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Revista de Psicologia da UNESP
On-line version ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.2 Assis July/Dec. 2020
https://doi.org/10.5935/1984-9044.20200026
ARTIGO
A submissão do homem à mercantilização do tempo
Man's submission to the commodification of time
Marcos Silva Santos; Romário da Silva Santos
Universidade Federal do Ceará (UFC)
RESUMO
O presente estudo tenciona tecer uma crítica ao excesso de tempo devotado ao trabalho, avaliando e reconhecendo como isso foi edificado socialmente, principalmente em relação às perdas para a vida individual e coletiva. Em virtude da obscuridade, transversalidade e multiplicidade de sentidos atribuídos ao tempo, o que era visto como conceito é tratado como categoria. Sendo assim, desenvolve-se a categoria tempo a partir de uma perspectiva analítica de sua função na contemporaneidade, de modo a captar como tal conceito transmutou-se ao seu sentido atual para atender determinadas exigências, sobretudo econômicas. Objetiva-se, além de dissertar sobre a referida categoria, compreender de que modo o sujeito troca seu tempo por recursos financeiros, reconhecimento social e pessoal, por meio da atividade/ação do trabalho. Conclui-se que a relação estabelecida é inexorável e necessária para o metabolismo social, porém os sacrifícios no âmbito individual e coletivo são imensuráveis.
Palavras-chave: tempo; trabalho; recurso; capitalismo.
ABSTRACT
The time category will be developed from an analytical perspective of its function in the contemporaneity, aiming to capture how such a concept was transmuted into its current meaning to meet certain demands, mainly economic ones. Due to the obscurity, transversality and multiplicity of meaning assigned to time, which has been seeing as concept, it is going to be seeing as category. It aims to, additionally to lecturing on this category, comprehend the ways that people invest and trade theirs time for financial resources, social and personal acknowledgement, using their workforce to make it possible. It is understood that this relation is inflexible and crucial to the social metabolism, although the sacrifices in the individual and collective aspects are tangible. This academic research intends to formulate a critic to the excess of time devoted to work, evaluating and acknowledging how it was socially created, specially its losses for both individual and collective life.
Key words: mental health; general hospital; speech therapy
Introdução à construção histórica do conceito de tempo e sua correlação com o trabalho
Qual é a natureza do tempo? A noção de passado, presente e futuro ergue-se justamente na tentativa de sanar tamanha dúvida, mas será que não há outras respostas mais completas e que também remetem à experiência temporal? A sua essência pode repousar nos dias, semanas, meses e anos que fazem referência a sua trajetória como evento recorrente? O tempo também pode ser definido como "coisa" que marca o início e o término de um período, porém, de que modo isso é feito, uma vez que nada é capaz de representá-lo fielmente? Alguns podem recorrer à Física para tentar explicar tal indagação, ainda que a dúvida persista. Soma-se a isso o fato de que sua amplitude é imensa, sendo difícil pensar em algo, ou pessoa, que não esteja subordinado aos seus efeitos. Em suma, será que o tempo reside no resultado numérico fornecido pelos relógios - a duração -, ou seja, seu poder de conversão da realidade numa cifra numérica?
De todo modo, a experiência temporal deve ser mais que um simples algarismo, pois também é interação entre gerações, compreensão de aspectos físicos e sociais, entre outros tantos elementos. Quando o homem reduz o tempo a um produto quantitativo, ele finda usurpando sua vastidão, sua elaboração e sua singularidade como categoria complexa, transversal e cheia de sentidos fundados nas mais profundas vísceras sociais. Os instrumentos de medição do tempo comprimem sua infinidade de significados e sua própria construção, assim como os substantivos que reduzem o que há no mundo linguístico.
O tempo ainda detém um posto soberano sobre nossas vidas que independe da nação, continente, credo, sexo, quiçá universo. Todos estão submetidos ao seu domínio, sentindo na pele, no rosto e no corpo seus efeitos irrevogáveis e implacáveis. A ciência ainda busca recursos capazes de frear seu avanço impiedoso, mas ele continua seguindo seu curso inclemente. Na física moderna, a Teoria Geral da Relatividade destituiu o absolutismo Newtoniano, todavia, o conhecimento científico formulado ainda não possui os instrumentos necessários para aplacar seus efeitos sobre o semblante humano.
No alvorecer das civilizações, as discussões, enigmas e debates gerados em torno do tempo sempre estiveram dissolvidos na malha social por meio das eras, mesmo que com outros trajes e significados. Possivelmente, a recorrência de eventos e as transformações geradas no sujeito e no ambiente sejam suas únicas características permanentes (Elias, 1998). Não obstante, essa constatação não aplacou as indefinições e dúvidas que se engendraram no seio da humanidade, questões que nunca foram desfeitas e que perseveram até hoje. Para os integrantes dessas sociedades, o tempo também oferece a oportunidade de o homem situar-se diante de sua própria vida, colocando-o dentro de um espaço temporal cujo percurso possui início e fim bem definidos (Araújo; Duque, 2012).
Na atualidade, a sociedade contemporânea aprofunda e acelera seu ritmo com o fim de alcançar um maior progresso econômico, de modo a levar seus membros a seguirem esse compasso rápido e fugaz em suas vidas (Batista et al., 2013). Essa celeridade foi percebida, de forma mais acentuada, nas grandes metrópoles, as quais atingiram um maior crescimento econômico durante a Revolução Industrial. A cadência requerida pelo maquinário industrial promoveu ganhos e avanços à humanidade, contudo, a relação inicialmente benéfica tornou-se pesada demais ao homem contemporâneo.
