começar a rever sua posição diante do desejo do Outro e enunciava: "eu sempre fiz tudo o que minha mãe mandava". Nas semanas seguintes, chegou contando de decisões que tomara e do desejo de cursar inglês (que não aprendera até então). Mesmo sendo uma Roda de conversa e não um grupo psicoterapêutico, o que fez operar a mudança nesse caso foi o posicionamento da intercessora de não responder no imaginário, de modo que a senhora O. pudesse começar a tratar o real11 pelas ferramentas do simbólico12 (Lacan, 1995), produzindo um saber sobre si.

A ética da psicanálise pressupõe que o trabalhador-intercessor se comprometa a eximir-se de uma posição de mestria e "convidem" os sujeitos a tomarem posse de suas próprias falas por meio da associação livre. Esse posicionamento por parte do intercessor permite que o sujeito se bifurque e se insira na produção de sentidos sempre novos. Concordamos com Soares, Susin e Warpechowski (2010, p. 153) quando demarcam que o trabalho neste campo implica "romper com a identificação do sujeito que recorre à Assistência Social como alguém que vem 'pedir algo', visando não devolver a resposta somente na via do recurso material, mas, sim, abrir um espaço de fala", o que possibilita recolocar a condição de sujeito desejante e, nessa medida, abrir uma via para o exercício da cidadania.

As intercessões sempre terão como ponto de partida o próprio trabalho que a equipe de trabalhadores tem de realizar, já que tanto os trabalhadores da assistência social quanto os da saúde e da educação são também de certo modo produtores de assistência social, de saúde e de educação respectivamente, os trabalhos realizados por eles independem de suas funções dentro do estabelecimento institucional, diferindo de forma significativa do trabalho executado em numa fábrica ou empresa. Em alguns casos as intercessões são realizadas em parceria com os trabalhadores que não compõem necessariamente a equipe técnica.

Uma moça estava desaparecida e reapareceu no Centro Pop no horário em que uma parte dos trabalhadores estava almoçando. Iniciamos o atendimento, construindo com ela que precisava de um espaço protegido e de cuidados de saúde, uma vez que referiu ter ficado alguns dias em uso intensivo de crack, e aparentava estar intoxicada e com dificuldades na fala e no caminhar. Ela referiu que precisava tomar um banho e trocar de roupas antes de fazer qualquer coisa. Tentamos dissuadi-la de um modo mais assertivo, mas em vão. Então, pactuamos que após o banho iríamos até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Havia o receio de ela entrar no banheiro e acontecer algo, por exemplo, cair e se machucar. Assim, uma das trabalhadoras dos serviços gerais que estava limpando o espaço se propôs a auxiliá-la no banho caso precisasse. Concordamos com a sugestão, conversamos um pouco sobre o caso, pois ela também conhecia a moça e tinha um bom vínculo. Construímos o atendimento e depois um dos trabalhadores da equipe técnica acompanhou a moça até a UPA, onde ficou internada e medicada devido ao uso abusivo. Conversamos com a equipe da UPA e pedimos que logo que ela recebesse alta, alguém da equipe entrasse em contato com o Centro Pop. Após a alta ela foi para o CAPS e retornou ao Centro pop. A moça atendida era muito agressiva, forte e teve algumas tentativas de suicídio, o que aumentava a complexidade do caso. Esta ação foi possível devido ao vínculo e ao trabalho que pude fazer conjuntamente com a trabalhadora da limpeza.

Quando atendemos um sujeito começamos a perceber as diversas transferências que são construídas por ele: conosco, com os demais trabalhadores do estabelecimento e também com um conjunto de outros serviços - Saúde, Educação, Conselho Tutelar, Fórum, entre outros - em que os sujeitos e suas famílias são atendidos. Em alguns casos, é necessário que o trabalhador construa com o sujeito a transferência com outros serviços. Desse modo, há um atravessamento de diversos discursos institucionais que buscam ofertar um suporte aos sujeitos e quando os serviços estão articulados, trabalhando em rede, o sujeito pode se beneficiar. No atendimento aos sujeitos pode haver desdobramentos dessa escuta como, por exemplo, o acionamento de trabalhadores de outros setores - sob a perspectiva da intersetorialidade - para garantir o acesso do sujeito a outras instituições e aos seus estabelecimentos.