Paralelamente, o tempo incorporou nos indivíduos a "disciplina" (Venco, 2012; Elias, 1998) imprescindível para que o desenvolvimento pretendido fosse alcançado. Era necessária a existência de sujeitos capazes de seguir normas e comandos sociais, alguns muito sutis, como aqueles representados pelos relógios, pois não havia nada que os obrigassem a seguir tais recursos. No entanto, desde muito cedo, todos aprendiam quais consequências negativas seriam produzidas caso não os seguissem.
Considerando o contexto anteriormente citado, a pesquisa em questão tenciona analisar a categoria tempo e suas transformações na contemporaneidade, mais precisamente no sistema capitalista de produção, aspirando compreender quais contribuições os diversos campos de conhecimento, sobretudo o próprio meio social, forneceram para formular os atuais sentidos, representações e características atribuídos à categoria.
Este artigo visa também refletir, mediante a literatura exposta, como o sujeito contemporâneo adentrou nesse campo laboral capitalista, que emprega o seu tempo (recurso da ação) para edificar um mundo melhor, teoricamente para si e para a comunidade, porém, ainda assim sua pobreza não cessa. Isso porque o esforço diário de vários trabalhadores é, muitas vezes, inversamente proporcional à oferta de um ambiente melhor aos seus familiares e à comunidade. A grande maioria não consegue chegar nem perto de usufruir plenamente das riquezas geradas pelo seu próprio trabalho e tempo investido. Mesmo entre aqueles que conquistaram fortunas inimagináveis, ninguém sabe a que custo isso foi adquirido, nem o trabalho/tempo que eles investiram, e continuam investindo, para continuar gozando dos bens angariados
Tempo como bem a ser investido/consumido
O capitalismo possui uma história longínqua e, por diversas vezes, pouco explorada, relacionada à ascensão da classe burguesa. O Antigo Regime, sistema em que apenas o clero e a aristocracia detinham o poder do Estado francês, gerou um grande sentimento de insatisfação popular, que culminou na Revolução Francesa, caracterizada pela derrocada do Antigo Regime e ascensão da burguesia ao poder (Costa; Almada, 2018).
Entretanto, o crescimento do sistema capitalista e sua soberania nem sempre foram estáveis. Basta citar diversas crises ao longo do século XX, como a ocorrida na década de 1970 nos países industrializados - quando prevalecia o modelo taylorista-fordista -, responsável pela reestruturação produtiva e o avanço de um novo modelo produtivo (toyotismo) pelo mundo. Consequentemente, ocorreram mudanças sociais e de grande extensão que viabilizaram a instituição de uma sociedade salarial, com elementos que culminaram na desregulamentação das leis trabalhistas e no avanço do liberalismo econômico, processos que abalaram os laços sociais, como atesta Nardi (2006).
Assim, os grupos que prosperaram em decorrência desse sistema sempre tiveram a luta de classes como propulsora de intensas transformações no cerne social (Marx, 2007), algo que não cessou com o declive da aristocracia a partir da Revolução Francesa; pelo contrário, perdura até hoje, sobretudo quando se trata da busca por condições e jornadas de trabalho dignas. Por conseguinte, a sociedade ocidental modificou-se severamente para atender às ânsias desse sistema. E, mesmo com suas crises, e quase colapso, firmou-se como estrutura hegemônica dotada de preceitos e condutas bem aclimatadas ao ambiente, com o objetivo de manter sua perenidade e capilaridade por meio dos séculos.
De modo análogo, a maneira sistemática e sutil com que o tempo domina as sociedades, como categoria social, também é fruto de tal sistema (Aquino, 2003). Desse modo, a categoria tempo é fundamental para compreender a atual organização social, algo edificado socialmente ao longo das eras, especialmente depois do advento do capitalismo, que se afastou da agricultura familiar para se ancorar ao sistema de produção, repercutindo de forma mais notória na vida cotidiana da população (Venco, 2012). Desde então, o tempo de trabalho tornou-se dominante e soberano (Aquino, 2003; Cardoso, 2009; Pietro; Ramos; Callejo, 2008) sobre a atual civilização Ocidental, deixando todos os outros tempos sociais à mercê de suas necessidades.
Nesse sentido, o tempo de trabalho surge como algo capaz de coordenar e deliberar os tempos de cada sujeito inserido no sistema capitalista de produção, colocando-se ainda como algo insubstituível, pois é dele que a grande maioria dos indivíduos retira seu sustento. O presente estudo busca, a partir desse tempo social específico, ir um pouco mais além, tomando o trabalho de Ramos (2008) como aporte teórico para compreender o tempo como recurso e suas nuances no atual contexto histórico:
Em alguns casos, o tempo se apresenta como um recurso (econômico, moral, político) da ação que pode se configurar como um ator-agente. Esse pode ser escasso, embora nem sempre seja considerado como tal. Em qualquer caso, o tempo-recurso disponível para o agente social pode ser usado de muitas maneiras: em alguns casos, é usado ou investido como se fosse um bem econômico que deve ser capitalizado; em outros, é retratado basicamente como um bem que se doa ou se dá a outro por causa de impulsos emocionais ou deveres morais; em outros, é considerado um bem que deve ser conservado para si, para o próprio cuidado e cultivo; em outros, finalmente, aparece como um bem para gastar no trato com o outro pelo simples prazer da comunicação. (Ramos, 2008, p. 110, tradução nossa)
O autor propõe que o tempo individual é algo passível de ser compreendido de diversas maneiras, principalmente como um recurso da ação, um bem consumido em proveito de determinado objetivo e contexto. Sendo assim, as ações carecem de segundos e minutos para ganhar materialidade no plano real. O referido estudioso concebeu isso mediante as verbalizações de seus entrevistados, todavia, isso não deixa de possuir apoio na realidade. O sujeito provê essa relação trocando seu tempo, investindo-o em ações que o consomem em detrimento de determinado contexto e ambiente, sejam eles econômicos, sociais, ou pela via da comunicação.
No âmbito laboral, o tempo é comumente transmutado em capital ante o trabalho, e o homem, por sua vez, coloca-se como sujeito capaz de alimentar essa relação. Ele investe músculos, nervos, energia na criação de objetos e bens a favor do capital, recebendo, ao final do processo, um salário que, em tese, corresponde ao tempo investido. No domínio das relações sociais, o tempo coloca-se como algo que pode ser aplicado na relação com o outro sem que haja necessidade econômica por trás de tal ação, configurando-se como doação ao outro e vice-versa, como nos minutos e horas gastos com a família, amigos e pessoas que se ama. Além disso, o referido autor propõe que, para além dos planos já citados, o tempo também é despendido a todo momento pela comunicação, ou seja, uma ação que perpassa toda a experiência humana. O tempo torna-se vivido quando é investido em palavras, em frases e em discursos que remontam à experiência do sujeito que o percebe, sendo essa compreensão confeccionada conforme a sociedade que o cerca (Ramos, 2008).
Logo, a linguagem entraria como unidade básica capaz de dar vida à comunicação temporal dentro do grupo, pois é nela que o tempo se expressa, servindo ainda como instrumento de repasse aos membros das próximas gerações, isto é, sem ela o conceito de tempo jamais chegaria ao entendimento atual. Entretanto, citando o pensamento de Elias (1998), o poder de síntese e generalização desse símbolo social (tempo) também estaria comprometido na ausência de uma comunidade verbal, pois a comunicação humana nasce com um aparato biológico diminuto, e a linguagem é seu principal instrumento de aprendizagem. No estudo em questão, tendo em vista as diversas mudanças ocorridas na contemporaneidade e a dominância dessa dimensão temporal do trabalho sobre os indivíduos (Pietro; Ramos; Callejo, 2008), enfatiza-se o contexto econômico "tempo como recurso", de modo a tentar entender como tais autores perceberam essa intrínseca relação de "troca" entre sujeito e seu labor.
Ramos (2008) afirma que existem três verbalizações fundamentais presentes na experiência temporal dos sujeitos, a saber: recurso, ambiente e horizonte. Conforme o referido autor, há inúmeras metáforas, mas essas são as três principais. Como ambiente, o tempo faz referência ao local onde a ação está localizada, lugar composto por uma dualidade que oscila entre calmaria e tensão, entre o que é e aquilo que pode vir a ser. A compreensão de tempo como ambiente surge quando o indivíduo percebe o curso temporal, ora como bem arquitetado e imbuído de certezas, ora como um retrato fiel de desconexões e descontinuidades. Na metáfora em que o tempo aparece como horizonte, ele surge como aquilo que o sujeito utiliza para apreciar e ponderar suas ações, tendo em vista as suas experiências. O horizonte do tempo é percebido mediante um passado cristalizado e imutável, contrapondo-se às estimativas de um futuro cada vez mais incerto e funesto.
Ademais, as metáforas mencionadas são exemplos de crises vivenciadas pelo homem contemporâneo, tendo em vista que elas foram extraídas e condensadas por denotarem experiências temporais comuns à língua de um determinado grupo pesquisado pelo supracitado autor, sendo esses elementos verbalizados e elencados mediante a recorrência deles no discurso. Ramos (2008) ratifica que esse desequilíbrio/crise surge por intermédio da atual organização e coordenação dos tempos sociais.
Conforme Ramos (2008), a crise do tempo como recurso se dá pelo embate entre o querer e o dever incutidos no sujeito contemporâneo, tendo em vista a necessidade de engajamento cada vez maior ao mundo do trabalho, mesmo que seus anseios sejam outros. Soma-se a isso a inserção em um contexto permeado pelo discurso que posiciona o tempo como bem limitado e raro, figurando-o, então, como um recurso da ação escasso, algo que nunca está disponível para o sujeito em si, pois está regularmente empregado em atividades tecnicistas. Ou seja, ele é visto como algo pouco acessível a tarefas que estejam fora do âmbito profissional. Consequentemente, o tempo dedicado à família, aos amigos, ao próprio lazer é cada vez mais esquecido, sendo que para esses sujeitos, de fato, não há mais tempo, pois tudo é sacrificado em nome do trabalho.
Por exemplo, muitas vezes o presente é sacrificado visando ao desenvolvimento profissional, o cargo de gerência, a promoção, o aumento salarial e tantos outros objetivos que, de certa forma, também assinalam o reconhecimento pessoal e social que a atividade pode gerar aos indivíduos. A vida pessoal, por sua vez, é realocada em segundo plano e mediante as sobras desse intenso processo. Em suma, tudo é coordenado - energia, músculos, vida - para que os esforços no tempo presente possam, de alguma forma, edificar um futuro mais agradável e favorável ao sujeito, contudo, a relação fomentada é probabilística, haja vista que não há certezas.
Especificamente, a crescente dedicação ao ambiente laboral também é vista no contexto brasileiro. Campos (2012), ao citar pesquisa realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada), apontou que 45,4% dos trabalhadores entrevistados não conseguiam se desligar totalmente do trabalho após o expediente. O resultado demonstra um número expressivo, pois assinala que quase metade da população entrevistada ainda realiza tarefas referentes ao trabalho, mesmo estando num período, hipoteticamente, de descanso.