Um homem vai ao CREAS e solicita ajuda para comprar uma passagem de ônibus para seguir viagem até cidade Y, demanda muito comum em serviços que atendem pessoas em situação de rua. Acolho a sua demanda, mas antes de respondê-la, interrogo-o sobre alguns pontos de sua fala que aparentavam ser significantes; interrogar neste caso difere de questionar, pois tem como objetivo desvelar outras possíveis demandas (latentes) que ainda não foram apresentadas no atendimento ou de fazer surgir novas demandas. Nos primeiros atendimentos, relatou o processo de ida para rua, conflitos com o pai e perda do emprego. Após ter saído de casa, passou por diversas cidades, ficou na casa de amigos, parentes, serviços de acolhimento e na rua. Relata já ter viajado para o exterior a convite de um antigo chefe, com o qual trabalhou por muitos anos. Segundo R., esse seu chefe lhe havia dito que morreria se continuasse com a masturbação. Uma fala que surgiu deslocada do contexto do atendimento. Outros elementos que surgiram no decorrer dos atendimentos como a persecutoriedade em relação ao pai e a figura de um companheiro de estrada, Naru, que estava sempre presente em sua fala, uma vez esse companheiro disse para R. se jogar em baixo de um caminhão em movimento. Ele relatava que Naru estava sempre presente, inclusive nos atendimentos. Naru não existia, mas era uma construção para dar conta de uma realidade psíquica desmoronada. Levantei a hipótese que R. poderia se beneficiar de um atendimento no CAPSII, aos poucos fui introduzindo este estabelecimento como uma possibilidade de cuidado, ou seja, um local onde ele pudesse falar de seu sofrimento, igualmente falava nos atendimentos. A demanda inicial de passagem, trazida nos primeiros atendimentos, cedeu lugar para outras possibilidades, cuja direção de trabalho envolvia o encaminhamento para o CAPS e outras demandas que surgiam nos atendimentos. Nesse caso, o encaminhamento precisava ser trabalhado, pois caso fosse feito sem algumas elaborações poderia trazer alguma resistência, uma vez que poderia não ter sentido para o sujeito.

O conhecimento acerca dos processos de subjetivação e suas modalizações clínicas pode fazer a diferença não somente na atenção ofertada ao sujeito como também na discussão do caso com a própria equipe e com outros serviços, pois o trabalhador-intercessor "[...] tem o compromisso de garantir valor à palavra do sujeito" (Soares, Susin & Warpechowski, 2010, p. 159) mesmo que isso muitas vezes vá de encontro com os ideais das instituições sociais, uma vez que "nem sempre os ideais institucionais coincidem com o que o sujeito quer, ou lhe é possível" (Soares, Susin & Warpechowski, 2010, p. 157).

O trabalhador, por fazer parte de uma instituição/estabelecimento que executa uma política social que é responsável por promover os direitos sociais, não pode deixar de responder a essa função, mas pode começar a instaurar um novo modo de realizar atenção socioassistencial que inclua a escuta do sujeito articulada a esses direitos.

 

Considerações finais

Os trabalhadores são peças fundamentais para os movimentos instituintes na Assistência Social. É no âmbito das práticas que se pode produzir tanto a garantia de direitos aos sujeitos como aberturas para a construção de uma Assistência Social mais condizente com a necessidade e o desejo dos sujeitos. Por apostar que há saber na prática partimos do pressuposto de que o trabalhador, se instrumentalizado e localizado quanto a seu fazer, pode contribuir na construção de conhecimento sobre seu campo. Esta é justamente a meta ética do DI que possibilita distanciar da produção de um "conhecimento colonizador" e se aproximar da construção de um "conhecimento prudente" (Santos, 2002, p. 74) situado no que Santos (2002) nomeou como Paradigma Emergente, pautado no princípio da responsabilidade.

O trabalhador-intercessor, em virtude de seu posicionamento teórico, ético e técnico, possui uma maior possibilidade de visualizar, fomentar e ocupar as brechas instituintes que possam surgir nos estabelecimentos socioassistenciais. Ao ocupar essas brechas o trabalhador-intercessor pode driblar as relações cristalizadas na instituição - que reproduzem formas de dominação e controle da população - e ir construindo com o coletivo de trabalhadores novos modos de interceder junto aos sujeitos e à instituição. Concordamos com Souza (2015) que provém do próprio posicionamento de trabalhador-intercessor "[...] a hipótese, a ser verificada em cada situação particular, de que sempre há brechas abertas nas estruturas instituídas dominantes, ou a possibilidade de criar estratégias coletivas de abri-las" (p. 144). As brechas, claro, irão depender também da permeabilidade do campo a mudanças e da possibilidade de construí-las coletivamente. O reconhecimento, tanto das possibilidades quanto dos limites, deve ser um antídoto para o risco da onipotência, embora não nos impeça de sofrer com as situações adversas.