Acerca disso, muitas vezes o homem presenteia o capital com sua força física e intelectual visando ao reconhecimento pessoal, social, riqueza e tantos outros elementos (Bendassolli, 2009). Assim, ele renuncia a seu presente para se dedicar ao trabalho, executando outras tantas ações com o mesmo fim, tendo o seu próprio tempo (recurso de ação) como maior bem investido: "quem pode assegurar que o sacrifício do presente faça sentido e não aconteça que alguém acabe se arrependendo no outro dia de ter feito o hoje de maneira ingênua e baixos enganos?" (Ramos, 2008, p. 115, tradução nossa). Em outras palavras, a penitência no presente quase nunca é capaz de produzir um futuro melhor. Isso também reflete as sucessivas crises no sistema econômico de produção, colapsos que fazem o modelo mudar para atender às novas exigências, mas, em compensação, deteriora as condições de vida humana, agravando o processo de desregulamentação trabalhista, de instabilidade e de flexibilização produtiva na contemporaneidade (Lima; Barros; Aquino, 2012).
A crise do tempo como horizonte futuro surge nas discussões quando muitos homens e mulheres encontram-se perdidos nesse contexto de constantes e repentinas mudanças contaminadas por determinações temporais, de modo a provocar um abismo de incertezas. Esse resultado, embora marcado por inseguranças, faz esses sujeitos sacrificarem seu presente em prol de um futuro cada vez mais indefinido e sombrio. Um futuro, visualizado por meio do momento presente, que indica, na maioria das vezes, um cenário pouco animador e embebido de inexatidão, algo completamente contrário e incompreensível, já que o homem se dedica paulatinamente mais e mais ao trabalho.
Teoricamente, tamanha abnegação deveria estruturar um quadro futuro mais auspicioso e benéfico a cada um, entretanto, na prática, isso quase nunca ocorre. Além disso, mesmo percebendo que a relação nem sempre é benéfica, o sujeito acha-se coagido a mergulhar na atividade, na maioria das vezes, para sobreviver. No engodo de tais determinações, as queixas são comuns e também assinalam certo nível de sofrimento, como apontou Ramos (2008, p. 115, tradução nossa):
Queixa-se pela deterioração das condições de vida, queixa-se pelo empobrecimento das condições de trabalho, queixa-se pela dissolução do espaço comunicativo da família, queixa-se contra o inferno urbano e sua degradação da vida cotidiana, queixa-se frente à indiferença das autoridades públicas e empregadores frente a estes problemas etc.
Assim, para Ramos (2008), a dimensão temporal também é vista como uma enfermidade causadora de angústia, ansiedade e sofrimento aos sujeitos orientados e regulados por ela. Um exemplo de como as transformações sociais constantes do atual momento histórico também são geradoras de incertezas e mal-estar, algo que o homem contemporâneo está submetido, são as verbalizações de queixa em que se aborda a experiência temporal como produtora de patologias. Nessas disfunções geradoras de sofrimento ao homem contemporâneo, a crise do tempo como recurso e horizonte se faz presente. O horizonte entra em desequilíbrio quando denota um futuro inebriado, turvo e com densas nuvens capazes de impossibilitar qualquer planificação do futuro, contrastando com as ações do sujeito que se entrega mais e mais ao trabalho visando a um resultado contrário. Enquanto isso, na metáfora do tempo como recurso da ação, o homem encontra-se obrigado a doar seu tempo em prol do trabalho, sem restar recursos (tempo) para fazer o que deseja ou deve.
Desse modo, conforme tudo que já foi exposto, depois de compreender a categoria tempo como construção social, além de perceber também a existência de diversos tempos sociais distintos e sua percepção alçada pela experiência e vivência de cada indivíduo (Cardoso, 2009), o próximo passo será dado a partir de uma pergunta: qual o preço do seu tempo (recurso da ação)? A resposta pode oscilar sem nunca chegarmos a um número exato para todos os sujeitos interpelados por ela. Contudo, a atual civilização ocidental, que floresceu e conquistou seu maior apogeu econômico no período pós-Revolução Industrial, metamorfoseou-se nesse contexto de turbulentas mudanças, influenciando o homem por incutir nele uma vida cada vez mais pautada, metrificada e ordenada pelos ponteiros do relógio.
Nesse ponto, a criação (tempo) torna-se o carrasco do próprio criador, atuando como um forte regulador e orientador da conduta humana (Elias, 1998) com efeitos que perduram até hoje. Além disso, aquilo que antes era incalculável (seu tempo) passa a ser comumente medido e quantificado a fim de que, ao final do mês, o trabalhador receba sua remuneração. Salienta-se, nesse ponto, que a atribuição de valores remuneratórios ao tempo é relativamente recente, algo que surgiu como fruto da própria centralidade que o tempo de trabalho ganhou na nossa sociedade.
Objetificação do tempo ou simplesmente "tempo é dinheiro"
Benjamin Franklin, ao ser citado por Max Weber, expõe que o "tempo é dinheiro." (Franklin citado por Weber, 2009, p. 48), um jargão que ganhou mais prestígio e significado na era contemporânea, em um sistema que prega o acúmulo de capital como objetivo a ser atingido por seus membros, colocando-o ainda como elemento mediador de felicidade e bem-estar. Tal expressão enfatiza o utilitarismo cada vez mais premente em nossas vidas, já que não se pode perder tempo, pois isso significa também perder ou deixar de ganhar dinheiro. Esse fato intensifica-se haja vista que o sistema preconiza a concentração de recursos financeiros como um dos objetivos fundamentais, forçando o sujeito a utilizar bem seus segundos, minutos e horas da melhor forma possível, evitando qualquer desperdício.
Contudo, a acumulação de capital não chega a ser algo desmedido e livre de racionalidade. Para Weber (2009, p. 53) a "auri sacra fames" (a fome de riqueza) sempre existiu, e sua ancestralidade remonta ao surgimento das narrativas sobre o próprio homem. A dita expressão também pode ser classificada como sinônimo de condutas egoístas, desonestas e avarentas praticadas por sociedades onde o capitalismo ainda não estava plenamente desenvolvido (sociedades pré-capitalistas). No que se refere ao capitalismo moderno, há um incentivo ao lucro, de fato, mas de forma racional e ordenada, visando ainda a sujeitos capazes de seguir regras e princípios, o contrário da busca desenfreada por "dinheiro/lucro". Com isso, o autor visa destacar que certa "conscienciosidade" muitas vezes é ignorada pela crítica, fato que também não a torna menos nociva, pois o homem continua prisioneiro do sistema, restando a ele apenas uma pequena cifra do que é investido dia após dia.
Na Idade Média, a Igreja como instituição condenava a usura, uma conduta que aplicava juros superiores ao que era estabelecido por lei, com o fim de "aumentar os lucros". No final da Idade Média, o sistema capitalista começava a florescer, tendo o lucro e o acúmulo de capital como máximas, colocando ainda o trabalho como vocação a ser seguida pelos membros da comunidade a fim também de prover a sustentabilidade e perenidade do sistema econômico que despontava no horizonte. A usura não era tolerada pelo código moral e ético da época, assim como também não é admitida hoje, porém, no período medievo, a Igreja detinha muito poder sobre a vida das pessoas, fato que intensificava a coerção desses discursos.
Conforme Weber (2009), os medievos da escola nominalista colocaram essa forma de negócio como algo inexorável ao sistema, tentando justificar sua existência por ser algo indispensável ao comércio. Nesse momento histórico de conturbados acontecimentos, a riqueza burguesa aflorava e crescia, e a usura era uma atividade capaz de tornar isso realidade. Por conseguinte, o intolerado (usura) parecia ser algo bastante difundido no comércio medievo: "Crônicas, histórias e canções transbordam de parvenus, de homens que partiram do nada, e que, com a usura, o comércio e também o trabalho manual, ascenderam ao cúmulo do poder" (Rossiaud, 1989, p. 106). O ato de cobrar juros abusivos era uma prática inexistente, teoricamente, aos olhos da Igreja, uma vez que Deus recriminava tal conduta pelos escritos sagrados. Todavia, na época, entende-se que o crescimento econômico alcançado pela classe burguesa foi em grande parte viabilizado por intermédio da cobrança excessiva de juros, tudo em prol do lucro.
No capítulo O Espírito do Capitalismo, Weber (2009) salienta que esse desejo de conseguir mais e mais riqueza não é algo natural ao homem, inclusive até ilustra com o exemplo do sistema de recompensa por tarefas. Nesse modelo, o sujeito ganhava um valor para realizar certa função, logo depois recebia duas vezes por esse mesmo serviço, porém, mesmo com o acréscimo no saldo do trabalhador, não era visto como maior engajamento; podia ocorrer até mesmo o efeito oposto: ele começava a diminuir o montante de trabalho. Ou seja, o indivíduo não trabalhava mais para ganhar mais, engajava-se ao processo para atender, sobretudo, suas necessidades, visando preservar seu modo de viver. Por outro lado, caso suas necessidades fossem de grandes dimensões, a relação que antes era indireta poderia ser diretamente proporcional.
Dessa forma, a necessidade era o nascedouro de tais motivações. Tendo em vista o contexto contemporâneo, essa linha que divide necessidade e remuneração pode ser bem tênue, mesmo que, ao final do processo, a carência de algo seja o principal motivo. Então, no começo era preciso concentrar-se no lado oposto desse conjunto, pois o homem tinha que trabalhar mais e mais para receber a mesma quantia, de modo a aumentar os lucros da indústria e, consequentemente, a tornar o sujeito dependente e alienado a esse modelo.
No entanto, convém ressaltar que essa alternativa não funcionou, e nem funciona, em todos os casos, pois manter a produção à custa de baixos salários é infrutífero e danoso, sobretudo quando os meios de produção necessitam de mão de obra especializada ou quando os equipamentos são onerosos para o proprietário. Nesse sentido, a política de baixos salários não era benéfica para a produção de forma integral, criando, assim, outro problema para o capital. Logo, a sociedade precisou forjar e incutir em seus membros uma vocação ao trabalho, fazendo-os experienciarem um sentimento de dever para com a atividade (Pietro; Ramos; Callejo, 2008; Bendassolli, 2009), algo que se deu mediante um laborioso e extenso processo educativo. Weber, o já referido sociólogo alemão, dilata o campo de visão e aprofunda esses outros elementos que podem estar adjacentes à ação (trabalhar) do sujeito perante o processo produtivo no mundo contemporâneo, sem desconsiderar a importância da remuneração, mas colocando sua existência fora do âmago das discussões ao acrescentar outros processos pertinentes ao contexto. Conforme Marx (2006, p. 124), o salário "assemelha-se ao óleo que se aplica a uma roda para mantê-la em movimento".
Para Weber (2009), a emergência do "espírito do capitalismo moderno" deu-se por intermédio das camadas médias da população. A aristocracia e os antigos nobres, em contrapartida, participaram timidamente ou quase nada desse movimento. Os novos ricos foram exatamente a esfera da população que deu energia a esse fluxo, que deixou o desejo pelo lucro atravessar suas reais necessidades sociais, ainda que mediante ações ordenadas e sistemáticas. Weber (2009) afirma que esse processo ainda ocorre e em constante revolução, se comparado ao que substituiu o antigo regime.