Lutar pela posição de sujeito desejante da população traz a necessidade de se incluir a dimensão do inconsciente na execução da atenção socioassistencial. Isso não significa que os profissionais - psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, entre outros - necessitem tornar-se psicanalistas, mas que a ética da psicanálise pode ser tomada também como uma importante norteadora do trabalho no campo da Assistência Social. Ainda que o atendimento aos sujeitos, muitas vezes, envolva a oferta e a garantia de recursos materiais (por meio dos programas de transferência de renda) e sociais (por meio de inclusão em projetos, oficinas, ente outros), é necessário e possível sair do lugar de mestria (pedagógico/educativo) e fazer ofertas transferenciais de cunho mais simbólico. "Ali onde o sujeito não tem voz (nem vez), que a resposta seja a escuta, antes de mais 'nada'" (Scarparo & Poli, 2010, p. 146). E como efeito dessa escuta decorre a promoção da implicação subjetiva e sociocultural dos sujeitos, um caminho rumo ao seu protagonismo e em direção à cidadania.

 

Referências

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Recebido em: 13/09/2019
Aprovado em: 15/11/2019

 

 

1 Este artigo foi escrito a partir de duas pesquisas de Mestrado e da experiência profissional e acadêmica dos autores, trabalhadores da área da Assistência Social de dois municípios do Estado de São Paulo. Ambas as pesquisa foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras-UNESP/Campus de Assis, nº 045495/2013 e nº 46421515.6.0000.5401, tendo contado com a orientação do Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa e com a colaboração do Dr. Silvio José Benelli.
2 A Análise Institucional distingue Demanda Social de Encomenda Social. Demanda Social está relacionada ao conjunto de pulsações criadas pelas oposições de forças em jogo na sociedade em determinado momento histórico. Já a Encomenda diz respeito a uma contraface da demanda, ou seja, trata-se de um recorte capturado e transmutado por meio da ação da ideologia capitalista.
3 "O instituído é o efeito da atividade instituinte" (Baremblitt, 1996, p. 32). Relaciona-se as formas permanentes de uma instituição, ao que está fixo, cristalizado. O instituído traz em si a resistência à mudança.
4 Instituinte diz respeito a processos, movimentos de transformação permanente da sociedade. Por meio do instituinte as instituições têm a possibilidade de mudar, se aprimorar (Baremblitt, 1996).
5 Esses são alguns conceitos básicos para o trabalhador-intercessor, advindos dos quatro campos que compõe o DI.
6 A transferência é um dos conceitos fundamentais na psicanálise. Seu estabelecimento é essencial para que a análise de um paciente se torne possível. Para Lacan (1998), a transferência "não é nada de real no sujeito senão o aparecimento, num momento de estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes pelos quais ele constitui seus objetos" (p. 224). Transferência diz de uma forma de vinculação que tem por característica ser uma repetição, isto é, os modos de se relacionar com os agentes da subjetivação e os afetos investidos nestes objetos são transferidos para as relações que o sujeito possui ao longo de sua vida.
7 O Cartel é um dispositivo de trabalho composto por um grupo de no máximo cinco pessoas, em que os integrantes (psicanalistas e psicanalistas em formação), sustentados pelo desejo de estudar e de aprofundar-se em um tema concernente à psicanálise, colocam-se na produção de escrita. No Cartel, de acordo com Jimenes (1994), a produção de saber acontece em dois momentos: primeiramente na clínica (psicanálise em intensão) e depois nas elaborações teóricas sobre a clínica (psicanálise em extensão). Um dos cartelizantes ocupa o lugar de Mais-um, isto é, daquele que foi escolhido pelo grupo e que tem por responsabilidade impulsionar os demais participantes para que estes realizem suas produções escritas.
8 Destacamos, no Mais-um, a possibilidade que esta posição inclui de também sobretudo elaborar o saber segundo ou saber em segundo plano, isto é, a elaboração do saber que parte do trabalhador-intercessor quando ele está posicionado como pesquisador-intercessor.
9 Os profissionais que ingressavam na instituição não passavam por um momento de formação. As capacitações do "coletivo de trabalhadores" eram quase inexistente e muitos deles não possuíam conhecimento sobre o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e a PNAS, o que de certo modo comprometia a qualidade do serviço.
10 A Roda de Conversa, orientada pela Educação Popular, é um espaço de horizontalização das relações de poder e de construção de um saber também coletivo. Podemos situá-la como um dispositivo que serve para driblar o modelo de "Educação Bancária" (Freire, 2005) que coloca os sujeitos como meros recebedores e arquivadores de saberes transmitidos pelo mestre.
11 O Real não é o mesmo que realidade e nem que a realidade psíquica (a Realität freudiana). O real é aquilo que pulsa, que não para de não se inscrever. Ele é o que não possui um significante que sirva de anteparo, gozo. Sua emergência pode ser detectada, por exemplo, a partir da experiência da angústia, quando se é tocado pelo real.
12 O Simbólico pode ser compreendido como "o que diz respeito a um sistema de representações calcado na linguagem, ao campo do Outro regido pela Lógica do Significante, que estrutura o desejo como falta-a-ser e autoriza nossa ascensão ao campo propriamente humano" (Périco, 2014, p. 41).

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