No alvorecer desse processo, o homem passou a dedicar-se de forma mais integral ao trabalho, com o fim de constituir uma vida regrada, próspera e abundante conforme a aplicação dessa atividade, colocando a felicidade como propósito final de suas ações. Entretanto, é um anseio perceptivelmente ilógico, tendo em vista que é uma atividade desgastante, alienante e árdua, já que o sujeito sempre buscará melhorias contínuas, formando um eterno ciclo de retroalimentação, como é exposto no seguinte trecho: "E essa seria de fato a única motivação possível, mas ao mesmo tempo nos diz que, do ponto de vista da felicidade pessoal, parece por demais irracional esse tipo de vida em que o homem existe para o seu negócio, quando deveria ser o contrário" (Weber, 2009, p. 63). Ou seja, trata-se de uma construção social necessária e vital ao sistema, mas que detém diversos caminhos que levam o homem a trabalhar.
Com base nesses questionamentos, objetiva-se evidenciar a contínua entrega do homem ao trabalho, em um sistema que promete ao sujeito uma vida mais confortável, tranquila e próspera, quando, na realidade, ele desgasta-se no processo de busca por uma "melhora de vida/felicidade" que pode nunca chegar. Esse sujeito, muitas vezes, faz uso do tempo como recurso da ação, sacrifica seu presente por um futuro cada vez mais indefinido e sinistro que possui, talvez, como maior certeza a imprevisão. Assim, mais uma vez a crise do tempo como recurso e horizonte é destacada, pois é imposta ao sujeito uma entrega cada vez mais acentuada ao mercado, mesmo que nada seja capaz de lhe assegurar um futuro mais agradável.
Tempo aplicado ao trabalho sob perspectiva macrossocial
Ao realizar uma macroanálise social, Marx (2006) afirma que, na sociedade burguesa, a mercadoria é o alicerce de toda sua riqueza, provida de uma dupla existência manifestada em valor de uso e troca. O valor de uso tem uma característica mais qualitativa, fazendo referência às propriedades físicas do objeto: "A forma sob a qual a mercadoria é um valor de uso confunde-se com sua existência material tangível." (Marx, 2007, p. 50), sendo a mercadoria algo estruturado e empregado para atender às necessidades sociais, todavia, ela mesma não expressa uma relação de produção. A relação de produção é exteriorizada pelo valor de troca, uma relação quantitativa, simples e uniforme do tempo de trabalho, pois a "troca" é realizada mediante o trabalho corporificado a elas: "O tempo de trabalho é a expressão quantitativa do trabalho" (Marx, 2007, p. 53). A correlação realizada surge do relacionamento dos valores de troca, sem qualquer relação com as propriedades naturais da mercadoria. Ou seja, a mercadoria não é nada mais que tempo de trabalho agregado, minutos que passam a ter um valor à medida que são trocados.
Os objetos produzidos mediante esse processo subjugam o sujeito à produção. O homem se objetifica no percurso, finda sendo escravizado por sua própria criação, tendo em vista que sua "força de trabalho" é propriedade da classe burguesa, a qual também é dona do produto final do trabalho. Logo, o sujeito passa a ser apenas mais um custo dentro do processo produtivo, assemelhando-se ao maquinário e às ferramentas usadas na produção fabril.
Para Marx (2006, p. 111), "o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, opõe-se a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, que se transformou em coisa física, é a objetificação do trabalho". Sendo assim, o indivíduo relaciona-se com o resultado do seu trabalho de forma estranha, em outras palavras, alienada, uma vez que não se reconhece no objeto fruto da sua atividade. A mercadoria toma a vida do próprio trabalhador para se fazer presente no plano material. Vale destacar que essa vida é, melhor dizendo, o próprio tempo do indivíduo empregado progressivamente naquela tarefa. Isto é, o objeto escraviza e aliena, à medida que: 1. é fonte de trabalho; 2. provê recursos de subsistência. Acerca dessa alienação do trabalho presente na economia política, Marx (2006, p. 113) disserta:
Quanto mais o trabalhador produz, menos tem de consumir; quanto mais valores cria, mais sem valor e mais desprezível se torna; quanto mais refinado o seu produto, mais desfigurado o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, mais desumano o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente se torna o trabalhador; quanto mais magnífico e pleno de inteligência o trabalho, mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna escravo da natureza
O "mundo dos objetos" descrito por Marx (2006) evidencia, sobretudo, as consequências contraditórias e alheias produzidas pelo trabalho na criação desses instrumentos. É um universo capaz de aprisionar, obrigar e escravizar seu próprio criador em favor da produção. Conforme essa lógica, o homem equipara-se às máquinas, com movimentos velozes, repetitivos e cronometrados, objetivando possuir mais e mais capital, mesmo que jamais consiga acessar o produto do seu trabalho.
Para Cardoso e Grisci (2012, p. 198), "o processo de intensificação do trabalho é resultado do aperfeiçoamento tecnológico", já que o sujeito necessita desenvolver atividades cada vez mais constantes e velozes para acompanhar o ritmo do maquinário industrial. Por outro lado, a mesma tecnologia que aumentou a produção fabril também possibilitou outras formas de trabalho, como o "home office" e outros meios de trabalho remoto, dissipando mais ainda a fina membrana que separa o tempo de trabalho do de não trabalho. Consequentemente, a necessidade de atividades constantes e em tempo integral promove a flexibilização da jornada de trabalho, em que há total liberdade do sujeito para começar ou terminar seu expediente, contrastando com as metas e objetivos designados pelo capital. Desse modo, a distância e as relações estabelecidas entre o trabalhador e mercadoria produzida ganham outros elementos que a distanciam ainda mais de quem os produz. Assim, o sujeito não trabalha para si, mas para outrem, reforçando o entendimento da atividade forçosa, compulsória e alheia.
Também é verdade que a expressão genuína de liberdade humana habita ações, como o comer, o dormir, o reproduzir, aproximando-se dos animais. O animal identifica-se completamente com sua atividade vital, porque constrói habitações, caça para alimentar sua fome e modifica apenas aquilo que é essencial para sua subsistência. Contrariamente, o"homo sapiens" - homem sábio - altera o meio até quando suas necessidades imediatas estão satisfeitas. Por conseguinte, o trabalho surge, para esse homem sábio, como a única atividade vital capaz de satisfazer suas necessidades e de prover sua existência física. Sobre isso, é demasiadamente estranho perceber que tamanha "racionalidade", a que construiu impérios, reinos e nações, seja a mesma que explora, subjuga e escraviza sua própria raça.
Para Marx (2006), a vida produtiva é uma vida genérica, pois sua existência é formulada e alterada por outra preexistente. Em outras palavras, a vida genérica discorrida por Marx (2006) é dotada de consciência, ações planejadas e livres que visam à criação de instrumentos, contrapondo-se às ações desordenadas e irracionais presentes na vida de outros animais, cuja identificação com suas atividades é total, pois são imediatas e atreladas apenas à sobrevivência deles ou da espécie. Em relação ao humano, essa outra vida domina o indivíduo, bem como o transforma em força de trabalho por almejar criar objetos úteis socialmente, tornando-o alienado ao produto do seu trabalho.
Alinhando-se ao pensamento de Rousseau (2007), a expansão do conhecimento humano balanceou os males que a partir dele ganharam vida, assegurou diversos avanços e criou necessidades referentes ao ambiente, carências inexistentes ao homem selvagem e aos próprios animais irracionais. Conforme o autor: "Digo a dor, e não a morte; porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o reconhecimento da morte e seus temores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal" (Rousseau, 2007, p. 43). O distanciamento dessa condição animal e o progresso científico acumulado durante as eras possibilitaram uma melhor compreensão de si e a apropriação do espaço; e, por intermédio do trabalho, criaram um novo mundo, reunindo novas necessidades incutidas ao sistema e a cada sujeito que faz parte dele.
Primeiro, o trabalho firma-se como ação edificadora de objetos, indiferentes ao ser que o fabrica, capazes de dominar e comandar quem os constitui. Por conseguinte, o homem conecta-se ao trabalho como atividade e o faz meio e objetivo de vida, sendo ainda compreendido pelo indivíduo como sinônimo de omissão, sofrimento, desgaste mental e físico: "E o que será a vida senão atividade?" (Marx, 2006, p. 115). Por fim, o autor ressalta a vida genérica, alterada e disforme que foge da vida natural da espécie humana, algo que foi forjado por intermédio desse processo na produção. A vida ordenada e embebida de consciência gerada pela alienação é, portanto, genérica, por isso não é natural e livre de identificação.
Por conseguinte, a propriedade privada seria o produto do trabalho alienado, que é indiferente ao sujeito, pois não pertence a quem produz, mas a outro homem: "Só o homem, e não os deuses ou a natureza, é que pode ser este poder estranho sobre os homens" (Marx, 2006, p. 119). A alienação ocorre quando o trabalhador cria objetos/ "mundo de objetos", mas a criação não lhe confere a posse, tornando a coisa construída uma mercadoria. Esses objetos necessitam de atividade organizada e consciente, com ações que carecem de horas e minutos da vida de cada sujeito escravizado por ela para se fazer presente no mundo: "O trabalho é vida, e se a vida não for todos os dias permutada por alimento, depressa sofre danos e morre" (Marx, 2007, p. 76).
Processualmente, o valor dos objetos também é alterado mediante a alienação, pois o valor de uso deixa de ser particular, de modo a transformar-se em trabalho útil social; logo, adquire valor de troca. Ao alienar-se, a mercadoria assume o valor de troca nas relações sociais, tendo um tempo de trabalho geral corporificado aos objetos, enquanto a mercadoria, em seu modo primitivo de existência (valor de uso), possui o tempo individual como instrumento criador (MARX, 2006).
Marx (2007) teoriza esse sucessivo escambo entre sujeito e sua atividade em diversos escritos, porém toma como base outra via de apropriação mais tangível e perceptível, porque, se o sujeito é capaz de criar um objeto em determinado tempo, as horas e os minutos empregados estariam diretamente relacionados ao tempo de trabalho geral atribuído à mercadoria no final do processo produtivo. Em outras palavras, o valor adquirido pela mercadoria reside no tempo de trabalho investido. Ramos (2008), sob uma perspectiva mais imanente, manifesta suas ideias no campo da linguagem ao salientar que a permuta entre sujeito e sua atividade econômica é apenas um dos vários planos em que ela pode ser doada, oferecida ou concedida a outrem, colocando o tempo como um instrumento/recurso da ação utilizado nos mais variados contextos. Weber (2009), por sua vez, resgata certa "conscienciosidade" presente nessa "busca por lucro", incutida no sistema capitalista contemporâneo, elemento que muitas vezes é desconsiderado pela crítica.
Ao analisar os três autores, evidenciam-se os efeitos nocivos para a vida do indivíduo que se faz instrumento do sistema de produção capitalista contemporâneo. É perverso demais pensar que é por intermédio do homem que o sistema consome, degrada e adoece seu principal instrumento de exploração: o próprio homem, sua fonte de riqueza. Talvez, a melhor metáfora que se assemelhe ao tempo trabalho seja aquela atribuída ao titã Cronos na mitologia grega, o deus do tempo que tudo consome de forma impiedosa, assim como o trabalho que devora/transforma para atender determinadas exigências do sistema de produção.
Em contrapartida, o homem contemporâneo não está habituado ao ócio ou dificilmente lhe é permitido desacelerar o ritmo, para valorizar as relações pessoais, colocadas muitas vezes em segundo plano. Tal conjuntura nos leva a pensar como os indivíduos podem se apoderar desse mesmo tempo e revertê-lo, de forma a atender as suas necessidades de subsistência sem deixar de lado a qualidade de vida e as relações pessoais tão necessárias à vida em sociedade. Nesse sentido, explorar formas mais saudáveis de conversão do tempo do indivíduo é extremamente essencial - citá-las aqui demandaria um caminho que este trabalho não objetiva, contudo há possibilidade em produções futuras.
Considerações finais
O mundo metamorfoseou-se ao longo dos milênios. O homem também mudou, especialmente quando almejou expandir seu domínio sobre a natureza. O corpo social cresceu tencionando acompanhar o ritmo e as ânsias de seus membros por meio do trabalho, atividade capaz de transformar esse desejo em realidade por atuar na natureza para facilitar a vida e ampliar a dominância do homem sobre a Terra. Essa mesma atividade construiu vilas, cidades, impérios e nações, ao passo que o sistema criou mecanismos de incutir no homem uma abnegação cada vez maior ao trabalho, visto que seu uso era inelutável e essencial. Nesse sentido, o tempo torna-se circunvizinho de tais determinações, pois o sujeito que dá vida ao sistema é o mesmo que abastece com seu tempo - um meio pelo qual a atividade ganha existência - as relações produtivas que edificam a sociedade contemporânea.
Como consequência, os infortúnios e as disfunções que afetam a qualidade de vida nascem da sujeição ao capital, consumindo escolhas/tempo e autonomias individuais em detrimento da produção e do lucro. As mercadorias desse modelo econômico ganham contornos e delineamentos por intermédio do tempo investido/transferido a cada objeto ali presente, criado para satisfazer as necessidades sociais, porém, as urgências/carências que se projetam no mundo, em pleno século XXI, são inimagináveis e insaciáveis. Em outras palavras, a mercadoria produzida pelo capital é o alicerce que edificou toda a riqueza burguesa, sendo difícil imaginar seu contentamento.
No modo de produção capitalista, os tempos de trabalhos são intensificados e seguem galgando mais e mais espaço na vida contemporânea. Esse sistema vocifera falácias e inculca no sujeito a renúncia necessária para que os períodos dedicados ao trabalho sejam sempre hegemônicos e perenes. O homem, muitas vezes, opera provendo essa composição com seu próprio tempo, postergando momentos com a família, os amigos, os filhos e a comunidade em geral. Quando obtém o lugar desejado na cadeia produtiva, a velhice chega impiedosa e brutal visando reaver o tempo perdido/investido.
Na outra extremidade, um grande segmento da população não consegue sequer conquistar o emprego pretendido, tampouco um local menos precário na produção, uma vez que o trabalho se coloca como meio de sobrevivência. Nos dois extremos e naquele interstício que resguarda as características desses segmentos, todos se submetem ao avanço da terceirização, à desregulamentação trabalhista, ao empobrecimento das relações sociais e à perda de diversos direitos duramente conquistados que desvanecem como fumaça no limiar.
O sistema capitalista dissipou a consciência de "bem comum" e a noção de comunidade diante dos interesses individuais e particulares (Comparato, 2011), por meio da criação de um ambiente propício apenas ao amor-próprio, ao individualismo e à competição que dele aflorava ao utilizar tais elementos como instrumentos cruciais na construção do novo sistema que amadurecia no horizonte. Antes disso, a Igreja medieval beneficiou o capital aspirando doutrinar sujeitos. Mais tarde, as entidades de ensino herdaram essa visão uma vez que instigavam nos trabalhadores uma dedicação maior à produção, insuflando um homem disciplinado e autorregulado que serviria de instrumento capaz de sustentar as relações de produção tão necessárias ao capitalismo contemporâneo.
Nesse sentido, o trabalho é uma atividade prescrita mediante moldes imperceptíveis, que estão dispersos na malha social desde muito cedo, tendo a participação da escola como instituição crucial nesse processo, de modo a transformar homens em vassalos, submissos ao trabalho. Esses sujeitos convertem suas ações em objetos sociais que exigem tempo para lograr existência no plano material.
Dessa forma, o trabalho retira tempo daquilo que não é lucrativo e o doa ao capital. Todavia, esse trabalho célere, intenso e disforme não é capaz de arquitetar um futuro condizente com tamanha abnegação, visto que a instabilidade presente nas atuais relações trabalhistas acentua e incide seus efeitos sobre os sujeitos que delas dependem, exacerbando suas consequências disruptivas e nocivas à vida individual e coletiva, esfacelando, ainda, os laços e a coesão social. Contudo, mesmo com uma infinidade de efeitos deletérios, a população continua outorgando sua liberdade, suas escolhas, seu lazer e sua família em prol do trabalho.
Também é verdade que o trabalho, como ação transformadora do ambiente, promoveu domínio, comodidade, recursos e tecnologias, de modo a atuar na subjetivação de outros tantos indivíduos submetidos a ele. Os resultados foram desfrutados pelo homem e outras tantas sociedades capazes de promover a soberania sobre o globo e salvaguardar a espécie. Apesar disso, essa relação torna-se injusta quando o tempo dedicado ao trabalho é desproporcional e alheio às suas vontades; quando o criador é subjugado pela criação, que clama sempre por mais sacrifício/tempo. Esse homem coloca a produção, o lucro, o próprio capital à frente de si e da comunidade onde vive, visando ascensão social e fortunas inimagináveis que talvez nunca aflorem em sua vida. O sujeito culmina colhendo o egoísmo, o individualismo, a competição semeada pelo sistema, e ela o constitui como homem contemporâneo.
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Recebido em: 08/08/2020
Aprovado em: 19/12/2020